Introdução
Desde o Tractatus Logico-Philosophicus (1994), a grande questão filosófica de Wittgenstein era a de explicar como é possível que domínios tão diferentes como os da linguagem, pensamento e mundo se relacionem entre si, interrogando-se sobre as condições de sentido de nossos enunciados: como é possível que através de sons empíricos sejamos capazes de atribuir sentido aos fatos do mundo? Haveria uma ordem a priori comum ao mundo e à linguagem, intermediando estas relações? Estas questões permanecem na segunda fase do seu pensamento, ao procurar resolver alguns problemas identificados em sua primeira grande obra, problemas que, ao serem investigados, irão conduzi-lo a uma nova concepção de linguagem.
De fato, a partir da década de 1930, uma proposição com sentido não será mais descrita por ele como uma imagem1 estruturalmente isomorfa aos fatos que ela representa (Tr 4.032), mas como uma hipótese que se adequa às circunstâncias em que é utilizada. Ao invés de postular uma forma lógica a priori comum à linguagem e ao mundo como condição de representação, Wittgenstein passou a investigar a multiplicidade de usos de nossas palavras e expressões linguísticas em diferentes situações, envolvendo ações, interlocutores, sensações e objetos empíricos. Estas e outras mudanças de seu pensamento, a meu ver, configuram uma segunda virada linguística2, com impactos em todas as áreas do saber, em particular, na educação. Em seus escritos posteriores, encontramos uma série de afirmações que soam como teses filosóficas e que transcendem o domínio das questões filosóficas tradicionais, pois versam também sobre matemática, psicologia, antropologia, religião, arquitetura e, em várias passagens de sua extensa obra, também encontramos enunciados sobre ensino e aprendizagem, chegando a se dirigir diretamente aos educadores. No parágrafo 419 de Zettel (Fichas), por exemplo, faz uma advertência a eles: “Toda explicação tem o seu fundamento no treino. (Os educadores deviam lembrar-se disto)”. E na mesma obra chega a se perguntar: “Estou fazendo psicologia infantil? - Estou fazendo uma ligação entre o conceito de ensino e o conceito de significado” (Wittgenstein, 1967, p. 412).
Nada mais natural, então, que educadores e, em particular, filósofos da educação sintam-se tentados a converter determinadas máximas wittgensteinianas em teorias educacionais, sem atentarem para o fato de que o filósofo nunca teve a pretensão de proclamar qualquer espécie de enunciado tético, e, muito menos, elaborar uma teoria filosófica; muito pelo contrário, a finalidade da investigação filosófica, a seu ver, deveria ser apenas de esclarecimento conceitual, desfazendo confusões advindas de teorias dogmáticas do campo da filosofia. Entretanto, os limites e perigos de uma transposição indevida de resultados de uma área para outra podem ser evitados ao se ter clareza da natureza desses enunciados. Como argumenta Moreno (2005), não se trata de teses propriamente ditas, mas sim resultados da terapia wittgensteiniana a respeito de diversos temas, dentre os quais, a questão da (im)possibilidade de uma linguagem privada, sua crítica ao ideal de exatidão, e, fundamentalmente, sua crítica à concepção agostiniana de linguagem. Segundo Wittgenstein, esta concepção de linguagem está na origem da maior parte das confusões filosóficas, e seguindo a trilha de nosso filósofo, argumentarei que estas repercutem também no campo da educação.
Duas Concepções de Linguagem: Agostinho versus Wittgenstein
Wittgenstein (2009)3 empreendeu uma crítica contundente à imagem agostiniana de significação em sua obra Philosophical Investigations, que se inicia com uma citação de Agostinho. Nesta citação, o filósofo da patrística descreve como havia aprendido sua língua materna, pressupondo que as condições de significação estariam dadas por ligações imediatas dos signos com os objetos designados. Este pressuposto é explicitado em outra obra de Agostinho (2002), O Mestre (De Magistro), onde ele investiga de modo mais minucioso as finalidades da linguagem e suas relações com o ensino, através de um diálogo com Adeodato, seu filho, na época com 15 anos de idade. Neste seu tratado sobre linguagem e educação, Agostinho (2002) faz as seguintes afirmações: toda palavra é um sinal, e como sinal deve se referir a algo no mundo. O significado de um sinal não pode ser outro sinal, mas sim a própria coisa designada pela palavra.
Tendo como base as premissas acima, Agostinho (2002) argumenta que seria possível mostrar o significado de uma palavra apenas mostrando a que ela se refere, sem recorrer a outras palavras. Como exemplo, sugere a Adeodato que o significado da palavra parede poderia ser mostrado a alguém (que ainda não conhecesse esta palavra), apenas apontando-se para uma parede (Agostinho, 2002, p. 37). O seu significado, portanto, seria a própria parede apontada. Neste, e em outros exemplos, Agostinho vai deixando clara a sua concepção de linguagem: a comunicação linguística supõe a existência de uma autonomia do sentido, a que todos teriam acesso; como se a cada palavra devesse corresponder a algo fora da linguagem4. No caso de palavras como dor, felicidade, ou qualquer outra que não possa ser mostrada no mundo externo, sua significação poderia ser encontrada em um mundo interior, como se houvesse uma espécie de gesto ostensivo espiritual, apontando para dentro de nós5. O significado que atribuímos à nossa experiência externa ou interna, neste modelo agostiniano de linguagem, seria, portanto, anterior à linguagem e independente dela.
Como Wittgenstein (2009) observa logo no início de Philosophical Investigations, nesta imagem agostiniana de linguagem a significação é redutível ao processo de denominação: é o objeto que a palavra substitui6. Em outras palavras, Wittgenstein nos chama a atenção para a pressuposição de Agostinho de que haveria uma ligação imediata entre linguagem e mundo, pressuposto também presente em seu próprio tratado sobre a linguagem, escrito na sua juventude, o Tractatus Logico-Philosophicus. Este será um dos grandes temas de sua terapia filosófica, e também de autoterapia. Ao longo deste processo terapêutico, nosso filósofo irá observar que existem diferentes técnicas que ligam o nome ao objeto, em função do contexto em que a palavra é empregada, não havendo, portanto, esta pressuposta ligação imediata entre nome e objeto. O próprio gesto ostensivo será visto por ele como uma destas técnicas, empregado como parte do processo de constituição do significado, uma vez que este resulta de um trabalho da linguagem bem mais complexo.
De fato, se retomarmos o próprio exemplo de Agostinho, ao apontarmos para uma parede com o propósito de explicar o significado da palavra parede, o gesto ostensivo parece apontar para algo fora da linguagem, que seria o próprio significado da palavra que o representa. No entanto, este gesto não garante a compreensão do significado. Não é evidente para uma criança que está aprendendo a falar, ou para um estrangeiro que não conhece a nossa língua que estamos apontando para a parede, e não para a sua cor, para sua forma retangular, ou mesmo para um quadro que esteja pendurado nela (Wittgenstein, 2009, §32). Em contraposição a Agostinho, Wittgenstein observa que o significado não está dado previamente na própria experiência, mas vai sendo constituído gradualmente a partir de um trabalho da linguagem.
Desta perspectiva pragmática, sistematizada por Arley Ramos Moreno (2005) em seu livro Introdução a uma Epistemologia do Uso e em outros textos subsequentes, o processo de constituição do significado envolve dois níveis principais. No primeiro, o que temos são ligações preparatórias entre signo e objeto, forma e conteúdo, palavra e significado da palavra, regra e ação e, de modo mais geral, entre linguagem e mundo (Moreno, 2015). Estas ligações são tecidas através de técnicas, que precisam ser aprendidas pelo falante nativo. Estas técnicas, por sua vez, são construídas no interior de um jogo de linguagem, expressão cunhada por Wittgenstein para se referir às atividades permeadas pela linguagem. Embora o filósofo não defina em nenhum momento o que entende precisamente por jogo de linguagem, esta expressão é utilizada ao longo de sua obra para se referir a atividades regradas, envolvendo não apenas palavras, como também sensações, objetos empíricos, interlocutores, ações etc., como podemos observar nos exemplos que nos fornece de jogos de linguagem, em particular, no parágrafo 23 da obra Investigações Filosóficas.
No aprendizado da língua materna, a denominação de objetos, por exemplo, também se caracteriza como um jogo de linguagem7. Ao se nomear um objeto como parede, o gesto ostensivo de apontar para a parede estabelece uma relação entre estes dois fragmentos do empírico (o som da palavra parede e o objeto parede), no sentido de que a parede se torna uma amostra do que é ser uma parede; e não o próprio significado da palavra parede, acessível através da mera percepção sensível (como sugere Agostinho). Outros exemplos de paredes serão dados e, ao longo desse processo, a criança verá semelhanças de família8 entre as diferentes paredes, até que, a partir de um momento não previsível a priori, será capaz de ver uma parede diferente das que já conhecia, e chamá-la também de parede. É como se as primeiras amostras de parede desempenhassem uma função paradigmática, no sentido de servirem de referência para o que é ser parede, constituindo-se, gradativamente, um conjunto de regras de aplicação da palavra parede, que a criança aprende a seguir9. No segundo nível, podemos então dizer, que a criança adquire o conceito de parede, ou seja, já domina a Gramática10 do conceito de parede, sendo capaz de aplicá-lo em situações novas, e até mesmo, inusitadas.
Em suma, ao longo desses dois níveis, conexões de sentido se estabelecem entre a palavra e os diferentes objetos por ela expressos, constituindo-se uma ou mais regras a serem aprendidas e, posteriormente, seguidas em novas situações. Essas regras, por sua vez, constituem uma Gramática dentro de nós, não no sentido agostiniano de algo que abriga verdades absolutas reveladas por Deus (como um templo interior), mas como um sistema aberto de crenças que desempenha o papel de condições para atribuição de sentido ao que observamos, dizemos e fazemos.
Assim, ao se considerar a práxis da linguagem, não há mais necessidade de se postular entidades metafísicas ou de qualquer outra ordem para explicar este aparente abismo entre linguagem e mundo. O movimento de apontar para algo, como no exemplo acima ao se explicar a uma criança o significado da palavra parede, o gesto deixa de ser um movimento empírico qualquer, passa a ser um instrumento da linguagem. Além do que, a própria parede apontada também deixa de ser um mero objeto empírico, ou seja, não se está apontando para algo fora da linguagem, como interpretado por Agostinho, mas para algo que é incorporado à linguagem como uma amostra do que é ser parede. Em outras palavras, o objeto empírico parede é apropriado pela linguagem com uma função paradigmática, e o gesto ostensivo passa a ter uma função transcendental: diz o que é ser parede. Estabelece-se, assim, uma regra, que se aceita tal como aceitamos um axioma em um sistema de proposições da geometria euclidiana.
De modo análogo, nossas crenças expressas em proposições de linguagem também desempenham o papel de regras que aprendemos a seguir, tendo como base ligações arbitrárias de sentido (como se fossem axiomas) que se articulam entre si, resultando em outras crenças, formando assim um sistema de proposições que estão ancoradas umas nas outras. Nas palavras de Wittgenstein:
Quando começamos a acreditar em qualquer coisa, aquilo em que acreditamos não é uma proposição isolada, é um sistema completo de proposições. (Faz-se luz gradualmente sobre o todo) (Wittgenstein, 1998, §141).
Não se trata de um único axioma que me parece óbvio, é um sistema no qual consequências e premissas se apoiam mutuamente (Wittgenstein, 1998, §142).
Portanto, a concepção pragmática de Wittgenstein de aprendizagem de uma língua, como um processo complexo de aprendizagem de um sistema aberto de proposições ancorado em diversas técnicas, se opõe ao modelo agostiniano de aprendizagem de uma língua, conduzindo a conclusões muito diferentes sobre as relações entre linguagem, pensamento e mundo; em particular, quanto à possibilidade de uma linguagem privada:
Alguém que chega a um país estrangeiro às vezes aprenderá a língua dos habitantes por meio de explicações ostensivas que lhe são dadas; e, frequentemente, terá que adivinhar como interpretar essas explicações, e adivinhar às vezes com acerto, às vezes erroneamente.
Acredito que podemos dizer então: Agostinho descreve o aprendizado da linguagem humana como se a criança viesse para um país estrangeiro e não entendesse a língua do país; ou seja, como se ele já tivesse uma linguagem, só que não esta. Ou ainda, como se a criança já pudesse pensar, só que ainda não fala. E ‘pensar’ aqui significaria algo como ‘falar consigo mesmo’ (Wittgenstein, 2009, §32).
Nessa passagem, Wittgenstein inicia sua terapia da possibilidade de uma linguagem privada, presente na ideia de que a criança já seria capaz de pensar ao nascer, mas ainda não seria capaz de falar. Ou seja, como se a criança já tivesse uma espécie de linguagem privada ao nascer, que precisaria ser traduzida gradativamente para a língua do país em que vive, o que pressupõe uma autonomia de pensamento em relação à linguagem. Como veremos a seguir, essa imagem agostiniana (de que o pensamento é anterior à linguagem) é uma das fontes de confusões filosóficas, com repercussões em nossas práticas pedagógicas até hoje.
As Proposições Gramaticais como Fundamentos do Significado
Nesse ponto, podemos retomar a citação de Wittgenstein (1967) no início deste texto, onde ele retoricamente se pergunta se está fazendo psicologia infantil, e então responde que está observando que há uma conexão entre ensino e significado (Wittgenstein, 1967, § 412).
De fato, quando olhamos para a práxis de nossa linguagem, o que a princípio parecia invisível aos nossos olhos consubstancia-se no seguinte resultado terapêutico: o modo como determinado conteúdo é ensinado em contextos específicos - ou seja, as práticas envolvidas nesse ensino - constitui o sentido do que está sendo ensinado. Como vemos, a afirmação acima de Wittgenstein não se configura como uma tese, mas como uma descrição das maneiras como construímos sentidos por meio da linguagem. Recorrendo-se a diferentes técnicas, são estabelecidas ligações de natureza convencional entre a linguagem e o mundo, construindo-se regras que, uma vez expressas linguisticamente em nossas formas de vida, passam a comportar uma necessidade que não é mais questionada. Não podemos imaginar o contrário de certas afirmações, como por exemplo, isto é uma parede, esta é a minha mão, a Terra existe há muitos anos, cada objeto é idêntico a si mesmo, eu nunca estive na lua etc.11. Estas são certezas que adquirimos gradualmente a partir dos usos que fazemos de nossas palavras e expressões linguísticas:
Contam-me, por exemplo, que alguém subiu esta montanha há muitos anos. Informo-me sempre sobre a confiança que merece o narrador e se a montanha existia de fato há anos? Uma criança aprende que há informantes confiáveis e não confiáveis muito mais tarde do que aprende fatos que lhe são contados. Não aprende de modo algum que essa montanha existe há muito tempo: isto é, não se põe em questão isso ser assim. A bem dizer, engole essa conclusão juntamente com aquilo que aprende (Wittgenstein, 1998, p. 143).
A criança aprende a acreditar num grande número de coisas. Isto é, aprende a agir de acordo com essas crenças. Pouco a pouco, forma-se um sistema daquilo em que acredita, e nesse sistema algumas coisas permanecem inabalavelmente firmes, enquanto algumas outras são mais ou menos suscetíveis a mudanças. Aquilo que permanece firme não o é assim por ser intrinsecamente óbvio ou convincente; antes aquilo que o rodeia é que lhe dá consistência (Wittgenstein, 1998, §144).
Nestas passagens, Wittgenstein ressalta o processo de constituição de um sistema de crenças, que, embora não explicitadas pelo professor, são de algum modo engolidas conforme a criança aprende outras coisas. Em outras palavras, nossas certezas são adquiridas tacitamente e passam a desempenhar o papel de regras, orientando nosso pensamento. Algumas delas passam a ter uma função normativa, tornam-se nossas certezas inquestionáveis, não conseguimos imaginar o seu contrário: deve ser assim. Não consigo imaginar que esta não seja a minha mão, ou de que o que vejo à minha frente não seja uma parede, de que nem todo objeto é idêntico a si próprio, ou de que eu nunca tenha ido à lua. São enunciados denominados por Wittgenstein de proposições gramaticais, dado o seu caráter de regras que, uma vez adquiridas, passamos a seguir cegamente, não cabendo colocá-las à prova (Wittgenstein, 1998, §162).
Uma metáfora utilizada por Wittgenstein, que inclusive levou alguns de seus comentadores a postular uma terceira fase de seu pensamento, compara estas proposições com as dobradiças de uma porta12:
Isto é, as perguntas que formulamos e as nossas dúvidas dependem do fato de certas proposições estarem isentas de dúvida serem como que dobradiças em torno das quais as dúvidas giram (Wittgenstein, 1998, p. 341).
Mas a situação não se assemelha a isto: Não podemos investigar tudo e por isso somos forçados a nos contentar com suposições. Se queremos que a porta se abra, é preciso que as dobradiças lá estejam (Wittgenstein, 1998, p. 343).
Transpondo a metáfora da porta para a linguagem, as proposições gramaticais resultam dos diferentes usos de nossas palavras, ocupando o lugar das dobradiças ao redor das quais se move uma porta. Esta ideia é retomada em outra passagem, através de uma nova metáfora, que esclarece um outro aspecto da natureza desses enunciados, evitando-se a interpretação dogmática de que sejam verdades ancoradas em fundamentos últimos extralinguísticos:
Não aprendo explicitamente as proposições que são ponto assente para mim. Descubro-as subsequentemente como o eixo em torno do qual roda um corpo. Este eixo não está fixo no sentido de haver alguma coisa a segurá-lo, mas o movimento em torno dele determina a sua imobilidade (Wittgenstein, 1998, § 152).
Portanto, se pudermos falar de fundamentos últimos no sentido de Wittgenstein, podemos encontrá-los na forma destas proposições, que por sua vez, estão imersas em nossas formas de vida13: “Se esgotei as justificativas, cheguei então à rocha dura, e minha pá se entorta. Estou inclinado a dizer então: ‘É assim mesmo que ajo’” (Wittgenstein, 2009, § 217).
Como mencionado acima, estes modos de agir já fazem parte da linguagem, são práticas incorporadas por ela. Aprendemos a agir de determinada forma. O próprio gesto ostensivo, que em nossa cultura ocidental parece tão natural, trata-se, na verdade, de uma técnica da linguagem. Dependendo do contexto em que é utilizado, pode estar sendo utilizado para denominar algo, mas também podemos usá-lo para indicar uma direção (Wittgenstein, 2009, §6). Em outra forma de vida, diferente da nossa, pode ser interpretado como um mero gesto empírico, sem o sentido que atribuímos a ele.
Analogamente, as proposições gramaticais também repousam nestas práticas, e nada mais: “As crianças não aprendem que existem livros, que existem poltronas, etc. etc., - aprendem a buscar livros, sentar em poltronas, etc. etc.” (Wittgenstein, 1998, § 476). Uma vez cristalizadas dentro de nós, as proposições gramaticais passam a desempenhar uma função transcendental: dizem o que é ser algo: “A gramática diz que tipo de objeto uma coisa é. (Teologia como gramática)” (Wittgenstein, 2009, § 373).
Como vemos, à diferença de Agostinho, Wittgenstein observa que somos nós, enquanto seres linguísticos, que atribuímos necessidade a determinados enunciados, e não uma entidade metafísica que iluminaria as mentes de cada um. Nossas certezas são de natureza convencional, constituídas no interior de nossos diversos jogos de linguagem. O que não significa que a posição de Wittgenstein se aproxime de algum tipo de relativismo, onde a arbitrariedade das regras prevalece como fundamento do sentido. Embora a Gramática seja autônoma em relação ao empírico, constitui em nós uma imagem de mundo (Weltbild), que se torna “[...] o substrato de todas as minhas indagações e afirmações” (Wittgenstein, 1998, § 162). Questionar uma destas certezas, seria questionar todo o sistema:
É bastante certo que os automóveis não crescem da terra. Se alguém acreditasse no contrário, teríamos a impressão de que era capaz de acreditar em tudo o que consideramos não ser verdade e poderia pôr em questão tudo o que temos por seguro.
Mas como é que uma crença como essa pode se ligar a todas as outras? Diríamos que alguém que pudesse acreditar nisso não aceita todo o nosso sistema total de verificação. Este sistema é adquirido por meio de observações e instruções. Intencionalmente não digo ‘aprendido’ (Wittgenstein, 1998, § 279).
Assim, boa parte de nossas certezas é adquirida sem questionamento (são simplesmente ‘engolidas’), pois questioná-las seria colocar todo o sistema em questão. A dúvida, por sua vez, como nos lembra Wittgenstein, pressupõe a certeza. Nas próprias palavras de nosso filósofo: “Com efeito, como é que uma criança pode duvidar imediatamente daquilo que lhe ensinam? Isso só pode significar que ela era incapaz de aprender certos tipos de jogos de linguagem” (Wittgenstein, 1998, § 283). A implicação destas ideias para a educação, a meu ver, é imediata. Uma pedagogia, por exemplo, que desconsidera o solo de natureza convencional de nossas certezas mais fundamentais, pode dificultar sobremaneira as efetivas possibilidades de aprendizagem14. Na medida em que nossas certezas são de natureza convencional, este solo primário em que a pá entorta passa a ser condição para que haja pensamento, para que possamos falar em razão, ou melhor, em diferentes modos da razão15. Desta nova perspectiva da linguagem, conclui-se, portanto, contrariamente às ideias de Agostinho, que não há pensamento sem linguagem, e tampouco existe a possibilidade de uma linguagem privada.
Uma Razão Universal Versus Diversos Modos da Razão
Como já expus em outros textos16, a concepção hegemônica de linguagem ao longo dos séculos, até os dias de hoje, ainda é tributária da imagem agostiniana da linguagem, atribuindo-se aos enunciados de uma língua uma função meramente descritiva ou comunicativa dos fatos do mundo. Esta imagem da linguagem também está presente nas teorias do conhecimento (realistas, idealistas, empiristas, pragmáticas, entre outras) que orientam nossas práticas pedagógicas, e que, a meu ver, tem levado a diversas confusões no ensino de conteúdos escolares e consequentes dificuldades de aprendizagem. Nestes textos, argumento que a maior parte destas confusões pode ser esclarecida de uma perspectiva wittgensteiniana do funcionamento da linguagem, e que a reflexão filosófica de Wittgenstein sobre a linguagem poderia inspirar diretrizes educacionais que tenham como finalidade prevenir tais confusões, constituindo-se, assim, em uma espécie de pedagogia que não proclama como se deve agir, mas o que se deve evitar. Uma pedagogia negativa aos moldes de Rousseau?
Segundo Rousseau (1999), em sua obra Emílio, o professor não deve dar preceitos, mas sim adiar ao máximo qualquer educação formal. Isto porque do zero aos doze anos de idade a criança ainda não teria uma razão formada. Até por volta dos dois anos de idade criança é considerada por ele um ser pré-racional. A partir daí, começaria o desenvolvimento de uma razão sensitiva, que irá posteriormente dar lugar ao que ele denominará de uma razão intelectual. Daí o nome de educação negativa: evitar o ensino de preceitos enquanto sua incipiente razão ainda não tem como diferenciar o certo do errado, e o bem do mal. Ainda segundo o filósofo genebrino, o mestre só deve ensinar o indispensável, e, ainda assim, apenas se a criança não tiver como descobrir sozinha o conteúdo em questão.
Na base desta pedagogia temos uma concepção empirista do conhecimento: a experiência vem antes da linguagem, e analogamente a Agostinho, a significação do que é percebido através dos órgãos do sentido independe da linguagem. De fato, podemos ouvir ecos de Agostinho nas seguintes passagens de Rousseau (1999) em Emílio:
Repito, a educação do homem começa com o nascimento; antes de falar, antes de ouvir, ele já se instrui. A experiência antecipa as lições; no momento em que conhece sua ama-de-leite, ele já descobriu muitas coisas17 (p. 45).
Em qualquer estudo que seja, sem a ideia das coisas representadas, os signos representantes não são nada. Todavia, sempre limitamos a criança a estes signos, sem jamais podermos fazê-la compreender nenhuma das coisas que representam18 (p. 116).
Em geral, nunca substituais a coisa pelo signo, a não ser quando é impossível mostrá-la, pois o signo absorve a atenção da criança e faz com que esqueça a coisa representada19 (p. 209)20.
No entanto, à diferença do autor de O Mestre, os fundamentos últimos do sentido não seriam encontrados no interior de cada um, pois seria através da observação da natureza e da experimentação com as coisas do mundo empírico que a criança atribui significado ao que a rodeia, e só posteriormente caberia instruí-la recorrendo a signos linguísticos. Portanto, embora Rousseau tenha mantido o modelo agostiniano de linguagem, pressupondo também uma autonomia do sentido em relação à linguagem, de sua perspectiva epistemológica os fundamentos últimos do conhecimento estariam localizados no mundo empírico, resultando daí uma pedagogia que se baseia nas seguintes diretrizes: a criança deve descobrir os preceitos por si só, a partir da observação da natureza e da experimentação empírica, formando-se, assim, uma razão universal e livre de preconceitos da sociedade.
Estas ideias de Rousseau foram amplamente difundidas nos meios educacionais desde o século XVIII, repercutindo em diversas práticas escolares, denominadas de pedagogias da ação, pressupondo-se, até hoje, um desenvolvimento universal e natural da razão. Segundo algumas destas vertentes, a criança aprende fazendo21, como se a ação significativa fosse anterior ao pensamento, e este, por sua vez, seria independente da linguagem. Em suma, ainda se pressupõe uma autonomia do sentido em relação à linguagem, desconsiderando-se a importância do trabalho da linguagem na constituição dos sentidos que atribuímos aos fatos do mundo (sejam eles externos ou internos). Em contraposição a essas ideias ainda hegemônicas no meio educacional, a nova concepção de linguagem de Wittgenstein, a meu ver, possibilita repensar determinadas diretrizes pedagógicas, que ainda estão fortemente atreladas ao modelo referencial da linguagem.
Para nosso filósofo, por exemplo, pensar não é possível sem signos linguísticos. Além disso, pensar pressupõe o domínio de regras pertencentes a diferentes jogos de linguagem, constituindo-se, assim, diferentes modos de razão. Daí que, o que consideramos certo e o que julgamos errado é dado por nossas convenções linguísticas, constituídas no interior de uma forma de vida - e não decorrente de uma razão universal. Como ele nos lembra: “ ‘Estamos seguramente certos disso’ não significa apenas que cada único indivíduo está certo disso, mas que pertencemos a uma comunidade a qual está ligada conjuntamente pela ciência e pela educação” (Wittgenstein, 1998, §298).
Nossos diferentes jogos de linguagem aprendidos por meio da educação formal e informal são os que mediam esses domínios muito diferentes da linguagem, do pensamento e do mundo, desempenhando um papel transcendental no sentido kantiano. Seguidor das ideias de Rousseau sobre o desenvolvimento infantil22, Kant também via a razão como universal, mas possuindo uma estrutura necessária e a priori que organiza a realidade segundo as formas de sensibilidade e as categorias do entendimento. De sua perspectiva filosófica, os sentidos e a razão não possuem conteúdos a priori, são formas vazias, eles próprios, a priori. Digamos que as regras dos jogos de linguagem podem ser vistas em Wittgenstein de forma análoga às formas a priori de Kant, mas um a priori a parte post (Moreno, 2005), uma vez que não são universais, mas históricas e de natureza convencional. Elas vão sendo criadas em nossas formas de vida à medida em que os jogos são jogados:
Não é elucidativa a analogia da linguagem com os jogos? Podemos muito bem imaginar pessoas que se divertem num campo, jogando com uma bola, de sorte que começassem diversos jogos conhecidos, não levassem alguns até o fim, entrementes atirassem a bola para o alto sem objetivo, corressem uns atrás dos outros com a bola por brincadeira e atirassem-na uns nos outros, etc. E agora alguém diz: As pessoas jogam o tempo todo um jogo de bola, e por isso guiam-se, a cada jogada, por regras determinadas.
E não há também o caso, onde jogamos e - ‘make up the rules as we go along’? Sim, também o caso, em que nós as modificamos - as we go along (Wittgenstein, 2009, §83).
Assim, embora Wittgenstein não recorra a estruturas transcendentais como aquelas de tempo e espaço no sentido kantiano (universais e atemporais), permanece a ideia de uma função transcendental exercida pelas regras de nossos jogos de linguagem, mesmo que estas mesmas regras possam se modificar ao longo do tempo, ou que novas regras sejam inventadas. Regras que expressas através da linguagem verbal veiculam nossas certezas mais fundamentais. Ora, se o fundamento do conhecimento é expresso por certezas de natureza convencional, constituindo-se, assim, uma visão de mundo compartilhada por uma comunidade (através da ciência e da educação), em que sentido, então, podemos falar em uma pedagogia não propriamente negativa, mas preventiva? Para responder esta questão, retomaremos a questão colocada inicialmente relativa à natureza das afirmações de Wittgenstein ao longo de sua obra, que longe de se constituírem em teorias filosóficas sobre a linguagem, o conhecimento ou qualquer outro tema, possuem um outro caráter, bastante próximo das afirmações da ética e da estética, na medida em que têm como finalidade sua incessante luta contra o dogmatismo em geral23.
Rumo a uma Pedagogia ‘Preventiva’
Em sua sistematização dos resultados terapêuticos da filosofia de Wittgenstein, Moreno destacou as seguintes teses do filósofo austríaco, presentes em seus escritos, a partir da década de 30:
São afirmações sobre o aprendizado, isto é, distinções entre um saber como fazer, prático, e um saber a respeito de regras, teórico, guiando as nossas ações: distinções que permitem a Wittgenstein esclarecer o conceito de ‘seguir regras’ enquanto fundamento da ação significativa e do pensamento. São afirmações sobre estados mentais, internos, e processos físicos, externos, em suas inter-relações, visando esclarecer concepções mentalistas ou behavioristas sobre os fundamentos da ação significativa e do pensamento. Afirmações a respeito das relações entre ação e compreensão, que esclarecem o conceito de ‘interpretação’ de regras, ao mostrar que se trata de uma atividade de manipulação simbólica exercida em contextos sociais permeados pela linguagem, e não um ato mental solipsista (Moreno, 2005, p. 226, grifos meus).
No entanto, apesar da aparência tética destas afirmações, Moreno nos alerta que, na verdade, apenas expressam resultados de sua terapia filosófica, a qual tem como finalidade a dissolução de confusões de natureza conceitual. Adquirem, portanto, uma função preventiva, evitando-se, assim, outras confusões. Em princípio, todas as palavras podem nos levar a criar problemas filosóficos, e a terapia visa os conceitos que se tornam problemáticos no campo filosófico, recorrendo-se a diversos métodos para dissolver as confusões decorrentes de aplicações dogmáticas destes conceitos24. Vejamos, a seguir, um exemplo dado por Wittgenstein de uma situação imaginária de sala de aula, utilizada por ele, entre outros exemplos, para esclarecer o conceito de seguir regras, tema precioso para se investigar as enigmáticas relações entre o saber que e o saber fazer, no contexto escolar.
Um estudante do ensino fundamental é introduzido a um novo conteúdo, a sequência de números pares. O professor inicia a sequência, apresenta-lhe alguns exemplos de como se deve prosseguir, e em seguida pede a ele que continue a sequência, dando-lhe a ordem25: Some 2! (Wittgenstein, 2009, §185). Suponha que o estudante diga que compreendeu a ordem ou diga que sabe como proceder e continue a escrever os próximos números pares. Teria ele, então, de alguma forma, apreendido toda a sequência de uma só vez? Apreendeu algo que seria comum a todos os casos de sua aplicação? A cada passo, haveria uma intuição (uma voz interior) que orienta o estudante? Intuição ou decisão?
As questões retóricas acima levantadas por Wittgenstein têm como finalidade fazer a terapia da imagem agostiniana da linguagem, presente em concepções mentalistas do conhecimento. No caso acima, a crença de que o significado da ordem, Some 2!, deve corresponder a um determinado estado mental da criança (uma intuição ou algo semelhante), que seria independente e autônomo em relação à efetiva aplicação dessa soma, como se a compreensão fosse uma experiência privada (um ato solipsista), que abarcaria todos os casos de aplicação desta ordem. Ou então, como se a criança tivesse aprendido algo comum a todas as aplicações da ordem, o significado essencial da ordem. Ou ainda, como se a compreensão desta expressão, Some 2!, determinasse todas as suas aplicações efetivas. Em outros termos, atrelada ao modelo referencial da linguagem, surge a crença de que uma vez que a regra é compreendida, nossa ação seria determinada causalmente pelo significado da regra, obrigando-nos a segui-la a cada passo, como se não tivéssemos nenhuma outra escolha.
Tendo em vista a relativização dos pressupostos mentalistas acima, Wittgenstein imaginou a seguinte situação: a partir do número 1000, a criança repentinamente começa a escrever 1004, 1008, 1012 ... A criança ainda está seguindo a regra? O interlocutor mentalista poderia explicar o comportamento dessa criança dizendo que a partir daquele momento ela passou a interpretar a regra de outra forma. Mas então surge outra questão: seguir a regra seria o mesmo que interpretar a regra? Nosso filósofo responde a questão observando que se interpretar a regra de outra maneira é o mesmo que seguir a regra, chegamos a um paradoxo: “[...] se todo modo de agir deve poder concordar com a regra, então deve poder contradizê-la também. Por conseguinte, não haveria aqui nem concordância nem contradição” (Wittgenstein, 2009, §201). Assim, no mesmo parágrafo, ele conclui que
[...] há uma concepção de regra que não é uma interpretação; mas que se exprime, de caso para caso de aplicação, naquilo que denominamos ‘seguir a regra’ e ‘transgredi-la’. Por isso, existe uma tendência de dizer: todo agir de acordo com a regra é uma interpretação. No entanto, dever-se-ia denominar ‘interpreta’ somente: substituir uma expressão da regra por outra expressão (Wittgenstein, 2009, §201).
Em outras palavras, Wittgenstein propõe uma concepção de regra que difere do que chamamos de seguir a regra, considerando a interpretação da regra apenas como uma nova forma simbólica de expressão da regra. Segundo ele, o critério para saber se a regra está realmente sendo seguida deve ser aplicado em cada caso. Daí que, a dúvida é sempre possível, podendo surgir a cada nova etapa de aplicação da regra. Assim, desta perspectiva pragmática do conhecimento, o futuro não está contido ou prefigurado na mente da criança que afirma ter compreendido a ordem acima.
Para se contrapor à posição mentalista, Wittgenstein recorre a uma posição behaviorista: não haveria algo na mente do aluno que determina todos os passos de aplicação da regra, mas apenas um treinamento, um domínio de técnicas matemáticas, como condição para continuar a sequência corretamente. De fato, o filósofo nos lembra que no dia a dia usamos a expressão, os passos são determinados pela fórmula... em diferentes sentidos:
[...] Talvez possamos falar do fato de as pessoas serem levadas, através da educação (treinamento), a empregar [...] [Some 2!]; de tal maneira que todos [...] calculam o mesmo número [..] [quando somam 2 ao número anterior]. Ou podemos dizer: “Essas pessoas são treinadas de tal maneira que todas fazem a mesma passagem quando recebem a ordem [...] [‘ +2 ’]”. Poderíamos expressá-lo assim: “Para essas pessoas, a ordem [...] [‘ +2 ’] determina plenamente cada passagem de um número para o próximo”. (Em contraposição a outras pessoas que, dada a ordem, não sabem o que têm de fazer; ou que reagem com plena segurança, mas cada qual à sua maneira.) (Cf. Wittgenstein, 2009, §189, adaptado ao exemplo acima, com acréscimo dos colchetes em negrito, de minha autoria).
No entanto, as afirmações acima não significam que Wittgenstein assumiu uma posição behaviorista. Nos próximos parágrafos, ele observa que a ligação entre regra e ação não se deve apenas ao hábito ou treinamento específico, reduzindo-a a uma relação causal empírica. Ao invés disso, seguir uma regra é um hábito institucional, envolvendo diferentes técnicas. Deve haver um costume, um uso contínuo da regra. Acreditar que se está seguindo a regra não é seguir a regra. (Wittgenstein, 2009, §202). Uma criança que prossegue a sequência dos números pares após o número 1000, escrevendo 1004, 1008, 1012..., não estará mais agindo de acordo com a regra como se espera pela instituição do que denominamos conhecimento matemático, em que outros resultados são esperados ao se continuar a sequência dos números pares. Neste sentido, Wittgenstein se afasta de uma posição mentalista, como também de uma posição behaviorista: por um lado, a compreensão não é um processo mental; e por outro lado, não se reduz a um mero treinamento. Do ponto de vista terapêutico, o significado de uma regra se manifesta em cada caso de sua aplicação, no interior de um determinado jogo de linguagem. Não se trata, portanto, de uma relação mecânica (externa) entre a regra e sua aplicação, como se a regra causasse uma determinada ação; mas de uma relação de sentido (interna), que estabelece um campo de possibilidades de ação, ancoradas em formas de vida.
A partir desse diálogo polifônico entre Wittgenstein e seus interlocutores mentalistas e behavioristas sobre o tema do “seguir regras”, podemos extrair algumas consequências importantes relativas às nossas práticas de ensino. Se olharmos para nossas técnicas como sendo o alicerce de nosso patrimônio cultural, constituindo regras que orientam a nossa ação e o pensamento (e não os determinam), boa parte dos problemas filosóficos educacionais desaparecem. Penso que suas observações filosóficas ao longo da terapia de conceitos como os de compreensão e “seguir regras”, bem como suas afirmações sobre as relações entre os conhecimentos intelectual e prático, os diferentes processos de constituição do significado e assim por diante, todas essas reflexões evitam que, como educadores, sejamos capturados por imagens dogmáticas originadas de uma concepção referencial de linguagem.
Por exemplo, a imagem de que a compreensão deva ser um processo mental, independente da linguagem; ou a de que todo conhecimento possa ser descoberto diretamente da observação e da experimentação, como se houvesse uma correspondência direta entre palavra e objeto; que seguir uma regra seria o mesmo que interpretá-la; etc. A sua terapia filosófica permite-nos relativizar todos estes pressupostos dogmáticos e sugere, entre outros resultados, as seguintes diretrizes educacionais de natureza preventiva:
1- Compreender um conteúdo (saber que) não implica apreender a totalidade dos seus usos possíveis (saber como). Embora os exemplos dados pelo professor sejam limitados em número, eles são suficientes (Wittgenstein, 2009, §209). Em outras palavras, a compreensão não vai além dos exemplos dados pelo professor, como se fossem apenas parte da compreensão: o significado de nossas proposições gramaticais (que desempenham o papel de regras) se manifesta em cada uma de suas aplicações. Seguir a regra Some 2!, por exemplo, não pressupõe um ato solipsista. O que aprendemos, no caso da sequência dos números pares, é apenas uma técnica de expansão, em que novos elementos são integrados à sequência, independentemente de supostos processos mentais. Analogamente, compreender as proposições que norteiam nossa ação e pensamento é simplesmente ser capaz de agir de acordo com uma instituição, dentro de um sistema de ações, onde o aluno é treinado para agir de uma determinada forma, ou seja, aprende a agir publicamente; não se trata de uma interpretação privada do conceito em questão, ou da regra que está sendo seguida. Consequentemente, o domínio de técnicas é condição para a compreensão de qualquer conteúdo (Wittgenstein, 2009, §150). Não considerar os diferentes níveis de constituição de sentidos pode levar a várias confusões em nossas práticas pedagógicas, particularmente quando se espera que o aluno descubra por si só determinado conteúdo.
2- Os fundamentos do conhecimento não residem num mundo a priori (mental ou ideal), e tampouco no mundo empírico. O filósofo terapeuta nos mostra que não há autonomia do significado independentemente da linguagem; pelo contrário, os sentidos que atribuímos ao mundo externo ou interno resultam de um trabalho incessante da linguagem, constituindo-se um conjunto de regras (pertencentes a um ou mais jogos de linguagem diferentes) baseadas em técnicas diversas. Esses resultados terapêuticos levam a uma nova concepção de significado, sintetizada por Wittgenstein na seguinte afirmação: “Para uma grande classe de casos - mesmo que não para todos - em que empregamos a palavra ‘significado’, pode-se explicar esta palavra do seguinte modo: o significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (Wittgenstein, 2009, §43). A partir de sua nova concepção de linguagem e de significado, Wittgenstein observa que existem dois usos principais de uma proposição: um uso empírico (descritivo) e um uso gramatical (normativo). A proposição em si não é empírica ou gramatical; é o contexto de seu emprego que a torna descritiva ou normativa. Por exemplo, Se considerarmos, mais uma vez, a proposição, isto é uma parede, pode-se utilizá-la normativamente para responder à pergunta, o que é uma parede?, bem como para descrever o que se está vendo em determinado momento. Segundo Wittgenstein, uma de nossas principais fontes de confusão ocorre quando se aplica uma proposição gramatical como se fosse descritiva, ainda vinculados a um modelo referencial de linguagem que nos obriga a buscar algo a que o enunciado supostamente se refere, postulando-se entidades metafísicas, que por sua vez, instauram novas confusões. Este equívoco repercute em nossas práticas educacionais, em particular, no campo da educação matemática26, ao não se atentar para a multiplicidade das funções de nossa linguagem.
3- Os usos que fazemos de nossas palavras não se limitam a descrever ou comunicar fatos do mundo, mas sobretudo constituem o sentido daquilo que observamos, dizemos e fazemos. Este trabalho de linguagem pressupõe o domínio de técnicas, dentro de um ou mais jogos de linguagem, pertencentes a uma instituição, hábitos e costumes. Desse modo, Wittgenstein refuta o pressuposto originado de uma concepção referencial da linguagem, de que o significado de um conceito é apreendido de um golpe só (a totalidade é apreendida) e independentemente de sua aplicação efetiva. O significado de um conceito é dado por sua Gramática, ou seja, o conjunto de regras que aprendemos a seguir para usá-lo. A maneira como aplico a palavra que expressa o conceito mostra qual regra estou seguindo. Em outras palavras, o como precede o quê, e não o contrário! É a gramática que diz o que é o objeto. Nas palavras de Wittgenstein: “Diga-me como você procura e eu direi o que você procura” (Wittgenstein, 1989, III, 27)27. Nesse sentido, a criação de essências (nossas verdades) se dá por meio da prática da linguagem, e não por observação empírica ou experimentação, ou mesmo por uma intuição ou qualquer outro ato solipsista. Daí a importância do professor - não como mero mediador ou facilitador da aprendizagem - mas sobretudo como tendo a responsabilidade de ensinar, não só as regras de novos jogos de linguagem (saber que), como também de apresentar exemplos suficientes (e não exaustivos) de como segui-las.
4- Por fim, outro resultado terapêutico que considero particularmente relevante a ser considerado em nossas práticas pedagógicas: não há uma razão natural e universal a ser formada na criança. O que temos são diferentes modos de raciocínio, baseados em nossos diferentes jogos de linguagem. As regras desses jogos são intrinsecamente vagas, o que nos permite passar de um jogo para outro, utilizando o mesmo conceito28. Apenas para determinadas finalidades, certas regras são definidas com mais precisão. Por exemplo, a palavra “igual” pode ser usada no jogo de linguagem das cores, ao compararmos a cor de dois objetos e dizendo em seguida que têm cores iguais (os dois objetos são vermelhos, por exemplo, mesmo que vermelhos de tonalidades diferentes); como também pode ser usada no campo da aritmética ao dizermos que 2 + 2 = 4. Como vemos, no jogo de linguagem das cores, aplicamos a palavra igual com uma certa vagueza, enquanto na aritmética é utilizada como conceito exato. Assim, os limites do sentido de um mesmo conceito podem variar de um jogo para outro, dependendo de suas finalidades. No primeiro caso, estamos descrevendo a cor de dois objetos com um certo grau de vagueza, enquanto que no segundo caso, trata-se de uma norma: dois mais dois deve ser igual a quatro. Consequentemente, aplicar um conceito a um determinado jogo de linguagem usando as regras de outro jogo também pode levar a confusões. Uma criança que já foi apresentada a certo jogo de linguagem em suas práticas diárias, tenderá a seguir as mesmas regras, mesmo que a palavra esteja sendo usada em um novo jogo de linguagem, que está sendo aprendido na escola. Essa dificuldade epistemológica às vezes passa desapercebida pelo professor. Não se trata de maneira alguma de negar o uso primitivo do conceito em questão, mas cabe ao professor esclarecer o novo emprego da palavra que expressa o conceito29, ou em uma terminologia wittgensteiniana, o novo sentido do conceito, ampliando-se, assim, a gramática de seus usos.
Considerações finais
A reflexão de Wittgenstein sobre o conceito de seguir regras e suas relações com os processos de constituição de sentidos desafia o educador a repensar suas práticas pedagógicas. Se considerarmos que cada disciplina compreende uma grande variedade de jogos de linguagem, atividades reguladas que envolvem não só um saber que (regras), mas também um saber fazer (seguir regras), algumas transposições, com o devido cuidado, podem ser feitas. Por exemplo, repensar a relação entre regras e atividades nas diferentes disciplinas do currículo escolar. Na medida em que estas relações envolvem técnicas de natureza convencional e específicas de cada área do conhecimento, elas precisam ser ensinadas (quando não são aprendidas tacitamente), e não esperar que o estudante as descubra ao longo do desenvolvimento de uma suposta razão natural e universal. Assim, ao ensinar um novo conceito (ou um novo uso de um conceito já conhecido), o professor pode evitar diversas confusões ao apresentar não apenas algumas definições, mas também fornecendo exemplos de como aplicá-los em diferentes situações. Os exemplos, assim como certos exercícios (treinamentos), são fundamentais para que os estudantes consigam se inserir nos novos hábitos institucionais e passem a atuar como se espera naquela instituição específica - independentemente de uma suposta compreensão imediata do que seria comum a todos os casos possíveis de aplicação do conceito, ou da existência de processos mentais privados que determinariam a ação correta.
Assim, ao invés de buscarmos os fundamentos últimos do conhecimento no mundo empírico ou em supostas estruturas cognitivas das crianças, a partir dos resultados da terapia filosófica de Wittgenstein sobre as enigmáticas relações entre linguagem, pensamento e mundo, abre-se um novo campo de possibilidades para se enfrentar, não apenas problemas de aprendizagem, como também os desafios da formação humana. No entanto, as tendências pedagógicas tributárias das ideias de Rousseau ainda pressupõem fundamentos últimos do conhecimento localizados, ora na mente do aluno (ecos de Agostinho), ora extraídos da observação e manipulação empíricas (como proposto por Rousseau em sua educação negativa)30, ainda atreladas a uma concepção exclusivamente referencial da linguagem.
A concepção de linguagem de Wittgenstein, por sua vez, conduz a uma nova forma de se ver as relações entre nossos diversos saberes e seu ensino, na medida em que considera a multiplicidade dos usos de nossos conceitos e expressões linguísticas, para além de seu papel descritivo e comunicativo. A linguagem também produz sentidos, constituindo regras gramaticais que aprendemos a seguir, e que poderiam ser outras, em outras formas de vida. Esta guinada linguística dá lugar, assim, a uma pedagogia que poderíamos denominar de preventiva, ao procurar evitar confusões filosóficas que repercutem nas práticas pedagógicas, decorrentes, em parte, da crença em fundamentos últimos do sentido em domínios extralinguísticos. Como nos lembra Wittgenstein: “A essência se expressa na gramática” (2009, §371).