INTRODUÇÃO
No contexto desta pesquisa está o encontro amoroso e rigoroso das Ciências da Natureza com a Educação do Campo, à sombra de um Jacarandá-mimoso3, localizado em frente à Faculdade de Educação (FACED) no Campus Central, e também à sombra de uma Figueira4, em frente ao Campus Litoral Norte (CLN), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A UFRGS oferece dois cursos com o mesmo projeto pedagógico nas duas unidades universitárias mencionadas. O presente artigo trata-se de um recorte de uma pesquisa mais ampla, em nível de doutorado5, cuja intenção foi compreender o diálogo entre Ciências da Natureza e Educação do Campo nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo da UFRGS.
Inspirados na obra de Paulo Freire (1995), “À sombra desta mangueira”, dialogamos com vivências e experiências de egressos e egressas, das primeiras turmas da Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza, nas duas unidades universitárias, a FACED e o CLN. Consideramos esses recém-formados como pássaros que deixaram a sombra acolhedora do Jacarandá-mimoso e da Figueira na Universidade. Durante o tempo de integralização curricular, sob os galhos das árvores, esses pássaros pousaram, repousaram e vivenciaram a Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC) para, com a formatura, alçar novos voos, novos desafios.
As LEDOC são cursos de formação de educadores e educadoras para atuação, por área do conhecimento, no contexto do campo, fruto de políticas públicas construídas com a participação de movimentos sociais camponeses, na busca de uma educação contextualizada, sendo o campo o principal objeto de problematização no processo educativo. O histórico da criação desses cursos foi apresentado por Molina (2017, p. 3), com destaque ao Edital de Seleção Nº 02/2012 SESU/SETEC/SECADI/MEC (BRASIL, 2012), que originou mais de quarenta cursos de Licenciatura em Educação do campo nas universidades federais de todo o país, incluindo a UFRGS. O quantitativo dos cursos em atividade foi sistematizado por Paula (2020, p. 207), indicando a existência de 36 LEDOC, distribuídas em universidades e institutos federais, situados na área de Ciências da Natureza, ou combinações desta área com as Ciências Agrárias e/ou com a Matemática.
Em relação à Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza da UFRGS, segundo seu Projeto Pedagógico de Curso (PPC) (UFRGS, 2013, p. 12), o curso forma docentes por área do conhecimento, em regime de alternância de tempos de formação, voltados ao desenvolvimento de “projetos pedagógicos interdisciplinares na área de Ciências da Natureza em espaços educativos escolares e não escolares”. Nos espaços escolares, a atuação fica restrita aos anos finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos.
Com relação à alternância, o/a estudante vivencia momentos na universidade, chamados de Tempos Universidade (TU) e momentos na comunidade, designados como Tempos Comunidade (TC), conforme a figura 1, a seguir.
A posição do TU acima do TC na figura é apenas uma opção estética, sem caráter hierárquico. São tempos igualmente necessários e interligados, sendo observadas diferenças apenas com relação as cargas horárias entre os Tempos.
Nesse contexto, o perfil de discente ingressante nesta LEDOC buscou atingir pessoas oriundas do campo, conforme o exposto no artigo 2º, do Decreto nº 7352/2010 (BRASIL, 2010), mas também abarcou os trabalhadores e as trabalhadoras da educação, atuantes nos diferentes níveis e modalidades de ensino. A forma de ingresso que os pássaros vivenciaram foi um processo seletivo especial, composto de uma prova de conhecimentos de Língua Portuguesa e uma redação, em nível de Ensino Médio.
A partir desses ingressantes e com os objetivos da LEDOC de formar para a docência interdisciplinar em espaços educativos do campo, o “curso foi desenhado a partir de eixos temáticos e temas transversais, organizados em temas geradores, nos quais as atividades de ensino serão articuladas, incluindo a possibilidade de docências compartilhadas ao longo de todo o curso (UFRGS, 2013, p. 12)”.
Com relação à área das Ciências da Natureza, as discussões sobre este tema inseridas na matriz do curso estão associadas ao denominado campo da Educação em Ciências ou Ensino de Ciências. Dentro deste campo, nossas discussões ocorrem partir de autores que buscam balizar a Educação em Ciências da Natureza em pressupostos freireanos, como Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002), pois compreendemos que a concepção dos temas geradores de Paulo Freire (2019) potencializa a construção de currículos interdisciplinares na Educação em Ciências da Natureza.
Desse modo, entendemos que a concepção educacional de Paulo Freire dialoga, e em parte também sustenta, a matriz teórico-filosófica da Educação do Campo (EdoC), pois a educação desejada pelas pessoas do campo é, segundo Caldart (2011, p. 149), a que acontece onde as pessoas vivem, e é pensada a partir do lugar de vida e trabalho dessas pessoas, ou seja, contextualizada. Assim, apoiamo-nos na aproximação entre Paulo Freire e Educação do Campo para a melhor compreensão do canto dos pássaros desta pesquisa, registrados nas suas narrativas obtidas por meio das respostas às entrevistas realizadas com os egressos e egressas.
Em função desses aspectos, a presente investigação partiu do seguinte problema de pesquisa: como a Educação do Campo dialoga com as Ciências da Natureza, na formação em nível de licenciatura, de educadores e educadoras?
Os objetivos foram: a) compreender como se estabelece o diálogo entre a Educação do Campo e as Ciências da Natureza, nas LEDOC/UFRGS, a partir das vivências relatadas pelos egressos e egressas; e b) identificar vivências dos egressos e das egressas das LEDOC/UFRGS, desenvolvidas durante o curso, a partir das entrevistas realizadas.
Justificamos o problema de investigação, em função do nosso interesse sobre a relação constituída entre as políticas públicas e a Educação do Campo, que nasce vinculada aos movimentos sociais do campo e a área de conhecimento das Ciências da Natureza, com uma construção epistemológica mais consolidada no domínio dos campos disciplinares da Física, da Química e das Ciências Biológicas. Também destacamos o desafio da formação de educadores e educadoras em Ciências da Natureza na Educação do Campo como um movimento de quebra da dicotomia existente entre as Ciências Humanas e as Ciências Exatas, constituindo uma intersecção entre estes dois campos teóricos distintos.
Nesse contexto, Arroyo, Caldart e Molina (2011, p. 13) entendem que o maior desafio da Educação do Campo está em “entender os processos educativos na diversidade de dimensões que os constituem como processos sociais, políticos e culturais; formadores do ser humano e da própria sociedade”. A problematização desse desafio nos desacomoda à busca de aprofundamentos sobre a Educação do Campo, bem como suas relações com as Ciências da Natureza na formação docente.
Assim, o referencial teórico é composto de três contribuições principais, que são: trabalhos de Paulo Freire, produções ligadas à Educação do Campo e contribuições de outros autores.
O educador Paulo Freire não escreveu tão somente livros, conceitos ou métodos, mas escreveu sobre a própria vida, sobre a relação com as pessoas com as quais conviveu e os lugares em que passou. Desse modo, trazemos à baila alguns momentos nos quais Freire significou e ressignificou vivências que problematizaram o mundo vivido pelos oprimidos, a libertação destes sujeitos e a superação dos condicionantes à histórica e ontológica vocação das pessoas em “ser mais” (FREIRE, 1992; 1995; 2006; 2019). Segundo Freire (2006), cada ser humano não tem sua história preestabelecida, ou seja, tem na escrita de sua vida a história como tempo de possibilidades e não de determinismo, no qual o futuro é objeto de problematização e não de inexorabilidade.
Nesse sentido, as pessoas que vivem e trabalham nos lugares que chamamos de campo, constituem um grupo marcado pela pluralidade, riqueza e diversidade de culturas. Conforme o Decreto nº 7352/2010 (BRASIL, 2010), que dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), define as populações e escolas do campo:
I - Populações do campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural;
II - Escola do campo: aquela situada em área rural, conforme definida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, ou aquela situada em área urbana, desde que atenda predominantemente a populações do campo (BRASIL, 2010).
Nesse contexto de campo, situamos a contribuição da Educação do Campo a presente pesquisa. Para efeitos de debate de questões históricas e de concepções de Educação do Campo, apoiamo-nos em Arroyo, Caldart e Molina (2011), Caldart (2008; 2011) e Gimonet (2007). Sobre a discussão acerca das Licenciaturas em Educação do Campo e experiências socializadas, buscamos embasamento em Begnami (2019), Brick e Borges (2017), Dalmolin e Garcia (2020), Janata (2019), Molina (2014; 2017) e Molina e Hage (2016).
Para Caldart (2008, p. 70) a “materialidade de origem (ou de raiz) da Educação do Campo exige que ela seja pensada/trabalhada sempre na tríade: Campo - Política Pública - Educação”. Com o passar dos anos esses três elementos foram se constituindo como centrais na discussão de Educação do Campo, pois
[...] a identidade desse movimento por uma educação do campo é a luta do povo do campo por políticas públicas que garantam o seu direito à educação e a uma educação que seja no e do campo. No: o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2011, p. 149-150).
Em alguns textos é utilizado o termo Educação do/no Campo, como forma de demarcar a presença e relevância do campo como o lugar no qual os processos da Educação do Campo acontecem, bem como a contextualização nos encaminhamentos curriculares das escolas do campo. Nesse sentido, não é possível restringir o debate ao âmbito da Educação Básica, das configurações e reconfigurações curriculares nas escolas do campo. É necessário construir uma formação de educadores e educadoras comprometidos com os valores da EdoC. Assim, no contexto de propiciar uma formação docente comprometida à atuação no campo, situam-se as Licenciaturas em Educação do Campo. Segundo Molina e Hage:
A Licenciatura em Educação do Campo possui uma proposta curricular integrada e referenciada na Alternância Pedagógica e organiza os componentes curriculares em quatro áreas do conhecimento: Linguagens (expressão oral e escrita em Língua Portuguesa, Artes, Literatura); Ciências Humanas e Sociais; Ciências da Natureza e Matemática, e Ciências Agrárias, buscando superar a fragmentação tradicional que dá centralidade à forma disciplinar e incidir no modo de produção do conhecimento na universidade e na escola do campo, tendo em vista a compreensão da totalidade e da complexidade dos processos encontrados na realidade (MOLINA; HAGE, 2016, p. 02-03).
Em função de que a LEDOC possui 3 pilares principais - a alternância de espaços-tempos de formação, a formação por área do conhecimento e a interdisciplinaridade -, incorporamos ao diálogo a contribuição de outros autores, como Japiassu (1994), Fazenda (1994), Delizoicov e Zanetic (2002) na discussão sobre interdisciplinaridade; Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002), Auler, Dalmolin e Fenalti (2009) sobre a abordagem temática em configurações curriculares na Educação em Ciências a partir de pressupostos freireanos; e Santos (1997; 2002) no contexto da conceituação do espaço geográfico.
ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS
Com relação aos encaminhamentos metodológicos, a pesquisa foi classificada como qualitativa quanto a sua abordagem, que, segundo Minayo (2002, p. 16), trabalha com “significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos”. Para Moraes e Galiazzi (2016, p. 33), a pesquisa qualitativa objetiva a compreensão dos fenômenos em profundidade e não tem a pretensão de “testar hipóteses para comprová-las ou refutá-las ao final da pesquisa”.
Quanto ao método de pesquisa, foi utilizado o estudo de caso. De acordo com Stake (1998), esse método é o estudo da particularidade e da complexidade de um caso singular. Segundo as definições do autor, esta pesquisa constituiu um estudo de caso do tipo instrumental, pois o caso possibilita a compreensão e problematização de questões mais amplas (STAKE, 1998). Nesse contexto, o caso abarca as particularidades da formação docente de egressos e egressas nas LEDOC da UFRGS, na área de Ciências da Natureza.
Participaram desta pesquisa educadores e educadoras egressas dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza, da Faculdade de Educação e do Campus Litoral Norte da UFRGS, que vivenciaram transformações em si mesmos, à sombra do Jacarandá-mimoso localizado na FACED, ou da Figueira em frente ao Campus Litoral Norte.
Os/as participantes da pesquisa foram seis egressos e egressas das primeiras turmas das LEDOC da UFRGS, com ingresso no ano de 2014 e colação de grau no ano de 2018, nos câmpus Porto Alegre e Litoral Norte. O tamanho do grupo entrevistado foi construído por conveniência e disponibilidade dos participantes, dentre os 23 egressos e egressas que compõem a amostra. Entende-se, no entanto, que o número de participantes alcançado atingiu o potencial à produção das narrativas, sendo possível analisá-las em profundidade, atentando aos objetivos desta pesquisa. Os primeiros seis trabalhadores e trabalhadoras da educação que responderam ao convite foram entrevistados, e destes, dois atuam como docentes diretamente na área de formação do curso, dois lecionam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, e dois trabalham em escolas no apoio administrativo e pedagógico. A faixa etária variou de 33 a 52 anos. O período de realização das entrevistas foi de 27 de agosto a 25 de setembro de 2019.
Todos os aspectos éticos e legais foram cumpridos, com submissão prévia do projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, via Plataforma Brasil, sob o CAAE 16100819.9.0000.5347, bem como a assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. A integridade e sigilo dos/das participantes foram preservados, e a autoria das falas foi identificada, apenas, com o nome de um pássaro da fauna brasileira, a saber:
Canário-da-terra-verdadeiro - Nome científico: Sicalis flaveola;
Cardeal - Nome científico: Paroaria coronata;
Caturrita - Nome científico: Myiopsitta monachus;
João-de-barro - Nome científico: Furnarius rufus;
Martim-pescador-pequeno - Nome científico: Chloroceryle americana;
Tiziu - Nome científico: Volatinia jacarina.
Os egressos e egressas participaram independentemente do sexo ou gênero de cada um/uma, todos e todas eram maiores de 18 anos de idade e residentes ou trabalhadores nas cidades de Tramandaí-RS e seus municípios vizinhos e Porto Alegre- RS e seus municípios vizinhos, por se tratar da região de abrangência dos cursos.
O instrumento de pesquisa utilizado para responder ao problema de investigação foi a entrevista semiestruturada, baseada em um roteiro composto por 19 questões de interesse do entrevistador e que o permitiu aprofundar questões específicas que emergiram na entrevista. Compuseram o roteiro questões como: Você possui relação pessoal com o campo?; Você possui relação profissional com o campo?; Fale sobre a Alternância nos espaços-tempos de formação, no referido curso; Fale sobre a interdisciplinaridade no curso; Fale sobre a formação por área de conhecimento; Fale sobre a relação entre Ciências da Natureza e Educação do Campo em sua prática pedagógica como docente.
As entrevistas foram realizadas de modo presencial, com duração média de 48 minutos. A captação da voz ocorreu com o auxílio de um gravador de voz. Após as entrevistas, as falas foram transcritas na íntegra e enviadas por e-mail aos entrevistados, permitindo que se manifestassem sobre possíveis correções em suas falas. Após as devoluções dos/das participantes da pesquisa, as narrativas foram analisadas, segundo a Análise Textual Discursiva (ATD) de Moraes e Galiazzi (2016).
A ATD, segundo Moraes e Galiazzi (2016, p. 34), é um processo auto-organizado, composto de um ciclo de análise com três componentes: unitarização, categorização e comunicação. A figura 2, a seguir, apresenta a sistematização do processo de análise na ATD adotado nesta investigação.
Na etapa de unitarização ocorreu o movimento desconstrução/desmontagem dos textos que constituíram o corpus da pesquisa. Iniciamos a leitura e significação das seis transcrições das entrevistas, e após, foram mapeados e detalhados os elementos constituintes dos textos, dos quais selecionamos 131 fragmentos (ou excertos), denominados unidades de análise. Estes foram codificados, substituindo-se o nome do entrevistado/entrevistada pelo nome de um pássaro, como já mencionado, acompanhado pelo número do fragmento extraído da sua entrevista.
A segunda etapa do ciclo de análise foi a categorização, que consiste no primeiro momento de síntese, organização e comunicação dos novos entendimentos resultantes da análise. Escolhemos realizar uma categorização mista, na qual definimos três categorias a priori: alternância, formação por área de conhecimento e interdisciplinaridade, bem como deixamos aberta a possibilidade de emersão de novos elementos durante a análise. A escolha das categorias a priori não ocorreu de forma aleatória, mas devido a esses elementos estarem presentes no Projeto Pedagógico de Curso das LEDOC da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2013), e sendo também discutidos por Molina e Hage, (2016).
No quadro 1, a seguir, apresentamos o detalhamento do processo de categorização.
No processo de categorização, as 131 unidades de análise foram sendo agrupadas, por contraste e comparação, e constituíram 29 categorias iniciais. De acordo com Moraes e Galiazzi (2016), cada unidade de análise pode formar uma ou mais categorias iniciais. Portanto, dessas 29 categorias iniciais, 25 possuíam relação com as três categorias finais definidas a priori. No entanto, quatro categorias iniciais não apresentavam relação direta com as categorias definidas anteriormente e formaram uma categoria emergente, denominada de Marcas das Sombras do Jacarandá e da Figueira.
DIÁLOGOS ENTRE OS RESULTADOS E OS REFERENCIAIS TEÓRICOS
Com a finalização da categorização, iniciamos a terceira etapa do ciclo de análise na ATD, a comunicação. Nesse movimento de criar novas teses, novos escritos, a comunicação está representada pelas produções oriundas das quatro categorias finais, inter-relacionadas, descritas como: a) Marcas das Sombras do Jacarandá e da Figueira; b) Alternância nos Espaços-Tempos de Formação Docente em Ciências da Natureza; c) Formação por Área de Conhecimento em Ciências da Natureza; d) Elementos da Interdisciplinaridade na Prática Docente em Ciências da Natureza na Educação do Campo. A seguir passamos a explanação de cada uma destas categorias.
Marcas das Sombras do Jacarandá e da Figueira
A primeira categoria denominada de Marcas das Sombras do Jacarandá e da Figueira, emergiu da análise das transcrições, ao contrário das demais definidas a priori. Seu título se apoia na ideia de que os pássaros pousaram e repousaram no Jacarandá-mimoso da FACED e na Figueira do CLN, enquanto vivenciavam suas experiências como estudantes da Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza, na UFRGS.
Esses pássaros voaram dialeticamente entre a universidade e suas comunidades, durante o curso. No tempo em que estavam sob as sombras do Jacarandá e da Figueira (no Tempo Universidade e no Tempo Comunidade) experimentaram diferentes momentos, sob à sombra ou fora dela, que certamente ficaram marcados em suas histórias de vida.
Desse modo, foi possível verificar nesta pesquisa que a passagem pela LEDOC deixou marcas em cada um destes pássaros. Nas entrevistas, emergiram depoimentos de que a vivência na LEDOC produziu mudanças pessoais e profissionais, que aqui serão discutidas a partir de dois movimentos, a do-discência e a mudança.
A “do-discência”, segundo Freire (2006, p. 28), é entendida como a relação docência-discência, na qual o diálogo horizontal entre educador-educando culmina, humildemente, no reconhecimento de que os seres humanos são detentores de saberes historicamente construídos, que mesmo sendo diferentes, são igualmente importantes.
Cardeal cita uma vivência que literalmente passou pela sombra do Jacarandá. No desenvolvimento de seu estágio de docência, houve intenso diálogo com os/as estudantes e com pessoas da comunidade, sendo que estas participaram de algumas aulas e contribuíram com seus saberes de experiência feitos. Cardeal pôde então compreender, a partir dos movimentos de alternância, que “a escola abriu o portão para a vida entrar” (CARDEAL-32), em um trabalho cujo retorno dos/das estudantes superou as expectativas.
Para João-de-barro, sua relação profissional foi totalmente voltada para o campo, e o curso problematizou questões antes não pensadas. Segundo ele: “O curso me fez outro/a professor/a. O curso me possibilitou ver através de outra janela, me abriu uma porta para entrar, (...), possibilitou uma mudança. E hoje a gente pesquisa as coisas do campo, a gente busca e vai estudar, porque tem coisas que a gente não sabe” (JOÃO-DE-BARRO-04).
A consciência do inacabamento e o reconhecimento de que os/as estudantes, suas famílias e demais pessoas da comunidade, constituem-se como detentores de saberes oriundos de suas experiências de vida, conduzem os pássaros a ressignificar, na prática, suas concepções de ser humano e de comunidade, no contexto em que os saberes de experiências vividas são construções históricas e legítimas, próprias dos seres humanos.
Portanto, a educação como situação gnosiológica, implica na inseparabilidade entre educador e educando no processo de ensinar e aprender. Concordamos com Freire (2006, p. 23), quando diz que: “não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”.
A docência-discência e pesquisa, segundo Freire (2006, p. 28), são indicotomizáveis. Para Martim-pescador, o incentivo à pesquisa na LEDOC/UFRGS foi uma das inovações mais importantes que tiveram “na Educação do Campo, com a pedagogia da alternância” (MARTIM-PESCADOR-05). Ao abordar a relação ensino-pesquisa, Freire (2006, p. 29) descreve: “ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”. O referido autor não admite a existência de ensino sem pesquisa, nem pesquisa sem ensino, no contexto da educação libertadora. A libertação é a ação e reflexão (práxis) dos seres humanos sobre o mundo para transformá-lo (FREIRE, 2019). É na práxis que os educadores e educadoras libertadores, à medida que ensinam, também refletem sobre suas próprias práticas pedagógicas, a fim de modificá-las, em seu estar sendo no mundo, com as pessoas e com o próprio mundo.
Com relação à mudança, emergiram da análise do canto de todos os pássaros, elementos que apontam transformações positivas de ordem pessoal e profissional, pela vivência às sombras do Jacarandá-mimoso e da Figueira. Canário-da-Terra diz que “a educação do campo me transformou como pessoa, como ser humano” (CANÁRIO-DA-TERRA-09). Para Martim-pescador, “existia uma pessoa antes do curso e outra após o curso, bem diferente” (MARTIM-PESCADOR-14). Conforme João-de-barro, a LEDOC/UFRGS “me transformou como professor/a: do olhar, do ver o outro, ver as pessoas simples e tu conversar, e dar autonomia às crianças para eles serem sujeitos dessa escola, dessa educação” (JOÃO-DE-BARRO-25).
As falas dos/das egressos e egressas das LEDOC/UFRGS indicam que as mudanças ocorridas em suas vidas, decorrentes do curso, foram positivas, visto que lhes foi ofertado outros elementos do mundo vivido, antes ignorados ou simplesmente desconhecidos. Entendemos que a constatação de tais mudanças, por parte dos pássaros, tem relação com os processos internos de cada pessoa, de reflexão, compreensão e conscientização. Eles se colocam como conscientes de suas inconclusões, podem transformar-se, modificar-se, permitir-se a ampliar seus horizontes de compreensão das realidades vividas. Segundo o PPC do curso, “o campo é território de produção de vida, de produção de novas relações sociais”, de novas relações entre os seres humanos e a natureza e entre o rural e o urbano (UFRGS, 2013, p. 8).
Um dos objetivos da educação libertadora de Paulo Freire (2006) é a constituição de seres humanos que, como sujeitos da própria história, inserem-se no mundo para transformá-lo em prol da justiça social. A transformação do mundo pelas pessoas, passa primeiramente por processos internos, individuais, de conscientização. Esta é construída a partir da problematização e do diálogo amoroso e rigoroso sobre o mundo, que aguça a curiosidade, que no processo de conscientizar-se, transforma-a em curiosidade epistemológica (FREIRE, 2006), para então, compreender e modificar a realidade vivida.
Por fim, a existência de relatos de que o vivenciar das sombras do Jacarandá e da Figueira modificaram positivamente, em maior ou menor intensidade, a vida dessas pessoas, permite inferir que a experiência de formação nas LEDOC/UFRGS foram bem sucedidas em seus objetivos formativos, pois, segundo Paulo Freire, a educação nada neutra e intencional, tem a função de mudar pessoas, para que elas transformem o mundo em que vivem.
Alternância nos Espaços-Tempos de Formação Docente em Ciências da Natureza
Iniciamos a discussão desta categoria a partir de dois elementos inter-relacionados, que interagem dialeticamente, sob o contexto da alternância na Educação do/no Campo, em Ciências da Natureza: a universidade e a comunidade.
A Pedagogia da Alternância, segundo Gimonet (2007, p. 13), nasce na França, nas Maisons Familiales Rurales (MFR) - Casas Familiares Rurais (CFR) -, na primeira metade do século XX, por iniciativa de agricultores do sudoeste francês. Eles preocupavam-se com o desenvolvimento da comunidade e com o currículo implementado nas escolas locais, que não dialogava com a vida no campo. Estes agricultores então pensaram em uma educação controlada por associações de pessoas da comunidade e que, além de contextualizar o campo, também oportunizasse a participação mais intensa dos pais na formação dos filhos e filhas.
Essa experiência das MFR resultou na criação de Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs)6, na França, na década de 1960. Com o tempo, as CEFFAs chegaram a outros países, incluindo o Brasil, com a primeira experiência no Estado do Espírito Santo, as chamadas Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), que hoje estão em todas as regiões do país.
Para Gimonet (2007, p. 15), a Pedagogia da Alternância apresenta quatro pilares básicos, dois deles relacionados às finalidades, e dois relacionados aos meios, que permitem o respeito às diferenças em cada contexto social, ao utilizar a alternância. Como finalidades educacionais, são apontadas a formação integral das pessoas e o desenvolvimento local (socioeconômico, político, humano, etc.). Relacionados às finalidades, destaca-se dois elementos como meios para a construção dos fins: a diretriz associativista da proposta e a alternância como método pedagógico, que estabelece nova relação escola-comunidade.
A alternância dos espaços-tempos de formação nas LEDOC/UFRGS foi dividida em dois espaços-tempos de vivência, chamados de Tempos Universidade e Tempos Comunidade. Segundo seu projeto pedagógico de curso eles ocorrem em:
[...] três momentos de alternância por semestre letivo, de modo a possibilitar diversas interfaces entre os mundos da vida rural, em particular os mundos do trabalho docente e do Campo, e o mundo acadêmico devidamente mediatizados e problematizados pelas intervenções pedagógicas da equipe de professores e professoras desta Universidade (UFRGS, 2013, p. 5).
Isso implica em dizer que, geralmente, ocorreram três TU e três TC em cada semestre letivo. Conforme Canário-da-Terra, os TU somam “27 dias por semestre que tinham aula 10 horas por dia, das 8 horas da manhã até às 8 horas da noite” (CANÁRIO-DA-TERRA-04), e os TU chegavam a ter 10 dias seguidos, com o último tempo mais curto.
Entendemos os Tempos Universidade e Comunidade, não apenas como alternâncias de lugares, mas como espaços-tempos que interagem dialeticamente. Segundo Dalmolin e Garcia (2020, p. 20), “nos Tempos Universidade ou Tempos Escola, o/a estudante vivencia as aulas na universidade, mas em diálogo com o tempo comunidade. Nos tempos comunidade, são desenvolvidas atividades que foram encaminhadas e serão debatidas e socializadas nos tempos universidade”.
Espaço e tempo são indissociáveis para Milton Santos (2002), compreendendo o espaço como acumulação desigual de tempos. Para Santos (1997, p. 63) o espaço geográfico é “formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”. Assim, consideramos a ideia de que o espaço geográfico contém elementos materiais (objetos), mas também aspectos subjetivos da vida social, produzidos e reproduzidos pelos seres humanos (ações). É relevante para a Geografia a reflexão de como os seres humanos atuam na produção e reprodução desse espaço. Portanto, o espaço-tempo pode ser entendido como o mundo vivido das pessoas, que por elas é construído, reconstruído, constatado ou conservado.
Assim, explicamos que os termos TU e TC não são apenas tempos, mas Espaços-Tempos Universidade e Espaços-Tempos Comunidade, pois as modificações espaço-temporais na vivência são contínuas e dinâmicas. A cada volta do ponteiro do relógio, ele repete o movimento, mas, a cada volta, ele não é mais o mesmo, está em outro minuto, de outro dia, em outro ano, com outras condições de si. O que nos aproxima de Freire (2006, p. 76), ao definir que o mundo não é, ele está sendo e cada pessoa busca ser sujeito de sua própria história. O ser humano, em seus processos individuais e coletivos de gentificar-se, registra em sua história de vida marcas espaço-temporais, que se desenvolveram no espaço tridimensional da vivência, ortogonalmente disposto à dimensão temporal.
Desse modo, a alternância figura na LEDOC como um diferencial, como dito por Molina e Hage (2016). Também, conforme consta no PPC da LEDOC UFRGS (UFRGS, 2013, p. 9), a alternância permite “o necessário diálogo entre saberes técnico-tecnológicos e saberes das tradições culturais oriundos das experiências de vida no campo”. Os TC, segundo Caturrita, foram importantes, também para que “os professores vivenciassem um pouco do nosso dia a dia” (CATURRITA-07), pois durante este Tempo, os discentes são acompanhados pelo corpo docente, com visitas in loco. Logo, a alternância não é vivida só por estudantes, mas também pelos professores e professoras da LEDOC/UFRGS, que não ficam restritos às paredes universitárias e se permitem “viver mais”.
Sem a alternância não seria possível vivenciar, na intensidade necessária, a realidade dos diferentes contextos de campo. Tiziu afirma que a alternância é coerente com a “proposta da Educação do campo, da formação do sujeito do campo” (TIZIU-04), das questões do clima, das plantações e suas épocas.
Dentre as vivências construídas no curso, intimamente relacionadas com a alternância, está a pesquisa, um dos elementos de estudo das realidades vividas. Cardeal destaca a contribuição da universidade que “o ensinou a enxergar, a descobrir, a pesquisar, a ir atrás, porque existia [...]” (CARDEAL-27) algo que pudesse enriquecer seu fazer docente. Martim-Pescador considera o incentivo à pesquisa um dos principais pontos da “Educação do Campo, com a Pedagogia da Alternância” (MARTIM-PESCADOR-05).
Outro elemento importante é o retorno prestado às comunidades, das pesquisas e dos projetos realizados no TC, possibilitados pela alternância, nos diferentes movimentos de ir e vir, destacados por Canário-da-Terra. Foram as atividades no TC que propiciaram aos/as estudantes adentrar na discussão sobre saberes tradicionais e populares. Segundo Caturrita, ela “não sabia que era possível trabalhar o que aprendi com meu avô, meu pai, minha mãe e que podia abordar esses temas e conversar sobre eles, dentro de uma universidade” (CATURRITA-03). Para Cardeal, seu pai e o peão da fazenda sabiam mais sobre os cavalos do que ele, mas não sabia que “isso era muito importante” (CARDEAL-28) aos olhos da universidade.
Quanto aos saberes populares e tradicionais, e suas relações com os saberes acadêmicos, Caturrita defende que “eles têm que andar de mãos dadas, nenhum pode sobrepor o outro. Tem que haver um equilíbrio” (CATURRITA-11). Aspecto que nos remete a Paulo Freire, que postula não haver saber maior o menor, mas saberes diferentes. Segundo Freire (2019, p. 81) “só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os seres humanos fazem no mundo, com o mundo e com os outros”. No entanto, muitas pessoas desconhecem o valor de seus próprios saberes, para com os outros e o mundo.
As vivências possibilitadas pelo TC aproximaram os/as estudantes de situações que até então não tinham um conhecimento mais aplicado. A exemplo disso, Martim-Pescador demonstrou surpresa com os saberes da experiência demonstrados por um pescador, em um trabalho realizado no TC. Ao pesquisar o entorno da escola em que trabalha, identificou a existência de uma comunidade de pescadores e, ao entrevistar um deles, entendeu especificidades da pesca, a exemplo do peixe mais pescado nas noites de lua cheia, “o lugar em que tinha que colocar a rede, que era onde os peixes estariam mais e qual a profundidade da rede, por conta da luminosidade lua” (MARTIM-PESCADOR-12).
Já Cardeal, inquieto com os motivos da Lagoa dos Patos7 mudar de cor, assumindo tonalidade prateada, azulada ou esverdeada, levou à sua escola, pela primeira vez, um casal da comunidade, um pescador humilde e sua esposa, que, pela experiência vivida, explanaram sobre a relação da lagoa com a população ribeirinha. Para Freire (1992), os/as educadores e educadoras progressistas não se permitem subestimar ou negar os saberes de experiência feitos dos educandos e educandas, que embora diferentes, são igualmente importantes. Também não cabe a esses/essas profissionais da educação negar a experiência vivida das pessoas da comunidade, independente dos seus níveis de escolaridade, pois não há como mensurar o saber das pessoas, apenas pelo número de horas que passaram sentadas nos bancos escolares.
Quanto à organização curricular por Alternância, todos/as os/as participantes da pesquisa a destacaram positivamente. Para João-de-barro, ela foi essencial na conciliação do seu trabalho com o estudo. Cardeal destaca que só foi possível cursar a LEDOC em função de tal organização curricular, porque “se não existisse alternância eu não teria feito, porque é inviável ir à UFRGS todos os dias” (CARDEAL-15).
Nesse sentido, compreendemos que a Pedagogia da Alternância é mais que um método, é uma forma de construção, de organização curricular e de relação entre a universidade e a comunidade. Desse modo, o processo de investigação temática, para o qual Freire (2019), propõe a pesquisa, o planejamento e o desenvolvimento de temas geradores nas comunidades, constitui potencial instrumento para a construção de currículos comprometidos com o contexto social em que se inserem, na medida em que a programação é estruturada em função de temas, reais e significativos, para os contextos vividos nas comunidades dos/das estudantes.
Nesse contexto de relação entre alternância e investigação temática (FREIRE, 2019), destacamos que ambos realizam movimentos dialéticos entre universidade e comunidade. Desse modo, no eventual exercício de investigar um tema gerador, o “levantamento preliminar” pode coincidir com o 1º Tempo Comunidade, assim como os “diálogos descodificadores” com o 2º TC. Destacamos o protagonismo dos/das estudantes na condução do processo de investigação de temas, em suas comunidades durante a ocorrência de todos TC.
A ideia de alternância carrega algumas confusões terminológicas, se é uma pedagogia, um sistema ou um regime de alternância. Gimonet (2007) utiliza o termo Pedagogia da Alternância como um método pedagógico, mas como a operacionalização da alternância nos diferentes espaços educativos ganha contornos próprios, em função das especificidades locais, concordamos com Begnami (2019, p. 276) que, para a LEDOC, aplica-se a ideia de que há um “regime de alternância com o desenvolvimento de princípios da alternância”.
Observa-se tal situação nas Escolas Famílias Agrícolas no Rio Grande do Sul, que utilizam um regime de alternância semanal, com uma semana de tempo escola, seguida de uma semana de tempo comunidade, e assim sucessivamente. De outro modo, a LEDOC/UFRGS utiliza um regime de alternância com três TU e três TC, por semestre letivo. Ambas as experiências educativas exemplificadas se apoiam na Pedagogia da Alternância, mas com regimes de alternância distintos. Segundo Begnami:
O fato é que a alternância revoluciona a organização curricular e o trabalho pedagógico; diversifica e complexifica as formas e os lugares e tempos de ensinar e aprender, de construir o conhecimento na lógica do diálogo e da troca dos saberes, desafiando as fragmentações e hierarquizações dos conhecimentos (BEGNAMI, 2019, p. 276).
Por fim, a alternância dos espaços-tempos de formação se constitui como uma proposta educacional contra-hegemônica, sendo esta uma das maiores riquezas dos projetos das LEDOC, pois viabiliza acesso e permanência dos povos do campo na Educação Superior. Segundo Dalmolin e Garcia (2020, p. 20), isto permite “respeitar os espaços-tempos de vida e trabalho no campo, seja do plantio, da colheita, da pesca, dos rituais, das lutas camponesas,” entre outros. Nessa proposta, o TU e o TC interagem dialeticamente de modo a encharcar a universidade de comunidade e a comunidade de universidade, com diálogos respeitosos e horizontais.
Formação por Área de Conhecimento em Ciências da Natureza
Do canto dos pássaros, fonte das entrevistas que foram transcritas e analisadas, emergiram elementos que dialogaram com esta categoria, definida a priori, denominada de formação por área do conhecimento em Ciências da Natureza (CN). Tal categoria, no contexto da Educação do Campo, relaciona-se com a alternância e com a interdisciplinaridade por meio do currículo. Os movimentos da comunicação neste metatexto foram centrados em dois elementos: a formação por área do conhecimento na LEDOC e as contradições vividas pelos pássaros na Educação Básica, sobre a atuação por área.
No contexto da formação por área do conhecimento em Ciências da Natureza, o PPC do curso da UFRGS, em seu perfil de egresso, define a atuação deste profissional.
O licenciado em Educação do Campo estará apto para atuar na disciplina de Ciências nos Anos Finais do Ensino Fundamental e nas disciplinas de Química, Física e Biologia ou na respectiva área de conhecimento do Ensino Médio, na Modalidade Educação de Jovens e Adultos e na combinação com a Educação Profissional (UFRGS, 2013, p. 12).
Para Tiziu a área de conhecimento das Ciências da Natureza comporta o domínio das “três disciplinas, são as três áreas, a Química, a Física e a Biologia [...]” (TIZIU-16). Esses três campos do conhecimento representam as maiores contribuições à construção dessa área, mas não são os únicos. Em nosso entendimento, a constituição da área de Ciências da Natureza no contexto da Educação do Campo perpassa mais fortemente os campos da Física, da Química e das Ciências Biológicas, mas também se movimenta em direção ao diálogo com conhecimentos de outras áreas, por exemplo:
a Astronomia e suas representações para a vida no campo;
as Ciências Agrárias, em questões relacionadas à produção de alimentos no campo, com destaque para a Agroecologia;
a Matemática em suas contribuições ao contexto do campo;
as Ciências Sociais e Humanas, a partir da interação com pressupostos filosóficos, históricos, geográficos, antropológicos, sociológicos, psicológicos, educacionais, tradicionais e populares;
as Ciências da Saúde;
as Artes e suas as diferentes linguagens.
Na Educação Superior, o termo área do conhecimento está presente em alguns contextos, como, por exemplo, nas áreas de avaliação8 da CAPES, que são aplicadas à Pós-Graduação no Brasil. As divisões entre tais áreas do conhecimento foram historicamente construídas, legitimadas e validadas pelas comunidades científicas ao longo do tempo. A humanidade fragmentou a realidade em áreas, campos, disciplinas, para aprofundá-la e vem exercitando formas para juntá-la novamente, como observado em estudos que buscam perspectivas interdisciplinares, em função da necessidade de compreensão da dinâmica social contemporânea.
Quanto às intencionalidades da Educação Superior em propor formação docente nas LEDOC, por área do conhecimento, entendemos que o objetivo é tensionar e problematizar para a criação de novas configurações curriculares na Educação Básica do Campo, organizadas por áreas e temas, ou, segundo Freire (2019), estruturadas a partir de temas geradores.
Desse modo, não temos a pretensão de ser prescritivos quanto aos conhecimentos que estão (historicamente) compondo e definindo os contornos desse novo campo de conhecimento, o das Ciências da Natureza, pois os conteúdos abarcados por esta área podem variar de acordo com as especificidades locais, haja vista a amplitude e diversidade de contextos de campo listados no Decreto Nº 7.352/2010 (BRASIL, 2010). Entretanto, é importante argumentar que para aprender/compreender conceitos que sejam significativos no contexto das comunidades do/no campo, é preciso considerar que esses diálogos entre as diferentes áreas do conhecimento, quer sejam acadêmicos e científicos, quer sejam oriundos dos saberes tradicionais e populares, precisam acontecer.
Para Martim-pescador, o/a professor/a de Educação do Campo, oriundo/a da formação por área, em Ciências da Natureza, é um novo profissional. O pensamento deste egresso corrobora, portanto, o argumento de que esse novo profissional formado pela LEDOC não é professor/a de Física, nem de Química e nem de Biologia, mas é de Ciências da Natureza na perspectiva interdisciplinar.
Segundo Brick e Borges (2017, p. 2) há, no âmbito acadêmico, “um consenso inicial sobre o que a área de conhecimento não é, ou seja, não se trata de uma produção de conhecimentos de forma disciplinar”. Em face dessa posição, problematizamos as possibilidades da área do conhecimento se apresentar disciplinar ou não. Entendemos que a questão possui um nível de relatividade no sentido de que o percebido pode depender da lente com a qual é observado. Se considerarmos a ideia de área das CN como o resultado apenas da soma dos campos de conhecimento da Física, da Química e da Biologia, sem qualquer problematização e contextualização do conteúdo programático, a realidade tende a ficar borrada, limitada às intersecções dos três campos, ou de desenvolvimentos lineares dos sumários dos livros didáticos das três disciplinas, dentro da área. Assim, a concepção de área encaminha a uma nova disciplina, que substituiu as três citadas, mas diferente da configuração delas em separado.
Por outro lado, o cenário se apresenta diferente, se a área de conhecimento das CN é construída a partir de diferentes intencionalidades curriculares, nas quais o mundo vivido das pessoas é objeto de problematização (Paulo Freire) e na condição de contemplar o pressuposto originário da EdoC, no qual os povos do campo “garantam o seu direito à educação e a uma educação que seja no e do campo (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2011, p. 149-150)”. Desse modo, entendemos que a área do conhecimento das CN, a partir de tais lentes, permite uma visão mais clara e compreensível da realidade vivida, estabelecendo uma relação mais profunda com as pessoas e seus contextos, haja vista a riqueza do campo como espaço de vida e de trabalho.
No entanto, destacamos que a emergência desse novo campo de conhecimento, com formação do profissional das CN, não substitui ou dispensa a existência das licenciaturas disciplinares. Pelo contrário, entendemos que podem coexistir e trabalharem coletivamente na compreensão do mundo vivido, em função de suas diferenças formativas.
Portanto, a formação docente em CN não se situa no “contexto neoliberal da polidocência individualizada”, conforme Brick e Borges (2017, p. 8), mas no contexto de organizações curriculares por áreas e temas voltados à Educação Básica do/no Campo, nas quais o/a docente atua interdisciplinarmente, em função do contexto vivido. É bem verdade que os governos atuais, no Brasil, destacamos o Estado do Rio Grande do Sul (RS), contexto desta pesquisa, defendem políticas de redução de gastos públicos, com uma visão neoliberal de estado mínimo, tendo estas políticas consequências imediatas no campo educacional.
Com relação às contradições vividas pelos pássaros na Educação Básica, sobre a formação por área do conhecimento, destacamos as vivências relatadas nos estágios de docência, em que foram identificadas duas situações distintas: uma com o desenvolvimento de projetos de estágio interdisciplinares (JOÃO-DE-BARRO-18) devido as condições favoráveis encontradas na escola; e a outra, relatada pelo Martim-pescador que “teve que trabalhar com disciplina, porque a escola é disciplinar” (MARTIM-PESCADOR-16). Para Tiziu, o/a professor/a com formação por área, no caso das CN, tem dificuldades de atuar na escola por disciplina, em função de que, durante a graduação, não vivenciou toda a lista de conteúdos dos cursos disciplinares de Física, Química e Biologia. A formação disciplinar e por área do conhecimento são distintas em termos educacionais, por conseguinte, constituem diferentes profissionais, igualmente importantes para a compreensão do mundo vivido.
No cenário disciplinar, Tiziu cita que “o currículo que o curso propõe é muito diferente do currículo que as escolas do Ensino Médio exigem” (TIZIU-03). De fato, são diferentes, pois a proposta da LEDOC é a docência interdisciplinar, por área do conhecimento, que é distinta da proposta disciplinar vigente. Além disso, a LEDOC tampouco se filia às concepções teóricas que balizam a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)9, o Programa do Novo Ensino Médio10, bem como o Referencial Curricular Gaúcho11, no RS, que embora discutam a ideia de área do conhecimento, estão assentados em pressupostos educacionais neoliberais.
Quando nos referimos a tais pressupostos, discutimos o lugar teórico no qual se apoiam as propostas curriculares citadas, e nelas a pedagogia das competências, que teve seu auge na segunda metade da década de 1990. Os currículos inspirados em tal pedagogia substituem a ideia de saberes por competências e habilidades. A pedagogia das competências, em nossa opinião, constitui-se como uma proposta neoliberal na educação, pois individualiza o processo educacional com a prescrição de quais competências e habilidades os/as estudantes devem desenvolver em cada etapa da formação escolar. Isso acaba por gerar um tensionamento nos sistemas de ensino, que induz desde a constituição de determinadas políticas públicas para a Educação, até a estruturação de currículos pautados por esta lógica.
Segundo Santomé,
Na medida em que a economia atual está baseada no conhecimento, as organizações empresariais tratam de pôr os sistemas educativos exclusivamente a seu serviço, razão pela qual fazem de tudo para que o foco de atenção esteja na geração e exploração do conhecimento que tiver maiores possibilidades de ser aplicado à produção e à geração de novos negócios rentáveis. Estamos vendo como se potencializa por todos os meios e incentivos possíveis um determinado tipo de conhecimento que tem maiores possibilidades concretas de se transformar em uma mercadoria, em um bem de consumo (SANTOMÉ, 2013, p. 96-97).
O autor referido problematiza uma perspectiva que se situa antagonicamente à concepção educacional libertadora de Paulo Freire, pois cognitivamente situa o/a estudante à condição de adaptação a uma realidade mercantilizada, e não se preocupa diretamente com a compreensão do mundo vivido. Quanto à historicidade, a pedagogia das competências se aproxima da característica a-histórica, por ser excessivamente pragmática. Não permite a compreensão do caráter histórico da realidade, pois reduz o currículo a conjuntos de competências e habilidades burocráticas, desenvolvidas nacionalmente, negligenciando assim o valor dos contextos locais para o currículo.
No sentido neoliberal, a discussão de área do conhecimento possui a característica de formar profissionais generalistas, com objetivo de reduzir custos da educação pública. Tal posição não concorda, segundo Molina (2017, p. 591), com a matriz formativa da Educação do Campo, que se estrutura na perspectiva de formação humana das pessoas e nega a visão estreita de formação escolar, voltada exclusivamente para formar mão de obra ao mercado.
Os egressos e egressas vivenciaram as contradições entre a proposição de projetos interdisciplinares, por alguns desenvolvidos, e o estrito cumprimento de ementas das disciplinas de Física, Química e Biologia, de maneira individualizada/desarticulada.
Pensamos que os sistemas de ensino não estão alinhados com a legislação, e em função disso, os docentes recém-formados, na perspectiva da LEDOC, encontram um sistema educacional que não está estruturado para recebê-los. O Conselho Estadual de Educação do Estado do Rio Grande do Sul (CEED-RS) construiu e aprovou dois documentos definindo (CEED-RS, 2018a) e consolidando (CEED-RS, 2018b) as Diretrizes Curriculares da Educação Básica nas Escolas do Campo, bem como as condições para a sua oferta no Sistema Estadual de Ensino. No entanto, a implementação dessas diretrizes pelos órgãos executivos da Educação Estadual, não se concretizou até o presente momento e não há previsão de efetivação, dadas às conjunturas políticas e econômicas adversas no País e no Estado do RS.
Em face ao exposto, entendemos que a organização curricular disciplinar tem suas limitações, e a defesa em favor da abordagem de temas nos encaminhamentos curriculares das escolas do campo consiste na convicção de que esse currículo representa a possibilidade de construção de uma educação do/no campo que contextualize e se aproxime das vivências das populações do campo, evitando situações como a relatada por Cardeal, que definia seu local de trabalho como “uma escola do campo com a fala da cidade” (CARDEAL-26).
No entanto, sem efetivação da regulamentação da Educação do Campo no RS, os/as egressos/as têm dificuldades de inserção no mercado de trabalho como professores da área do conhecimento, principalmente no Ensino Médio, onde a exigência da perspectiva disciplinar é mais intensa. Nos anos finais do Ensino Fundamental, a disciplina que contém conhecimentos de Física, Química e Biologia é denominada de Ciências, o que permite maior flexibilidade e criatividade na atuação docente, embora, muitas vezes aquém da perspectiva de docência interdisciplinar em Ciências da Natureza.
Elementos da Interdisciplinaridade na Prática Docente em Ciências da Natureza na Educação do Campo
Na quarta categoria que representa o canto dos pássaros, entra no debate elementos da interdisciplinaridade na prática docente em Ciências da Natureza, na Educação do Campo, em movimentos que perpassam dois elementos extraídos das entrevistas realizadas, que são: a relação da fragmentação disciplinar com a integração dos saberes e a relação entre trabalho coletivo e docência compartilhada.
A fragmentação disciplinar se apresenta como característica dos currículos, tanto da Educação Básica quanto da Educação Superior. Segundo o PPC da LEDOC (UFRGS, 2013, p. 4), a formação docente por área de conhecimento, “almeja que os docentes egressos contribuam significativamente na superação da disciplinarização dos saberes, ainda hegemônica nos currículos escolares em geral”. Conforme Tiziu, “nas escolas [o currículo] é muito fragmentado” (TIZIU-18) em disciplinas isoladas, que não interagem entre si. A fragmentação dos saberes em disciplinas antecede a interdisciplinaridade, enquanto movimento de integração desses saberes, historicamente isolados. Cardeal reflete que a “vida não é dividida em caixinha, ou em pastinha” (CARDEAL-19), e que a fragmentação na escola dificulta a compreensão da realidade, como um todo.
Quanto à integração desses saberes, defendemos a interdisciplinaridade, no entanto os pássaros expressaram seus entendimentos sobre esta temática com argumentos muito genéricos, mais próximos do senso comum. Entendemos como necessário demarcar a diferença entre o senso comum e os saberes tradicionais e populares. Sobre o senso comum, compreendemos como as construções cognitivas de cada pessoa, decorrentes de suas vivências e experiências de vida e que se aproximam de conhecimento no nível da “doxa”, que significa mera opinião. No entanto, respeitamos a legitimidade do saber de senso comum de cada pessoa em seu contexto de constituição. Com relação aos saberes tradicionais e populares, são conhecimentos que, em nosso entender, estão no nível do “logos”, que significa o conhecimento verdadeiro e válido, pois são construções culturais, concretas, sistematizadas por grupos sociais específicos e que atravessam gerações. Desse modo, concordamos com Freire (2019, p. 97), que entende a prática educativa como uma situação gnosiológica, que objetiva problematizar o conhecimento no nível da “doxa” para construir conhecimentos em nível do “logos”.
Nesse sentido, justificamos a referência às compreensões dos pássaros como genéricas e próximas do senso comum. Para Martim-pescador, “a interdisciplinaridade é isso, é uma proposta de pensar no todo, em todos os processos químicos, físicos e biológicos dos conteúdos, mas sem separá-los” (MARTIM-PESCADOR-07). Embora a afirmação contenha elementos que direcionem a uma compreensão sobre as concepções de interdisciplinaridade, apresenta-se incompleta. De acordo com João-de-barro, a interdisciplinaridade significa “relacionar não só os conteúdos com outras disciplinas, mas é tu conseguir relacionar também com a prática diária” (JOÃO-DE-BARRO-13). Concordamos com a posição exposta de que há um componente prático, como sinalizado por Japiassu (1994, p. 51) para o qual “a interdisciplinaridade é percebida como uma ‘prática’ eminentemente política [...]”.
Conforme Cardeal, ele entende ser interdisciplinar, que a interdisciplinaridade vive nele e que essa compreensão partiu da vivência na LEDOC/UFRGS. Embora situe seu posicionamento próximo ao de Fazenda (1994, p. 67), na perspectiva de uma atitude interdisciplinar relacionada ao indivíduo, na qual “a ação passa a ser o ponto de convergência e partida entre o fazer e o pensar a interdisciplinaridade”, não há elementos para afirmar que se apoia nessa autora, e nos permite inferir ser uma compreensão desse pássaro, após o processo formativo na LEDOC/UFRGS.
Desse modo, quanto à perspectiva interdisciplinar, firmamos posicionamento em Delizoicov e Zanetic (2002, p. 13), que, apoiados em pressupostos freireanos, entendem a interdisciplinaridade como uma lente na qual os fenômenos ou temas geradores são observados. Os temas geradores, defendidos por Freire (2019), são identificados pelo processo de investigação temática. São temas reais, sociais e representativos do contexto de vida de cada comunidade, bairro ou cidade. O tema gerador, segundo Delizoicov e Zanetic (2002, p. 13), é decomposto pela lente da interdisciplinaridade em “diferentes luzes do conhecimento (física, química, biologia, história, geografia, artes, etc.), permitindo revelar aspectos fragmentados da realidade”. Após essa decomposição em diferentes luzes, que correspondem às disciplinas, cada especialidade, em seu campo de saber, responde à pergunta citada por Auler, Dalmolin e Fenalti (2009, p. 12): “que conteúdos, que conhecimentos são necessários para a compreensão, para a decodificação do tema”?
Para Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002, p. 189), a abordagem temática se constitui numa perspectiva curricular a partir de temas, cuja “conceituação científica da programação é subordinada ao tema”. O que implica dizer que não há definição de conteúdos a priori, mas em função do tema. Segundo Auler, Dalmolin e Fenalti (2009, p. 12) “o tema comparece para dinamizar, contextualizar, motivar o desenvolvimento de currículos, muitas vezes, estruturados de forma linear e fragmentada”.
Nessa perspectiva, Cardeal entende que a organização curricular por temas geradores facilita a compreensão dos conteúdos disciplinares e as relações construídas entre os componentes disciplinares, pois em “nível de conceito fica mais fácil, criar, fazer essas ligações” (CARDEAL-21). Compreendemos dessa forma o movimento de integração dos saberes como uma contribuição importante da interdisciplinaridade. Destacamos a potencialidade da definição do tema gerador, por meio da investigação temática (FREIRE, 2019), nas comunidades em que os/as estudantes vivem e trabalham. A decomposição deste tema em diferentes campos do conhecimento, a interação entre estes e a síntese da contribuição de cada um deles, são compreensões a serem realizadas inicialmente pelo professor ou professora. A partir disso, assume-se uma decisão de quais conhecimentos comporão o programa a ser desenvolvido junto às/aos estudantes, assim constituindo argumentos para exemplificar o movimento dos temas como organizadores de currículos.
O processo de decodificação do tema e construção do programa está relacionado como segundo movimento de síntese nesta categoria, a relação entre trabalho coletivo e docência compartilhada. A sistematização dos conhecimentos e a construção do programa são etapas que podem conter movimentos individuais em cada disciplina, bem como movimentos coletivos com os diferentes campos do conhecimento. Quanto a esta etapa coletiva, pensamos ser indispensável para a construção de um currículo interdisciplinar.
O trabalho coletivo constitui um movimento de articulação de diferentes especialistas, sejam legitimados pelos saberes acadêmicos ou pelos saberes tradicionais e populares, em prol de um mesmo objetivo. Essa articulação contempla, não só a execução, mas também o planejamento das ações. Segundo Janata:
A compreensão do ponto de partida da articulação e integração de conhecimentos não diz respeito à aproximação do que cada disciplina tem em comum. Em nossa compreensão da Licenciatura em Educação do Campo, a integração curricular, que leva ao trabalho coletivo, ou vice-versa, tem a compreensão da vida, em seus fenômenos sociais e naturais, com suas contradições, como central (JANATA, 2019, p. 313).
Nesse sentido, o trabalho coletivo pode tanto levar à construção da compreensão de um tema, via integração curricular, quanto os objetivos curriculares conduzirem ao trabalho coletivo. A atuação dos especialistas deve ser sistematicamente articulada e a coordenação dos processos, democraticamente definida entre os participantes do processo.
Em um processo de construção curricular interdisciplinar, o trabalho coletivo abarca todas as etapas, do planejamento e da investigação do tema, ao desenvolvimento em sala de aula, o que não implica em todos os especialistas estarem juntos em todas as atividades, mas sim, a partir da coordenação e articulação do processo, cada um contribui quando se apresentarem as demandas.
Nesse contexto de sala de aula, surge outra questão importante que emergiu das entrevistas: a docência compartilhada. Nossa compreensão de docência compartilhada é que ela é um elemento do trabalho coletivo e que se fundamenta nas etapas de planejamento e desenvolvimento do programa em sala de aula. No entanto o compartilhamento da docência interdisciplinar pode envolver a atuação de especialistas de diferentes campos do conhecimento, não apenas daqueles que partilham da mesma formação, ou da relação de professor efetivo e licenciando/a na mesma área.
Quanto ao trabalho coletivo, cabe destacar que não implica em ficar restrito aos domínios das disciplinas escolares. Caturrita considera que o trabalho interdisciplinar vai além dos limites da sala de aula, ele se articula com outros espaços no entorno da comunidade. Segundo este pássaro, em suas vivências interdisciplinares nos estágios de docência, trabalhou com os profissionais da Unidade Básica de Saúde, com pessoas da colônia dos pescadores e na aldeia indígena, com as lideranças destes grupos. Isso corrobora a importância de outros saberes estarem integrados aos processos educativos, para além, apenas, dos saberes científicos, considerando também àqueles sistematizados pelo saber tradicional e popular.
Desse modo, no contexto das LEDOC/UFRGS, João-de-barro diz acreditar “que os professores tentam a interdisciplinaridade. [...], mas não é uma coisa que sempre se consiga fazer” (JOÃO-DE-BARRO-11). Para Tiziu, no início do curso, os professores compartilhavam a docência com “dois ou três professores juntos na sala de aula” (TIZIU-13), mas no final do curso não mais acontecia.
De acordo com Molina, o trabalho coletivo é elemento fundamental no projeto das LEDOC.
Conceber e executar a formação por área de conhecimento, pensando a interdisciplinaridade como exigência da própria materialidade, da complexidade dos problemas da realidade que se quer compreender e explicar exige, fundamentalmente, o trabalho coletivo (MOLINA, 2019 p. 203).
Quanto à dificuldade de organizar o trabalho coletivo interdisciplinar nas LEDOC, podemos identificar inúmeros motivos, mas destacamos que a formação dos educadores e educadoras das LEDOC ocorreu, majoritariamente, no modelo disciplinar. Molina (2014, p. 18) encara como um desafio “a formação dos próprios formadores dos quais se espera essa prática. Vindos, em sua maioria, de uma trajetória formativa extremamente disciplinar e fragmentada”.
O trabalho coletivo, independente da área ou componente curriculares, requer necessariamente um planejamento do/a docente e, na sequência, do coletivo, visando a execução e a avaliação do processo de forma conjunta. Portanto, a docência compartilhada se constitui como elemento do trabalho coletivo, que agrega em visibilidade a este trabalho, pela presença física em sala de aula de mais de um professor/a.
Como síntese desta categoria, da relação entre fragmentação e integração com o trabalho coletivo, apresentamos a figura 3, a seguir.
Nesta síntese, a relação entre fragmentação e integração é dialética, e entre esses dois extremos, movimentam-se a investigação temática, a construção do programa e a docência compartilhada. O trabalho coletivo transversaliza todas as etapas, atuando em todos os movimentos, pois, para que haja interdisciplinaridade, o trabalho coletivo se constitui como elemento central. A investigação temática que, localizada na fronteira entre integração e fragmentação, permite mover-se entre os dois extremos, na medida da necessidade das etapas da investigação dos temas.
Segundo Freire (2019) e Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002), a primeira etapa da investigação temática é o “Levantamento Preliminar”, no qual os especialistas vão à comunidade, dos/das estudantes, juntamente com eles e elas, realizar um estudo sistemático, de modo a identificar as contradições vividas, em um movimento na direção da integração. Entendemos que o mover-se em direção à comunidade tem o significado de integração, pois o mundo vivido não está dividido em disciplinas ou campos de conhecimento.
No segundo momento, em direção à fragmentação, os/as especialistas realizam a “análise das situações e escolha das codificações”, em que selecionam as principais situações que encerram as contradições vividas, para retornar à comunidade e continuar o diálogo. Esse movimento é de fragmentação, porque os/as especialistas se reúnem para sistematizar elementos do mundo vivido, a partir de seus campos de conhecimento.
Na terceira etapa, em direção à integração, nos “diálogos descodificadores”, os/as especialistas retornam à comunidade, para dialogar com seus atores sobre qual das contradições vividas mais os inquietam, e assim, obter o tema gerador ou os temas geradores.
Na quarta etapa, “redução temática”, a partir do tema gerador identificado, inicia a construção do programa, parte integrante da investigação temática, que embora também possa mover-se entre os dois extremos, localiza-se mais em direção à fragmentação, buscando o necessário diálogo com os diferentes campos do conhecimento.
Na quinta etapa, o “desenvolvimento do programa em sala de aula”, entendemos ser outro movimento, prioritariamente, em direção à integração, na qual a docência compartilhada entra em evidência.
Por último, a docência compartilhada, como elemento do trabalho coletivo, juntamente relacionada com a construção do programa e enriquecida pela colaboração de diferentes campos do conhecimento. Reconhece-se um movimento nesta etapa em direção à fragmentação, porém em menor grau, situado mais próximo à integração. É também este o momento de desenvolvimento do programa, com vistas à compreensão do tema gerador, unindo esforços para ir além do mero cumprimento de sumários dos livros didáticos ou de listagens de habilidades ditadas pelos documentos oficiais, de forma descontextualizada. Assim, a opção por temas geradores consiste no fato de que eles são representativos das contradições presentes nas comunidades em que os/as estudantes vivem e trabalham, e também, porque os temas geradores representam a construção de um currículo que, do ponto de vista axiológico, respeita o/a estudante em seu “direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a assunção deste direito por parte dos educandos (FREIRE, 2006, p. 71)”.
Logo, a interdisciplinaridade aparece como caminho para a integração do que foi separado, favorecendo a compreensão da realidade vivida, que não pode ser dividida, mas sobretudo, figura como o elemento central no diálogo entre as Ciências da Natureza e a Educação do Campo, nesta pesquisa. Assim, o canto dos pássaros, que pousaram e repousaram sob os galhos do Jacarandá-mimoso da FACED e da Figueira do CLN, representam parcela das vivências construídas por eles/elas no espaço-tempo da LEDOC e agora voam para outras sombras e desafios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À sombra de uma Figueira e um Jacarandá seis pássaros vivenciaram suas experiências durante o tempo de integralização curricular nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza da UFRGS. Nos movimentos da pesquisa, identifiquei uma categoria emergente, as marcas das sombras do Jacarandá e da Figueira, que representaram as modificações pessoais e profissionais advindas do processo de formação docente, que em maior ou menor intensidade, na individualidade de cada pássaro, promoveu mudanças, que nos permitem inferir uma parcela de sucesso à formação nas LEDOC/UFRGS em seus objetivos formativos.
A partir do Projeto Pedagógico do Curso vivenciado pelos pássaros, selecionamos três elementos centrais para dialogar com os resultados das entrevistas, que foram: a alternância, a formação por área de conhecimento em Ciências da Natureza e a Interdisciplinaridade. Nesta caminhada nos encontramos com a alternância dos espaços-tempos de formação, que se constituiu como uma proposta educacional contra-hegemônica, uma das maiores riquezas dos projetos das LEDOC, que viabilizam acesso e permanência dos povos do campo na Educação Superior, pois permite respeitar os espaços-tempos de vida e trabalho no campo. Nessa proposta, o TU e o TC interagem dialeticamente de modo a encharcar a universidade de comunidade e a comunidade de universidade, com diálogos respeitosos e horizontais.
Nesse contexto, a formação por área de conhecimento nos permitiu refletir sobre os contornos da área das Ciências da Natureza e as contradições vividas pelos pássaros em seus estágios de docência nas escolas. Vinculado a esse tema, surge a discussão sobre interdisciplinaridade, que nos movimentou a debater aspectos da relação da fragmentação disciplinar com a integração dos saberes, e também da relação entre trabalho coletivo e docência compartilhada. No entanto, mesmo que os pássaros tenham expressado seus entendimentos sobre interdisciplinaridade com argumentos muito genéricos, a discussão nos levou a compreender a importância deste tema para a LEDOC.
A caminhada na investigação nos conduziu a responder o problema de pesquisa definido: Como a Educação do Campo dialoga com as Ciências da Natureza, na formação em nível de licenciatura, de educadores e educadoras?
O diálogo entre a Educação do Campo e as Ciências da Natureza se estabelece, principalmente pela interdisciplinaridade, que, na perspectiva freireana, propõe uma configuração curricular a partir de temas geradores, reais, capazes de estabelecer outras conexões entre universidade e comunidade, bem como uma relação integrativa dos conhecimentos disciplinares. Tal diálogo busca a compreensão do mundo vivido, problematizando-o e descodificando-o, interdisciplinarmente, a partir das Ciências da Natureza, mas não somente dela, também com a contribuição de outros campos do conhecimento.
Frente a uma conjuntura social e política desfavorável destes tempos, resta-nos viver a verdadeira esperança, do verbo “esperançar”, que não permite desistir, nem se acomodar frente às injustiças promovidas por outros seres humanos no mundo. Segundo Freire (1992, p. 6), “enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica, É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã”.