Introdução
A reflexão que apresentamos integra um trabalho de dissertação de mestrado (Reis, 2009), que tem como objeto as práticas educativas que os jovens e adultos vivenciaram no processo de alfabetização na educação popular. Neste artigo, debatemos as marcas das práticas pedagógicas emancipatórias presentes nos movimentos de educação popular e aquelas regulatórias tipicamente escolares. Analisamos a tensão que se instala ao se “converter” a Educação de Jovens e Adultos (EJA), herdeira da tradição da educação popular, em educação escolarizada. Buscamos verificar ainda em que medida essa tensão é percebida pelos educandos e responde pela não continuidade dos estudos por parte desses sujeitos.
A pesquisa desenvolvida fundamenta-se nos pressupostos da abordagem qualitativa (Flick, 2004). O trabalho de campo se realizou no projeto de educação popular Movimento de Educação de Base de Iniciativa Católica (Mebic) em uma escola da rede pública na cidade de Guanambi/BA (Escola Cora Coralina1). A produção de dados elegeu a observação não-participante, durante 10 meses, das atividades escolares de uma turma de EJA da rede municipal de ensino, que recebe pessoas egressas de Projetos de Educação Popular de Jovens e Adultos. Além do registro em diário de campo, realizamos entrevistas com 10 educandos egressos do Mebic, que ingressaram no ensino regular noturno e com a professora responsável pela turma.
No texto que desenvolvemos a seguir, pretendemos discutir os depoimentos coletados entre os sujeitos que fazem um movimento de buscar a escolarização e retornar ao Mebic. Assim, apresentamos os motivos que, segundo eles, leva-os a saírem do projeto e regressarem a ele após um curto período de permanência na escola. Verificamos como os estudantes percebem as marcas de regulação presentes no sistema de ensino, assim como a presença de elementos de emancipação característicos da educação popular, de que a EJA é herdeira. Essas marcas são responsáveis pela permanência de alguns deles na educação popular, ou mesmo o abandono da escola por parte de outros.
Especificidades da Educação de Jovens e Adultos
Os estudos sobre jovens e adultos que não sabem ler e escrever expõem trajetórias de vida similares. Os sujeitos adultos da EJA não são quaisquer adultos, são trabalhadores, mães e pais, têm cor/raça e classe. A maioria do grupo considerado neste estudo é do campo ou de municípios de pequeno porte e pertence a famílias numerosas, com precárias situações financeiras. A sobrevivência tornou o trabalho prioritário em suas trajetórias de vida em relação à escola. Além disso, as dificuldades de acesso e/ou a ausência da instituição escolar nas zonas rurais impediram e/ou limitaram os estudos na infância e na adolescência (Galvão; Di Pierro, 2007). Assim, progressos reais, em termos de escolarização, se fazem quando adultos. Outro ponto comum entre os educandos, cujos depoimentos apresentaremos neste texto, é se alfabetizarem no movimento de educação popular; ingressarem, a seguir, na escola; não se adaptarem a ela; e, então, regressarem ao Mebic. É nesse contexto que se situam as marcas das práticas educativas de regulação e emancipação reveladas por Isabel, Raquel, José e Pedro.
Apresentaremos brevemente os sujeitos.
Raquel tem 49 anos, é separada, mãe de 6 filhos; desses, 3 encontram-se no Ensino Fundamental e 3 interromperam os estudos por conta do trabalho. Não frequentou a escola na infância, vivida no interior de Palmas de Monte Alto/BA. Após se separar do marido, migrou para Guanambi com a intenção de buscar um emprego e inserir os filhos na escola. Trabalha, há 15 anos, como empregada doméstica na residência da mesma família. Estudou no Mebic durante 4 anos. Por incentivo da coordenação do projeto, foi estudar no Colégio Cora Coralina, mas não se adaptou. Depois de 4 meses de aulas, retornou ao projeto, onde frequenta as aulas assiduamente.
Isabel tem 55 anos, é casada, possui 7 filhos e 6 netos. Somente 2 dos filhos frequentam a escola. Ela não a frequentou na infância, vivida no interior de Palmas de Monte Alto, de onde migrou, com 22 anos, para Guanambi, para trabalhar como empregada doméstica. Frequenta o Mebic há 8 anos e, por insistência da professora, matriculou-se no Colégio Cora Coralina. Lá permaneceu 4 meses. Retornou ao projeto de educação popular, no qual frequenta a turma de pós-alfabetização.
José, 46 anos, é casado e pai de 7 filhos; desses, 3 se encontram no Ensino Fundamental e 4 interromperam a frequência à escola em função do trabalho. Antes de se mudar de Ibicaraí para Guanambi, era carpinteiro. Atualmente trabalha como pedreiro. Sua primeira experiência de estudo foi no Mebic, com 39 anos. Matriculou-se no Colégio Cora Coralina e, 1 ano depois, retornou ao projeto. Frequenta a turma de pós-alfabetização.
Pedro, 58 anos, é casado e pai de 6 filhos; desses, 3 estudam no Ensino Fundamental e 3 no Ensino Médio. Viveu a infância no interior do município de Guanambi. Depois de os filhos chegarem à idade escolar, foi para a cidade para que eles pudessem ingressar na escola. Inicialmente, trabalhou em uma firma terceirizada de construção civil. Durante a reforma de uma agência bancária em Guanambi, foi contratado pela agência para exercer a função de auxiliar de serviços gerais. Mencionou a alegria de ter a carteira assinada. A gerente desse local aconselhou-o a estudar, na ocasião (2004); e, assim, uma pessoa da igreja evangélica de que participava o levou ao Mebic. Ele e a esposa matricularam-se e essa se constituiu a primeira experiência de estudo para os dois. Depois, ingressaram no Colégio Cora Coralina mas, em 1 ano, retornaram ao projeto de educação popular. Frequentam a turma de pós-alfabetização.
Quando perguntamos aos entrevistados acerca das razões que os levaram a retornar ao Mebic, eles indicaram que não encontraram o que esperavam na escola. Percebemos que, para eles, a escola não é o local onde se buscaria apenas algum aprendizado; esse espaço, na visão deles, deveria ir além do saber escolar. Isabel, ao narrar sua experiência no Colégio Cora Coralina, demonstrou certa resistência à proposta de ensino da escola pública. Segundo ela, ao contrário de seu sentimento no Mebic, em sala de aula, sentia-se insegura, não participava das atividades de forma ativa, tinha medo de que seu desconhecimento fosse descoberto, de que os colegas zombassem dela etc. Para ela, o ambiente da sala de aula deve ser um lugar de ternura e acolhimento. Embora reconheça que a professora ensinava, Isabel notou que a escola não falava sua língua. O seguinte trecho de sua entrevista expressa uma visão positiva da convivência proporcionada no ambiente da educação popular:
Eu saí do colégio ‘Cora Coralina’ não é porque era ruim não, lá é bom, a professora ensina direito, uns assuntos assim bem difíceis. Eu saí porque minha cabeça não dava pra aprender mais essas coisas, e eu não quero quebrar minha cabeça com isso, já passei da idade […]. Voltei pra o Mebic, aqui a professora e os colegas falam ‘a nossa língua’. No Colégio, eu ficava acanhada, porque eu não entendia as coisas direito, aí minha cabeça chegava em casa ruim, faltando pegar fogo. Vou pra escola pra descansar, esquecer os problemas […]. Aqui o astral dos alunos é outro. A gente estuda, conversa e vai até no forró dos velhos. Sem contar o São João, que é uma beleza. É uma festa da família, da comunidade, todo mundo ajuda e se diverte
(Isabel, 55 anos).
Assim, de acordo com Isabel, a escola não propiciava aquela dose de entusiasmo. É importante, para ela, o espaço de prazer, da participação e do descanso do trabalho e das dificuldades pessoais e familiares. Ela manifestou ter encontrado, no Mebic, um ambiente de socialização salutar.
Raquel apontou que desde pequena sentia o desejo de estudar. Em um momento da entrevista, salientou que deixara de estudar no Colégio Cora Coralina devido à dificuldade de conciliar as diferentes atividades de sua rotina de trabalho e estudo, em função dos horários. O trecho a seguir evidencia essa marca regulatória presente na escola: os tempos escolares são rigidamente fixados. Diante da impossibilidade de conjugar a necessidade do ofício de empregada doméstica e do desejo representado pela escola, ela abandonou a escolarização. Reconhece a importância do aprendizado e a função que ele desempenha em sua vida:
[…] desde pequena que eu tenho vontade de estudar, entrei no Mebic e já aprendi umas besteirinhas. Aí fui estudar no Colégio ‘Cora Coralina’, a escola dos meus filhos mais novos, mas não deu certo ficar, porque eu chego tarde do serviço e o tempo da aula lá é demais pra mim, então não aguentei. Fiquei com medo de ficar lá e passar vergonha, dos outros rirem de mim […]. Então voltei a estudar no Mebic, na turma de pós-alfabetização. […] pra mim não importa se vou passar de ano, eu frequento o Mebic porque eu quero aprender a ler por cima, a ler corrido para poder ler os recados da patroa, ler receita de bolo e de comida […]. Quero escrever sem faltar letra ou por demais […]. Eu sou muito nervosa, acanhada, estressada, o Mebic me acalma. Sinto que minha cabeça e o meu corpo ficam mais leves quando volto de lá. Acho que são as resenhas das minhas amigas
(Raquel, 49 anos).
Raquel também revelou o sentimento de constrangimento que carregava no ambiente escolar. Ao perceber-se entre iguais, acolhida e respeitada, sente-se motivada a permanecer no Mebic. Além disso, sinalizou que deseja ler e escrever para diferentes finalidades. Diferentemente de muitos, não acredita que possa ascender socialmente por meio da escolarização. Reconhece, no entanto, o desenvolvimento de novas habilidades tanto no âmbito familiar quanto no profissional: “[…] depois da escola, estou mais unida com meus filhos”; “[…] estou sabendo conversar mais com meus patrões, meus filhos e os amigos deles”; “[…] fico sabendo de outras coisas”; “[…] aqui todos são iguais nas dificuldades”.
Ao contrário de Raquel, Pedro e José relataram o contentamento de estudar no Colégio Cora Coralina. Antes dessa experiência, na escola pública, entendiam o que era oferecido pelo Mebic como insuficiente. Vivenciar, no período de um ano, a escolarização ajudou-os a valorizar mais o aprendizado adquirido anteriormente e diminuiu o distanciamento da escola. Reconhecem que os modos de ensinar da professora e o jeito de aprender dos alunos na escola são diferentes, mas avaliaram que não são nem melhores nem piores do que no projeto de educação popular. Os trechos das entrevistas expostos abaixo evidenciam marcas regulatórias presentes na escola (horários, tempos) que, mais uma vez, impossibilitam conjugar os horários de trabalho e estudo, levando José a não permanecer na escola e retornar ao projeto:
No Mebic, tem muito aluno bom, se for pra escola, vai dar um show! Antes achava que era um rebanho de fracassados. Agora não tenho mais medo de estudar na escola, só não fiquei lá porque não tava dando pra conciliar os horários de trabalho e da escola. Só posso ir à escola dia sim, dia não, e lá é meio complicado, tem que ir todo dia, senão não acerto as provas. Os assuntos são muitos, e o aluno não pode faltar pra não perder o fio da meada […]. Assim que puder, eu volto pra escola. […] no Mebic, quando eu preciso faltar, eu aviso a professora, e ela manda atividade pra eu fazer em casa no fim de semana, aí meus filhos me ajudam, explicam as coisas que não entendo sozinho. […] eu acho que, se pedir à professora da escola, ela faz a mesma coisa, mas, quando eu estudava lá, eu nunca pedi, tinha receio, com a do Mebic já sou acostumado
(José, 46 anos).
Já Pedro, ao abordar os tempos escolares, indicou a dificuldade de se adaptar ao ritmo das aulas:
Quando fui pra o Colégio, achei muito estranho, muito grande, gente demais. […] Eu gostei da escola, a professora é boa […]. Eu voltei pra o Mebic com minha esposa, porque nos sentimos melhor aqui. Eu e ela temos dificuldade para ler e escrever e queremos ver se pegamos o ritmo mais um pouquinho, pra depois a gente voltar pra escola. A maior dificuldade nossa na escola era copiar do quadro pra o caderno, era coisa demais, e as mãos duras não ajudam muito. Falei pra minha esposa que vamos amolecer as mãos e depois a gente volta pra escola
(Pedro, 58 anos).
Ir à escola, para José e Pedro, permitiu a conscientização dos progressos alcançados na aprendizagem na etapa anterior, vivenciada no Mebic. Embora tenham apontado o desejo de ir à escola, Isabel, Raquel, José e Pedro percebem esse espaço também como lugar de desconforto e intimidação. Os depoimentos acenam para a necessidade de a escola investir esforços na qualidade da interação pedagógica, no intercâmbio de saberes com o contexto dos jovens e adultos. As relações de afeto, cumplicidade e solidariedade construídas no Mebic assinalam um projeto coletivo, em que educandos e educadores estão investidos, implicados no ato de aprender e ensinar.
Os depoimentos coletados assumem maior importância em tempo de forte regulação por parte da escola, pois permitem compreender que a permanência dos jovens e adultos aumenta quando existe boa adaptação à nova realidade, quando a relação professor‑aluno é positiva, quando os discentes acreditam em seu próprio sucesso e quando se sentem envolvidos e valorizados pelas instituições nas quais estudam2.
A professora Ester, do Cora Coralina, considera ser um fracasso seu a ausência do educando: “Todas as vezes que os alunos do noturno começam a desistir, sinto-me fracassada e responsável pelo esvaziamento da sala de aula, pelo desinteresse dos alunos e pelas reações de descontentamento às atividades que eu proponho na sala de aula”. Contudo, não se trata de culpabilizar os docentes, vemos que os índices de abandono escolar na EJA, mesmo quando se adotam modelos mais flexíveis, atestam a dificuldade de compatibilizar as trajetórias pessoais no limite da sobrevivência com a rígida lógica em que se estrutura o sistema escolar. Para assegurar que os direitos de jovens e adultos sejam concretizados, é necessário compreender que “[…] suas vidas são demasiado imprevisíveis, exigindo uma redefinição da rigidez do sistema público de educação” (Arroyo, 2005, p. 47).
As Trajetórias Vividas
O abandono, ainda que temporário, dos estudos ocorre por desmotivação; dificuldades de conciliar trabalho e escola; problemas de saúde; e desafios na adaptação à rotina, aos ritos e ao ambiente escolar. Para abordar esse elemento, dialogamos, nesta seção, com outros dois egressos do Mebic que ainda não foram apresentados: Tomé e Madalena. Citamos a seguir um depoimento de Tomé, que, ao falar das experiências vividas, ponderou também sobre sua visão anterior da instituição e constatou que consegue se adaptar. Ele, entretanto, questionou o horário da oferta escolar, como mostra o trecho abaixo:
Primeiro estudei no Mebic, mas sempre tive a maior curiosidade de saber como é estudar no colégio, aí, quando a professora viu que eu tinha condição de ir pra o Colégio, eu fui, porque era isso que eu queria. Achava que o colégio era um lugar assim só dos sabidos; depois que eu cheguei lá, eu vi que não era bem assim. Precisei ver pra acreditar. O Mebic, pra mim, foi mais que uma escola, agora só preciso estudar pra aprender essas coisas que os alunos aprendem de dia e que o Mebic não me ensinou […]. Mas, no momento, o que eu sei dá pra me virar, […] saí do Colégio porque tive que fazer uma operação de catarata e atacou o reumatismo também. Agora tenho que dar uma sossegada dentro de casa, também, na minha idade, não tenho a disposição dos novos, ainda mais à noite. […] Pra eu estudar, tem que ser de dia, à noite não dá; como aqui não tem escola de dia; desse jeito, não posso estudar
(Tomé, 66 anos).
O relato de Tomé expressa que o fenômeno da não permanência pode ser compreendido, quer do ponto vista individual, quer do institucional. De fato, abandonar um curso pode representar, no plano individual, dificuldades (no caso dele, de saúde) externas à escola. O mesmo fenômeno, no nível institucional, revela a necessidade de repensar tempos de oferta, ritmos e organização do trabalho pedagógico.
Ademais, seu depoimento revela as imagens construídas por ele acerca da escola, a expectativa e a avaliação dela como lugar de sabidos. O depoimento nos faz considerar que o adulto (não escolarizado ou mesmo pouco escolarizado), para frequentar o ambiente escolar, enfrenta uma gama de rótulos. Tais rótulos integram seu autoconceito, diminuindo as possibilidades de esses sujeitos se perceberem como pessoas cognitivamente capazes de compreender questões mais complexas, de empreender e de criar. Sentem-se menos capazes e carregam consigo a responsabilidade por suas inaptidões. Verificamos, como afirma Fonseca (2005, p. 33), o quanto o modelo escolar meritocrático atribui injustamente a um fracasso pessoal as consequências de uma condição social desigual:
Atribuir a um fracasso pessoal a razão da interrupção da escolaridade é um procedimento marcado pela ideologia do sistema escolar, ainda fortemente definida no paradigma do mérito e das aptidões individuais. Justifica o próprio sistema escolar e o modelo socioeconômico que o sustenta, eximindo-os da responsabilidade que lhes cabe na negação do direito à escola. Mascara a injustiça das relações de produção e distribuição dos bens culturais e materiais, num jogo de sombras assumido pelo próprio sujeito condenado à situação de exclusão que, tomando para si a responsabilidade pelo abandono da escola, sentir-se-ia menos vitimado e impotente diante de uma estrutura injusta e discriminatória.
Vemos que a instituição escolar, ao receber esses alunos portadores de trajetórias escolares truncadas (Arroyo, 2005), completa o trabalho de exclusão em lugar de acolhê-los, de orientá-los, de ensiná-los a se organizarem e a relacionarem as informações que já possuem com as que estão adquirindo, de incentivá-los a formularem perguntas sobre o que querem aprender. O modo como a escola atua comunica ao sujeito sua incapacidade, mostra a ele sua incompreensão dos procedimentos e da linguagem escolar distantes de sua realidade, sua dificuldade de interagir, de raciocinar do modo preconizado pela escola. Assim, desprovido de uma ponte que interligue seu saber ao da escola, o aluno acaba desistindo. Desse quadro, resulta um modo de julgamento perverso, que circula na avaliação realizada pela escola: o estudante da EJA é considerado, muitas vezes, incapaz cognitivamente, apresenta grandes dificuldades de aprendizagem, problemas gravíssimos de memória, lentidão exagerada de raciocínio etc.
Não é difícil entender por que a escola é vista por Tomé e Madalena como território oposto ao que eles desejavam. É uma escola que pressiona, que descarta, que não enxerga o educando em suas trajetórias individuais, para além do tempo e do espaço escolares regimentais. Em contato com essa sensação de descaso, eles se autodefinem como pouco importantes, inadequados para aquele lugar, alguém que não faz falta, que não tem com o que contribuir. É marcante o depoimento de Madalena se reportando aos vínculos afetivos. Ela apontou o sentido de comunidade e distinguiu o ambiente de educação popular do escolar:
[…] sentia falta na escola de amizade, não sei se é porque no Mebic os alunos e as professoras são bem unidos, tudo lá é com base no mutirão, a limpeza, a festa, a merenda […]. Na escola, parecia que um tinha medo do outro. […] Acho que no Mebic é mais uma coisa assim de comunidade […], na escola, é diferente. Aconteceu, muitas vezes, [de] eu encontrar colegas da escola nos lugares fora da escola e nem me cumprimentaram
(Madalena, 32 anos).
Complementando, ouvimos as professoras Ester e Lídia, do Colégio Cora Coralina. Elas reiteraram que o abandono dos alunos da EJA à escola aumenta quando não existe suporte da instituição educacional, dos colegas e dos familiares; crença do discente em seu próprio desempenho; envolvimento com a escola; e valorização das instituições em que frequenta as aulas. Também, sublinham, as professoras, a influência familiar como algo importante na decisão dos alunos de interromper os estudos. É o que percebemos neste relato de Madalena, que descreve os desafios com que foi confrontada no âmbito familiar:
Só porque eu fui pra escola, meu marido se separou de mim. Eu falei pra ele: ‘Quando eu era criança, meu pai não me deixou estudar, agora outro homem [marido] não vai impedir’. Para meu marido e meu pai, era mais importante que aprendesse a usar minhas mãos que minha cabeça. Porque eu não fiquei só usando as mãos, ou seja, lavando, passando, cozinhando etc., o meu marido achou ruim e me largou com dois filhos […]. Na escola da vida, eu já aprendi muito, agora só falta usar minha cabeça para aprender ler e escrever direito, assim como a professora ensina, como as pessoas estudadas fazem, pra passar de ano
(Madalena, 32 anos).
Madalena evidenciou que, confrontada com a interdição imposta pelo companheiro, recusou-se a permanecer na submissão. Esse é outro aspecto que atravessa as trajetórias das estudantes da EJA, as assimetrias nas relações de gênero, traduzidas, muitas vezes, na violência conjugal, no abuso sexual, nas desigualdades de oportunidades e de renda.
Madalena destacou outro aspecto em relação à educação popular: muitas vezes, o voluntariado resulta em experiências intermitentes. A Educação de Jovens e Adultos no Mebic é marcada por um cunho de doação, missão movida pela solidariedade, concebida na perspectiva de ajuda aos mais pobres, de caridade para com os desfavorecidos etc. No entanto, a educanda reconhece a consolidação do Mebic em seus 11 anos de história alfabetizando jovens e adultos e qualificando as educadoras que aí atuam: “Não é um projeto que começa e, quando a gente tá pegando o gosto, acaba”. Além disso, salientou a formação das educadoras: “São todas formadas e bem formadas; além dos assuntos, elas sabem também ensinar de um jeito bom que a gente aprende”. Seu depoimento destaca a qualidade do trabalho das educadoras.
Essa percepção está de acordo com a de Fávero, Rummert e de Vargas (1999) ao recomendarem que o educador de jovens e adultos não só conheça os conteúdos que perpassam a realidade, mas também compreenda as estratégias utilizadas em sua construção e transmissão. Só assim poderá entender como esses processos, construídos fora da escola, interferem na forma de aprender. De modo semelhante, Moll (2005, p. 17) recomenda, na escola para adultos, a busca do equilíbrio entre os saberes vivenciais e aqueles do currículo legitimado pelas diferentes áreas acadêmicas:
Fazer-se professor de adultos implica disposição para aproximações que permanentemente transitam entre saberes construídos e legitimados no campo das ciências, das culturas e das artes e saberes vivenciais que podem ser legitimados no reencontro com o espaço escolar. No equilíbrio entre os dois a escola é possível para adultos.
O cotejamento das práticas pedagógicas voltadas à Educação de Jovens e Adultos nas duas experiências pesquisadas, Mebic e Colégio Cora Coralina, indica tensões entre as forças de regulação e as de emancipação que as caracterizam. De um lado, emerge um conjunto de ações educativas, permeadas por princípios teóricos que aliam a alfabetização ao movimento da organização popular. De outro lado, está a instituição com tempos e ritmos regidos pelo sistema de ensino. Nessa concepção, o processo educativo é visto como emancipador à medida que promove a solidariedade, incentiva sua organização e autonomia. Além disso, as propostas governamentais contribuem para enrijecer a organização do trabalho pedagógico, encerrando a EJA “[…] nas rígidas referências curriculares, metodológicas, de tempo e espaço da escola de crianças e adolescentes, interpondo obstáculos à flexibilização da organização escolar necessária ao atendimento das especificidades desse grupo” (di Pierro, 2005, p. 1117).
Destacamos que os resultados da pesquisa ganham maior relevância no contexto de intolerância que hoje se expande amplamente na sociedade brasileira, gerando conflitos de valores religiosos, políticos etc., que afetam de modo direto o trabalho pedagógico do educador na EJA na sala de aula3. Além deste cenário, cabe ressaltar os efeitos da pandemia de covid-19 sobre a população mais empobrecida da sociedade, o que amplia enormemente o contingente de população alijada de toda forma de acesso à escola. A população fora da escola, sem a conclusão do percurso da educação básica, soma em 2021 um total de 77.364.447 (Cruz; Monteiro, 2021). Destes, matriculados na EJA eram 3.002.749 em 2020 e passaram a ser 2.948.511 em 2021 (Cruz; Monteiro, 2021). Ou seja, a situação educacional para essa parcela da população, durante a crise sanitária vivida no período, tornou-se ainda mais frágil. Somos, portanto, chamados a, a partir de um olhar sobre o passado, refletir sobre as condições de possibilidade de oferta escolar da EJA no presente e no futuro.
Defendemos a importância da escola para esses educandos e educandas; contudo, reivindicamos um caráter de deslocamento de posições de rigidez que caracterizam os sistemas de ensino. Voltando os olhos à experiência dos sujeitos, afastando-se de posições assimilacionistas, pretendemos que a EJA venha a desocultar e explicitar práticas que reiteram a exclusão, de modo a se distanciar delas e a promover um regime de acolhimento ao outro em suas diversidades.
Recorremos aqui a Santos (2000) para focar nossas lentes nas noções de conhecimento regulatório e emancipatório. O primeiro quer reduzir toda diferença a um mesmo padrão e à ordem. Já o segundo revela-se na ecologia de saberes. Enquanto o primeiro opera pela tutela, no âmbito do colonialismo, o segundo opera pela autonomia no âmbito da solidariedade.
Somando-se à Boaventura de Sousa Santos, Nilma Lino Gomes (2020, p. 227) denuncia a manutenção da primazia de padrões coloniais eurocentrados de mundo e de conhecimento científico no currículo escolar:
A colonialidade é resultado de uma imposição do poder e da dominação colonial que consegue atingir as estruturas subjetivas de um povo, penetrando na sua concepção de sujeito e se estendendo para a sociedade de tal maneira que, mesmo após o domínio colonial, as suas amarras persistem. Nesse processo, existem alguns espaços e instituições sociais nos quais ela opera com maior contundência. As escolas de educação básica e o campo da produção científica são alguns deles. Neles, a colonialidade opera, entre outros mecanismos, por meio do currículo.
Na mesma direção, Vera Candau (2011), tratando da escola regular, destaca a presença de uma defesa democrática da educação para todos como valor disseminado no discurso professoral. Todavia, segundo destaca, esse discurso revela-se homogeneizador ao pretender padronizar os procedimentos e processos adotados a partir de uma perspectiva unívoca de didática, currículo, avaliação etc. A autora, a fim de nos levar a repensar esses elementos, ressalta que a atuação da educação escolar como dispositivo para a homogeneização cultural se faz perceber desde a formação dos estados nacionais latino-americanos e desempenha “[…] um papel fundamental, tendo por função difundir e consolidar uma cultura comum de base eurocêntrica, silenciando ou invisibilizando vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades” (Candau, 2011, p. 242). O silenciamento destacado pela autora caracteriza-se pela execução da morte simbólica. Ele opera na produção das subjetividades, pelo apagamento de epistemologias outras que não a colonizadora.
Sueli Carneiro (2005, p. 96) apoia-se em Boaventura de Sousa Santos para dizer que o epistemicídio constitui-se “[…] num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados”. O epistemicídio não apenas nega o caráter de conhecimento ao saber do outro, não inserido no modelo epistemológico aceito, mas também nega a capacidade mesma de o outro vir a produzir conhecimento. Boaventura de Sousa Santos (apud Carneiro, 2005, p. 96) ressalta que esse fenômeno, o epistemicídio, constitui-se no modus operandi do empreendimento colonial: aparato global de destruição de corpos, mentes e espíritos, que torna possível “[…] apreender esse processo de destituição de racionalidade, da cultura e da civilização do outro”.
Na direção de superar o epistemicídio, Nilma Gomes (2020, p. 224-225) indica que descolonizar o currículo significa não pensar os sujeitos como ignorantes a serem civilizados. A partir daí, a autora defende a inclusão de outras epistemologias, até então ignoradas, invisibilizadas pela escola, para que se alcance uma educação pública, laica, antirracista e verdadeiramente democrática. De tal maneira, a escola, e especialmente a EJA, beneficia-se de uma visão de conhecimento mais emancipatória. Também Miguel Arroyo (2005, p. 25-28) frisa como a herança da educação popular convida a escola a expandir suas concepções, alargar seus modos de compreensão e funcionamento, rompendo com sua lógica estreita, típica dos modos regulatórios regimentais do sistema de ensino:
Temos de reconhecer que muitas experiências de EJA acumulam uma herança riquíssima na compreensão dessa pluralidade de processos, tempos e espaços formadores. Aprenderam metodologias que dialogam com esses outros tempos. Incorporaram nos currículos dimensões humanas e conhecimentos que foçaram a estreiteza e a rigidez das grades escolares curriculares. […] Tudo isso foi possível porque essas propostas ousadas estavam fora das grades, sem o fantasma da verificação, de aproveitamento de estudos, da sequenciação curricular, seriada, do cumprimento de cargas horárias por disciplina, área, etc. As lógicas foram outras.
Assim, os dados que expusemos corroboram a afirmação de Sérgio Haddad (2007, p. 18), quando ele identifica o tensionamento para a flexibilização de tempos, espaços e currículo no diálogo com os sujeitos e o mundo fora da escola. Para o autor, a tensão se localiza entre a flexibilização e a institucionalização na busca de construir um modo próprio de fazer a EJA. Ele aponta que atender adequadamente à modalidade passa por questionar a escola tradicional, espelhada na educação de crianças:
Com o reconhecimento do direito à educação de jovens e adultos como oferta pública, a tensão entre uma institucionalização, por meio do modelo de ensino regular acelerado, e a criação de outro modelo que busque flexibilização, inspirada nas orientações da Educação Popular, é característica permanente desta busca por um caminho próprio de se fazer EJA. A luta pelo direito à escola revela características no imaginário da população e dos educadores que se espelham na escola regular de Ensino Fundamental voltada para o ensino de crianças e adolescentes. O desafio pela constituição de um modelo de atendimento próprio passa pelo questionamento da escola tradicional, sem deixar de lado seus acertos e os achados
(Haddad, 2007, p. 17).
Portanto, os depoimentos que apresentamos convidam a escola a interrogar suas práticas e currículo, a sustentar seu fazer no mais amplo diálogo (democrático). O ensino, compreendido como processo humanizador – especialmente na educação de adultos –, é chamado a superar um currículo monocultural, a flexibilizar tempos e espaços e a superar as hierarquias de saberes, raça, gênero, geração, religião e origem geográfica. Assim, erradicando o medo e o sofrimento, tornando-se espaço de “com-vivência”, a escola poderá vir a ser espaço de cultivo da alegria e entusiasmo de aprender junto.
Considerações Finais
O desejo da superação de constrangimentos e experiências de discriminação vividas no ambiente escolar e na sociedade; a conquista de comunicação mediante várias linguagens para o uso da norma-padrão da língua; a possibilidade de acompanhar e educar melhor os filhos; a formulação de projetos pessoais e coletivos; o desejo do exercício pleno da cidadania – tudo isso contribuiu para esses sujeitos se inserirem no Mebic. Constatamos que o legado da educação popular permanece atual. Arroyo (2005, p. 47) sugere o reconhecimento desse legado e propõe a construção de um diálogo com o sistema escolar para pensar a EJA a partir dessa herança. Acreditamos que a educação popular pode contribuir, de maneira significativa, na formulação das políticas públicas, oferecendo concepções pedagógicas, experiências de organização dos currículos, dos tempos e espaços, oxigenando o sistema escolar.
Observamos a tensão entre as práticas pedagógicas emancipatórias e reguladoras quando os jovens, adultos e idosos egressos da educação popular, ao ingressarem na educação escolarizada, foram tratados de modos homogêneos. Também gera tensão a intransigência seletiva do sistema escolar, manifesta na organização do trabalho pedagógico e na rigidez dos tempos e espaços diante das diferentes condições das quais homens e mulheres pouco escolarizados dispõem para retomar a trajetória de escolarização interrompida. Isso se dá pelo esquecimento de que “[…] a EJA sempre veio para recolher aqueles que não conseguiam fazer seu percurso nessa lógica seletiva e rígida de nosso sistema escolar” (Arroyo, 2005, p. 48).
Finalizando, acreditamos, como Paulo Freire (1998), que pensar sobre a prática é o caminho para aprender a pensar certo. Aliamo-nos, também, a Santos (2000) ao advertir sobre o prejuízo que acarreta o desperdício da experiência. Por conseguinte, consideramos que este estudo traz elementos para repensar a educação e a escolarização nos tempos conflituosos que enfrentamos.