INTRODUÇÃO
A posição do professor e a abordagem dos alunos são aspectos muito debatidos no campo da Educação de Jovens e Adultos (doravante, EJA; ver VOVIO, 2008; VENTURA; BONFIM, 2015; SOARES; PEDROSO, 2016). Este cenário é atravessado invariavelmente pelo uso de materiais didáticos, pelos quais se configuram processos de identidade na chegada do educando e durante o percurso, indicando em parte que lugar social é este, sujeito2 a esta modalidade de ensino.
Defendemos que o material a ser utilizado já marca uma leitura (interpretação) deste lugar, lugar de uma possível tomada de posição que possa contribuir com o destaque à singularidade nos processos de identificação e de identidade. Não é lugar neutro, nem estabelece isonomia plena. E pode reforçar ainda mais a reprodução das desigualdades de oportunidades para esta parte da população ou, ao contrário, conferir outras possibilidades de tomada de posição na sociedade.
Identidade aqui começa a ser entendida como processos de identificação e manobras de filiação e/ou de destituição de lugares discursivos; lugares estes determinados pela eficácia material que o imaginário exerce (PÊCHEUX, 1993) sobre as posições que estes sujeitos ocupam e/ou poderiam ocupar em meio a uma conjuntura sócio-histórica.
A natureza deste pressuposto sobre a relação entre imaginário e base material, que também considera um jogo de representações (entre professor, aluno, material) pode ser entendida pela noção de formações imaginárias. Psicanaliticamente, o imaginário é lugar do sujeito que se relaciona com objetos fantasiados e também lugar da dúvida, do vacilo (PÊCHEUX, 1993). Esta noção ajuda a entender como se enlaçam evidências sobre uma posição já ocupada na trajetória interativa do sujeito-EJA3 e que aparenta ser a única possível de ser ocupada, face à projeção de um campo de possibilidades de posições a serem ocupadas. Trata-se do estranhamento sobre a evidência do sentido e de uma posição do sujeito. Cabe questionar de forma introdutória: por quais mecanismos alguns materiais didáticos utilizados na EJA recortam sentidos na linguagem e tornam evidentes algumas posições? De que forma constroem processos de identificação e de identidade de uma posição-sujeito?
O pressuposto pecheutiano de que a identificação decorre de uma eficácia material do imaginário nos obriga a resgatar o axioma lacaniano de que o sujeito é inscrito na ordem simbólica por um lugar do outro (denominado de pequeno outro, no registro imaginário) que está constituído pelo Outro (grande Outro) guardião de um tesouro de significantes. Deste modo, mais importante que uma característica do indivíduo empírico ou de uma categoria sociológica, a posição do sujeito do discurso (também denominada posição-sujeito) emerge como lugar sujeito (itálico nosso) à interpretação. Portanto, um lugar que clama por interpretação (em meio à deriva dos sentidos) e que depende da sedimentação do sentido para marcar uma posição dizível. Portanto, a posição-sujeito indica a reprodução de evidências de sentidos já estabelecidas no imaginário e também sinaliza rupturas com estas evidências. Isto demonstra que o discurso, parafraseando Pêcheux (1993), desloca na estrutura da linguagem efeitos de sentido (interpretação) entre interlocutores, por meio de ao menos uma cadeia significante, localizada em uma conjuntura sócio-histórica.
Nesta pesquisa, portanto, essa tomada de posição do sujeito do discurso será discutida levando-se em conta que a configuração de comportamentos de deferência estabelecidos pelo material analisado atua no registro das formações imaginárias.
É por este percurso que nosso objetivo geral com esta pesquisa foi investigar de que forma alguns materiais didáticos utilizados na EJA distribuem sentidos sobre modos de se portar (incluindo comportamentos de deferência) pelos quais ao sujeito-EJA é assinalada uma posição discursiva em um processo de identificação.
ASPECTOS TEÓRICOS - UM ENCAMINHAMENTO DA ANÁLISE
A princípio, em um primeiro contato com o material aqui analisado, chamou-nos a atenção a presença de algumas seções (atividades, dicas, comentários) que significam o sujeito-EJA como aquele que necessita de adentrar um campo ritualístico, respeitar e aprender sobre modos de interagir com o outro, em um espectro de comportamentos de deferência.
Uma vez que em Análise do Discurso a descrição do material (do qual se forma o corpus de análise linguístico-discursivo e ao qual retornaremos neste texto) já é um tipo de interpretação do analista (pesquisador), passamos a identificar nossa questão principal. Deste modo, nosso percurso passou por investigar de que modo estas descrições, dicas, comentários direcionados ao público-alvo (estudantes de EJA) contidos em materiais didáticos podem ser tomadas como um corpus linguístico-discursivo que configura marcas de deferência por meio das quais se constroem processos de identificação e posições do sujeito-EJA.
Cabe explicar que no objetivo geral está incluída a investigação das tensões entre estes discursos e suas formas de interpretar. Em AD, ela é conduzida pela análise da materialidade do sentido (corpus), na qual aparecem posições discursivas que circundam o lugar que se supõe ocupar o sujeito-aluno da EJA e o lugar que deve vir a ocupar. É este movimento de posições-sujeito do discurso que nos interessa discutir com mais acuidade na seção de análise do corpus.
Para isto, conduzimos algumas questões que são imprescindíveis para aprofundarmos o debate sobre a determinação do lugar do sujeito-EJA. Em seguida, detalharemos aspectos da conjuntura histórico-discursiva do olhar, da atribuição de sentidos a este sujeito por parte do lugar do sujeito-professor que pode vir a fazer uso deste material.
Este olhar pode ser entendido como um olhar interpretativo que se submete ao discurso jurídico, no sentido dado por Haroche (1988), de um controle da interpretação em um patamar que corre à revelia do sujeito. A autora explica que o sujeito moderno se constituiu pela injunção do modo de interpretar do discurso religioso, jurídico e científico, reordenados em uma ciranda de contingências históricas decisivas para estabelecer a crença em uma liberdade ilusória, porém necessária para falar de si e interpretar a realidade.
Em suma, um olhar que tem História e que falha. Isto porque a posição-sujeito está inscrita em formações ideológicas (do campo das representações que estabelecem relações entre “parte” e “todo” dos enunciados) e formações discursivas, que por sua vez, delimitam o que pode e o que deve ser dito (PÊCHEUX, 1993). Ocorre que as formações discursivas não delimitam tudo o que se diz. Afinal, algo falha neste processo ritualístico. Parte desta falha pode ser indiciada no material didático a ser analisado. O recorte dos sentidos também é estabelecido por estas falhas e pelos modos destas serem preenchidas por evidências do sentido.
Um dos pressupostos em AD e em Psicanálise é que uma causação, a implicação de uma contingência entre formas de dizer/agir, ocorre independente do acesso direto ao consciente. O sujeito nunca se percebe por inteiro, não se localiza com precisão a partir de uma faceta do olhar de outrem nem tampouco se define com exatidão por uma apreensão inteiramente racional e plena da realidade. Por conta disso, parte das condições de produção deste material interfere nos efeitos de sentido (interpretação) encontrados no material de análise.
Em AD, as condições de produção (CP) têm base material e comportam uma heterogeneidade de posições conforme uma conjuntura sócio-histórica, uma vez que “[...] a classe de hipóteses formuladas a título de CP do discurso garante a passagem contínua da história (a conjuntura e o estado das relações sociais) ao discurso (enquanto tipologias que nele se manifestam) pela mediação de uma caracterização psicossociológica (as relações do indivíduo com o grupo) de uma situação de enunciação [...]” (COURTINE, 2014, p. 50, itálico no original)
Estas condições de produção definem, por meio dos dizeres já estabelecidos neste campo da Educação, em seu histórico, em suas marcas, rasuras, interdições, silenciamentos e retomadas de direção e percurso, lugares subentendidos e implícitos que interferem em posições já estabelecidas e no conjunto de possibilidades de posições a se estabelecer.. Não se trata de uma perspectiva de planejamento ordenado que anteveja uma posição a ser ocupada, mas de mostrar de que forma o que já foi dito, o que foi construído neste recorte imaginário da realidade, (re)produz e sustenta efeitos de sentido. Para seguir o debate, portanto, devemos recortar parte do espectro sócio-político da EJA na conjuntura histórica mais recente no Brasil.
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: PROCESSOS EXCLUDENTES MULTIFACETADOS
Uma busca no indexador scielo, permitiu elencar alguns trabalhos no campo da formação de professor e das Políticas Públicas para a EJA. Por se tratar de uma pesquisa em perspectiva discursiva, privilegiamos o debate sobre a conjuntura histórico-discursiva e a apresentação desses eixos temáticos em interface com a questão dos processos de identidade. Todavia, notamos que de 91 trabalhos resultantes da busca pela palavra-chave “Educação de Jovens e Adultos”, realizada entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020, nenhum artigo aparece com o cruzamento de EJA com a palavra-chave “livro didático” e apenas um artigo na intersecção com a palavra-chave “material didático” (FÁVERO, 2007) cujo enfoque não estabelece relação direta com as questões aqui levantadas.
Em AD, a enunciação é analisada inicialmente pela remissão ao que fica mais acessível em uma linearidade, na superficialidade lingüística. Todavia, maior valor reside no que esta marca inicial traz de rastro de um espectro mais amplo do já dito ou do que ainda não foi possível dizer sobre um lócus discursivo (um lugar de enunciação). Neste caso, seja da posição do professor projetando uma imagem/lugar na posição do aluno, seja do lugar do Estado ou dos materiais incidindo em uma lacuna deste processo.
É fundamental apresentarmos as condições de produção deste material a ser analisado inserido em um campo de embate entre Estado e sociedade civil, uma vez que a EJA no Brasil mantém estreita relação com falhas estruturais do Estado e de mecanismos de jogos de poder de Estado (ALTHUSSER, 1999) que produzem exclusão social e que se tenta resolver à custa do disfarce operado pelo próprio Estado em relação a esta produção de exclusão social. Disso decorre um percurso de ações e diretrizes que mascara processos histórico-discursivos que retornam a este mascaramento, o que provoca um efeito circular, quase paradoxal4.
É no cerne deste panorama mais amplo do campo superestrutural das condições de produção do que é possível ser dito para sedimentar um lugar para o sujeito-EJA que percorremos alguns marcos desta influência, marcada por falhas estruturais, do poder de Estado. Ou seja, as condições de produção não são apenas uma cena enunciativa nem apenas posições diretamente refletidas da conjuntura, mas resultam de constante disputa pelo sentido situado socio-historicamente (COURTINE, 2014). Mas que lugar é este?
Estas falhas estruturais do Estado nos remetem à análise histórica feita por Patto (1999) para quem o advento da República não trouxe mudanças radicais do ponto de vista social, econômico, político de modo a não permitir a aspiração coletiva à gana libertária de uma massa de oprimidos, incluindo-se a postura não democrática da classe média em diversos momentos históricos. A ausência de mudanças estruturais mais profundas trouxe um “situacionismo permanente” (expressão da autora) que indica um espírito de República com profunda segmentação social e decisões oportunistas de um executivo forte, invariavelmente apartando ainda mais as camadas sociais para gerenciar interesses das oligarquias tais como servilismo, favores, subemprego, quantidade mínima de eleitores e trabalho doméstico não remunerado agregado às famílias ricas.
A herança da esfera privada na relação promíscua do interesse privatista sobre o interesse coletivo está em que “a República nasceu sob o signo da ordem pública. Herdeiros de concepções político-filosóficas de cunho evolucionista que naturalizavam o social, intelectuais e militares que fundaram a República defendiam a tese do progresso ordeiro”. (PATTO, 1999, p. 170).
Mais especificamente é crucial lembrar que houve em torno deste processo histórico um refinamento do disciplinamento que enveredou para uma desqualificação da camada popular, que conforme Patto (1999, p. 183) repercute na escola ainda hoje:
O eficientíssimo artifício ideológico domesticador que se articulou nesse período, em íntima relação com o discurso científico, foi a disseminação pelo corpo social de uma imagem negativa dos pobres, vírus poderoso que naturalizava a condição social de uma classe aos olhos de todos e justificava a exploração econômica, a rudeza do aparato repressivo e o exercício oligárquico do poder. Foi a partir de então que as teorias raciais começaram a desempenhar aqui o papel que vinham desempenhando na Europa.
Este cientificismo resultou no barateamento dos cofres públicos para a educação voltada à camada popular desde o Império e se fundamenta na suposta incapacidade dos mais pobres e na necessidade de tutela estatal para todos os hábitos impróprios e não civilizados a serem domesticados (PATTO, 2007). Esta postura de tutela estatal aparece na realidade atual de financiamento e gestão da Educação de Jovens e Adultos.
Volpe (2013) denuncia este financiamento qualificado como barateamento, chamando-o de “migalhas”. A autora analisa o financiamento da EJA no Estado de Minas Gerais entre 1996 e 2006 e denuncia que a precariedade no financiamento desta modalidade traz marcas de fragilidade na democratização do Estado brasileiro. Em se tratando de uma modalidade que deve receber do Estado o tratamento do direito à escolarização, todavia percebe-se o temerário enfoque em um assistencialismo que mais parece apenas amenizar a exclusão social.
Soares e Pedroso (2016), por sua vez, também denunciam as formações aligeiradas e marcadas pelo assistencialismo com conteúdos que não têm dialogado com a realidade do público jovem e adulto; ainda que tenham ocorrido alguns avanços como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA, que fizeram avançar a formação do educador para esta realidade mais específica, a formação aligeirada dos educandos da EJA e as falhas na formação do educador para esta modalidade permanecem até hoje.
Como se nota, a construção de um lugar discursivo para o sujeito-aluno da EJA é atingida, portanto, por um espectro estatal de descontinuidade, oportunismo propagandístico, de descaso e de formalidade de indicadores, como analisado por Ventura e Bonfim (2015) e Soares e Pedroso (2016).
Sendo assim, Ventura e Bonfim (2015) analisam a precariedade do atendimento do Estado a uma população cujo direito à Educação foi negado, e que é marcada por severa exclusão social, a saber:
[...] não é possível desprezar o fato de que o Estado, historicamente a serviço dos interesses privados, conhece bem as possibilidades do processo formativo que, comprometido com o professor e a realidade concreta brasileira, busca as raízes das questões a serem superadas. Paradoxalmente, parte da produção atual sobre a Educação de Jovens e Adultos pauta-se na potencialidade da modalidade na formação para uma cidadania abstrata, capaz de atenuar os antagonismos de classe da sociedade capitalista, de superar a tradição histórica da educação compensatória” (VENTURA; BONFIM, 2015, p. 223)
Esta falha na formação atravessada pelos interesses privatistas e pela educação compensatória repercute em um simplismo que em parte determina a conjuntura de uma rede de sentidos sobre o lugar do sujeito-professor e do material de apoio a ser utilizado que se recobre do senso comum, da fabricação do consenso e da superficialidade na abordagem da complexa realidade que circunda a realidade da EJA brasileira. Com esta ressalva, antecipamos que esta determinação é entendida do ponto de vista discursivo como um efeito de “exterioridade” que sustenta um desígnio, quase um destino para esta posição- sujeito.
Em AD, este desígnio remete à questão da designação pelo referente e tem a ver com alteridade. Uma alteridade abordada conforme uma discussão sobre inconsciente e ideologia e que é rodeada pela indagação sobre o lugar que o Outro (no sentido lacaniano de grande Outro) autoriza e delimita como uma posição. A posição discursiva do sujeito depende do valor sociopolítico da superestrutura, de como as condições de produção intervêm tanto no lugar “destinado” ao profissional da educação nesta modalidade quanto ao lugar “destinado” ao educando da EJA.
Em outras palavras, um “exterior” que não é fora e está amalgamado aos discursos, provocando efeitos de sentido e de leitura (interpretação), mesmo sem uma ligação direta com seu lugar enunciativo. Esta rede se sustenta em uma linearidade, tal que o sujeito-professor que se apoia no material oferece uma atribuição de sentidos simplista e reducionista fazendo crer, por exemplo, que este sujeito não sabe se portar (porque não conheceria comportamentos de deferência) e pela qual é espelhado o lugar a ser ocupado pelo sujeito-aluno. A evidência destas posições configura um mosaico de leitura sobre si e sobre o Outro que perfila processos de identificação que analisaremos com mais rigor a partir de alguns pressupostos discursivos.
ANÁLISE DE DISCURSO: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES PARA O TRATAMENTO DA QUESTÃO
Este panorama desta modalidade de ensino que toca a correspondência entre uma infra-estrutura e a distribuição de posições sociais fundamentadas em profissões destinadas ao público-alvo da EJA dialoga do ponto de vista superestrutural (ALTHUSSER, 1999) com as falhas estatais acima apontadas e se projetam também na caracterização de atividades (incluindo-se fotos, exercícios, etc.) vistas no material analisado. Grosso modo, como vemos em vários materiais desta modalidade e na coleção aqui analisada, temos veiculadas imagens de profissões de menor pagamento salarial e prestígio social (SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013a). Isto porque: “A reprodução das condições de produção é social, e não meramente econômica; a reprodução simbólica exige a materialidade dos aparatos técnicos inseridos na dinâmica social. A escola forma, mas essa formação tende a seguir o mercado” (CHATAIGNIER, 2017, p. 792).
Esta reprodução simbólica relida aqui pelo prisma pecheutiano requer explicar que o simbólico, em AD, considera que o sentido desdobrando-se em paráfrases garante a manutenção do status quo pelo assujeitamento ao inconsciente e à ideologia. O sujeito demanda escolha, mas o inconsciente o solapa; requer mudança social, mas é de antemão determinado por uma projeção aparentemente apenas virtual, mas decisivamente material que o antecede e o ultrapassa, como uma linha de anzol que baila sobre o percurso do desejo e a projeção do lugar que acredita dever (ter que) ocupar quando se percebe visto para/pelo Outro. No caso, em um lugar autorizado e legitimado pelo Outro que o quer aluno da EJA, em um prisma de rituais e de lugares sociais demarcados por comportamentos de deferência a serem atendidos.
Ocorre que a explicação restrita à base material socioeconômica não daria conta de mostrar de que forma as posições sociais mantêm relações não plenamente coincidentes com as formações discursivas que, mesmo assujeitado, põe o sujeito a enunciar a partir de um lugar de evidência. É esta a contribuição de Pêcheux (1993) em relação a Althusser (1999) que vamos explorar.
Para dar conta de uma análise que considere várias dimensões do processo de formação do professor de EJA e dos espelhamentos feitos entre posições que passam pela materialidade aqui analisada, também devemos mencioná-la como parte das condições de produção destes discursos, embora não seja nosso foco de análise.
A noção de condições de produção em AD considera que os processos discursivos se engendram por meio de uma retomada constante de “já ditos” que, de forma mais ou menos explícita, está ancorada em evidências. Deste modo, o assujeitamento de que tratamos antes indica que há vários efeitos-sujeito em decorrência dos vários efeitos de sentido possíveis em relação ao que fica acobertado no interdiscurso, em um universo possível de dizeres e de sentidos cujo efeito mais consistente se encontra, sobretudo, nos apagamentos de que decorrem diversas formações ideológicas, formações discursivas e, por isso, várias posições-sujeito.
As condições de produção destas formas de dizer que sustentam posições apontam constante ponto de inflexão entre o lugar da enunciação e a interlocução. Elas decorrem de uma anterioridade da forma-indivíduo interpelada em sujeito, o que também inclui uma realidade fantasiada (no sentido de inseparável do valor da verdade como ficção); de uma análise da sintaxe não como produto apenas de natureza linguística, mas de percurso do sentido (COURTINE, 2014). Como se nota, as condições de produção dependem da constituição de uma rede de sentidos enlaçada pelo interdiscurso.
Em suma, as condições de produção indiciam aquilo que ao deixar de ser dito e que não aparece na superfície linguística continua a produzir espaços de tensão e, por isso, efeitos de sentido e de sujeição que abrem espaços mais ou menos restritos de dizer para o outro. Ocorre que este outro está constantemente ceifado pelas lacunas do Outro, no sentido lacaniano do alcance da sujeição ao significante mostrando que o que está apagado, alhures lança uma alça de alcance do sentido que escapa à intenção do sujeito.
Nestes termos, o que pode ser enunciável e dito em um material destinado a EJA sobre como se portar indica posições-sujeito que resultam desta complexidade dos processos discursivos. Ou seja, depende também de tentarmos olhar para o lugar daquele que espelha ao sujeito-aluno seu lugar, o professor “formado” para a EJA.
Esses aspectos aqui discutidos são tomados como pistas sobre pontos a partir dos quais o sujeito-EJA pode ser visto a partir do olhar (leitura) do Outro. Uma análise possível que trazemos aqui é dos processos de identidade a partir do já dito (por leis, materiais, etc.) que traz elementos pré-construídos a partir dos quais uma rede de sentidos (interdiscurso) autoriza um material a abordar o sujeito-aluno da EJA dentro de um dado campo de evidências sobre quem é e o que deve aprender; e, por fim, como ensiná-lo a se portar. Esse campo de evidências aparece problematizado em sequências discursivas (SDs) retiradas do material aqui analisado. Courtine (2014) ensina que as SDs são extraídas do corpus a partir de um “campo discursivo de referência” (COURTINE, 2014, p.54, itálico no original) que se extrai de uma disputa pelo sentido em torno de razoável homogeneização.
O destaque para esse ponto resgata nosso estranhamento diante do material a ser analisado, estranhamento este que buscou traçar objetivos mais específicos desta pesquisa: Quais procedimentos de educação por orientação de comportamento, hábito e conduta (a serem definidos, conforme HAROCHE, 2005, como comportamento de deferência) aparecem? A quem atendem? Quais outros aspectos da formação do sujeito-aluno da EJA são deixados de lado?
COMPORTAMENTO DE DEFERÊNCIA: BREVE RETROSPECTO
Na EJA, tomamos por pressuposto à maneira freiriana que o sujeito já apresenta “saberes” de seu cotidiano em interface com sua “leitura do mundo”. Certo é que neste jogo entre a imagem que faz de si por meio da imagem do Outro e que permite a este último o enquadre de um lugar social atravessam outras questões, questões estas que acompanham nosso debate, a saber: Quais saberes teriam ou deveriam ter? Este é o foco de nossa análise em termos de formações imaginárias, pois o material analisado indica caminhos desta suposição apresentada pelos materiais didáticos.
Como já explicamos, a abordagem destes pilares é feita aqui por meio de uma leitura discursiva que também considera aspectos da relação entre público e privado e entre aparição e reconhecimento social. É este jogo que também constitui o imaginário (HAROCHE, 1988; PÊCHEUX, 1993).
Este jogo do imaginário, entre o oculto e o veiculado, pode ser discutido também por meio da contribuição de Goffman (2011) acerca da reivindicação de um lugar social de preservação da fachada (lugar este espelhado por conjunturas históricas) e modos de apropriação e incorporação de um comportamento de deferência (agir, cumprimentar, debater, vestir-se, negociar); pode também ser aprofundado com as contribuições de Haroche (1998) sobre linhagem e pertencimento, herança da conotação de espaço físico e simbólico nas cortes (HAROCHE, 2005).
No material analisado, a tentativa de a materialidade impor um mosaico de comportamentos considerados apropriados na expectativa de que os alunos não o tenham e de que, ao apresentá-los, deverão cumpri-los, leva-nos a discutir o tipo de deferência ali envolvido. Para Goffman (2011) a deferência deve ser analisada em termos da constância de uso de um mesmo ritual em situações diferentes e/ou da pluralidade de rituais que um lugar social emite para um receptor.
Haroche (1998) designa ao comportamento de deferência um lugar especial no estudo das heranças de lugares sociais nas cortes, o peso das linhagens, o padrão de adornos e roupas, rituais de procedência, etiqueta, civilidade e polidez cujas raízes remontam a uma governamentalidade de si para preservar-se da desordem. A ordem pelo olhar, cujas raízes remontam à exibição do rei para impor uma forma no corpo social.
Embora ganhe relevo entre os séculos XVI e XVII, o tema da conduta é negligenciado de meados para fins do século XIX e atualmente retorna à tona. Àquela época ser mestre de si e ser amado e respeitado por um encadeamento de domínio, postura, aparência e contenção percorreu tratados humanistas repletos de civilidade (dos séculos XVI a XVIII), os manuais puritanos (do XVI e XVII) e manuais de conduta de príncipes que se tornaram referência para o espelhamento junto ao corpo social. (HAROCHE, 1998). Em suma, a deferência historicamente aparece como aspectos cerimoniais que revelam a presença/ausência do outro conforme preenchimentos do corpo social, seus excessos e faltas. Atualmente, na era das “celebridades”, persiste-se em rituais sobre quem representa quem em um casamento, formatura, cerimonial fúnebre, etc.
Esse jogo acertado, mas também sujeito à falha e ao imponderável, remexe a pretensão de igualdade ajuntando desprezo aos semelhantes e alimentando admiração aos considerados superiores. Mais recentemente, na era da democracia liberal, as sociedades procuram a todo tempo fornecer-nos uma “noção de si”, a partir do binômio inferioridade/superioridade, mesclando austeridade com auto-suficiência (HAROCHE, 2005).
É a marca histórica desse mecanismo também que trazemos como pano de fundo das condições de produção dos enunciados deste material em relação ao sujeito-EJA; para o outro, conforme o material didático, ele deve portar-se como um admirador de um manual de conduta que lhe serviria de norte, referência, indicando-lhe como se portar e desvalorizando sua história interacional. O material garantiria condições de equidade definindo o substancial e o negligenciável no ritual e no cerimonial (GOFFMAN, 1974 apudHAROCHE, 2005).
Esse desnivelamento constitutivo é aprofundado por mecanismos discursivos tal como veremos e é marcado por formas de cooptação que parecem pouco oferecer como lugar singular ao sujeito. Por conta disso, há interface entre as questões da deferência e as do conceito de sujeito em AD, de forma a questionarmos: por que e como este material didático enuncia, a partir de FDs, que assujeitam os sujeitos-alunos da EJA a uma conduta de deferência? Por que ensinar-lhes “X” desta maneira e não de outra? Por que ensinar a dar ‘bom dia’ no início de um seminário e ensinar uma conduta considerada “de honestidade” no cotidiano? Quais saberes têm ou poderiam ter sobre estes aspectos do cotidiano e que são desconsiderados como possível não saber do sujeito-EJA? Estas questões, por ora reflexivas, são aqui apresentadas porque emergiram na etapa da organização do material para a formação de um corpus de análise.
Aspectos metodológicos - formação do corpus
Ao tomarmos contato com o material didático voltado à EJA, estranhamos que em algumas seções havia comentários e orientações sobre como se portar em uma discussão, sobre qual a resposta adequada para uma determinada situação de debate ou de abordagem do outro na interação social do cotidiano.
Esse rumo da investigação tem precedentes em nosso contato com o livro “É bom aprender - edição renovada” da editora FTD, publicado em 2013, em três volumes, a saber: volume 1 - alfabetização; volume 2 e volume 3 - anos iniciais do Ensino Fundamental (SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013a,b,c).
Como o primeiro e desafiador momento de interpretação para um analista (pesquisador) é o de arranjo das questões iniciais, partimos para a organização de um corpus linguístico-discursivo que deu conta de indicar em um primeiro momento uma razoável repetição e regularidade dessas orientações presentes no material didático acima mencionado. O momento de descrever já é interpretativo e já coloca as questões iniciais em algum rumo de análise.
À medida que essa pré-análise indicava marcas de deferência, por meio de questões sobre honestidade (ver, por exemplo, recorte 2) passamos a buscar outros livros que também trouxessem algum tipo de orientação aos alunos sobre a postura, o comportamento, o ritual ou o papel a ser cumprido em dada situação.
Foi por meio dessa busca que chegamos ao livro “Alfabetização de jovens e adultos: livro do alfabetizando” da escola Multimeios (ANTUNES et al., 2008), produzido com a cooperação técnica do Instituto Paulo Freire (que não traz orientações de comportamentos de deferência) e à coleção (direcionada do 6º. ao 9º. ano) intitulada “EJA moderna: educação de jovens e adultos”, obra produzida em caráter coletivo pela editora moderna. Nesta última, chamou-nos a atenção a presença sintomática (no sentido psicanalítico de uma repetição) de orientações sobre a postura dos educandos em debates, seminários, enfim, atividades de expressão oral.
Esta pista inicial chamou a atenção porque procura enquadrar estes sujeitos em uma espécie de script, de manual de conduta ritualístico, que parece herdeiro da profusão na educação nacional de “manuais de instrução” como pesquisamos anteriormente (PEREIRA, 2016, 2019). A detecção de que este enquadre “instrucional” se espraia em outras materialidades discursivas foi uma das veredas para a realização da presente pesquisa, pesquisa esta filiada a um projeto mais amplo. Outra vertente a ser explorada e que não fez parte da presente pesquisa seria a repercussão da valorização de modos de se expressar oralmente e pela norma culta da Língua Portuguesa nos parâmetros curriculares nacionais.
Este movimento de estranhamento, seleção de material e exercício eletivo de fragmentos se enquadra no que denominamos de formação do corpus, a saber:
conjunto de sequências discursivas, estruturado segundo um plano definido em relação a um certo estado das condições de produção do discurso. A constituição de um corpus discursivo é, de fato, uma operação que consiste em realizar, por meio de um dispositivo material de uma certa forma (isto é, estruturado conforme um certo plano), hipóteses emitidas na definição dos objetivos de uma pesquisa (COURTINE, 2014, p.54).
No caso da análise discursiva filiada ao paradigma indiciário, várias questões podem se desdobrar das questões iniciais. No transcorrer desta pesquisa, os objetivos específicos acima apontados se somaram aos seguintes: Quais os propósitos de um guia (orientação) de conduta para educandos da EJA? Quais discursos (efeitos de sentido, de interpretação) estão em jogo? Quais expectativas e fundamentadas em quais aspectos da alteridade (da presença do Outro) marcam estes comportamentos de deferência (HAROCHE, 2005)?
Em se tratando da seleção do material analisado, fazemos notar que um contato inicial com o material do Programa “Todos pela Alfabetização” (TOPA) da Bahia (PEREIRA; TFOUNI, 2020) nos levou por proximidade de localização do acervo aos livros para a EJA, organizados por Aoki (2013) e publicados pela Editora Moderna. Deste contato, destacaram-se os volumes destinados ao 6º. e ao 7º anos por conterem seções em que se notam comportamentos de deferência. Em seguida, buscou-se em outras editoras possíveis semelhanças.
Para sintetizar e visualizar o material pesquisado segue o quadro 1:
Nota-se que nem todo o material consultado apresentou seções e/ou itens ou temas destinados à apresentação de comportamentos de deferência. É o caso, por exemplo, da Editora Escola Multimeios, do material do TOPA da Bahia (PEREIRA; TFOUNI, 2020) e dos volumes destinados ao 6º. e 7º. anos, organizados por Aoki (2013) da Editora Moderna. Por conta disso, estes dois últimos aparecem em nosso quadro e nas referências bibliográficas, porém sem análise. Os outros materiais consultados e que, todavia, não trazem marcas de deferência aparecem nas referências bibliográficas como material consultado. Destacamos que esta pesquisa não é uma avaliação do uso deste material, tampouco um estudo sobre livros didáticos utilizados nesta modalidade de ensino, como vemos em Fávero (2007).
Para isto, o material de análise (aqui denominado corpus, em uma perspectiva linguístico-discursiva) não se reduz ao valor de material (instrumento) de ensino. De modo deslocado deste sentido dominante é entendido como parte da materialidade do sentido; como parte do corpo sócio-político da questão, tal que indicia, conforme a noção de pista ou indício em Ginzburg (1989) retomada em Tfouni e Pereira (2018) questões de natureza discursiva.
Estas questões derivaram de nosso objetivo geral, aqui retomado: investigar de que forma esse material didático, ao estabelecer parâmetros de conduta, engendra aos sujeitos desta modalidade de ensino processos de identificação.
ANÁLISE DO CORPUS
Para apresentar estas análises organizamos o corpus em recortes (R1, R2, R3), no sentido dado por Orlandi (1984, p. 14), de uma “unidade discursiva” em que se enquadram fragmentos que estabelecem relações complexas entre texto e discurso, fragmentos estes que entendemos como possíveis de serem entendidos como o que Courtine (2014) denominou sequências discursivas (SDs). Esta unidade resulta de uma leitura (interpretação) possível, e não única, em torno de uma questão ou de um “objeto” do discurso. Esta interpretação indicou o nome que demos a cada recorte, a partir da análise de deslizamentos de sentido ali notados.
Em R1, destaca-se a apresentação oral e há menções repetidas ao sujeito-EJA acerca da “posição do olhar” e “apresentação corporal” em uma reportagem. Há, portanto, uma família semântica em torno da distribuição de sentido sobre corpo (contato visual, olhar, posição das mãos). Em R2, há um relevante processo de substituição dos significantes “como você conseguiu” por “atitudes” e por “honestidade”, ao longo dos três volumes da coleção. Por isso, reunimos esta repetição e nomeamos o recorte com “como você conseguiu: atitudes e honestidade”, uma vez que nesta metodologia o analista nomeia os recortes, bem como pode nomear formações ideológicas e discursivas. Em R3, por fim, denominamos “respeito e opinião” e temos uma distribuição de sentidos sobre “modos de falar”.
Faz-se necessário explicar que se trata de um universo de disputa de sentidos em torno destes significantes destacados entre aspas. Mais adiante, veremos de maneira mais particular as formações ideológicas e discursivas e as posições-sujeito em questão nesta disputa, a partir da remissão ao interdiscurso, ou seja, a uma rede de sentidos sobre: posição do olhar; apresentação corporal; atitudes e honestidade; respeito e opinião.
Em seguida, demos sequência à apresentação de fragmentos recortados a partir de cada um desses universos de disputa de sentido. Em cada recorte, damos destaque às SDs (COURTINE, 2014) analisadas.
R1 - posicionamento do olhar e apresentação corporal em uma reportagem
SD1 - Com a ajuda do professor, organizem uma apresentação das reportagens para a classe. Um dos integrantes do grupo fará a voz do repórter e os outros, a dos entrevistados. Como na televisão, apresentem livro, editora, imagens que ilustrem a reportagem. Essa atividade tem como objetivo o desenvolvimento das capacidades de expressão oral. Para isso, também é preciso planejamento. Com o texto da reportagem em mãos, pensem em modos interessantes e criativos de apresentá-la. Se houver recursos audiovisuais disponíveis, usem-nos para incrementar a apresentação. Dicas 1ª.) Lembrem-se de usar uma entonação e um volume de voz adequados, a postura corporal e as expressões faciais. 2º.) Falem o texto em um ritmo adequado, de modo que ele fique claro para os ouvintes. 3º.) Mantenham contato visual com a plateia, olhando para o público enquanto falam.” (Retirado da Seção “falar em público”, EJA moderna, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013a, p. 32)
Vemos neste R1, uma distribuição de sentidos sobre o corpo em uma reportagem. Sabemos que o corpo, muitas vezes lido à perspectiva foucaultiana, é questão cara à educação escolar. Nesta primeira SD1, há normas prescritas a serem seguidas, por meio de “dicas”, cujo destaque passa pela “entonação”, “ritmo” e “contato visual”. A dica mobiliza a evidência de um caminho, um direcionamento que indicaria o caminho “correto”, mas ainda por ser revelado; mobiliza a expressão coloquial “vou te dar uma dica”, que alguém indica o caminho correto e não sabido e que, sabido de forma sutil, certamente não será descartado. Faz, por isso, apelo a um sujeito assujeitado a um anonimato, não valorizado em sua singularidade.
Isto porque o material didático demanda ora um corpo vazio de sentido, pois pode ser preenchido por “qualquer região do sentido” (expressão nossa); ora um corpo saturado, ou seja, pleno de sentidos, como se isso fosse possível. O material, portanto, resvala e mira em um sujeito “ideal” e o indicia pelo disfarce das contradições e das falhas dos rituais de preenchimento deste corpo preconizado pelo ritual de formações discursivas que delimitam modos de expressão do corpo social e discursivo. Em suma, nisto reside uma saturação que interdita uma tomada de posição do sujeito.
Além disso, chama a atenção a marcação do uso da descrição de um recurso atribuído à televisão como marcador de alteridade; trata-se da voz do Outro no discurso (AUTHIER-REVUZ, 1998) para o interlocutor, no caso, o sujeito-EJA: “Como na televisão, apresentem livro, editora, imagens que ilustrem a reportagem”.
Como se nota, o objetivo seria o aprimoramento de habilidades de expressão oral por meio de uma atividade de reportagem. Todavia, por que se filiar ao modelo televisivo? Uma reportagem pode ser apresentada sob o modelo de um documentário, de um debate universitário, de uma reportagem investigativa, em formato de aula. O valor dado ao jornal televisivo captura o sujeito comum, o senso comum, fabrica um lugar de obviedade para uma posição que se acredita já ocupada pelo sujeito-EJA; sem contar que na televisão muitas vezes não são mostrados “livro, imagens, editora que ilustrem a reportagem”. Portanto, a posição discursiva de quem prepara o material desconhece, no sentido althusseriano da interpelação ideológica (PÊCHEUX, 1993), a realidade do público-alvo (interlocutor), o que pode explicar em parte o fosso entre a práxis do sujeito no cotidiano e seu apagamento de si nas produções textuais (orais e/ou escritas).
Afinal, por que se espelhar na televisão? Por que esta alteridade se é sabido que a televisão brasileira não tem aberto espaço de debate e polêmica, em suas reportagens? É sabido também que programas televisivos veiculam o discurso da escrita, aquele que alimenta a ilusão de começo, meio e fim, que lhe confere força e poder a partir da ilusão de materialidade do pensamento e completude do dizer (TFOUNI, 2010). Mesmo veiculado na forma oral, o discurso da escrita é o que predomina na rádio e na televisão (GALLO, 1994).
Por conta da identificação com o sujeito do sendo comum, vemos nesta SD a evidência do sentido que fabrica um lugar de sujeito reprodutor de paráfrases. Do ponto de vista discursivo, a paráfrase não é vista como “desvio, erro”, mas como parte da constituição dos discursos. Portanto, não se trata de uma identificação “incorreta”, mas que se sustenta por meio de um apagamento do sujeito. Não se trata de supor que a posição-sujeito “aluno da EJA” já saiba ou deva saber se portar em um debate, ao mesmo tempo em que também não se destitui com esta análise o valor da Educação Escolar em apresentar diversas formas de debate.
Todavia, o indício que nos chama a atenção converge para um campo de expectativas, leituras e antecipações da posição que este sujeito possa vir a ocupar que o possa fazer crer que o formato de reportagem garantiria o debate. Estudos na perspectiva discursiva vem mostrando que um formato (ou tipologia) de aparente polêmica, como no caso de um debate, expressão radiofônica ou debate televisivo não garante a polissemia, ou seja, a disputa pelos sentidos. A este respeito ver Orlandi (1987), Gallo (1994) e Pacífico (2002).
A preocupação com “modos interessantes e criativos”, por sua vez, indica um refúgio em uma expressão clichê e simplista, pois há a expectativa de que este sujeito não estaria apto ou não daria conta de lidar com polêmica e debate. Tratar-se-ia de um sujeito anódino reprodutor de modelos midiáticos. É o que vemos também na SD2 em que a descrição de uma cena de debate lembra as arenas ou palcos muitas vezes utilizados em debates de eleições. Chama a atenção, o destaque sintomático (no sentido psicanalítico de repetição) para aspectos corporais como garantidores da credibilidade do debate e o apagamento de questões ligadas à qualidade da argumentação, recursos estilísticos e de remissão à alteridade para sustentar um argumento, por exemplo. Vejamos:
SD2 - Os debatedores geralmente são posicionados de modo que todos possam se ver e ser vistos pela plateia, ou em grupos de acordo com o posicionamento dos integrantes. O moderador se coloca estrategicamente para interagir com os participantes ou mesmo ficar entre eles [...] Munido de argumentos, é preciso atentar a aspectos relacionados à fala em público, que ajudam a dar credibilidade ao que está sendo dito e a prender a atenção da plateia. A entonação é um desses aspectos. Ela pode ser usada para destacar ou enfatizar alguns trechos do discurso, a fim de, entre outros objetivos, reforçar uma opinião ou palavra importante [...] Ao falar em público, não se pode esquecer do contato visual com a plateia. De vez em quando, é possível ler as anotações sobre o assunto, mas é preciso em seguida olhar para os outros debatedores e a plateia. O contato visual ajuda a transmitir confiança ao público e a verificar se a exposição está agradando ou não. (Retirado das Seção “características do debate regrado” e “aspectos importantes para participação no debate regrado”, EJA moderna, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013a, p. 42)
Como na SD1, há repetição para enfatizar o “contato visual”, que nos leva a destacar qual é o valor de repetir o que parece óbvio, uma vez que estamos em uma sociedade organizada pela disciplina do olhar (FOUCAULT, 2004). Na SD2, há também descritores de programas televisivos de auditório que dão caráter espetacular ao debate. Indícios como “possam se ver e ser vistos”, “se coloca estrategicamente”, “ficar entre eles” sinalizam uma descrição sintomática da postura corporal com valor corretivo seguindo uma Pedagogia da instrução pelo olhar, tal como pode ser entendido a partir de Foucault (2004).
Além disso, há uma formulação do tipo “X porque Y”. Em suma, parece óbvio em “a entonação é um desses aspectos” que retoma “ajudam a dar credibilidade ao que está sendo dito”. Chamaremos de “X” “há credibilidade” e “há entonação” de “Y”, de modo que: “Há credibilidade porque há entonação”. Essa ênfase no tom de voz, em aspectos corporais também deixa de lado os aspectos relevantes de um debate: argumentação, conteúdo, fonte pesquisada, etc.
Na SD3, por exemplo, há como dica falar “bom dia ou boa tarde”, o que nos leva a questionar a real necessidade deste aviso a um aluno adulto. Em AD, a dimensão do “real das coisas a saber” (termo de PÊCHEUX, 1997), e do lugar que pode vir a ser ocupado pelo sujeito nunca é previsível nem neutro; o que parece necessário vem de uma evidência no plano das formações imaginárias que cria expectativas para fabricar um sujeito que, calado, reproduzirá sentidos aparentemente literais e óbvios de modo e que ratificará sentidos dominantes sem se dar conta, o que dificulta sua possibilidade de mudança de posição, a ver:
SD3 - Dicas. 1º. Façam uma saudação ao entrevistado para dar início à entrevista. Digam bom dia ou boa tarde e agradeçam pela disponibilidade da pessoa em aceitar o convite. 2º. Procurem fazer a pergunta ao entrevistado com naturalidade. Para isso, treinem com os colegas da outra dupla da seguinte maneira: leiam a pergunta em silêncio e, em seguida, olhem para o colega e façam-lhe a pergunta em voz alta, sem olhar o papel. 3º. Prestem atenção ao tom de voz, procurando falar com clareza e em volume adequado à situação. 4º. Durante o ensaio, procurem criar novas perguntas para treinar o improviso, caso apareça durante a entrevista um novo assunto, sobre o qual vocês podem ou não ter pensado com antecedência (Retirado da Seção “para falar em público”, EJA moderna, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013b, p. 48)
Há nesta SD3 um aspecto ritualístico de natureza mecânica, pois há recomendação de treinamento em “treinem com os colegas” que recorta no interdiscurso uma rede de sentido já estabelecida, por meio de dizeres pré-construídos (PÊCHEUX, 1993) pelo Comportamentalismo skinneriano em Psicologia. A par o fato de que o momento de uma exposição ou debate possa trazer imprevistos nunca totalmente calculados pelos participantes, estão em jogo também posições; posições espelhadas em um processo de identificação sobre outras posições que estes sujeitos ocupam ou possam vir a ocupar. Sendo assim, a abertura aparente do sentido em “com naturalidade” apaga qualquer possibilidade de espontaneidade, pois inclusive o improviso é treinado. Afinal, como é possível naturalidade em um treino? Esta contradição captura um sujeito já enquadrado em um script de programa de treinamento, programa este que conta com passos (“dicas”). Há debate desde que “regrado” (como aparece no nome da seção destacada pelo livro didático).
Quer dizer também que a leitura do sujeito-professor repercute em um material que tal como apresentamos ignora uma conjuntura sócio-histórica complexa, ao atropelar percurso de vida, interlocução e ainda impor um padrão de conduta. Vale lembrar aqui que consideramos que esta leitura é atravessada pelo discurso pedagógico que, conforme Orlandi (1987), apaga o referente e conduz o “objeto” do enunciado por um agente de controle que, na disputa pelo sentido, assegura a não reversibilidade de posições. O objeto da disputa tende a se esvair, parecer ausente para assim se fabricar consenso. Uma das formas de se comprovar essa marca de posição é notar a ausência ou o modo pelo qual são feitas referências ao Outro no material didático; o que também não impediria de notarmos um revés desta marca com o material em uso, a depender de uma posição-professor que apresente diferentes referentes e instale um discurso de tipo polêmico.
A recomendação em “façam-lhe a pergunta em voz alta sem olhar no papel” não tem a relevância que aparenta para uma entrevista. Jornalistas famosos olham no papel, rabiscam, reformulam, lêem.
A repetição da recomendação de falar “bom dia ou boa tarde”, tal como aparece na SD3, junto da descrição (“entonação, os gestos das mãos, a postura corporal”) nos indica um “padrão ideal”, lugar de um modelo ideal sujeito a poucos deslizes e a ser alcançado por um sujeito-EJA cujo trânsito pelos arquivos (no sentido de um universo semântico organizado sobre uma dada questão, cf. PECHEUX, 2014) fica de lado. A ênfase na postura corporal toma o lugar do acesso aos arquivos, do trânsito pelas redes de sentidos que fundamentam os argumentos de um debate.
Além disso, a própria menção à televisão como voz de autoridade é questionável. Afinal, figuras famosas da política nacional e mundial em telejornais, ou fora deles, sempre carregam em suas aparições aflições espontâneas sobre onde pôr as mãos. Aqueles que parecem fora desta fabricação não escapam da rígida fabricação de uma contenção corporal que também não garante acesso à preparação para um debate.
Em síntese, temos em jogo uma formação discursiva (PÊCHEUX, 1993), ou seja, um lugar que delimita o que pode/deve ser dito, e que evidencia por uma formação ideológica que é “natural” que o sujeito-EJA não sabe se portar em um debate. Uma decorrência disso, da filiação a esta FD que “sabe se portar em um debate” (expressão nossa) ocorreria desde que o sujeito se submeta à disciplina corporal do texto do material didático para EJA em questão, o que também pode remeter à memória discursiva de manuais de educação infantil (PEREIRA, 2016) e manuais de leitura (PEREIRA, 2019).
R2 - como você conseguiu: atitude e honestidade
Para este recorte, destacamos que a primeira sequência de pistas que nos chamou a atenção já foi destacada: o uso do significante “conseguiu” (seção “trocando ideias” da coleção É bom aprender) e que, na sequência a nosso ver, pode ser encadeada ao valor do significante “atitude” (na seção “produção oral” da mesma coleção) e “honestidade” (da seção “o valor da honestidade”). A miríade de sentidos em torno de “conseguir algo”, que se subdivide em tomar uma “atitude” e agir com “honestidade” e que se organiza desta forma linearizada ao longo do material nos chama a atenção para o que Pêcheux (1993) discutiu em termos de fio do discurso, ou seja, uma linearidade, uma aparência de encadeamento linear, com efeito de retroação que somente se apresentaria desta maneira.
Este efeito de linearidade e de organização assim voltada para uma retomada de significantes que se filiariam a um mesmo universo semântico indica um efeito ideológico e também disfarça as falhas, os equívocos, os pontos de deriva a que está submetido um fragmento de linguagem. Este efeito de linearidade subentendido, que indiciamos e por meio do qual alinhamos “como você conseguiu” da SD4, “atitude” (SD5) e “honestidade” (SD6), indica um lugar do sujeito filiado à formação ideológica do “know how”, do “saber como fazer”.
Ocorre ainda que há vários sentidos possíveis para “honestidade” e “atitude” e que apagam um sujeito plural, uma multiplicidade de possibilidades sobre o que seria ter a “atitude” e “honestidade” que se espera e que se acredita possa não ter. Por isso, há prescrições baseadas em cenas do cotidiano pelas quais, como se nota nas SDs abaixo, o sujeito-EJA aprenderia um comportamento de deferência. Vejamos:
SD4 - Como você conseguiu o emprego que tem hoje ou algum que tenha tido? Como as pessoas fazem quando querem procurar ou oferecer emprego? Os textos a seguir são chamados Anúncios classificados. Leia-os5. (seção “trocando ideias”, coleção É bom aprender, vol. 1, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013a, p. 68)
SD5 - Analise seriamente cada uma das situações apresentadas a seguir e escolha uma das opções. A) você é convidado a visitar uma ilha e encontra conchas e pedras belíssimas. Sua atitude é: • não levar nada embora para preservar o local, a fim de que outras pessoas tenham o mesmo direito de conhecer as belezas naturais que aí estão. • pegar várias conchas e pedras para levar de lembrança. Afinal, ainda sobrou bastante para quem quiser conhecer o lugar. (seção “produção oral”, coleção É bom aprender, vol. 2, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013b, p. 18)
SD6 - Você entra no ônibus e somente os assentos preferenciais estão livres. Você se senta em um deles, mesmo sabendo que são reservados para idosos, gestantes e pessoas com deficiência ou permanece em pé? Você precisa pagar um produto em um supermercado, mas a fila do caixa está enorme. Percebe, no entanto, que tem um amigo mais à frente. Você vai até ele e “fura” a fila ou aguarda sua vez entrando no último lugar? Cite exemplos de situações do dia a dia em que as pessoas não agem com honestidade • Comente com os colegas alguma experiência sua, ou de pessoas próximas a você, em que tenha ocorrido um ato de honestidade (capítulo “o valor da honestidade”, coleção É bom aprender, vol. 3, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013c, p. 74)
SD7 - “Diversas pessoas dependem do transporte coletivo em nosso país. Você utiliza esse tipo de transporte? Em quais situações? Que tipo de atitudes devemos ter ao utilizar o transporte público? Você respeita as filas e os lugares preferenciais? Converse com os colegas a respeito destas questões. (capítulo “o valor da honestidade”, coleção É bom aprender, vol. 3, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013c, p. 127).
Tomar uma atitude para se conseguir algo (como um emprego, na SD4) ou como usar algo público (transporte, na SD6) mobiliza e desloca a rede de sentidos corrupção, malandragem e jeitinho (BARBOSA, 1992) no cenário brasileiro. Para nos aprofundarmos nestas questões, apresentamos estas quatro SDs em um continuum, que inclusive respeita a ordem pela qual as cenas são apresentadas ao longo da coleção e por avanço da paginação. Notamos inclusive que na página 127 (SD7) é feita uma pergunta (“que tipo de atitude devemos tomar ao utilizar o transporte público?”) e que retoma cenas das SDs anteriores em destaque. Vemos se tratar de um sentido de aprendizado cumulativo, por inculcação, na linha do que Paulo Freire (1983) denominou de educação bancária.
A tentativa de resgatar, tal como uma listagem mnemônica, todas as atitudes a serem tomadas “corretamente” depende de um regate do que foi apresentado nesta mesma seção, páginas e volumes anteriores (SDs 4,5,6). Apaga-se um sujeito aberto à polissemia e ao debate e fabrica-se um sujeito-EJA da prescrição. Apagam-se condições pertinentes ao debate. Afinal, poder-se-ia perguntar: como respeitar uma regra de cordialidade, tanto no sentido de um rito de deferência (HAROCHE, 2005), quanto de respeito ao interesse coletivo (BARBOSA, 1992) se, mesmo sendo uma regra conhecida, pode-se esbarrar, por exemplo, em números insuficientes de vaga em um coletivo, com superlotação, em condições precárias de mobilidade urbana? O sujeito, sabedor dessas regras, pode tentar preservar o interesse coletivo e não ter condições de possibilidade em fazê-lo. Mesmo assim, esta situação não é contemplada pelo material didático.
Na SD4 a ênfase na repetição de “como” tal qual um operador do seguimento de normas prescritas indica um sujeito do “know how”. As SDs na sequência indicam que este “saber como”, “como conseguir” e “como fazer” somente obtêm sucesso caso respeitem algumas atitudes e normas de honestidade. Há uma expectativa de que não o sabem e de que não respeitariam.
É o que vemos na SD5, que parece apresentar com cuidado a noção de espaço público. Mas por que achar que os alunos não saberiam? A pergunta sob uma forma implícita mobiliza um “não saber”. Poderíamos perguntar: por que informar que não é adequado levar as conchas? A forma dicotômica pela qual a questão é apresentada impõe uma noção de sujeito racional, centrado, sujeito do déficit. Constrói-se uma vigilância sobre o individual e se distancia a possibilidade de um debate mais amplo e aprofundado sobre “degradação ambiental”, por exemplo. A possibilidade, portanto, de indicar ao sujeito uma possibilidade de mudança de leitura (interpretação) da responsabilidade individual e do compromisso coletivo para um alcance mais amplo da questão é fechada.
A atividade, por exemplo, não distingue um crime ambiental de um valor dado a esta vigilância, cujo foco é o indivíduo. Soma-se a isso o fato de que essas questões devem ser realizadas após a leitura e o debate do texto “uma visão sobre o turismo responsável” a ser lido pelo professor. A SD6, por sua vez, foi retirada de uma seção do livro que é apresentada logo após uma reportagem sobre casal de moradores de rua, que encontraram dinheiro na rua e devolveram, e das fábulas “o lenhador honesto” (p. 82) e “a raposa e a abelha” (p.86).
Esta SD6 está povoada de um imaginário sobre conhecimento e uso de regras que remete à linha tênue entre corrupção, malandragem e jeitinho (BARBOSA, 1992). Nota-se, no imaginário, uma expectativa de sucesso a ser conquistado, a partir de uma moralização exemplar. Outra leitura possível indica que a moralidade no exemplo a ser seguido indica um sujeito fabricado à maneira da autoajuda que, conforme Chiaretti (2013, p. 170), está moldado na onda contemporânea do empreendedorismo e de um sucesso individual, “que não se coloca questões, não relativiza ou estranha imperativos exteriores”; é o que ocorre em ambas estas SDs 5 e 6. Além disso, as orientações “cite exemplos de situações do dia a dia em que as pessoas não agem com honestidade” e “comente com os colegas alguma experiência sua” remetem ao sentido de honestidade imposto pelo texto e não possibilita uma abertura à polêmica.
Há um debate a ser realizado entre corrupção, malandragem e jeitinho. Ignorá-lo seria supor um sujeito ideal. Nem todo ato de malandragem, de improviso, é necessariamente desonesto, pois pode decorrer de uma estratégia de sobrevivência e não ter caráter individualista, como explica Barbosa (1992). Portanto, nesta SD6 vemos um efeito de paráfrase. É anunciado um evento exemplar em que supostamente haveria somente desonestidade (por oposição a uma definição idealizada de honestidade) e em seguida o pedido de exemplo conduz o sujeito a um efeito de interpretação parafrástico. A demanda por uma “experiência sua” ratifica o que Chiaretti (2013) defende como um modelo vindo da autoajuda, em que o sujeito fica refém de “imperativos exteriores” (expressão da autora).
A pergunta “que tipo de atitudes devemos ter ao utilizar o transporte público?” abriria o debate, mas já se espera que a reposta seja específica. Deste modo, temos um apagamento da referência; já está designado um lugar, é para o sujeito repetir. Trata-se também da abordagem de um dilema sobre a aproximação ou distanciamento do outro, uma questão de familiaridade ou de estranhamento, portanto, de alteridade. É o que também aparece em:
R3- respeito e opinião
SD8 - “Você está visitando uma região do nosso país onde as pessoas falam de um jeito muito diferente do seu. Ao falar com os habitantes locais, você: Procura falar do mesmo modo que elas, por uma questão de respeito e também para se entrosar melhor com elas. .Respeita o modo como as pessoas falam, pois cada região tem seu jeito próprio de usar a linguagem, mas continua falando do seu próprio jeito.
Converse com seus colegas e o professor sobre cada opção escolhida por você. Explique sua escolha e ouça as explicações dadas pelos colegas. Durante a discussão, fique atento às seguintes dicas: • Respeite as opiniões de todos, mesmo que sejam diferentes das suas e você não concorde com elas. Afinal, todos têm o direito de ter a própria opinião. • Procure fazer silêncio enquanto os colegas estiverem expondo seus pontos de vista. (seção “produção oral”, coleção É bom aprender, vol. 2, SOUZA; PASSOS; PASSOS, 2013b, p. 19)
Mais uma vez há “dicas” e novamente estranhamos o aviso “procure fazer silêncio”, pois sustenta a expectativa de que o sujeito-aluno EJA tem que ser lembrado de respeitar o turno da fala (“enquanto os colegas estiverem expondo seus pontos de vista”). Junto dessa formação imaginária, dessa expectativa sobre este lugar do sujeito, há um tópico que trata especificamente desse distanciamento, dessa referência de alteridade do Outro, a saber: a distância entre falar do “mesmo modo que elas” e “do seu próprio jeito”.
Há uma abertura do sentido neste ponto, afinal o que seria falar do “mesmo modo que elas”, seria imitar o sotaque, a entonação, a postura corporal e algumas palavras? Que outro é este representado nestas “dicas”? O outro a ser imitado, copiado pelo valor da alteridade? Por que não foram feitas questões sobre como seria a reação do sujeito-EJA caso alguém o imite?
Há nesta formação imaginária a expectativa de que o sujeito-EJA imite alguém a ser admirado, cuja posição esteja desnivelada em relação à chegada em território estrangeiro no qual não saberia se portar. Cria-se um lugar para um sujeito-EJA, que não saberia fazer turismo.
Para explicar de que modo a deferência adquire valor simbólico e se direciona a um interlocutor, Goffman (2011) primeiro discute que a fachada é lugar resultante de contingências históricas e de reivindicação de um lugar em meio aos rituais de interação. O desempenho de um padrão (linha) em uma interação face a face ou na expectativa desta ocorrer no futuro implica fachada, uma atribuição de valores sociais aprovados de que resulta camuflar alguns destes atributos (aprumo) por uma negociação para salvar a fachada. Impelido a seguir um código, o sujeito pode depreciar o outro ou tentar “neutralizar incidentes” (GOFFMAN, 2011, p.22) nesta busca de preservação da fachada, cooperando com o outro e tornando-se preso, “carcereiro” (expressão do autor) de si mesmo. Sendo assim, sua conduta pode ser guiada por comportamentos “apropriados”, seja porque deve cumprir regras de conduta como obrigação seja porque deve cumpri-las de forma indireta conforme um padrão moral para atender expectativas, tal como estes “apropriados” em um “turismo responsável”.
Concorde Courtine (2014), a abordagem de Goffman (2011), embora seja relevante, tem sua limitação porque pode ser aprofundada quando tratamos das marcas linguístico-discursivas que indicam evidências dessas posições atravessadas pelo inconsciente e pela ideologia. Em outras palavras, em grande medida, o sujeito-EJA não se dá conta deste seguimento de uma linha padrão no processo de identificação.
Essas formulações, novamente apresentadas à maneira de passos prescritos, podem ser analisadas conforme a filiação a uma Formação Discursiva (FD) que delimita que somente o sujeito-EJA vê o outro como estranho e procura imitá-lo ou se distanciar à espera que o outro, neste imaginário, não o faria. E o sujeito-EJA imitado? Há a marcação de um desnível sobre quem é referência para o sujeito. Esta FD que delimita “quem imita quem” se filia à Formação Ideológica que faz acreditar que o sujeito-EJA sempre chega a algum lugar como estranho, em território desconhecido e estrangeiro. Por que não poderia haver um lugar em que o sujeito-EJA é imitado por alguém do lugar de quem este sujeito se aproxima? Há um desconhecimento ideológico em jogo, em que o “não saber” sobre o outro ratifica a posição dominante.
Por conta dessas orientações feitas ao sujeito-EJA, há incidência de um “fora”, um “exterior” ao sujeito de que depende a construção de um processo de identificação. É uma exterioridade não causal, mas conduzida por um lugar instituído e naturalizado que, conforme Vóvio (2008) pode ser agravado pelo modo dos agentes envolvidos no processo educativo se apropriarem de objetos simbólicos considerados legítimos por meio destas manobras discursivas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, apresentamos nossa pesquisa sobre alguns caminhos pelos quais materiais didáticos utilizados na EJA distribuem sentidos identificados com comportamentos de deferência. Caminhos estes rígidos e que pressupõem um desconhecimento do sujeito-EJA tal que lhe é assinalada uma posição assujeitada a um saber do Outro e cujo modelo ideal ratifica aspectos como a reprodução mecânica, a cópia e o prescritivismo de condutas de forma simplificada. Desta forma, o sujeito-EJA enuncia, a partir de um assujeitamento ideológico, a comportamentos de deferência cuja expectativa é de um “não saber” que o material espera por parte desta posição-sujeito.
O material faz crer, portanto, tratar-se de uma falha no percurso e/ou na formação deste educando. Ocorre que a atribuição de sentido para esta “falha” tem várias dimensões. Ao mascarar a complexidade desta suposta falha e recortar sentidos, o material didático desconsidera uma possibilidade de escuta do sujeito no seu cotidiano; sendo assim, lacunas são preenchidas de modo a não parecer estranho considerar ensinar “postura corporal, honestidade e respeito” e com isso naturalizar uma posição filiada a este “não saber”.
Decorrem disso, processos de identificação de uma posição sujeito do discurso com pouca possibilidade e manobra de movimentação nesta materialidade e em sua rede de sentidos, uma vez que a orientação destes comportamentos de deferência atende a uma expectativa de imobilidade sociopolítica e também de apagamento das dimensões éticas e políticas da formação do sujeito-EJA. Estas últimas dimensões não são abordadas de forma crítica e que propicie possibilidade de tomada de posição, uma vez que o sujeito apagado pelo enquadre das prescrições, seja por uma região vazia ou plena de sentidos saturados, demanda um tipo de participação de cidadania razoavelmente limitada por estas prescrições.