VAGAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: UM BEM VALORIZADO SOCIALMENTE
Qual seria o lugar da educação superior no Brasil? A taxa líquida de escolarização superior foi de 18,1% em 2015 (MEC/INEP, 2014), quase a metade dos 33% que se quer atingir pela meta 12 do Plano Nacional de Educação (PNE) 2em 2024. A restrição do acesso se reflete numa participação muito desigual, considerados níveis de renda. Num comparativo entre Argentina, Brasil e Chile, a taxa de participação dos estudantes no ensino superior do quintil mais pobre nos três países, em 2013 e 2014, é de 27,4% no Chile, 21,6% na Argentina e 5,4% no Brasil. Por outro lado, a titulação superior afeta a mobilidade social: no Brasil, a recompensa econômica média para os indivíduos com educação superior é duas vezes maior do que para os que só possuem o ensino médio (VARGAS e HERINGER, 2017). Por último, comparando os retornos salariais dos egressos dos setores público e privado, de forma geral, os primeiros possuem vantagem sobre os últimos (CAVALCANTI, 2017).
Esse sistema passou por um processo de massificação nas últimas décadas, apoiado em políticas de expansão em paralelo com a adoção de ações afirmativas para o sistema público federal, culminando com a promulgação da Lei de Cotas.3 As novas vagas do ensino público federal continuavam concentradas nas capitais e nos grandes centros, o que ensejou a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais4 (REUNI), que objetivava induzir o aumento de vagas nas instituições federais, com ênfase no turno da noite e em novas unidades fora dos grandes centros. Dessa forma, o número de matrículas mais que dobrou nas federais, indo de 670.180 matrículas em 2006 para 1.249.324 em 2016. Entretanto, a taxa de conclusão média das graduações presenciais nas universidades públicas foi de 45,9% em 2016, indicando problemas mais complexos na implementação do sistema (INEP, 2017).
UM SISTEMA DE SELEÇÃO CENTRALIZADO DE VAGAS PÚBLICAS
Com intenção de melhor alocar as novas e preciosas vagas públicas, surge o Sistema de Seleção Unificada, instituído pelas Portarias Normativas 2/2010 e 21/2012 (BRASIL, 2010e 2012). Tal sistema objetiva a redução dos gastos com a realização de exames de seleção descentralizados, a diminuição da ineficiência observada na ocupação das vagas, a democratização do acesso à educação superior pública e a ampliação da mobilidade geográfica estudantil. 5
Desde sua implantação, o SiSU apresentou crescente adesão. Em sua primeira edição, 51 instituições aderiram ao sistema. Em 2018, foram cerca de 130. Sua sistemática prevê a apresentação, pelo candidato, da nota do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) realizado no ano anterior ao pleito, em dias específicos quando o sistema é aberto. Nesse momento, o candidato ajusta sua nota ao curso e instituição desejados, podendo apontar duas opções de curso, na mesma ou em diferentes instituições. Após essa etapa, segue um jogo em que ele pode ser aprovado na primeira ou na segunda opção, pode desejar ficar em lista de espera ou não ser aprovado. Caso não tenha sido bem-sucedido na edição do início do ano, pode reapresentar a nota do ENEM no processo seletivo do meio do ano. 6Em qualquer caso, tendo sido aprovado, no momento seguinte deverá acessar a instituição que o aprovou para efetuar os procedimentos de matrícula. Muitos candidatos desconhecem essa regra e perdem suas vagas.
ENCONTROS E DESENCONTROS DO SISTEMA
Passadas várias edições do SiSU, contamos com um razoável acervo de trabalhos avaliativos sobre suas vantagens e desvantagens.7Existe uma ambivalência nos resultados que sugere indagar, previamente: quais as vantagens e desvantagens e para quem, considerando-se como agentes principais as instituições e os candidatos ou graduandos? De qual ponto de vista?
Inicialmente destacamos as vantagens do SiSU sobre o vestibular, do ponto de vista do estudante. Como vimos, suas chances de ingresso dobram. Além disso, se malsucedido em suas opções preferenciais, pode optar, ainda na fase de inscrição, por outra carreira e nela ser bem-sucedido, enquanto, no vestibular, cada instituição elaborava sua prova e seus critérios de seleção, não permitindo o reaproveitamento ou realocação da nota do candidato. Na pior das hipóteses, o candidato pode concorrer ao SiSU no ano seguinte como no vestibular, sem nenhum prejuízo.
Com relação às instituições, destacamos inicialmente, a crítica de Luz (2012) sobre o sistema avaliativo: por ser uma avaliação única, instauraria uma contradição, visto que não são consideradas características peculiares do sistema de ensino básico brasileiro em sua elaboração. A unificação da seleção, assim, seria incoerente em um país onde o ensino médio encontra-se qualitativamente muito diferenciado. Confirmando essa percepção, Machado e Szerman, (2016, p. 23), com base nos microdados do ENEM e do Censo de Educação Superior “percebem que as instituições que adotam o SISU passam a recrutar alunos que, em média, pontuam mais no ENEM. 8(...) Como as instituições públicas geralmente têm uma boa reputação, espera-se que a centralização aumente a competição e o sorting dos alunos admitidos”. 9No tocante à promessa de maior inclusão social, Nogueira et al. (2017) demonstram que as mudanças pós-SiSU foram menores do que se esperava na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), exceto pela elevação do número de estudantes oriundos de escolas federais dentre os egressos das escolas públicas, e também pela observação de mudanças, conforme os cursos considerados: enquanto em alguns a participação de egressos de escolas públicas se elevou de forma acentuada, em outros diminuiu.
No tocante à ocupação de vagas, o SiSU elevou significativamente a não matrícula de candidatos convocados pela UFMG, gerando a necessidade de sucessivas chamadas. Da mesma forma, é identificada a evasão10 de um elevado percentual de alunos nos primeiros semestres dos cursos, embora parte desses volte à universidade em outros cursos, revelando a estratégia de mudança de curso propiciada pelo sistema. Estudos sobre evasão por áreas identificou que as áreas de Ciências Agrárias, Ciências Biológicas, Engenharias, Ciências Exatas e da Terra e Ciências da Saúde, tradicionalmente mais concorridas na Universidade Federal de Uberlândia (BARBOSA et al., 2017), apresentaram aumento significativos nos percentuais de alunos evadidos após o SiSU. O contrário ocorreu nas áreas de Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes e Ciências Sociais Aplicadas. Numa análise relacionada à seletividade e origem dos candidatos na Universidade Federal da Paraíba, Almeida et al. (2016) observou-se que nos cursos mais seletivos, a taxa de evasão é mais elevada entre aqueles que não são naturais do estado, enquanto o inverso é observado nos cursos de menor concorrência. “No primeiro caso, isto pode ser um indício de que o aluno escolheu o curso desejado, mas não a instituição de sua preferência” (ALMEIDA et al., 2016, p. 22). Da mesma forma, Li (2016), ao investigar o perfil de ingressantes pelo SiSU entre 2006 e 2014 em nível nacional, aponta um aumento do número de estudantes que ingressaram em universidades de outro estado, principalmente nas carreiras mais concorridas. É ainda destacado o caso da Medicina, que chegou a ter, em universidades das regiões Norte e Nordeste, maioria de calouros de outros estados.
Nogueira et al. (2017, p. 26) sintetizam, para os achados da UFMG, algo que pode ser generalizado: “o fato é que a ampliação da não matrícula de convocados, o abandono por parte de estudantes dos primeiros períodos e a intensificação do movimento de mudança de cursos tornaram o processo de ocupação das vagas menos eficiente e estável, exatamente o contrário do que se esperava com o SiSU”. Entretanto, entendemos que os efeitos críticos aqui destacados não podem ser atribuídos isoladamente à sistemática do SiSU. Nonato (2018) evidencia, nesse caso, os diferentes ou combinados efeitos do ENEM, da Lei de Cotas e do próprio SiSU no novo desenho de ocupação de vagas nas universidades federais.
AJUSTES GOVERNAMENTAIS EM REAÇÃO AOS EFEITOS OBSERVADOS
Ao MEC não escapou a preocupação com esses efeitos. Em abril de 2016, baixou-se a Portaria Normativa 8, criando os Indicadores de Qualidade para a Educação Superior, com uma inovação: o “Indicador de Trajetória dos Estudantes de cursos de graduação - ITE”, a ser calculado a partir do acompanhamento da trajetória dos discentes ingressantes. Esse seria composto pela taxa de permanência, de desistência e de conclusão, quando fosse o caso. Pela primeira vez, acompanhar a trajetória dos estudantes tornava-se objeto das normativas11 de avaliação, implicando as instituições, que se obrigariam a diagnósticos e intervenção sobre essas trajetórias. Afastada a Presidenta em maio de 2016, o novo Ministro da Educação revogou a Portaria 8 como um dos primeiros atos de sua gestão.
Já o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP) realizou levantamentos, com base no Censo de Educação Superior de 2010 a 2015, mostrando que entre os calouros de 2010, mais de 1.392.470 passaram por situações de instabilidades com a vida universitária (ÍNDICE, 2018). Entre as desistências, 58,3% eram de alunos de instituições privadas e 44,7% da rede pública. Além disso, informou que cerca de 20% dos 329 mil estudantes que ingressaram no ensino superior nas instituições federais fizeram o ENEM novamente depois de se matricular no curso. Com esse estudo, em 2017, o INEP passou a oferecer em seu site dados sobre o fluxo da educação superior.12 Para a rede federal, os dados entre 2010 e 2014 demonstram aumento nas taxas de desistência, saindo de 8,3% em 2010 para 42,6% em 2014. Utilizando esses dados para os cursos de Pedagogia da UFMG e da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Niterói e em Angra dos Reis, verificamos que a taxa de desistência acumulada também aumenta de 2010 a 2015, em todos os casos. Entretanto, na UFF os dados são piores do que na UFMG, e piores ainda no interior, Angra dos Reis, do que em Niterói, unidade sede.
De tal sorte o problema das vagas ociosas tem se desenhado que o MEC anunciou, em setembro de 2018, a criação de um sistema informatizado para selecionar estudantes interessados em ocupar vagas remanescentes nas IFES.13 Inspirado no SiSU, o programa foi batizado de SiSU Transferência (MEC ANUNCIA, 2018).
RECONFIGURANDO O PROBLEMA
Estamos, assim, diante de um impasse, não de todo imprevisível quando se trata de políticas públicas ou de ação coletiva, na perspectiva dos já mencionados efeitos perversos da ordem social (HIGGINS, 2011, p.258). Na definição de Boudon, “trata-se de efeitos individuais ou coletivos que resultam da justaposição de comportamentos individuais sem que estes efeitos estejam entre os objetivos visados pelos autores” (BOUDON, 1979, p. 54). Nessa linha de análise, destacamos os agentes envolvidos no jogo. São múltiplos e com interesses, capacidades, possibilidades e estratégias variadas.
De um lado, temos as instituições públicas ofertantes. Cada qual com seu prestígio e seu rol de cursos, ofertados em certas localidades, aplicando pesos diferentes às notas dos componentes do ENEM e praticando ações afirmativas com alguma autonomia. Estas desejam o preenchimento total de suas vagas, com estudantes que concluam os cursos por sua boa qualificação acadêmica e identificação com o curso, com a instituição e com a localidade. Aqueles com déficits acadêmicos ou materiais, mas também identificados com o curso, com a instituição e com a localidade, podem acionar políticas de apoio acadêmico, social, psicológico e de saúde. Entretanto, esses ofertantes não gozam de autonomia plena, posto que se submetem ao orçamento e a legislações nacionais sobre educação.
De outro lado, temos os candidatos. Demandam as vagas com suas notas no ENEM, em cursos, instituições e localidades de sua preferência ou o mais próximo disso. O nível socioeconômico é o maior limitador de suas notas e escolhas, conforme vasta literatura (ARROYO, 1990; BARROS, 2001; FORACHI, 1977; VARGAS, 2008). Uma vez aprovado, temos agora o calouro, apresentando novos desafios. Seus julgamentos sobre curso, instituição e localidade14 se confirmam? Se se confirmarem, ele se adapta à nova experiência escolar? Seu desempenho acadêmico é suficiente para concluir o curso? E quanto ao nível socioeconômico? Se já foi marcante para sua realidade como candidato, será companheiro constante no decurso da graduação, pelas questões materiais e simbólicas envolvidas, pelos capitais acionáveis (BOURDIEU, 2012) e pelo processo de afiliação (COULON, 2008) mais ou menos facilitado, para citarmos alguns componentes dessa interação.
Percebemos, assim, que das instituições aos ingressantes e concluintes, a lista de condições aumenta. Entre ofertantes e demandantes, há convergência de interesses por princípio, mas a consecução dos objetivos de ambos depende de fatores pluricausais, que vão desde a disponibilidade das famílias proverem o prolongamento dos estudos de seus filhos ou da compatibilização entre trabalho e estudo do aluno, até as condições do mercado de trabalho, passando pelas questões mais idiossincráticas de adaptação e pelas geracionais. Dessa forma, a efetividade das políticas públicas não se compara a outros processos, como o de expansão fabril, onde, de forma singela, ao se constatar necessidade de aumento da produção, aumentam-se os insumos, multiplica-se a produção e atende-se à nova demanda.
Uma lupa sobre alguns desses problemas
Examinando mais de perto, acreditamos que algumas situações têm sido negligenciadas na avaliação desses problemas. Vamos apresentá-las e em seguida considerar algumas “vias de saída” para as mesmas.
Do lado das instituições, um elemento complicador do ajuste entre oferta e demanda por vagas é a autonomia apenas relativa em relação à política de ações afirmativas a adotar15. Sucede, pelo seu elevado valor na sociedade brasileira, que os embates políticos sobre a destinação das vagas do ensino superior federal ultrapassam fronteiras internas. Vale dizer: o tema transita numa abrangente e disputada zona de interesse da sociedade. Como exemplo, citamos o questionamento judicial das cotas raciais aplicadas pela Universidade de Brasília pelo partido Democratas, posteriormente confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal.16 Dentro da mesma problemática, mas com decisão desfavorável à universidade, citamos o caso da UFF (VARGAS, 2016) que estabeleceu, pela Resolução 525/2015, o “critério de inclusão regional para acesso aos cursos de graduação presenciais localizados nos campi fora da sede”, acrescentando 10% na nota do ENEM aos candidatos residentes e que cursaram integralmente o ensino médio em escolas dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro listados na Resolução.17 Entretanto, a Defensoria Pública da União moveu Ação Civil Pública contra a universidade, que foi obrigada a recuar dessa disposição. Outra situação: de 2010 a 2012, a UFF vinha aplicando um tipo de bônus para estudantes egressos do ensino básico público apenas municipal e estadual, com base na superioridade da formação provida pelos estabelecimentos federais. Da mesma forma, a instituição foi impedida de manter essa prática, agora pelo advento da de Lei Cotas.
Nesse sentido, como “via de saída”, entendemos que a autonomia das instituições quanto a regras sobre ações afirmativas deve ser exposta e debatida publicamente, uma vez que afeta diretamente o público que vão atrair e manter. 18Além disso, trabalhos que aprofundem a sistemática de ingresso, iluminando zonas de sombra sobre a operacionalização do processo, devem ser incentivados. Os achados de Nonato (2018), por exemplo, permitem vislumbrar possíveis ajustes na Lei de Cotas, dentre eles: exigir mais tempo no ensino básico em escolas públicas, impedir quem já tem uma graduação de concorrer por cotas, dividir a proporção de cotas por tipo de ensino médio público e considerar a hierarquia dos cursos nas análises.
Quanto às dificuldades dos candidatos com o sistema, e posteriormente suas dificuldades de permanência, acreditamos que: 1) as instituições deveriam entrar em contato e não aguardar o contato do candidato, na fase de manifestação de interesse, 2) ampliação exponencial de propaganda informativa sobre o SiSU, suas regras e possibilidades no ensino médio público e nos meios de comunicação de massa principais como televisão, rádio e internet, 3) apresentação de mecanismos de assistência estudantil de cada instituição no momento de inscrição na plataforma do SiSU, dado o peso da limitação socioeconômica na escolha do curso, instituição e localidade e depois, na permanência dos estudantes,19 4) especificar análises sobre evasão pelo crivo de cursos, localidade, instituições e origem pública - municipal, estadual ou federal -, também poderia trazer mais luz para o problema e 5) ajustar frequentemente as regras do sistema, de modo a conferir mais estabilidade e menor manipulabilidade ao mesmo.20
E no tocante à problemática das escolhas dos candidatos, acreditamos que para além da já mencionada busca pela adequação ao curso, instituição e localidade de interesse, o que aumenta a imprevisibilidade do jogo, outro elemento deve ser adicionado, sendo seu oposto: o desconhecimento do que se quer, pelo candidato ou graduando. Pela nossa experiência docente de trinta anos, crescem os relatos de alunos na segunda, terceira ou quarta tentativa de “se encontrar” em uma graduação, muitas vezes com trocas de áreas de conhecimento entre uma tentativa e outra. Nesse sentido, desde 1995 Ristoff chama a atenção para a necessária distinção entre evasão e mobilidade na educação superior, legitimando as ações de mobilidade dos estudantes:
Parcela significativa do que chamamos de evasão (...) não é exclusão mas mobilidade, não é fuga, mas busca, não é desperdício mas investimento, não é fracasso - nem do aluno nem do professor, nem do curso ou da instituição, - mas tentativa de buscar o sucesso ou a felicidade, aproveitando as revelações que o processo natural de crescimento dos indivíduos faz sobre suas reais potencialidades. (1995, p. 56)
Talvez esse seja um traço geracional que se articula com elementos como: aumento da amplitude da oferta de cursos, trazendo mais opções e mais insegurança quanto à escolha; a transição para novas formas de trabalho, mais flexíveis; uma nova noção sobre fruição da vida, mais voltada para ganhos financeiros ou manejo de tempo do que por vocação, dentre outros. Nesse caso, as universidades estariam submetidas ao mesmo choque de gerações que as famílias e o mundo do trabalho estão experimentando. Porém, sua institucionalidade torna mais lento o processo de atualização perante a nova lógica desse público.
INDO ALÉM
Em minha tese de doutorado sobre democratização da educação superior,21 eu propunha um “indicador de democratização da educação superior - IDES” que guardava semelhança com o atual Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado do ENADE - o IDD.
O IDES incluía variáveis socioeconômicas dos estudantes e seu desempenho na avaliação nacional, analisados pela chave de cursos, localidade e organização administrativa e acadêmica. Dentre outros, os resultados apontavam uma impermeável e perversa hierarquia de carreiras, onde os mais ricos cursavam cursos prestigiosos e os mais pobres, cursos menos prestigiosos. O objetivo da tese era muito mais evidenciar essa situação do que propor alternativas a essa cristalizada desigualdade, percebida especialmente nas instituições federais, à época.
Um membro da banca me fez um questionamento desconcertante: “a solução para isso não estaria no sorteio das vagas públicas”? Senti um misto de irritação e espanto, porque acreditava que tal solução jamais seria aceita, pelo desenho de nossa estratificação social e pelo papel jogado pela educação superior nessa dinâmica. Portanto, seria uma indagação impertinente e inócua..., mas que nunca saiu de minha cabeça.
Acredito hoje que visões filosóficas sobre justiça social devem ser acionadas para subsidiar a abordagem do processo de admissão até a conclusão na educação pública. Destaco o pensamento igualitarista, para o qual ações compensatórias deveriam ser adotadas, com atribuição diferenciada de recursos educativos, a fim de reequilibrar as desigualdades observadas em todas as etapas do processo educacional (WALTEMBERG, 2002). Penso que, de alguma forma, todas as ações aqui tratadas - ENEM/SiSU, Lei de Cotas - representam passos nessa direção. Todavia, eles têm apresentado tantos resultados indesejados que se as IFES pudessem, certamente sairiam do sistema. Mesmo as “vias de saída” apontadas oferecem apenas paliativos às políticas praticadas, mas não iriam à raiz do problema. Além disso, os efeitos das persistentes desigualdades22 quanto à inclusão mediante políticas públicas, além dos riscos quanto à viabilidade econômica de um processo com tantas vagas ociosas, nos recordam, como se diz entre nós, quanto ao problema da justiça social, que “o buraco é mais embaixo”.
Assim, para além da tese igualitarista, convocamos inicialmente a ideia de uma intensificação da massificação do acesso, garantindo-se a permanência. Tal ação produziria mais justiça social, sem colidir com a possibilidade de manutenção de bons resultados acadêmicos. Um bom exemplo se materializa na seguinte notícia: “Beneficiários do Bolsa Família são medalhistas em olimpíadas de matemática”. 23 Nos últimos sete anos, 999 beneficiários do programa foram medalhistas. Esses estudantes conquistaram 1.288 medalhas: 93 de ouro, 234 de prata e 961 de bronze, além de 465 menções honrosas. Para o diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, a Olimpíada se torna um instrumento para abrir oportunidades. “Para quem está no Bolsa Família, isso acaba sendo um instrumento de justiça social” (IMPA, 2018).
Também na educação superior passamos a encontrar estudantes beneficiados pelo Bolsa Família nas IFES. É o que aponta Vasconcelos (2015), em estudo sobre alunos pobres nos cursos mais seletivos da Universidade Federal do Acre, campus Cruzeiro do Sul: Enfermagem e Letras Espanhol. Neste universo, há um predomínio considerável de alunos que não trabalham e contam, juntamente com seus pais e irmãos, com uma renda familiar de até um salário mínimo, sendo que oito dos dez entrevistados da pesquisa sobrevivem com a ajuda do programa Bolsa Família.
Vemos, assim, que a ampliação da base do recrutamento, sem dúvida, pode produzir resultados acadêmicos e de justiça social muito desejáveis. Portanto, por que não o sorteio das vagas públicas? Inicialmente, sanearia uma distorção, ao incluir mais proporcionalmente à sua representação demográfica, estudantes do ensino básico público, em todos os cursos. Como forma de garantia de acompanhamento acadêmico, o sorteio poderia ser realizado após a aplicação de Exame em que os candidatos obtivessem uma nota mínima, conforme ocorre em institutos de aplicação de universidades, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outra condição poderia ser a indicação de um único curso e/ou instituição.
Para o sucesso desse modelo, políticas de assistência estudantil e de permanência sistemáticas e prioritárias são condição sine qua non e certamente menos onerosas que o custo da evasão. Almeida et al. (2016) estimam que o custo anual por diplomado tenha se elevado de R$ 70.848,96 para R$ 86.464,44, considerado o aumento da evasão. E acrescentam: “considerando essas estimativas para o efeito-SiSU, um aluno diplomado no tempo certo ou com dois anos de atraso custaria para a sociedade, em média, respectivamente R$ 345.857,80 e R$ 518.786,60” (ALMEIDA et al., 2016, p. 22). Também o ministro da Educação, em entrevista sobre o “SiSU Transferência”, apontou que “estas vagas ociosas representam um verdadeiro desperdício de dinheiro público, que vem sendo acumuladas (sic) há anos» (MEC ANUNCIA, 2018). Sabendo-se de antemão que as IFES passariam a conter um quantitativo importante de estudantes mais pobres, deveriam se preparar financeira e academicamente para tal desafio.
Enquanto não temos a educação básica pública nem a estrutura econômica e social com que sonhamos, que tornaria mais equânime a disputa pela educação superior pública nos moldes em que está hoje configurada, dar oportunidade de ingresso a uma base mais ampla de candidatos, garantindo-lhes tanto maior afinidade com suas escolhas quanto sua permanência, nos aproximaria de uma real democratização do campus, contribuindo, assim, para ampliar o alcance da justiça social em nosso país.