Introdução
Como uma medida de combate à violência e melhora da qualidade do ensino básico brasileiro, a militarização das escolas públicas é fundamentada pelo Programa Nacional das Escolas Cívico Militares (Pecim), instituído em 2019. A proposta do programa é viabilizar o fornecimento de apoio militar para o corpo docente nas áreas administrativas e educacionais nas escolas. O Pecim é apresentado no sítio oficial do Governo Federal como uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC) em conjunto com o Ministério da Defesa (MD), tendo como parceiros: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Universidade Federal do Goiás (UFG), Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias (CEP/FDC), Instituto Militar de Engenharia (IME).
Para a consolidação do Pecim, a Portaria n° 2015, de 20 de novembro de 2019, regulamentou algumas ações, entre as quais o salário dos profissionais militares e demais custos advindos do Fundo Nacional de Educação (FNDE). A maior parte dos militares que atuam nas escolas militarizadas é da reserva das Forças Armadas, sendo aberta a possibilidade de participação de policiais e bombeiros militares se houver decisão governamental estadual ou distrital nesse sentido.
Importante ressaltar que, apesar da mesma defesa de valores, as Escolas Cívico-Militares são diferentes das Escolas Militares, que são regidas por diferentes legislações, normas e objetivos educativos. Dessa forma, referimo-nos no texto por Escolas Cívico-Militares uma vez que a discussão diz respeito especificamente às escolas que aderiram ao Pecim, embora a militarização das escolas públicas seja um fenômeno em curso no Brasil desde a década de 1990. O Pecim, como programa do governo federal, dá continuidade e amplia esse processo.
Alves, Toschi e Ferreira (2018) exemplificam que, no Estado de Goiás, nas gestões de Marcone Perillo (1999-2002; 2006-2011 e 2015-2018) e no contexto das políticas de segurança pública, escolas militares foram criadas por projetos de lei. Segundo o governo, a medida atendendia à expectativa da população, que teria se manifestado por abaixo-assinado (Alves; Toschi; Ferreira, 2018).
A escolha da militarização das escolas públicas brasileiras a partir do Pecim, segundo Erastos Mendonça, baseia-se em
[…] supostas credibilidade e eficácia dessas escolas, aliadas ao rigoroso controle disciplinar e ao respeito à hierarquia, além da valorização do civismo seriam razões suficientes para entregar a gestão da escola pública à corporação dos policiais militares. Aliados a esses pretextos, o combate à violência, ao envolvimento com drogas aparentam também povoar o imaginário das famílias como bons argumentos para apoiarem a iniciativa governamental. Essas eventuais vantagens parecem obnubilar a visão das famílias que, como compensação, nas diversas experiências estaduais de militarização, permitem se aceitar cotas para filhos de militares, processos de seleção para ingresso, pagamento de mensalidades, custeio de uniformes bastante mais caros que os habitualmente usados nas escolas públicas, normas disciplinares extremamente duras, inclusive com adoção de castigos há muito banidos das escolas civis, dentre outros procedimentos típicos das escolas militarizadas, além da interferência dos setores de segurança pública nas políticas educacionais
(Mendonça, 2019b, p. 595).
Além dessas questões, uma das problemáticas das Escolas Cívico-Militares é o não cumprimento do artigo 206 da Constituição Federal (CF), que versa sobre a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, ensino gratuito, liberdade e pluralismo de ideias. Elas também vão de encontro aos princípios das Leis de Diretrizes de Bases da Educação (LDB) ao possibilitar que cargos de direção sejam ocupados por profissionais de fora da área da educação, como, por exemplo, pelos militares.
A escola, por definição, é um ambiente coletivo em que os sujeitos se encontram com a finalidade de ensinar e aprender. Portanto, “[…] falar da escola como espaço sociocultural implica, assim, resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a constitui, enquanto instituição” (Dayrell, 1996, p. 136).
O modelo atual da educação pública brasileira apresenta entraves para a efetivação do direito à educação, como na dificuldade da permanência de estudantes para a conclusão do ensino básico, visto que
[…] a evasão escolar ocorre por diversas causas, desde aquelas diretamente relacionadas à instituição, como a qualidade do ensino e o ambiente escolar a vida social, como questões familiares e/ou meio em que o(a) aluno(a) vive
(Sales et al., 2019, p. 1371).
Nesse sentido, é importante investigar como a militarização da escola pública, como um programa de governo materializado no Pecim, auxilia ou não nas problemáticas que impedem a efetivação do direito à educação. Neste artigo, a escolha por chamar as escolas de Cívico-Militares e não escolas militarizadas reside na crítica ao processo de militarização das escolas públicas, já existente no país, mas agora como um programa de governo. Como alerta Erasto Fortes Mendonça (2019a, p. 624),
Com a iniciativa do Governo Federal de criação do Pecim, a proposta de colégios militares nas capitais fica alterada para seguir o modelo das iniciativas de governos estaduais, que vêm se alastrando país afora, de militarizar escolas públicas, entregando a gestão às respectivas corporações de polícias militares e, em alguns casos, também de bombeiros militares.
Assim, analisar os conflitos sobre o processo governamental de militarização das escolas públicas brasileiras é um debate bioético, que busca compreender os objetivos desses conflitos morais, a quem interessa tal defesa de uma agenda política conservadora militar e as possíveis consequências disso para a educação pública. Pois é na interação do espaço escolar e a militarização, o poder manifesta-se “[…] de modo triplamente qualificado e em permanente articulação com os poderes jurídico, militar e educacional, exigindo da análise o redimensionamento do protagonismo de seus alunos” (Brunetta, 2015, p. 501).
A militarização das escolas é um debate que interessa a toda a sociedade. A bioética defende a ação-reflexão sobre os conflitos sociais, que são de interesse coletivo, como defende Fátima de Oliveira (1997). Segundo a autora, a Bioética apresenta uma dupla face de ética e cidadania, por um lado como disciplina e um ramo da ciência, e por outro como movimento social, pois não se limita às problematizações éticas entre paciente e médico, preocupando-se com as relações de poder e demais desigualdades em outras áreas, como a Saúde, Educação, Política, Meio Ambiente, entre outros (Oliveira, 1997).
O termo Bioética é explicado por Van Rensselaer Potter, no ano de 1971, como uma ética ambiental e global que versa de forma interdisciplinar sobre diversas questões que permeiam o viver e as transformações da natureza-sociedade. Para o autor, são reflexões a fim de integrar aspectos tanto das ciências naturais como das ciências humanas por meio da ética, buscando debater os desafios e conflitos coletivos (Potter, 2016).
Os conflitos que perpassam a Educação, mais especificamente a educação pública, são de interesse bioético. Em um sentido freiriano, a Educação relaciona-se com os sujeitos, a autonomia, e apresenta o caráter indissociável dos conteúdos formativos escolares e a formação ética dos educandos (Freire, 1996). Considerando que a construção do sujeito ético ocorre na relação entre sujeito-sociedade, o ambiente escolar é onde ocorre importante parte dessa formação.
Para Volnei Garrafa, a Bioética de Intervenção “[…] propõe uma aliança concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade” (Garrafa, 2005, p. 128). Com origem no território brasileiro, a Bioética de Intervenção busca compreender os conflitos éticos e tem natureza teórico-epistemológica, com uma perspectiva não colonizadora que de fato possa contribuir para a transformação social. Apresenta ferramentas para a análise de conflitos éticos a partir de um recorte espacial e politizado, compreendendo a não neutralidade das políticas públicas e suas relações com as iniquidades sociais. Em uma análise bioética mais contextualizada, para subsidiar a discussão, a escolha da Bioética de Intervenção baseia-se na proposta de que conflitos ético-políticos sejam analisados e solucionados por aqueles que fazem parte do problema, fomentando, assim, uma análise comprometida com a realidade no combate às injustiças sociais.
No caso da militarização das escolas, é de interesse da sociedade compreender como a autonomia e a dignidade de educadores, educandos e demais sujeitos estão ameaçadas com a propulsão das Escolas Cívico-Militares e como essas questões são de importância individual e coletiva. Assim, o objetivo deste artigo é analisar, a partir da Bioética de Intervenção, a militarização das escolas públicas do Distrito Federal. Para tanto, foi realizada análise de textos, artigos em periódicos, livros e documentos oficiais referentes à temática nos últimos anos (2019-2021). A escolha desse recorte temporal se relaciona com a agenda política dos governos Federal e Distrital atuante no mesmo período, que tem a militarização das escolas como pauta.
A Ideologia de Soldado e a Colonialidade da vida
A militarização, de maneira ampla, é explicada por Frei Betto como “[…] um processo em que valores, modos de vida, princípios e normas que orientam o mundo militar são transferidos para a administração pública, militarizando o Estado” (Betto, 2021, p. 2). Os valores que sustentam a militarização do Estado são os que, aqui no texto, qualifica-se como a Ideologia de Soldado.
Sobre esses valores, na qualidade de uma experiência política brasileira, vive-se explicitamente períodos de ditadura militar, com a censura de direitos humanos, as torturas e uma série de violações, que foram direcionadas àqueles que pensavam, existiam e atuavam diferentemente das normas, valores e projetos políticos impostos pelos militares. Nas palavras de Frei Betto, a ditadura que vivemos no Brasil aprofundou a objetificação das pessoas, pois “[…] a militarização de corações e mentes torna o outro invisível e desprezível, o que justifica a violência” (Betto, 2021, p. 3).
Essa violência política é legitimada até hoje pela falta da justiça de transição no Brasil, ou seja, a não responsabilização dos militares pelos crimes de tortura e violência durante os períodos de ditadura militar. Nesse sentido, a popularização da militarização urbana, como uma necessidade de segurança para o combate à violência, está em consonância com o que explica Marcelo Lopes de Souza:
[…] como o medo é mau conselheiro, amplos setores da sociedade civil, a começar pela grande imprensa, se mostram crescentemente favoráveis a apoiar, e com cada vez menos ressalvas, a militarização explícita da questão urbana. Se antes esta era amiúde reduzida a um caso de polícia, agora avança, a passos largos, para torná-la, de maneira plenamente institucionalizada, uma questão militar
(Souza, 2008, p. 127).
Diante desse cenário de militarização da vida e de insegurança permanente, a Ideologia de Soldado é um termo cunhado pelas autoras do presente trabalho, a fim de compreender valores, normas e ações que constituem a práxis militar e que estão presentes nas narrativas das Escolas Cívico-Militares Brasileiras. São normas que correspondem à forma de se relacionar com sujeitos, instituições e espaços.
A defesa e o ataque armados da Segurança Nacional, a disciplina, a violência, o sofrimento, a razão, o desenvolvimento e a civilidade são exemplos de valores formativos dessa ideologia. James Toner (1998, p. 49) nos seus estudos sobre a ética militar defende que
Um grande problema com a educação ética é que esta não pode ser amontoada em compartimentos arrumados e a aprendizagem desejada e bem sonhada vem à tona. Concordo plenamente que existe uma literatura moral com a qual as pessoas devem estar familiarizadas, e concordo plenamente que o conhecimento de certas fontes religiosas, filosóficas, históricas e literárias pode ajudar-nos a todos a encontrar o nosso caminho por meio da selva da ética. Mas não há ‘bala mágica’ - nem sempre há uma certa bússola ética. Temos de ensinar raciocínio moral, e não apenas ‘valores fundamentais’ ou ‘listas de verificação ética’1 (tradução nossa).
A razão moral eurocêntrica é central nos valores militares. Ao adotar uma postura de portadores da razão, automaticamente, os militares se opõem a todos aqueles que infringirem normas de sua instituição e valores. Para sustentar essas moralidades é permitido o uso da força e da violência, simbólica e material. Essa é a Ideologia de Soldado, que busca homogeneizar e controlar corpos, mentes, relações, emoções, instituições, para que sirvam e sustentem o modo de produção capitalista – que funciona na gramática eurocêntrica ao constituir um Estado Soberano a partir da Colonialidade (Quijano, 1992). O imaginário social, dessa forma, constitui-se de valores coloniais. Essas moralidades ocorrem em escalas globais e locais, em processos geopolíticos e micropolíticos. Passamos a analisar, portanto, as correlações existentes entre a Ideologia de Soldado e os eventos histórico-políticos que marcaram o território latino-americano, como a colonização europeia na América, e que funcionam como as bases dos valores coloniais.
Anibal Quijano ensina com a Colonialidade do Poder que a categoria raça foi estabelecida como ideia central de legitimação do poder europeu sobre os demais povos no evento da colonização do século XV (Quijano, 1992). Ao falarmos em valores europeus coloniais, portanto racistas, como defende Rita Segato (Segato, 2018), fica evidente que o desenvolvimento e a civilidade, presentes na Ideologia de Soldado, funcionam em uma lógica de exclusão e de poder e definem, em sua estrutura, aqueles hierarquicamente superiores e dotados de razão, ética, educação, civilidade e uma série de predicados que o sistema colonial designa como exclusivos do homem branco, proprietário, heterossexual, burguês. Para Fanon (1968, p. 30), o mundo colonizado é um mundo maniqueísta, pois
Não basta ao colono limitar fisicamente, com o auxílio de sua polícia e de sua gendarmaria, o espaço do colonizado. Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal.
Nesse sentido, ao pautarmos a militarização e, especificamente, a militarização das escolas brasileiras, é preciso compreender sua relação com as políticas de Estado coloniais e as intenções subjetivas e materiais da divulgação dos valores militares nas escolas.
No âmbito nacional, podemos exemplificar como narrativas que defendem a Ideologia de Soldado a organização política Escola Sem Partido. Criada em 2004, pelo advogado Miguel Nagib, que anunciou no ano de 2020 seu desligamento da organização, desvinculando assim sua responsabilidade das atividades e publicações, tem como importante bandeira o que categorizam como combate à doutrinação ideológica. Defendem que questões de gênero e religião, por exemplo, não devem ser debatidas na escola e sim com a família. Acusam que a doutrinação ideológica é uma práxis do espectro político da esquerda e lançam dúvidas contra direitos humanos basilares. A Escola Sem Partido é responsável por diversos projetos de lei que defendem que o professor não tenha autonomia de cátedra em diferentes regiões do Brasil, direito constitucional garantido pelo artigo 206.
Ao passo que a Escola Sem Partido reclama uma educação sem ideologia, a disputa de narrativa é política e ideológica. Por meio de uma retórica de neutralidade política impossível – e indesejável dentro dos regimes democráticos, pois a política é seu fundamento de existência –, ela promove o fortalecimento da modernidade colonial, em que a política desenvolvimentista e a economia neoliberal são posições políticas neutras, valendo-se de um manto da invisibilidade do universal e do hegemônico para despolitizar o debate, retirando, portanto, da cena pública a pluralidade de ideias, moralidades e pedagogias.
As Escolas Cívico-Militares estão em consonância com uma agenda política que combate a doutrinação ideológica, como exemplificada pelas falas do ex-Ministro da Educação, Abraham Weintraub2 (2019-2020) na estreia do Programa das Escolas Cívico-Militares ao fazer afirmações como: “Se você fez escola cívico-militar, é de direita” e que as “Escolas Cívico-Militares são propostas para garantir que esta bandeira verde e amarela nunca vá a ser vermelha” (Palhares, 2020).
Esse cenário conturbado do direito à educação no Brasil e seus meandros nos colocou defronte da defesa estatal de um modelo de ensino que não se alicerça na liberdade e nos direitos civis basilares da vida política de um país – contexto caracterizado pelo projeto da militarização das escolas, o Pecim, e seu pretexto de desenvolvimento, civilidade e razão, que vem implementando a Ideologia de Soldado no ambiente escolar como princípio norteador e disciplinador.
Na defesa do desenvolvimentismo como princípio, fica evidente a relação do programa do Estado com o discurso colonizador, quando a noção de desenvolvimento está relacionada à ordem, à padronização e ao controle das dissidências, divergências, diversidades, fortalecendo o veio colonial do Estado, de maneira objetiva e subjetiva, como explica Flor do Nascimento:
Uma das características da colonialidade é pensar a estruturação do real em função de hierarquias, no qual quem é constituído como menos desenvolvido deve estar apenas sob a tutela dos supostamente mais desenvolvidos, mas que o próprio desenvolvimento de alguma maneira está ligado a esta tutela. As formas de vida diferentes de países centrais e países periféricos não apenas supõem uma diferença de nível de desenvolvimento, mas também um escalonamento de valores entre as vidas.
(Flor do Nascimento, 2010, p. 112).
A militarização e a Ideologia de Soldado são ameaças para o direito humano à educação e para a escola pública brasileira. Ameaçam a pluralidade de existências. São violências do Estado que compõem a Colonialidade da Vida, que pode ser entendida como
[…] o processo de criar uma ontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas são mais importantes do que outras, desde o ponto de vista político, fundando assim uma hierarquia e uma justificativa para dominação, exploração e submissão, sob o pretexto de ser esse um caminho para o desenvolvimento da vida menos desenvolvida
(Flor do Nascimento; Garrafa, 2011, p. 292).
A militarização das escolas é uma estratégia para dominação de corpos e mentes na busca da padronização dos sujeitos e a promoção dos interesses da Ideologia de Soldado. Importante mencionar que a militarização das escolas tem sido registrada em escolas públicas, tendo assim como alvo a periferia e a população pobre brasileira, uma vez que a elite acessa a educação privada. Foram representantes das escolas privadas que fundamentaram e fortaleceram a Escola Sem Partido e que balizaram o recente processo de reestruturação curricular do ensino médio no Brasil, que retirou do ensino público a obrigatoriedade de disciplinas como história, filosofia, sociologia e artes – decisão essa que ocorreu sem a participação das universidades, de docentes e pesquisadoras/es, das escolas, de gestores e das/os estudantes.
Os processos de militarização das escolas brasileiras, apesar de fazerem parte do Programa de Governo Federal, contaram com processos diferenciados, de acordo com as regiões em que foram instaurados. As múltiplas experiências das Escolas Cívico-Militares no Brasil apresentam os mesmos problemas das políticas públicas baseadas em valores coloniais/racistas. Essa regulamentação da vida é a gramática a ser seguida, sob o pretexto de diminuição de violências e preservação dos bons costumes; escancararam a violência do Estado Brasileiro. No presente trabalho, aprofunda-se a experiência da militarização das escolas na região do Distrito Federal.
A Gestão Compartilhada e a militarização como solução de Estado
No Distrito Federal, além da participação no Pecim do Governo Federal, o governador Ibaneis Rocha criou a Portaria Conjunta nº 01, de 31 de janeiro de 2019, que versa sobre a implementação do projeto piloto Escola de Gestão Compartilhada, parceria entre
Secretaria de Estado de Educação e a Secretaria de Estado de Segurança Pública, por intermédio de ações conjuntas a fim de proporcionar uma educação de qualidade, bem como construir estratégias voltadas ao policiamento comunitário e ao enfrentamento da violência no ambiente escolar, para promoção de uma cultura de paz e o pleno exercício da cidadania
O projeto piloto de gestão compartilhada entre a educação e a segurança pública começou em 2019 em quatro escolas do Distrito Federal; Centro Educacional 03 de Sobradinho; Centro Educacional 308 do Recanto das Emas; Centro Educacional 01 da Estrutural; e Centro Educacional 07 da Ceilândia. A escolha das escolas ocorreu por adesão e por atenderem aos critérios do artigo 1º, §1º, da portaria conjunta antes mencionada, selecionando as escolas pelos critérios de vulnerabilidade social, índices de criminalidade, desenvolvimento humano e de educação básica. O artigo 2° qualifica os objetivos da Gestão Compartilhada:
I - Facilitar a construção de valores cívicos e patrióticos aos estudantes das unidades de ensino; II - Formar os discentes com o escopo de prepará-los para o exercício da plena cidadania, conscientes de seus deveres e direitos, em respeito às garantias previstas no art. 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente e nos arts. 32 e 35 da Lei nº 9.394/96, que estabelece diretrizes e bases da educação em âmbito nacional; III - Melhorar os indicadores de desenvolvimento da educação básica - IDEB nas instituições de ensino contempladas; IV - Buscar maiores índices de aprovação dos estudantes da rede pública de ensino nos certames de acesso às instituições de ensino médio e superior, bem como maior inserção no mundo do trabalho; V - Obter avanços nos parâmetros de segurança pública cidadã na comunidade escolar, por meio da participação integrada da sociedade e dos órgãos públicos, como ferramenta transformadora da gestão do ensino; VI - Diminuir a evasão escolar
Doze escolas públicas do Distrito Federal fazem parte da Gestão Compartilhada. Segundo dados do sítio oficial, em nove delas foram implantadas as Escolas Cívico-Militares. Como política para a educação básica, cerca de 16 mil alunos são atendidos pelo projeto. O Governo do Distrito Federal pretendia instituir a gestão compartilhada em 40 escolas até o fim de 2022 (Brasil, 2019). No sítio também foi disponibilizada a informação de que os profissionais da educação ficam exclusivamente responsáveis pelo pedagógico, enquanto os profissionais da segurança são responsabilizados pela disciplina dos discentes na busca “[…]de estratégias voltadas ao policiamento comunitário e ao enfrentamento da violência no ambiente escolar, a gestão compartilhada tem como objetivo promover uma cultura de paz e o pleno exercício da cidadania” (Brasil, 2019) De maneira geral, pela visão do sindicato dos professores, segundo Mendonça (2019b, p. 609),
O processo é visto como um malabarismo para tirar o foco dos reais problemas da rede de ensino, que vão da falta de investimentos adequados à falta de equipe pedagógica e, número suficiente para fazer frente aos problemas da escola. Ao invés, haveria uma espetacularização da violência como pretexto para a entrada de policiais na escola, de forma atropelada e sem diálogo prévio com a comunidade escolar e com a sociedade, maneira a levar a população a acreditar que a militarização das escolas é solução para a insegurança cotidiana a que é submetida, sem considerar que a violência é estrutural na sociedade, sendo a escola apenas um reflexo da sociedade onde ela está inserida.
A experiência da Gestão Compartilhada em diferentes escolas, ainda no ano de 2019, mostrou problemas similares que denunciam as estruturas da sociedade moderno-colonial. Em junho de 2019, no Centro Educacional 03 de Sobradinho, denúncias de abuso sexual de um Sargento da Polícia Militar estamparam manchetes de mídias locais e nacionais (Cassela; Marques, 2019). Na época, Rafael Parente, secretário de educação distrital, pronunciou-se nas mídias sociais sobre o afastamento do militar. No segundo semestre do mesmo ano, no Centro Educacional 07 de Ceilândia, um Sargento da Polícia Militar desautorizou a professora dentro da sala de aula, e foram gravados áudios sobre esse conflito (Caputo, 2019). Nessa mesma escola, um Policial Militar imobilizou um estudante que estava em uma briga com outro colega; vídeos feitos por estudantes puderam ser acessados nas redes (Dutra, 2019). Três situações que se somam a diversas outras violações da liberdade de cátedra, da autonomia docente, do respeito ao espaço público da escola e da dignidade da comunidade escolar. Nota-se que as experiências do Projeto Piloto da Gestão Compartilhada ocorrem em Regiões Administrativas periféricas do Distrito Federal.
A Ideologia de Soldado nas regiões mais vulneráveis demonstra a escolha do Estado em desenvolver essas regiões e ao mesmo tempo indica em quais lugares é permitido – ou, ainda, eticamente aceitável – o uso das forças de segurança pública dentro das escolas, intervindo direta e indiretamente nos processos pedagógicos. A escolha dos lugares em que as escolas serão militarizadas faz parte dessa política de Estado.
A consultora da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Gabriela Tunes Silva, produziu um estudo chamado A militarização das Escolas Públicas: Análise do Desempenho Escolar, Disciplina, Segurança e Aspectos Legais, que aborda importantes questões sobre as Escolas Cívico-Militares do DF.
Faltam evidências conclusivas de que regras rígidas melhorem efetivamente o comportamento e a disciplina dos estudantes, de forma que tal argumento, o de que a ‘disciplina militar melhora o desempenho dos estudantes’, pode ser também uma falsa afirmação, tendo em vista que o melhor desempenho das escolas militares se deve ao fato dela selecionar, de diversas formas, os melhores estudantes. A rígida disciplina, que inclui suspensões e expulsões, pode inclusive funcionar como mecanismo de exclusão dos alunos com mais dificuldades de aprendizagem e socialização, exatamente aqueles que mais precisam do ambiente escolar para terem plenos desenvolvimentos cognitivo, social, cultural e afetivo
(Silva, 2019, p. 9).
Nas conclusões do estudo Gabriela Tunes reflete sobre a
[…] necessidade de, no mínimo, cautela ao realizar a militarização das escolas públicas, sob argumento de que trarão benefícios à escola, aos estudantes e às comunidades. […] Em suma, há certamente maneiras menos arriscadas e autoritárias de alcançar melhorias na qualidade da educação das escolas públicas, que não envolvem a possibilidade de causar tantos danos aos estudantes, aos professores e à comunidade escolar
(Silva, 2019, p. 21).
As consequências para os estudantes, profissionais da educação e comunidade apresentam-se no aprofundamento das iniquidades sustentadas pela estrutura de poder colonial da sociedade. Assim, questões sobre raça, sexualidades, como identidade de gênero e orientação sexual, bem como comportamentos e existências que não se inserem no padrão colonial, são censuradas nesse modelo escolar militarizado. Em Militarização, violência e racismo: faces do mesmo, Wanderson Flor do Nascimento (2019, p. 4) ensina que:
A imagem do bandido que povoa o imaginário comum é do jovem, negro, masculino. A mesma imagem que fora erigida em torno do próprio escravizado nos trabalhos braçais do período escravocrata. Uma vida precarizada e contraditoriamente descartável. Necessária para a manutenção do trabalho escravizado, mas descartável a qualquer momento, quando a produtividade, a ordem colonial, e o desejo de morte estão em questão.
Esses cerceamentos de existências, identidades, comportamentos e expressões no ambiente escolar – que a militarização das escolas promove – mostram que, ao contrário da proposta de Paulo Freire sobre uma educação para a libertação (Freire, 1999), na militarização das escolas estamos na contramão da autonomia, da dignidade e da pluralidade. Ao padronizar, e, portanto, homogeneizar, a militarização desconecta os sujeitos de suas realidades, reforçando assim o poder e a violência do Estado para controle de epistemologias, afetos, alegrias e as múltiplas dimensões do viver e de um possível bem viver (Acosta, 2019). É uma política pública que instaura Políticas de Inimizades entre todos os atores da escola. O filósofo Achille Mbembe (2017) ensina que as políticas de inimizades são propagadas e materializadas nas políticas colonial-modernas do Estado ao estabelecerem quem pode e quem não pode viver – a necropolítica. O regulador dessas mortes é o racismo. No funcionamento do necropoder,
A cidade do colonizado, a cidade indígena, a cidade negra, o bairro árabe, é um lugar de má fama, povoado por homens de também má fama. Ali nasce-se em qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer parte e não se sabe nunca de quê. É um mundo sem intervalos, os homens estão uns sobre os outros, as cabanas dispõem-se do mesmo modo. A cidade do colonizado é uma cidade esfomeada, por falta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade de cócoras, de joelhos, a chafurdar. É uma cidade de negros, de ruminantes […]
(Mbembe, 2017, p. 131).
A militarização das escolas coloniza os processos de ensino e aprendizagem sob a ótica do poder disciplinador dos militares diante da comunidade escolar. Não há como defender que o disciplinar não afeta o pedagógico, pois são processos indissociáveis, visto que as identidades dos sujeitos são plurais e fazem parte de como os processos de ensino e aprendizagem são construídos e como dialogam com a realidade.
Uma análise a partir da Bioética de Intervenção
O conflito ético sobre a militarização das escolas é expresso em diversas ações do Estado, que violam direitos relacionados à educação e à pluralidade dos sujeitos, como as experiências citadas neste artigo. Dessa maneira, a Bioética, como uma área de estudos e atuação, busca problematizar e publicizar os conflitos que ocorrem na pesquisa científica, nas técnicas médicas, no avanço das tecnologias e possíveis relações com direitos humanos e de demais seres, entre outros. Pode-se dizer que a Bioética se preocupa também com as relações de poderes entre sujeitos-sujeitos, sujeitos-instituições, sujeitos-sociedades.
Beauchamp e Childress (1994) são importantes autores para a construção da Bioética anglo-saxônica e apresentam princípios norteadores para as ações que precisam de problematização e resolução ética. Porém, os princípios da Bioética anglo-saxônica, difundida globalmente e produzida no hemisfério norte, apresenta-se como insuficiente para analisar questões que acontecem em outras localidades, pois, além das situações de desigualdade sociais vivenciadas em diversos países que foram colonizados no Hemisfério Sul, que ainda não foram resolvidas, a Bioética Principialista reduz o escopo de atuação do campo bioético à bioética clínica e despolitiza o debate necessário para se pensar a ética da vida diante das questões públicas que vivemos em sociedade. Nesse sentido, a Bioética de Intervenção reivindica a necessidade de incorporar no campo das bioéticas questões e situações políticas, não fugindo à importância da superação das “[…] agudas discrepâncias sociais e econômicas existentes entre ricos e pobres, entre as nações do Norte e do Sul” (Garrafa, 2005).
A Bioética de Intervenção estabelece que, entre as situações bioéticas emergentes e persistentes, é preciso analisar os perigos impostos pelo imperialismo moral no mundo globalizado – esse imperialismo que ocorre desde a colonização até a organização espacial do mundo moderno ocidental. Ao se analisar a militarização das escolas a partir da Bioética de Intervenção, é possível compreender que as relações de poderes são desproporcionais entre o aparato da segurança pública com a comunidade escolar. Além das inconstitucionalidades da militarização das escolas, elas são entraves para a efetivação do direito à educação ao violar direitos. Em outras palavras, a militarização das escolas aconteceu de forma impositiva e sem o diálogo com a comunidade escolar, contrariando os princípios de formulação e implementação de qualquer boa política pública.
Na importância da escolha de princípios que se relacionem com a nossa realidade, a Bioética de Intervenção defende que prudência, prevenção, precaução e proteção, os 4Ps, além da solidariedade crítica e da responsabilidade social, são fundamentais para subsidiar as práticas éticas (Selli; Garrafa, 2006).
Em relação aos 4Ps da Bioética de Intervenção, para uma análise sobre a militarização das escolas, é possível compreender que não existe prudência ao se buscar disciplina por meio do uso da força. Isso mostra que não ocorre prevenção, visto que prevenir tem como objetivo evitar que ocorram conflitos e não os resolver de forma puramente disciplinar. A segurança armada dentro da escola busca resolver o conflito pela disciplina, e não pelo diálogo, que pode prevenir conflitos com precaução. Dessa maneira, não há proteção àqueles que estão em relações desproporcionais de poder dentro do ambiente escolar; ao contrário, o que ocorre é um reforço das relações de poder, que buscam punir os que não estiverem inseridos dentro do padrão (Selli; Garrafa, 2006).
Todas as relações que ocorrem dentro do ambiente escolar são pedagógicas. Desde as aulas em ambiente interno com diferentes conteúdos, sobre português, geografia, filosofia, como no intervalo entre as aulas, o lanche e demais atividades. As relações que acontecem no chão da escola têm suas especificidades e também seus próprios processos de ensino-aprendizagem. São peculiares ao cotidiano e às relações que acontecem na escola. A padronização que a militarização da escola propõe ao empregar o discurso de desenvolvimento, razão e universalidade afronta a pluralidade da existência, e, assim, fomenta o discurso da não necessidade de direitos para sujeitos que são marginalizados, por serem diferentes na sociedade moderna racista, como explica Mbembe, “[…] gente para quem viver é estar sempre a prestar contas à morte” (Mbembe, 2017, p. 45).
Considerações Finais
Com a narrativa de levar ensino de qualidade e diminuir a violência, a militarização das escolas, como programa de governo, está funcionando como um meio de propagação dos valores militares, que são subsidiados por valores coloniais. É também uma ameaça e intimidação à autonomia e dignidade do educador e educando que discordam da Ideologia de Soldado – focada na moral, razão, disciplina e desenvolvimento, que são valores coloniais.
O Estado Brasileiro criminaliza diferentes lugares a partir de uma ótica colonial do ordenamento espacial ao militarizar algumas escolas a partir de índices sobre a violência, pois a violência que a militarização das escolas se propõe a combater é consequência da estrutura social, ou seja, não é exclusiva do ambiente escolar. Nesse sentido, além dos perigos e ameaças à efetivação do direito à educação da militarização social, por ferir diversas normativas, diretrizes e princípios da educação pública, a proposta de um policiamento que busca disciplinar os estudantes mostra-se como uma ação violenta que visa a cultura de paz. Essa ação violenta apresenta-se de maneira simbólica e material na padronização dos corpos. A violência colonial é necessária para o funcionamento do atual modo de produção, o capitalismo, e fomenta as ideologias liberais e neoliberais. Para Mbembe (2017, p. 87), as democracias liberais, nas quais o Brasil se insere, mostram que “[…] quase todas [democracias], hoje em dia, apelam ao fervor bélico, muitas vezes para remendar o velho tecido nacionalista” (grifo nosso).
Para se efetivar o direito à educação, é necessário que esta seja garantida para o maior número possível de sujeitos, independentemente de suas crenças e valores. Esses sujeitos têm os direitos garantidos pela Constituição Federal no sentido de acessar uma educação de qualidade, gratuita e pública. Os valores e a violência colonial que fomentam a militarização das escolas mostram que, além da violação à CF e demais normativas, o controle das populações subalternizadas pelo Estado faz parte da necropolítica do Estado moderno, que escolhe quem vive e quem pode morrer, quem tem direito à educação e quem não tem valor algum para esse sistema. Essa escolha é regulada pelo racismo do Estado. Ao presenciarmos o combate à violência dentro do ambiente escolar e a disciplina dos estudantes para a vida por meio do processo de militarização das escolas, o Estado demonstra que violento é o próprio Estado, que permanece, insistentemente, colonizador.