Introdução
Em trabalho publicado ainda nos anos de 1990, Janete Lins Azevedo chamava a atenção para o debate teórico-analítico, no âmbito das políticas educacionais, enfatizando a necessidade de se abordar a educação a partir de um quadro mais amplo, próprio das políticas públicas, que “[…] representam a materialidade da intervenção do Estado”, ao mesmo tempo em que se deve preservar as particularidades do campo da educação (Azevedo, 1997, p. 6). A recomendação feita por Azevedo (1997), há mais de duas décadas, não apenas se mantém atual, como exige do pesquisador um estatuto analítico capaz de reconhecer que o “estado em ação”, materializado pelas políticas públicas por ele produzido, vem alterando seus contornos, pressupostos, objetivos e modos de provisão de serviços, de par com as profundas mudanças políticas e socioeconômicas, ocorridas a partir do final dos anos de 1970 nos países industrializados e, na década de 1990, nos países capitalistas periféricos, como é o caso brasileiro (Pochman, 2007). Mudanças dessa ordem tendem a provocar alterações significativas nas estruturas estatais e em suas instituições e, também, afetam o campo de pesquisa, na medida em que uma de suas tarefas é justamente investigar as relações entre Estado e sociedade. Tal investigação requer a revisão de equações analíticas, de modo a enquadrar os novos arranjos institucionais e as formas de produzir políticas educacionais, assim como os aportes ideológicos que alicerçam decisões dos formuladores de políticas.
Uma das alterações mais recentes na morfologia do Estado diz respeito à própria lógica assumida por ele no que tange às formas de solidariedade social, expressando tendências de sua concretização por meio, por exemplo, de entidades da sociedade civil organizada, sob o argumento de que elas representariam não só a superação dos impasses do Estado, mas também do mercado, na produção de políticas sociais como a educação (Draibe, 1993).
Nessa direção, diretrizes e ferramentas estruturadas no bojo da Nova Gestão Pública (NGP) passaram a ser uma das perspectivas mobilizadas para lidar com as formas de reestruturação do Estado. Assumindo o pressuposto de que a gestão da iniciativa privada seria mais eficiente, flexível e accountable, vários instrumentos utilizados nesse ambiente institucional foram transferidos para a esfera pública, criando, nas unidades federadas mais que no governo federal, as condições institucionais para a “reinvenção do governo” (Osborne; Gaebler, 1994), cuja função deveria ser, supostamente, “navegar em vez de remar”. A alteração no sentido de governar – referindo-se a novos processos de regulação de políticas públicas educacionais associados ao uso de novas ferramentas e também à interação entre atores públicos e privados, com e sem fins lucrativos (Rhodes,1996; Kooiman, 2003; Tripodi; Sousa, 2018), aponta para uma intricada relação entre escolha do instrumento de ação e os recursos que dela podem ser extraídos.
Assim, sem pretensão de sumariar a “ecologia” de instrumentos e ferramentas mobilizados pelos desenhos de regulação assumidos no Brasil, o trabalho se limitará à análise da “contratualização de resultados”, à luz da Teoria da Agência e dos Instrumentos de Ação Pública (IAP).
Para o tratamento da questão, o texto está estruturado, além dessa introdução, por mais outras cinco seções e as considerações finais. A primeira apresentará uma breve definição da contratualização de resultados, como uma sucinta sistematização do debate feito pela pesquisa educacional. O método que deu corpo ao trabalho será apresentado na segunda seção. Em seguida, serão discutidas as categorias teóricas dos Instrumentos de Ação Pública e seu lugar nos processos de reestruturação do Estado, bem como serão inventariadas as principais premissas da Teoria da Agência, para, então, na etapa posterior, examinarem-se os desenhos contratuais dos três estados selecionados pela pesquisa: Goiás, Minas Gerais e São Paulo. Os dados das unidades federadas serão articulados com as perspectivas teórico-analíticas assumidas pelo trabalho, seguidos, por fim, das conclusões.
Contratualização na Esfera Pública
A abordagem contratualista, no âmbito da administração pública, surge no contexto da crise fiscal do Estado, como mecanismo para supostamente melhorar os níveis de eficiência da máquina estatal, tendo sido considerada por autores como Pacheco (2004) uma importante inovação institucional produzida na esfera reformista das últimas décadas.
Conceitualmente, a contratualização de resultados pode ser definida como um instrumento administrativo que estrutura um relacionamento negociado entre os diversos atores do aparelho do Estado e, eventualmente, entre estes e a sociedade civil (Saravia, 2005). Um dos argumentos utilizados na defesa da utilização de contratos na esfera pública sustenta que eles teriam potencial para melhorar a qualidade dos serviços prestados, por meio de uma maior flexibilidade concedida, melhor desempenho e produtividade, à medida que se institui, por meio deles, uma troca de autonomia de gestão por compromissos prévios com resultados.
No país, a utilização de contratos remonta aos anos de 1980, sendo a Rede Ferroviária Federal a primeira a admitir essa forma de gestão. Já em 1991, a então Companhia estatal Vale do Rio Doce firmou um convênio, denominado “convênio de desempenho”, com o Ministério da Infraestrutura, cujo conteúdo mantinha fortes relações com os contratos de gestão. Em uma etapa posterior, a mesma VALE negociou esses convênios de desempenho com suas subsidiárias.
Em maio do mesmo ano, o governo Collor instituiu o Programa de Gestão de Empresas Estatais, por meio do decreto n˚ 137, de 27 de maio de 1991, com o objetivo de promover a eficiência e a competitividade das empresas estatais, incorporando, para tal, os contratos de gestão (Brasil, 1991). De 1994 a 1996, a Petrobrás também celebrou contrato de gestão com a União, por meio do Decreto n˚ 1.050, de 28 de janeiro de 1994, no qual foram estabelecidas condições para a contratualização (Brasil, 1994).
Em 1998, após a criação do Plano Diretor e Reforma do Estado (PDRAE), considerado marco teórico da NGP no Brasil, a Emenda Constitucional n˚ 19 (traduziu a contratualização de resultados na administração pública como um dos princípios de eficiência, inserido no art. 37, § 8˚, da Constituição Federal (Tripodi, 2014).
Na área educacional, uma das primeiras iniciativas brasileiras foi o Estado por Resultados, implementado pela gestão de Aécio Neves (2002-2010) e continuada por Antônio Anastasia (2010-2014), em Minas Gerais, no bojo do Programa Choque de Gestão (Tripodi, 2014).
Ao analisar o programa mineiro, Augusto (2010) argumenta que as “medidas políticas” que levaram à contratualização foram “decididas sem a participação dos envolvidos”, de uma maneira linear e hierárquica, levando a um descontentamento por parte de inspetores escolares da rede estadual, por não se sentirem ouvidos e reconhecidos profissionalmente no processo de formulação da política (Augusto, 2010, p. 11). Em trabalho que comparou a reforma educacional mineira à inglesa, em termos de adoção de ferramentas gerenciais na educação, Prado (2012) conclui que embora haja fatores comuns, Minas Gerais introduziu, segundo o autor, apenas parcialmente o accountability por resultados, ao contrário da Inglaterra que levou essa estratégia a cabo, estabelecendo e divulgando rankings de desempenho por região, como é o caso das performance league tables.
Segatto e Abrucio (2017), de seu turno, ao examinarem quatro estados brasileiros (Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo) que estabeleceram programas de gestão por resultados, concluem que, embora cada ente federado tenha assumido uma trajetória própria de reforma, em todos eles foi possível observar um tronco comum constituído por avaliações, currículo e remuneração por desempenho.
O que se pode notar é que parece haver certa tendência em curso no país de se instituir um “Estado contratual”, ainda que com desenhos, ritmos e densidade próprios, a depender da capacidade estatal, mas também de trajetórias político-administrativas de cada ente federado. É, pois, nessa direção, que se encontram os achados de pesquisa de Garcia (2019), ao afirmar que foi possível observar a existência de normatização relativa a contratos em gestão educacional em 11 estados e no Distrito Federal.
Método
O trabalho é resultado parcial de pesquisa mais ampla, de abordagem qualitativa, que investiga as fronteiras do Estado, no campo da Educação, examinando condicionantes, contornos e tendências de privatização. Nele, apresentam-se e discutem-se duas categorias teóricas – Instrumentos de Ação Pública e Teoria da Agência – que parecem sustentar desenhos de políticas educacionais de natureza gerencial, com ênfase à contratualização de resultados. Para tanto, constitui como amostra intencional o marco legal que institui as reformas nos estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo, no intervalo temporal de 2003 a 2014. Importante assinalar que foge ao escopo do trabalho a análise das proposições estaduais destacadas, em termos do conjunto de diretrizes e contornos assumidos, bem como a investigação da implementação dessas políticas. Buscou-se investigar, com o trabalho, a pertinência e alcance das duas categorias teóricas para o exame de reformas gerenciais. A seleção dos estados, bem como o recorte temporal, encontra sua justificativa na literatura (Abrucio; Gaetani, 2006; Tripodi, 2014), que delimita a propagação das ideias da NGP, sobretudo, a partir de 2003, quando técnicos com passagem pelo governo federal, na reforma do Estado de 1995, migram para governos estaduais, e implementam iniciativas reformistas de natureza gerencial. No que tange aos procedimentos, a pesquisa se caracteriza como bibliográfica e documental e as fontes utilizadas foram publicações oficiais, produzidas pelos parlamentos estaduais e pelo Executivo, além de trabalhos acadêmicos sobre o tema. Para examinar a tese sustentada de que lógicas de formulação e regulação de políticas educacionais, compreendidas como tributárias de NGP, exigem ferramentas teórico-analíticas que sejam coerentes com seus pressupostos, assumiram-se como variáveis dependentes do trabalho: i) a criação de estrutura de incentivos na área da educação; ii) controle de absenteísmo docente; e iii) dispersão de oferta educacional para Organizações da Sociedade Civil Organizada (OSC’s); já a contratualização é a variável independente da análise. Do ponto de vista teórico, o trabalho está ancorado na abordagem da Teoria da Agência e dos Instrumentos de Ação Pública.
Instrumentos de Ação Pública
A discussão em torno de Instrumentos de Ação Pública (IAP) não é nova, afinal, é possível encontrar em autores clássicos, como Max Weber (2009), o debate em torno de formas de agir do Estado e de governo como técnicas de dominação. Para o autor, a criação da burocracia, como princípio de racionalidade das sociedades, pressupõe formas de exercício de poder e, portanto, trata-se de escolha de instrumentos para governar. Contudo, as pesquisas sobre políticas públicas tenderam a adotar, ao longo dos anos, duas posturas relativas aos instrumentos: de um lado, relegou-se sua discussão a um segundo plano, colocando no centro das análises outros aspectos das políticas e programas, como atores, estratégias ou as instituições (Lascoumes; Le Galès, 2012; Vedung, 1989); de outro, observou-se a tendência de tomá-los como uma escolha neutra, técnica, pensada apenas em termos de resposta funcional, indiferentemente disponíveis (Lascoumes; Le Galès, 2012). Mais recentemente, a literatura (Salamon, 2002; Hood, 1986; Howllet; Ramesh, 1993; Linders; Peters, 1989) vem apontado que, ao contrário do que se acreditava, a seleção de instrumentos de ação pública são “escolhas profundamente políticas”, que “[…] dão a alguns atores, e, portanto, às suas perspectivas [de ação], vantagens em determinar como as políticas serão executadas, […] a escolha de instrumentos ajuda a determinar qual critério será usado e, assim, quais interesses serão mais favorecidos como resultados” (Salamon, 2002, p. 11, tradução nossa).
Nesse sentido, IAP podem ser definidos, conforme Salamon (2002), como um “[…] método identificável por meio do qual a ação coletiva é estruturada para lidar com um problema público” (Salamon, 2002, p. 19, tradução nossa). Os instrumentos estruturam ações, ou seja, as relações por eles construídas não são axiologicamente neutras, mas portadores de valores, sendo “[…] indissociável dos agentes que programam seus usos, fazem-no evoluir e compõem, a partir dele, comunidades de especialistas” (Lascoume; Le Galès, 2012, p. 22). E, exatamente por estruturar relações, eles podem ser entendidos como “instituições”, no sentido dado pelo neoinstitucionalismo, de modo especial, a escolha racional, uma vez que regularizam padrões de interação entre indivíduos ou organizações, definem os atores envolvidos na regulação de programas públicos e seus papéis.
Embora possa parecer que grande parte da seleção de instrumentos é feita por meio de familiaridade ou viés profissional, Linder e Peters (1989) alertam para a importância de se conhecer as expectativas dos tomadores de decisão, ou seja, o que esperam ao escolherem um instrumento em detrimento de outro (Linder; Peters, 1989, p. 37). É preciso, ainda, levar em conta, o fato de que os IAP são dependentes do contexto político e das representações sociais e culturais de uma determinada sociedade. Com isso se quer dizer que fatores econômicos e fiscais vêm conformando novas lógicas de se pensarem e implementarem as políticas, levando a transformações nos modos de governo, na interação entre atores públicos e privados, na busca de recomposição do tecido estatal, como bem discutido por Lascoumes e Le Galès (2012).
O crescimento, por exemplo, das privatizações de bens sociais, como educação, na maior parte dos países nas últimas décadas, reflete, na análise de Howllet e Ramesh (1993), “[…] uma rápida e fundamental mudança no padrão de instrumento de política utilizado” (Howllet; Ramesh, 1993, p. 3, tradução nossa). Os autores referem-se à utilização de contratos de gestão, de vouchers, de parcerias público-privadas, entre outros, que passaram a ser mobilizados a partir de novas lógicas de política e de sua gestão. Assim sendo, uma das vantagens de se examinar a política por meio de sua instrumentação explica-se pelo fato de a abordagem permitir desvelar “[…] o conjunto dos problemas colocados pela escolha e o uso dos instrumentos (técnicas, meios de operar, dispositivos) que permitem materializar e operacionalizar a ação governamental” (Lascoumes; Le Galès, 2012, p. 20).
Teoria da Agência
A Teoria da Agência surge nos anos de 1960 e 1970, no âmbito da Escola de Custos de Transação, situada na Nova Economia Institucional (NEI). Ainda que nascida nessa área do conhecimento, ela tem assumido protagonismo no campo da Sociologia, especialmente na sociologia da escolha racional, que, segundo Therét (2003), “[…] não passa da extensão da nova economia institucional à Ciência Política […]” compartilhando “do mesmo a priori em relação às instituições, de cálculo otimizador, assumindo uma posição instrumental-funcionalista e contratualista” (Therét, 2003, p. 232).
De acordo com Jensen e Mecking (1976), formuladores da abordagem, o relacionamento de agência pode ser definido como um contrato. Nele, um principal contrata um agent para desempenhar algum serviço em benefício do primeiro, envolvendo delegação de algum nível de autoridade decisória a esse agent. Segundo os autores, sendo o indivíduo autointeressado, ambas as partes do relacionamento tenderão a maximizar seus interesses, levando o agent a não agir em interesse do principal, que o contratou. Assim sendo, o principal procuraria, nessa perspectiva teórica, limitar as divergências relativas ao interesse “desproporcional” do agent, por meio de criação de incentivos apropriados, sobre os quais devem incidir, contudo, custos de seu monitoramento (Jensen; Meckling, 1976, p. 308, tradução nossa). No centro do debate da Teoria da Agência estão os supostos problemas de interesses conflitantes entre atores (individuais e coletivos), custos transacionais para redução de assimetria de informações, tentativa de redução de comportamentos oportunistas e busca por definição de contratos mais eficientes (Eisenhardt, 1989).
O problema de agência consiste, pois, no risco do agent agir de acordo com os interesses próprios. Assim sendo, criam-se mecanismos que teoricamente tenderiam a reduzir a possibilidade desse ator atuar em desacordo com o principal, em cenário de interesses conflitantes. Há, segundo Arrow (1985), duas perspectivas que fundam o problema da agência: o risco moral (moral hazard) e a seleção adversa. O primeiro, o risco moral, diz respeito à assimetria de informação entre o principal e o agent. Aquele nunca teria informação completa sobre as atividades deste, sobre o que ele estaria fazendo, por exemplo; faltaria, portanto, capilaridade ao principal para alcançar a atuação do seu agent. Já a seleção adversa está relacionada à pouca capacidade de agir do agent, sobre determinada questão. Nesse caso, o conflito entre o que o principal espera e o que lhe é oferecido se dá por conta do agent não saber como executar as tarefas que estão sob sua responsabilidade (Eisenhardt, 1989).
Para Eisenhardt (1989), a abordagem busca delinear arranjos contratuais ou propostas institucionais que melhor alinhem e compatibilizem os interesses do agent com os do principal, como a utilização de um sistema de monitoramento e informação ou a formalização de contratos com base em resultados.
Como a suposição básica da abordagem é que as pessoas ou organizações são autointeressadas, tendendo a maximizar seu próprio bem-estar, que possuem racionalidade limitada e que são avessas ao risco, a teoria acredita que combinação de fiscalização, incentivos e punição podem resolver o problema da agência, fazendo com que, supostamente, os esforços do agent maximizem o bem-estar do principal.
Ao examinar o desenho do Estado, numa perspectiva reformista, tomando a Teoria da Agência como chave de leitura, Przeworski (2006, p. 45-46) argumenta que:
Quando faltam alguns mercados e os indivíduos têm acesso a diferentes informações, estabelecem-se entre as classes de atores relações do tipo agent x principal, regidos por contratos explícitos e implícitos. Os agents dispõem de certas informações que os principals não observam diretamente: os agents sabem o que os motiva, têm conhecimento privilegiado sobre suas capacidades, e podem ter a chance de observar coisas que os principals não podem ver. Executam inclusive algumas ações que, pelo menos em parte, são feitas sem o conhecimento do principal. Em termos genéricos, portanto, o problema que o principal tem de enfrentar é o seguinte: como induzir o agent a agir em seu interesse (dele, o principal) […] O desempenho de empresas, de governos, e da economia como um todo depende do desenho das instituições que regulam essas relações. O que importa é se os empregados têm incentivos para maximizar seus esforços [...].
O autor, como uma maneira de ilustrar o conceito, recorre à analogia da ida ao mecânico, em decorrência de barulhos estranhos no carro. O mecânico, que representa o agent, no caso, resolve o problema, e afirma ter trocado os amortecedores e utilizado cinco horas de trabalho. O dono do automóvel, o principal, segundo Przeworski (2006, p. 45), “[…] tem que pagar ao mecânico o suficiente para que ele [o mecânico/agent] queira que você [o dono do carro/principal] volte a procurá-lo em nova oportunidade, mas tem, ainda, que encontrar um meio de fazer com que ele [o mecânico] saiba que você [principal] só voltará se ele tiver feito um bom serviço”.
Fundamental é notar que para esta abordagem não é suficiente premiar ou aplicar sanções, com a criação de estrutura de incentivos. É especialmente importante que o resultado do contrato, implícito ou explícito, seja “publicizado”, de modo que a “[…] perda de futuros protegidos decorrente da perda da boa reputação vai ser maior que o ganho de uma fraude ou um trabalho malfeito”. Já em casos nos quais se figuram “[…] trabalhadores comuns, que não têm uma reputação que o empregador pode averiguar sem incorrer em altos custos, a literatura recomenda estágios probatórios e oportunidades para promoções por bom desempenho” (Monsma, 2000, p. 89).
O tipo de incentivo determinado pelos e nos contratos, entretanto, foi um dos aspectos considerados por Eisenhardt (1989) como objeto merecedor de especial atenção. Para a autora, é importante que se tenha claro que alguns resultados são mais complexos de serem mensurados ou observados que outros, já que não se pode perder de vista que o tipo de contrato, seus contornos, pressupostos e estruturação são tributários de cenários em que o principal considere haver informação completa ou imperfeita.
Contratualização nos Estados: características e alcance
Nesta seção, serão apresentados os desenhos, as lógicas de contratualização no âmbito educacional, a partir da experiência de três estados brasileiros: Goiás, Minas Gerais e São Paulo.
Goiás
O marco regulatório de contratualização na esfera pública no estado de Goiás tem sua materialidade no segundo mandato do então governador Marconi Perillo (2003-2006), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), com a publicação da Lei Estadual n˚ 15.503, de 28 de dezembro de 2005 (Goiás, 2005), que dispõe sobre a qualificação de organizações da sociedade civil como Organizações Sociais (OS’s).
Passa-se, a partir daí, a instituir uma lógica contratualista na área educacional, segundo a qual o Estado se firma como um ator que formularia a política, enquanto as OS’s, localizadas no chamado terceiro setor, passariam a executá-la a partir de metas previamente estipuladas em contratos de gestão, de modo a alinhar esses dois atores: Estado e Sociedade Civil Organizada. A contratualização, nesse caso, estruturaria o relacionamento com atores externos ao Estado, as OS’s, na oferta do ensino médio, de competência prioritária do ente estadual.
Embora positivada em 2005, as primeiras iniciativas concretas de contratualização, no campo educacional, deram-se a conhecer, de modo mais decisivo, em 2015, na também gestão de Marconi Perillo (2015-2018). Com a possibilidade legal de contratualização e a necessidade de reduzir possíveis resistências em torno do novo arranjo, a Secretaria da Educação, Cultura e Esporte (SEDUCE/GO), em 07 de julho de 2015, protocola um estudo técnico sobre “modelo alternativo de gestão de escola pública”, que tramita por quatro meses em vários departamentos do estado, até irromper no Despacho n° 596, de dezembro de 2015 (Goiás, 2015). Assinado pelo governador, o documento assume a forma de uma resposta técnica ao estudo produzido pela SEDUCE, reconhecendo que as razões, justificativas e fundamentação legais foram suficientemente fortes para convencê-lo do “[…] acerto e da necessidade em o Estado de Goiás promover a transferência da gestão de equipamentos públicos escolares da Educação Básica a parceiros privados” (Goiás, 2015, p. 1).
Uma das razões que o convencera da “necessidade” de transferir a gestão de escolas para OS’s relacionava-se, segundo o governador, à criação de estratégia para equacionar o problema de precariedade do vínculo de trabalho de grande parte do quadro do magistério, que não se resolveria, segundo Perillo, “[…] com a mera criação de cargos públicos e/ou realização de concurso público para a admissão de novos servidores”, já que “[…] além do elevado impacto financeiro que a medida acarretaria aos cofres do Estado, históricos problemas de gestão têm inviabilizado a obtenção do mais alto grau de eficiência educacional”. Além disso, “[…] a proporção – maior ou menor – de professores ocupantes de cargo de provimento efetivo não tem influenciado diretamente nas notas do IDEB” (Goiás, 2015b, p.1). A segunda razão estaria vinculada ao fato de “[…] o aumento do gasto por aluno ou por professor não tem tido presentemente efeito direto nas notas das escolas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)” (Goiás, 2015b, p. 1). Somariam a essas razões, aquelas relativas ao presumido engessamento do aparelho administrativo do Estado e a ineficiência do modelo burocrático e a suposta eficiência do setor privado:
A falta de agilidade na condução de procedimentos licitatórios, com trâmite burocrático longo, tem ocasionado demora na aquisição de bens e serviços que acabam por comprometer aspectos administrativos e pedagógicos do serviço público de educação […]. Além disso, a participação dos setores privado e social busca progressiva racionalização das funções de financiamento, segundo princípios de eficiência, responsabilização e contratualização
(Goiás, 2015b, p. 2).
Menos de um mês da edição do Despacho n˚ 596, já em janeiro de 2016, a SEDUCE lança o primeiro edital de Chamamento Público destinado à seleção de OS’s para a educação, tendo como objetivo o gerenciamento, a operacionalização e a execução das atividades administrativas, de apoio para a implantação e implementação de políticas pedagógicas definidas, segundo o edital, pelo órgão central da educação, assim como a minuta de contrato de gestão a ser utilizado. Assim, o edital de Chamamento Público n° 001/2016 (Goiás, 2015a) que tinha como objeto 23 unidades educacionais da Rede Pública Estadual de Ensino da Macrorregião IV Anápolis, no âmbito do ensino médio, foi a primeira iniciativa do Estado de Goiás na perspectiva de instituir uma lógica contratual, e que foi embargada pelo Ministério Público do Estado (MPE), já que as Organizações Sociais que foram qualificadas não detinham, segundo o MPE, experiência comprovada para gerir as unidades educacionais. Após a suspensão, o governo do Estado lança o Edital n° 003/2016 (Goiás, 2016) para celebração de Contrato de Gestão na Macrorregião IV Anápolis, que foi, também, suspenso pelo judiciário, a pedido do MPE. Os Editais 01 e 02/2017 (Goiás, 2017a; 2017b) tiveram a mesma destinação, sendo a iniciativa descontinuada na atual gestão do governador Ronaldo Caiado, do partido Democratas (DEM).
Minas Gerais
A contratualização de resultados no estado de Minas Gerais é considerada a forma mais bem acabada em termos de introdução de premissas, medidas e estratégias consideradas típicas de reformas gerenciais, especialmente por ter sido capaz de criar um alinhamento estratégico de modo que os contratos de gestão passaram a ser utilizados em toda a administração pública (Abrucio; Gaetani, 2006; Vilhena, 2006; Tripodi, 2014). Desdobrada em três gerações que compreendem dois mandatos de Aécio Neves (2003-2006; 2007-2010) e um de Antônio Anastasia (2011-2014), ambos do PSDB, a contratualização tem seu marco legal instituído no ano de 2003, com a Lei n. 14.694/2003, revogada posteriormente pela Lei n. 17.600/2008 (Minas Gerais, 2008), embora o primeiro acordo de resultados, na área educacional, só tenha sido assinado no ano de 2007, no âmbito do Programa Estado para Resultados. Do ponto de vista formal, a contratualização era composta de i) termo de acordo celebrado, com a descrição do objeto pactuado, as metas para cada um dos objetos, a sistemática de acompanhamento e avaliação e a descrição das autonomias gerenciais, orçamentárias e financeiras concedidas; ii) os relatórios de execução das metas; e iii) os relatórios de avaliação do Acordo. No centro do desenho contratual mineiro está o Sistema Mineiro de Avaliação Educacional (SIMAVE) que viabilizou a estruturação de um sistema de metas baseado, entre outros critérios, na proficiência média dos alunos nos exames do sistema estadual de avaliação, discriminadas em contratos ou termos de parceria.
Contratadas as metas entre Secretaria de Estado da Educação e unidades escolares, e, também, entre Governador e Secretária de Educação, introduziu-se um prêmio de produtividade para aqueles servidores que as alcançassem, de acordo com o formalizado pelo contrato. Na gestão de Antônio Anastasia (2010-2014), a contratualização não só continuou alinhando órgão central e unidades escolares, como passou a sedimentar as relações entre Estado e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP’s), na possibilidade de oferta educacional, aprovada pela publicação da Lei n˚ 14.870, de 16 de dezembro de 2003 e regulamentada, posteriormente, pelo Decreto Estadual n. 46.020, de 09 de agosto de 2012 (Minas Gerais, 2012).
Assim sendo, no caso mineiro, foi possível observar dois desenhos contratuais. O primeiro, utilizado nas duas gestões de Aécio Neves, estruturava relações dentro do estado, seja vinculando governador e Secretarias de Estado, seja vinculando Secretaria e escolas estaduais. De todo modo, o arranjo contratual estava circunscrito a atores estatais. Já o segundo delineamento contratual, resultado da terceira geração do programa Choque de Gestão, já sob a gestão de Antônio Anastasia como governador, alinhava atores estatais e aqueles situados no denominado terceiro setor, nomeadamente, as OSCIP’s, de modo a prover serviços educacionais (Tripodi, 2014).
São Paulo
A contratualização de resultados na área educacional do estado de São Paulo demanda certa revisão de posturas interpretativas, capaz de reconhecer que a utilização desse instrumento se fez presente muito mais em termos de ações governamentais, e até mesmo excessos normativos, que buscavam alinhar os supostos interesses da administração às práticas dos profissionais da área educacional, do que propriamente pela utilização de contratos de gestão ou termos de parceria, firmados entre Secretaria de Educação e unidades escolares ou Diretoria de Ensino. Isso significa que a contratualização nesse estado é de natureza difusa e o contrato implícito, diferentemente do que se deu com outros entes federados estaduais. Nesse sentido, pode-se afirmar que os primeiros movimentos de contratualização no estado datam do início dos anos de 1990, na gestão de Mario Covas (1999-2001), do PSDB, com o “Bônus Gestão” e o “Bônus Mérito”, implementados pelas Leis Complementares n˚ 890 e n˚ 891, ambas de 2000 (São Paulo, 2000a; 2000b). Essas primeiras formas contratuais, segundo Oliveira (2017), estavam endereçadas a tentativas de redução dos índices de absenteísmo dos profissionais da área e não a outras lógicas de regulação educacional. Embora o “Bônus Gestão”, direcionado às classes de suporte pedagógico do quadro de magistério, considerasse como um dos indicadores os resultados do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), as principais variáveis do desenho eram a assiduidade e complexidade das escolas.
A gestão de Geraldo Alckmin (2003-2006), do PSDB, não trouxe alterações substanciais à lógica contratual que vinha sendo tecida. Uma das medidas adotadas, já em 2003, foi a junção dos dois sistemas de bônus herdados do governo anterior, por meio da Lei Complementar n˚ 948/2003 (São Paulo, 2003). No modelo adotado, foi mantido um peso significativo ao indicador assiduidade, mas outros aspectos, como a complexidade da escola e, ainda, a participação de profissionais em programas de formação continuada ofertado pela Secretaria de Educação, foram incorporados ao desenho de bonificação até o ano de 2007.
É no governo de José Serra (2007-2010), PSDB, que a reforma educacional conduzida pelo estado de São Paulo ganha contornos mais gerenciais, com a entrada de Maria Helena Guimarães de Castro na Secretária Estadual de Educação de São Paulo (SEE-SP), conforme aponta Prado (2012). Inspirada no desenho mineiro, que havia começado a se delinear em 2003, uma das tarefas centrais no modelo paulista foi a reestruturação do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP). A alteração metodológica do sistema de avaliação possibilitou a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Paulista (IDESP), viabilizando a construção de um regime de metas por unidade escolar, no âmbito do Programa Qualidade na Escola (PQE), e uma consequente estrutura de incentivos, via bonificação. O PQE passou a estabelecer metas de longo prazo para melhoria de toda a rede estadual, bem como outras anuais específicas para a SEE-SP, para cada regional de ensino e escola. Nesse contexto, a Lei Complementar n˚ 1.078/2008 (São Paulo, 2008) cuidou de estabelecer os critérios e valores consoantes à bonificação. Embora possa se dizer que no centro da contratualização estivesse as metas relativas ao IDESP, a questão do absenteísmo também compunha a cesta de incentivos, na medida em que se estabeleceram regras que vinculavam cálculo do bônus a comportamento do servidor, em termos de faltas. Em 2009, foi efetivado o primeiro pagamento de bônus, relativo à contratação de metas estipuladas para o IDESP 2008.
De volta ao governo do estado para a gestão de 2011 a 2015, Geraldo Alckmin, PSDB, por meio do Decreto n˚ 57.141, de 18 de julho de 2011 (São Paulo, 2011), busca reestruturar a Secretaria de Educação que, segundo o texto legal, encontrava-se, àquela altura, a) descaracterizada, com pouca aderência entre suas atribuições e competências formais e as realizadas na prática; b) desatualizada, em decorrência do surgimento de novas funções necessárias para uma gestão moderna; e c) com superposição de funções e comandos entre órgãos e sérios problemas de procedimentos e fluxos de trabalho (São Paulo, 2011).
Embora a gestão de Alckmin tenha tentado, por meio do decreto, promover um alinhamento mais definido da pasta com relação às outras áreas do estado, do ponto de vista da contratualização, não se pode verificar, ao longo da pesquisa, mudanças significativas em relação à gestão anterior. Fundamentalmente, a política de contratualização de metas adotadas pela gestão Alckmin continuou sendo alicerçada pela Lei Complementar 1.078/2008, herdada do governo José Serra, não introduzindo atualizações substantivas no que tange às normas relativas à bonificação por resultados, disciplinadas por resoluções conjuntas da SEE-SP.
Como já assinalado, a lógica contratual do estado de São Paulo, com criação de estrutura de metas e incentivos, foi formalizada por meio de produção de atos normativos e resoluções específicas, sem haver a formalização de contratos com assinatura entre as partes envolvidas.
Contratualização na Educação: articulações teóricas
Os três entes federados examinados passaram a implementar, de modo mais sistemático, a partir de 2003, reformas assentadas em princípios do NPM. Embora imprimindo, cada um deles, ritmo e densidade próprios a seu processo reformista, é possível reconhecer em todos eles concepções de estado e de gestão disseminadas pelo marco teórico da reforma federal do estado, de 1995, na primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), com especial ênfase para a contratualização de resultados (Brasil, 1995).
Assim sendo, tem-se Minas Gerais, que privilegiou contratos de gestão ou termos de parceria estruturados com metas pré-definidas, por unidade escolar, dando ênfase ao desempenho dos estudantes no SIMAVE, e formalmente assinados entre Secretaria de Educação e escolas. Já em Goiás, os contratos buscavam formalizar a relação entre estado e atores não-estatais, especialmente OS’s, na oferta de matrículas no ensino médio. São Paulo, por sua vez, privilegiou contratos difusos, de natureza implícita, não havendo formalização de assinatura entre profissionais da educação e órgão central, embora tenha havido uma contratação de metas relativas à gestão, performance de aluno no IDESP, assiduidade docente, bem como participação em formação continuada ofertada pela SEE-SP e bonificação. Esse desenho contratual pode ser entendido como simbólico, na medida em que não fora expresso em dispositivos contratuais formais e que, por isso, não vinculava sanções em caso de não cumprimento das metas, embora mantivesse premiação.
Se os desenhos de reforma são diferentes, os instrumentos, por sua vez, caminham em uma mesma direção, assim como parecem seguir também os pressupostos que fundam sua escolha. Primeiro importa chamar a atenção para o fato de que a contratualização é um instrumento de “ação pública” e não de política pública. Aquela, ao contrário desta, é desempenhada por atores situados fora da esfera estatal. Portanto, os contratos, ao estruturar arranjos com atores situados fora do aparelho de Estado, passam a ter potencial de influenciar e alterar o funcionamento e a própria estrutura do Estado. Não por acaso, o governador de Goiás, no Despacho 596/2015, ao justificar as razões da utilização de contratualização com OS’s na oferta de ensino médio, esclarece que se trata de “[…] uma evidente reforma gerencial, já que permite a reconstrução do Estado em novas bases, com o reconhecimento de que a perspectiva de políticas públicas vai além da perspectiva de políticas governamentais, em cujo contexto emerge a importante e inafastável participação do Terceiro Setor” (Goiás, 2015b, p. 2).
Nesse sentido, “olhar” para a seleção do instrumento permite identificar novas características e lógicas que vêm se impondo no campo das políticas e que expressam tendências mais profundas de reestruturação do estado de bem-estar social no país, isso porque, intimamente relacionados à escolha do instrumento estão os pressupostos a ele articulados. Portanto, nesse trabalho, defende-se a tese de que essas novas formas de conceber e conduzir as políticas educacionais demandam a mobilização que novos aportes teórico-analíticos que evidenciem as premissas constitutivas de tais políticas.
Assim sendo, importa assinalar que a contratualização é, fundamentalmente, uma das ferramentas do NPM, cujos princípios não são só tributários da Administração de Empresas, mas, predominantemente, da Nova Economia Institucional. As principais ideias que sustentam essa escola estão organizadas em torno da introdução da lógica de mercado na esfera da administração pública, a partir de i) criação de estruturas de incentivos, ii) ênfase à competição fomentada pelo uso de contratos e pelo quase-mercado, iii) teoria da escolha do cliente e iv) divisão da burocracia estatal entre formuladores e executores da política (Hood,1991; Rhodes, 1996). Já do ponto de vista teórico, um dos seus principais aportes é a Teoria da Agência. Nessa perspectiva, indagar a utilização de contratos na esfera do Estado exige um movimento analítico duplo que é identificar nos princípios da NEI, especialmente, na abordagem da Teoria da Agência, as razões e fundamentos de sua escolha, ao mesmo tempo em que se examina a compatibilidade (ou não) de seus usos na esfera educacional.
A primeira indagação que se apresenta é, pois, saber se uma abordagem cuja premissa básica é alinhar interesses conflitantes tem potencial para lidar com a administração pública, e, principalmente, com a política educacional. Seria razoável conceber a existência de um conflito inerente à relação de profissionais da educação e governo, motivado por diferentes preferências no exercício do cargo? Quais seriam os comportamentos oportunistas que os contratos tenderiam a limitar, na esfera educacional, sendo os atores servidores públicos? Quem seriam os atores dispostos a maximizar seu interesse próprio?
A base que sustenta a escolha da contratualização como forma de regulação parte de uma visão econômica de maximizar ganhos, de pressupor a existência de uma racionalidade limitada nas transações e de entender que há assimetria de informações entre as partes que, em algum momento, dela tenderá a se beneficiar, por meio de comportamentos oportunistas. Portanto, é nessa perspectiva que precisa ser lida a utilização dos contratos, no caso educacional, uma vez que eles se inserem numa perspectiva gerencial de administração.
A escolha pela utilização dos contratos sugere, em termos teórico-analíticos, que a relação entre o Executivo e profissionais da área da educação é estruturada sob uma desconfiança inicial, por parte do governo, na capacidade de o servidor público cumprir suas atribuições, especialmente as relativas ao ensino e aprendizagem dos alunos. Seguindo a abordagem, o problema da agência estaria, então, no fato de o órgão central da educação não ter capilaridade suficiente para alcançar as unidades escolares e, particularmente, seu corpo docente, de modo a acompanhar e/ou controlar o seu comportamento, em termos do que estaria acontecendo nas unidades escolares e sendo ensinado em salas de aula. Trabalhando, assim, com a hipótese de que as escolas não estariam, por exemplo, implementando os currículos instituídos pela administração central, o que teria sido, hipoteticamente, observado com o resultado das avaliações em larga escala, o principal, que nesse caso é a administração central, estrutura um sistema de metas que são contratualizadas com as escolas para que, dessa forma, os agents (sobretudo professores) trabalhem de forma alinhada aos interesses do principal. Ou seja, espera-se que os professores passem a ensinar os conteúdos curriculares pré-estabelecidos, estipulados em forma de metas de resultados e formalizados pela assinatura do contrato de gestão.
Como se trata de uma teoria econômica que reconhece o indivíduo, a priori, como autointeressado, o instrumento de ação pública, que é o contrato, precisa ter força suficiente para levar esse agent a controlar seu suposto comportamento oportunista e trabalhar de modo a maximizar o interesse do principal. Nessa perspectiva, o contrato passa a ser alicerçado sob uma estrutura de incentivos, que prevê premiação e sanções, de modo a alterar comportamentos conflitantes. Conforme já assinalado, para a Teoria da Agência não basta a criação de estrutura de incentivos, é importante que haja publicidade sobre os resultados da “transação”, de modo que a qualidade da informação divulgada tenha potencial para agir sobre os comportamentos futuros. Para tanto, a escolha do formato de divulgação dos resultados de alunos em avaliações em larga escala e dos índices educacionais como o IDEB, majoritariamente feita por meio de comparações e ranqueamento, tem cumprido um papel estratégico para o chamado problema da agência, haja vista as próprias razões apresentadas pelo governador de Goiás para utilização de OS’s na educação, têm no IDEB sua maior justificativa.
Percebe-se que o instrumento de contratualização, sob a lente da agência, busca lidar tanto com o risco moral (moral hazard) quanto com a seleção adversa no campo da educação. À medida que os contratos, implícitos ou não, estabelecem metas relativas à proficiência de alunos em avaliações, e, também, absenteísmo docente, participação em cursos de formação e, por fim, relações entre Estado e OSC’s, percebe-se que a “desconfiança” relativa à área educacional está circunscrita não somente à hipótese de que os profissionais não fazem aquilo que deveriam fazer, mas, também, que não sabem fazer o que precisaria ser feito.
Uma das questões que precisa ser debatida, e parece ser uma grande contradição da abordagem aplicada à esfera pública, é a (in)existência de interesses divergentes em jogo, pois, no caso do serviço público, Estado e seus profissionais da educação tendem a defender os mesmos interesses, quais sejam: um processo exitoso de aprendizagem e uma gestão eficaz das escolas; afinal, como o próprio título sugere, são “servidores” do Estado. Se a resposta a essa questão for construída em termos de que esses profissionais não sabem o que fazer ou como ensinar ou gerir, e, que, portanto, o problema que a agência visa a corrigir é de seleção adversa, a escolha de contratualização, ao que parece, tem potencial de fomentar práticas pouco desejáveis, já examinadas pelas pesquisas da área (Capocchi, 2017; Cerdeira, 2018), como o preparo e seleção de alunos para testes, de modo a atender às metas do contrato.
A natureza do regime jurídico ao qual se vinculam os servidores da educação é outro elemento que permite desvelar intencionalidades que perpassam a escolha de um instrumento como o contrato e o tensionamento de sua pretensa neutralidade. Isso se deve ao fato de que, sendo a natureza do regime estatutária, também o é, obrigatoriamente, “unilateral”, fundada “[…] sob o pálio de um diploma legal denominado estatuto, caracterizado pela submissão do servidor a esta legislação […]” (Anastasia, 1990, p. 76). Nesse sentido, o “servidor” público renuncia, no ato de posse do cargo, “[…] à autonomia de trabalhador livre, quanto à fixação das condições de trabalho”, e aceita “[…] a regulamentação administrativa, decretada de modo unilateral” (Romita, 1975, p. 14). Por isso mesmo o Estado, como detentor legítimo dos meios necessários para aplicar os recursos administrativos (Weber, 2009), tem a prerrogativa de fazer cumprir o que está determinado como dever do servidor, não havendo razão, portanto, para firmar um contrato que o leve a desempenhar seu papel. Tendo, pois, esse regramento jurídico em vista, é razoável concluir a necessidade de se atentar para o aporte ideológico que subjaz à contratualização na educação pública estatal; e, nesse sentido, a experiência de Goiás é pedagógica. No Despacho n˚ 596/2015, o governador afirma que “[…] o modelo institucional das organizações sociais apresenta claras vantagens em relação à organização estatal, para o que faço referência ao caso das aquisições de bens e contratações de serviços”. Isso se deve, segundo Perillo, “[…] porque os contratos de gestão incentivam a realização de procedimentos eficientes e adequados às necessidades públicas, contribuindo para diminuir elementos de rigidez que caracterizam as culturas burocráticas […]” (Goiás, 2015b, p. 2).
Ao se cotejar as justificativas expressas pelo despacho governamental, como os art. 7˚-A, art. 9˚ e seu § único, art. 14-A, art. 14-B e seu § 7˚, da Lei Estadual n˚ 15.503/2005, que aprova as OS’s em Goiás, o que se nota é a possibilidade de todos os recursos considerados ineficientes pelo governador, no âmbito estatal, serem passíveis de cessão para as Organizações Sociais. Isso fica evidenciado na possibilidade, permitida pela lei, de servidores serem cedidos para as OS’s com ônus para a origem, ou seja, para o Estado. Estão disciplinadas, ainda, i) a perspectiva de repasse de recursos a OS’s, a título de investimento, no início ou durante a execução do contrato, ii) a ampliação de estruturas físicas já existentes, iii) a aquisição de bens móveis complementares que se fizerem necessários e iv) o uso de bens, instalações e equipamentos públicos necessários à execução de metas contratadas (Goiás, 2005).
Tendo em vista esse cenário, é interessante notar que a flexibilidade, tida como parte estruturante das OS’s, e considerada pelo governador como elemento decisivo na melhoria da educação, está mais relacionada a investimentos em educação feito pelo Estado em proveito das Organizações Sociais, do que, propriamente, uma “clara vantagem” do modelo contratual, como se quer fazer acreditar. A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: se os servidores podem ser os mesmos, se a infraestrutura pode ser a mesma, se muitas OSC’s podem ser mantidas unicamente com recursos do Estado e, ainda, receber investimento estatal, o que moveria tal empreitada? Ao que tudo indica, a escolha por essas lógicas de oferta e regulação estão menos assentadas em evidências daquilo que o Estado é capaz de realizar, e mais naquilo que, ideologicamente, busca-se convencer de que ele não é capaz.
Considerações Finais
O PDRAE, considerado como um marco da reforma gerencial dos anos de 1990, âmbito do Ministério de Administração e Reforma do Estado (MARE), teve um importante papel na configuração das reformas no nível estadual, assentadas em princípios do NPM, especialmente, a partir de 2003. Embora a profundidade e o alcance das reformas no âmbito educacional tenham sido distintos, a contratualização de resultados foi um dos instrumentos privilegiados pelos estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo. No caso dos dois primeiros entes federados, os contratos foram utilizados, respectivamente, para alinhar supostos interesses divergentes formuladores e implementadores da política educacional, todos circunscritos à esfera estatal, e para estabelecer o relacionamento entre Estado e OS’s na oferta de ensino médio. No caso de São Paulo, os contratos podem ser definidos como implícitos, na medida em que as metas acordadas entre atores, também estatais, foram produzidas por atos governamentais e não propriamente por contratos de gestão. O trabalho traz evidências de que políticas educacionais circunscritas a lógicas da Nova Gestão Pública e, portanto, com adoção de princípios da NEI, demandam um aporte teórico-analítico que deem conta das suposições e crenças nelas envolvidas. Nesse sentido, o estudo aponta que a Teoria da Agência e a abordagem de Instrumentos de Ação Pública trazem contribuições para se examinar tais propostas, haja vista que sua principal premissa está ancorada na desconfiança dos formuladores de políticas educacionais em relação à capacidade dos implementadores em executá-las, seja por, supostamente, não desejarem fazê-la ou por não saberem como proceder. Sob essa perspectiva teórica, o trabalho de reconstituição empírica das reformas permite afirmar que o uso de resultados de avaliações de rendimento de alunos, em larga escala, tornou-se um instrumento de ação pública privilegiado por meio do qual o contratualismo tem se constituído, com a finalidade de alinhamento de comportamentos supostamente divergentes. O artigo, por fim, oferece elementos para se afirmar que, ao que tudo indica, a escolha de tais instrumentos e abordagens, pelos governantes, é sustentada por um aporte ideológico que reconhece, a priori, no Estado, certa incapacidade de ofertar e regular as políticas educacionais.