INTRODUÇÃO
Há um certo fascínio pelo tema do professor reflexivo/pesquisador, alçado ao status de tendência em grande parte do mundo (CORREA MOLINA, THOMAS, 2013), desde os anos 80, a partir dos escritos de Donald Schön. Nas últimas décadas, na área da Educação (e também da Educação Física brasileira), em parte movidos pela promessa de protagonismo do fazer docente e de inversão das hierarquias consolidadas quanto à produção do conhecimento (TARDIF, 2010), multiplicaram-se pesquisas sobre saber prático, história de vida do professor, saberes do trabalho, ciclo de vida profissional e autobiografias (NÓVOA, 2007; TARDIF, 2010; GAUTHIER, 2006).
Resgatando as principais ideias em torno da noção de profissional reflexivo e seu contexto intelectual - de crítica ao positivismo e à racionalidade, de um retorno do ator nas ciências sociais e de emergência da noção de saberes de ação e competências, na esteira do cognitivismo -, Tardif e Moscovo (2018) apontam para o emprego limitado do conceito de reflexão nas ciências da Educação em geral, não apenas pela predominância da referência à Schön, mas pela visão instrumentalizada da sua produção (direcionada a uma eficacidade do ensino) 1 e pela falta de delimitação quando ao objeto/conteúdo da reflexão, pois a noção de “prática profissional” abarca inúmeras possibilidades.
Os autores criticam essa captura e redução do conceito de reflexão na área da Educação, uma vez que o viés autorreflexivo é parte de uma discussão de escopo maior, que diz sobre o espírito de um tempo. Apontam assim para outros empregos desse conceito, negligenciados pelo campo, e a urgência de seu resgate, a saber, “como experiência social, como reconhecimento e como crítica das relações de dominação” (TARDIF, MOSCOVO, 2018, p. 408), os quais ultrapassam o uso recorrente, que reduz a autorreflexão à (meta)competência.
Nesta pesquisa, toma-se uma dessas tradições de pensamento secundarizada enquanto ponto de partida para (auto)refletir a prática docente: a Teoria Crítica da Sociedade - e alguns dos seus desdobramentos na área da Educação e da Educação Física. De acordo com Pucci (2021a, p. 73), “o poder educativo do pensamento autorreflexivo” é um dos eixos teóricos (possíveis) da obra de Theodor Adorno, apresentando elementos para pensar a questão educacional não apenas nos textos ou conferências pedagógicas, mas sobretudo naqueles filosóficos, atravessando toda a sua obra.
É a partir desse referencial que se pretende somar esforços ao tema do professor reflexivo/pesquisador, tanto pelo deslocamento do emprego usual da nomenclatura, quanto pelo de seu objeto: ao invés do interesse em procedimentos que tornariam a docência eficiente, toma-se aqui como guia de análise o fracasso da Educação - este já foi apontado nos idos dos anos 60, por Adorno (2003), e permanece atual, a saber: apesar de todo o avanço científico e tecnológico, a humanidade ainda não foi capaz de alcançar a emancipação, não sendo o holocausto uma excrecência histórica, mas a expressão extrema da barbárie que germina na vida cotidiana (PUCCI, 2021b, para um exemplo atual). Trata-se de colocar no centro da reflexão, portanto, um princípio ético-político, em oposição a certo fetiche pela eficiência, que corrobora a imagem idealizada do professor.
Sendo coerente com a tradição frankfurtiana, não se irá construir novos ideais e princípios para a Educação, mas sim questionar sobre a precária efetivação destes, propondo uma reflexão sobre as contradições entre os ideais Iluministas que pretensamente deveriam guiar a prática pedagógica e os vetores pouco racionais que de forma corrente são os que conduzem as aulas - e de modo muito particular as de Educação Física. Não é incomum (ALBINO et al., 2008) que nelas se observem divergentes motivações, as quais nem sempre se coadunam com as expectativas “críticas” e bem intencionadas do professor, o qual se depara (não de modo esporádico) no corpo a corpo das aulas, com violência explícita e suas variações: questões de gênero, preconceito/exclusão, relações de poder em suas formas sutis e/ou brutas.
De acordo com Pucci (2021a, p. 72), “o pensamento adorniano desconfia das teorias afirmativas, pois elas não dão conta de expressar o potencial libertário enraizado nas contradições da sociedade; antes, esterilizam esse potencial, moldando-o em uma forma estanque, individualizada de interpretação”. Assim, nesse processo de pesquisa/elaboração da experiência, buscou-se conhecimento: enquanto algo que se dá “num feixe de preconceitos, intuições, inervações, auto-correções, antecipações e exageros, em suma, na experiência compactada, fundada, mas de algum modo transparente em todos os pontos” (ADORNO, 2008, p.76). Este indica ser um caminho possível para escapar da justificativa e encobrimento das contradições - apostando, ao contrário, no potencial de abertura em direção a elementos até então desconhecidos de um fenômeno, rompendo com a fachada aceita, a visão comum sobre ele.2
Objetivando ser coerente com essa concepção, o foco desta investigação foram os conflitos entre ser e “dever ser”, enfrentados na esfera individual da docência por esta professora-pesquisadora, enquanto iniciante na profissão (uma aprendiz em meio a outras professoras experientes) e em processo de socialização no Colégio de Aplicação da Unviersidade Federal de Santa Catarina, o que ocorreu entre os anos de 2019 e 2020. Esta experiência singular atravessa e é atravessada não apenas pela história de muitos outros “aprendizes”, mas a da própria área da Educação Física, que apresenta dilema semelhante, ainda que em outra dimensão: a da busca de legitimidade no campo educacional, no que as tentativas de compreender as divergências entre a produção teórica progressista na Educação Física e o que (não) se efetiva no exercício da docência é uma constante (BRACHT, 2000; SILVA, BRACHT, 2012). A discussão, contudo, é mais ampla, como se verá nas páginas a seguir, envolvendo o mal-estar na cultura, o lugar que nela ocupa o corpo e os limites da razão - e consequentemente as expectativas da pedagogia que se reconhece como crítica.
São apresentados a seguir alguns pressupostos teóricos-metodológicos para uma autorreflexão sobre a prática pedagógica e a conjuntura escolar, a partir, especialmente, dos escritos de Theodor Adorno (2003; 2008). No próximo capítulo, há uma breve descrição do contexto da experiência pedagógica e discorre-se sobre como a violência e a indiferença são inerentes ao processo civilizador de que a Educação faz parte, e como o enfrentamento das contradições entre ser e “deve ser” pode ser um antídoto à reprodução da barbárie. O capítulo seguinte, nomeado “Autorreflexões”, é composto de pequenos relatos, escritos a partir de registros e memórias, enquanto exercício de elaboração a respeito do meu fazer docente e as dores que lhe são inerentes, e como uma análise crítica sobre um “dever ser professora” latente no cotidiano escolar. Por fim, há algumas considerações sobre o processo de escrita e retoma-se os principais pontos da análise, no que a pouca racionalidade imperante no espaço escolar é chave. Encerra-se com breves apontamentos sobre autorreflexão docente, em especial a urgência de que um princípio ético-político se sobreponha a objetivos meramente instrumentais/performáticos.
ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UMA AUTORREFLEXÃO SOBRE O FAZER DOCENTE
Se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras [...] então Auschwitz não teria sido possível. (Theodor Adorno, Educação após Auschwitz)
A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. (Theodor Adorno, Tabus acerca do magistério)
Este escrito é resultado de um exercício de autoanálise do meu percurso de aprendizagem quanto a um “dever ser professora”, no contexto de iniciação à docência e de socialização em novo local de trabalho, após aprovação em concurso público no Colégio de Aplicação da Unviersidade Federal de Santa Catarina, atuando como professora de Educação Física de turmas de quartos e quintos anos do Ensino Fundamental3. Esta inserção profissional se deu em 2019, após formação inicial e continuada dedicada à carreira acadêmica, sendo membro de grupo de pesquisa sobre a Teoria Crítica da Sociedade4 e tendo algumas esparsas experiências como docente na Educação Infantil e Básica, no Ensino Superior e na Pós-Graduação.
Por entender que é no cenário da escola que se efetiva minha condição de professora (profissional-mulher), a análise centrou-se no que fui aprendendo no cotidiano escolar, particularmente nas formas não institucionalizadas de instrução, nos saberes e fazeres docentes que se desenhavam diariamente de forma explícita ou implícita: no que era recomendado, valorizado, visto, criticado.
Na condição de aprendiz e estranha/estrangeira (a escola a mim e eu à escola), com maior ou menor consciência, exerceu-se um jogo duplo de incorporar o métier, mas também de recusar a integração completa, mantendo certo distanciamento àquela realidade - algo que a trajetória como pesquisadora favoreceu. A integração ao coletivo e a reprodução de determinada performance, por vezes decorreu do medo, devido à combinação de uma realidade extremamente difícil: muitos estudantes que se expressavam de forma violenta5; a minha pouca experiência com o ensino na educação básica, o que levava (com um misto de alívio e perturbação) à repetição do já conhecido; o convívio com colegas de trabalho que não se cansavam de me colocar à prova, o que me fazia evitar a exposição das dificuldades; e a própria situação de estar em estágio probatório. Tal desafio levou a um esgarçamento dos procedimentos pedagógicos, revelando assim aspectos limiares que, em outras situações, quiçá, seriam menos evidentes.
Para esta pesquisa, toma-se como principal referência metodológica a obra Minima Moralia, trabalho em que Adorno (2008) dedica-se a uma forma de investigação singular: “uma via que, na contramão das tarefas impostas pela divisão do trabalho intelectual, redirecione o afã científico para aquilo que ele desconsidera de antemão e despreza por princípio: a experiência individual” (MUSSE, 2011, p.170). Tal empreendimento se deve não apenas a uma oposição à ciência positivista, mas também à compreensão do frankfurtiano de que, no mundo administrado, só a pesquisa da configuração alienada da vida, “das potências objetivas que determinam até no mais recôndito a existência individual, permite conhecer a verdade sobre a vida tal como é dada” (ADORNO, 2008, p.9). Assim, nos Minima Moralia, em uma (aparente) mera descrição de fatos pessoais, Adorno dedica-se a expor como a barbárie multiplica-se em todos os espectros da vida, configurando a própria subjetividade.
Na esteira dessa obra, a autorreflexão que aqui se apresenta objetiva transcender a minha experiência individual de aprendiz, atentando para o que esta diz justamente sobre a experiência contemporânea em geral, visando apreender como a escola, em seu cotidiano, contribui para a (re)produção da subjetividade burguesa - com especial atenção à sua função socializadora (GRUSCHKA, 2014) e às marcas deixadas naqueles (e por aqueles) que ensinam. Para tanto, fez-se uso de anotações e memórias dos anos 2019 e 20206 para então investigar de forma minuciosa os saberes e os fazeres meus e daquelas com quem eu aprendia, considerando elementos da conjuntura escolar e educacional em suas interconexões com aspectos sociais e culturais.
Para ser fiel à realidade em sua complexidade e ao pensamento adorniano, optou-se por sustentar o olhar nas contradições entre o que é predicado/idealizado e o que realmente se efetiva nas práticas escolares. Trata-se de olhar para as feridas abertas do cotidiano escolar: o lugar das lacunas, falhas, inadequações, inconsistências, uma vez que elas colocam potencialmente em questão o que é mais caro à Educação, seus postulados/princípios educacionais e, consequentemente, a tradição Iluminista (Aufklärung), e suas aspirações de liberdade, tanto pela superação do obscurantismo quanto pela das mazelas sociais. Não por acaso e nem de forma incomum, os fracassos são recorrentemente escamoteados sob justificativas diversas, como erros de execução, resultado de um dia ruim ou, ainda, devido a problemas de infraestrutura. Como revela Gruschka (2014, p.176), “o otimismo de que o esforço de lecionar pudesse levar ao sucesso não representa ainda uma idealização, ele é, de modo geral, a condição para começar a aula”. Esse otimismo, contudo, na medida em que dificulta a (auto)crítica, contribui de forma particular com a perpetuação da barbárie, como se verá nas páginas a seguir.
Para desvendar essa trama, optou-se (dentre outras construções argumentativas que seriam possíveis) por explicitar o embate prototípico da humanidade que atravessa a função social do professor e a divergência (e sua negação) entre o predicado e realizado: no imaginário coletivo a respeito do professor, ele é quem “ensina” os princípios éticos e morais sobre os quais se erige a civilização, dando-lhes corpo/materialidade (em si mesmo e no outro, educando). Na incoerência inexorável entre o ideal e o humano, ele personifica todo o mal-estar relacionado ao superego cultural, já descrito por Freud (1997, p.97): “o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa”, devido a um equilíbrio sempre precário entre a satisfação das vontades imediatas do “eu” versus os princípios éticos e morais.
Não por acaso, Horkheimer e Adorno (1985, p.61) afirmaram que a “história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia. Quem pratica a renúncia dá mais de sua vida do que lhe é restituído, mais do que a vida que ele defende.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.61). O resultado são inúmeros ressentimentos contra a própria comunidade/ sociedade e seus ideais, mas ambiguamente também a tudo que ainda lembre (em si mesmo e no outro) aquela condição de Natureza, forçadamente sufocada/recalcada a partir de um longo processo civilizador (ELIAS, 1994) - o qual se atualiza, parcialmente, a cada geração.
Essa condição tem desdobramentos específicos sobre a profissão, uma vez que à educação é delegada grande parte dessa função, algo amarga de civilizar, em que diversos mecanismos de disciplinamento, já desde a pequena infância (RICHTER; VAZ, 2010), são empregados para apagar sinais de incivilidade: as inabilidades, descontroles, sexualidade, fraquezas, deformidades, misturas diversas, preguiça, etc. A maior parte desse processo se dará por privações corporais, pois é sempre no corpo que descontrole e adestramento se materializam7. Na forja do humano, o corpo é um “outro” (a Natureza em nós) a ser dominado pelo espírito, a partir de uma cisão (real e fictícia) em sujeito e objeto:
É só a cultura que conhece o corpo como coisa que se pode possuir; pois foi só nela que ele se distinguiu do espírito, quintessência do poder e do comando, como objeto, coisa morta, ‘corpus’. Com o auto-rebaixamento (sic) do homem ao corpus, a natureza se vinga do fato de que o homem a rebaixou a um objeto de dominação, de matéria bruta. A compulsão à crueldade e à destruição tem origem no recalcamento orgânico da proximidade ao corpo (...)(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.217).
Alguns dos desdobramentos dessa cisão é o disciplinamento do corpo, mas também a oposição entre trabalho intelectual e braçal, teoria e prática, além da hierarquização das relações entre Universidade e Educação Básica, e o lugar que na escola ocupam as disciplinas “intelectuais” e as corporais/estéticas, como Artes e Educação Física (VAZ, 2002). Outro desdobramento, como se lê acima, é a compulsão à crueldade e à destruição. Assim, parte do rancor contra o professor decorre da lembrança do medo e da dor sofrida nesse processo de disciplinamento, pois ele é visto como aquele que castiga, mesmo quando esta já parece ser uma forma ultrapassada de educar - e este é um dos mais importantes tabus acerca do magistério. De acordo com Adorno (2003, p.106)
A sociedade permanece baseada na força física, conseguindo impor suas determinações quando é necessário somente mediante a violência física, por mais remota que seja esta possibilidade na pretensa vida normal. Da mesma maneira as disposições da chamada integração civilizatória que, conforma acepção geral, deveriam ser providenciadas pela educação, podem ser realizadas nas condições vigentes ainda hoje apenas com o suporte do potencial da violência física. Esta violência é delegada pela sociedade e ao mesmo tempo é negada nos delegados.
Além dos mecanismos de disciplinamento corporal, persiste uma ameaça implícita de castigo, por estratagemas diversos, baseados nessa possiblidade remota. Todos esses perniciosos artifícios devem ser objeto de (auto)investigação, em que se pese que o próprio saber é uma vantagem recorrentemente utilizada de forma injusta, como metáfora da força física (ADORNO, 2003).
Todo esse processo de privações externas ocupa um lugar na história da humanidade, em seu processo civilizador, na medida em que vai se transformando em violência interna, em autocontrole (ELIAS, 1994). É eficiente nas formas de sociablidade inventadas ao longo dos tempos; sua contrapartida, porém, é que a severidade/dureza surge como meio privilegiado de relação consigo e com o outro. A indiferença à dor (física ou simbólica) transparece em variadas situações cotidianas (GONÇALVES, TURELLI, VAZ, 2012; CASTRO, ZUIN, 2021, por exemplo) e no ressentimento contra o descontrole/excesso/fraqueza alheia, que então se desdobra no direcionamento da agressividade contra os ditos inadequados. A base da história da humanidade seria portanto ambivalente, ao acobertar uma outra, subterrânea, não evidente, que “consiste no destino dos instintos e paixões humanas recalcados e desfigurados pela civilização. [Segundo os autores da Escola de Frankfurt,] O fascismo atual, onde o que estava oculto aparece à luz do dia, revela também a história manifesta em sua conexão com esse lado noturno” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.215-6). A história está carregada de situações de genocídios, no que as ditas explicações/justificativas podem ser tanto científicas quanto morais, aplicadas em defesa da vida biológica de um povo ou de seu bem-estar social.8
Os limites das pedagogias críticas provêm, em grande medida, da desconsideração do destino das paixões humanas na cultura. Se é evidente que não se trata de negar a importância da civilização, é urgente o enfrentamento da sua maior contradição (partilhada com a Educação): há nela uma tendência inerentemente repressora, que coloca em xeque a dicotomia racionalidade/esclarecimento versus violência (ou do Iluminismo como oposição ao obscurantismo). Dito representante dos princípios éticos e morais, o professor é impedido de ver a violência que exerce cotidianamente, e este, como já dito, é um dos grandes tabus referentes à sua profissão.
O não reconhecimento dessa contradição e suas variantes no cotidiano escolar se deve a um descolamento do princípio de realidade que assola o professor, observável em “sua atitude de substituir a realidade pelo mundo ilusório intramuros, pelo microcosmo da escola, que é isolado em maior ou menor medida da sociedade dos adultos” (ADORNO, 2003, p.109). Há um traço infantil intrínseco a esse estado alheio à realidade e que, como será possível observar nas autorreflexões a seguir, apresenta muitas nuances pela condição específica do feminino na cultura9.
Paradoxalmente, como desvendou Gruschka (2014), esse descolamento do princípio de realidade reverterá em uma adaptação ao princípio de realidade mesmo, já que tudo é mantido como é: idealizações da prática que bloqueiam o acesso ao concreto, ao humano em suas paixões. Nesse sentido, a indiferença é perpetuada pela escola como frieza10 (indireta, dissimulada), seja na recusa e encobrimento das contradições dos educadores para si mesmos, seja no fato de que os estudantes as reconhecem (melhor do que os professores) nas injustiças e violência contra eles cometidas, nas incoerências das práticas pedagógicas e no que deles espera o mundo (e a própria escola): competição ao invés de solidariedade, submissão e repressão ao invés de emancipação, qualificação e seleção visando ao sucesso, relações calcadas no princípio da troca, instrumentalização dos afetos, predominância dos interesses individuais, entre outras. De acordo com Gruschka (2014, p.155):
Alunos que durante seu tempo de escola não conseguem encontrar o acesso ao que é para ser aprendido tornam-se indiferentes em sua relação com a escolarização. Sobretudo, aprendem que o importante é lidar de forma instrumental com o conhecimento escolar, como se concretiza duplamente nos exames da escola: pelo modo de fazer o exame e pela demonstração de conteúdo.
Por fim, vale uma citação de Adorno (2003, p. 113), para quem
A solução, se posso dizer assim, pode provir apenas de uma mudança no comportamento dos professores. Eles não devem sufocar suas reações afetivas, para acabar revelando-as em forma racionalizada, mas deveriam conceder essas reações afetivas a si próprio e aos outros, desarmando desta forma os alunos. Provavelmente um professor que diz: ‘sim, eu sou injusto, eu sou uma pessoa como vocês, a quem algo agrada e algo desagrada’ será mais convincente do que um outro apoiado ideologicamente na justiça, mas que acaba inevitavelmente cometendo injustiças reprimidas.
O que se pretendeu nessa breve explanação foi indicar, à luz do pensamento de Theodor Adorno, como um traço de violência é inerente ao processo civilizador, e como a indiferença, em seus contornos específicos na profissão do professor e no contexto escolar, é um dos eixos em torno do qual a barbárie orbita e segue se perpetuando na sociedade contemporânea. Tal composição argumentativa é uma tecitura entre outras possíveis, pois, como explica Pucci (2021a, p.71), o
pensamento adorniano nos dá a possibilidade de levantar uma série de eixos teóricos, coordenados entre si, na tentativa de se projetar uma configuração objetiva da educação. Esses eixos apresentam as diversas facetas do objeto em análise, se compõem, se contrapõem, nenhum é mais importante que o outro, e permitem a companhia de outros eixos que, por ventura, o processo de interpretação vier a descobrir em sua configuração primeira. Portanto, essa maneira de se fazer educação é aberta, fragmentária, processual.
Os temas que atravessaram este capítulo teórico-metodológico, portanto, têm seu lugar na medida em que estão intimamente relacionados ao que emergiu do material empírico, seguindo as necessidades impostas pelo objeto pesquisado/experienciado, a saber: domínio do corpo e introversão do sacrifício, condição infantil/apartamento da realidade e o femininio, dialética entre racionalidade e irracionalidade.
AUTORREFLEXÕES
Apresentam-se aqui algumas breves autorreflexões/relatos desse período de iniciação à docência, sendo que as três primeiras dão o tom da escola e das relações ali existentes, com aspectos relacionados ao que se convencionou na literatura como “socialização profissional”, enquanto as demais, sem seguir uma sequência cronológica, abarcam aspectos relacionados à minha prática pedagógica. Todos os pequenos textos foram escritos a partir de anotações, e especialmente das memórias que acusam algum espanto frente às contradições vividas e observadas, mas também de lembranças que carregam um mal-estar persistente relacionado ao ambiente e ao exercício da docência. Trata-se de um trabalho de elaboração da experiência, no que o ato de escrever amplia a capacidade de compressão (cognitiva e afetiva) do vivido, no que esta ainda possui de obscuro e doloroso, mas que aposta na revelação das contradições como recurso de (auto)esclarecimento.
Não por acaso O que significa elaborar o passado foi tema de reflexão de Adorno (2003). Em texto de título homônimo ao do frankfurtiano, Jeanne Marie Gagnebin propõe responder a esta pergunta a partir dos escritos de Paul Ricouer, mas também dos de Freud e Nietzsche, aproximando “o trabalho de elaboração, que permite sair da repetição, e o trabalho de luto, que possibilita uma nova ancoragem na vida” (GAGNEBIN, 2006, p. 105). Trata-se de “criar coragem [...] de enfrentar a doença, o passado, para esclarecê-los; para, afinal, compreendê-los, mesmo que tal compreensão não passe por uma cadeia de argumentos lógicos e deduções meramente racionais” (GAGNEBIN, 2006, p. 104).
Se no texto Educação após Auschwitz (ADORNO, 2003), pode-se ler o conhecido imperativo, dirigido à Educação, de que seus esforços se direcionem para que Auschwitz não se repita (nem nada que lhe seja semelhante), entende-se que a elaboração possui uma dimensão ético-política, ao permitir, por meio da consciência, a saída do campo do ressentimento, da repetição compulsiva, da indiferença - e isso tanto na esfera coletiva, quanto na individual. “Ao retomar um objeto, uma situação, tenta-se ir além do repetitivo, do que está dado, no resgate da história viva, nele sedimentada em forma de uma ‘segunda natureza’. Esse ato de retomar é intrinsecamente educativo, forma a sensibilidade, a percepção e o pensamento” (PUCCI, 2021a, p. 74) e pode operar como um antídoto contra a perpetuação da violência na vida cotidiana.
Antes de iniciar os relatos propriamente ditos, vale explicitar que estes se afastam de um formato convencional, compondo categorias de análise em diálogo com a literatura, abarcando os temas sobre os quais se discorreu no capítulo teórico-metodológico, contudo sem se resumirem a meros exemplares da teoria. Pretende-se assim uma aproximação - apesar de todos os desafios e limitações - com a metodologia empregada no texto dos Minima Moralia, que tem como propósito específico
a tentativa de expor momentos da comum filosofia a partir da experiência subjectiva, [o que] implica que os fragmentos de nenhum modo subsistam antes da filosofia de que eles próprios são um fragmento. Eis o que a índole solta e desprendida da forma, a renúncia à contextura teórica explícita, pretende expressar (ADORNO, 2008, p. 13)
Afetos
A entrada de outra personagem dentro de uma cena certamente altera lugares sociais e afetivos já estabelecidos, podendo a concorrência pelo carinho das crianças ser feroz no espaço escolar, com o uso de muitos estratagemas: o discurso de valorização da infância é um deles, de modo que o protagonismo dado às crianças retorna para quem discursa a seu favor, como num espelho refletindo uma bela imagem. Há frequente barganha pelas expressões de afeto dos estudantes, enquanto troféus e medalhas a serem exibidas. Ainda na corrida de ascensão no ranking dos afetos, o fato de as crianças gostarem das atividades propostas faz angariar reconhecimento, tornando-se a professora uma refém - das crianças e dos “colegas” de trabalho que usam os gostos e desgosto infantis, não como meio de reflexão, mas sim como recurso de depreciação/disputa. Parece que é preciso se manter sempre em concorrência por um espaço nos corações infantis, como se isso fosse sinal de bom exercício da profissão. Com certa surpresa, observei que esse jogo de afetos é também comum na Universidade, especialmente com aqueles professores que protegem seus estagiários de qualquer experiência de fracasso em sua iniciação docente. Colocam-se na posição de heróis. Quiçá seja esse mesmo senso de auto importância o que constrangedoramente se invoca em algumas reuniões com familiares, em que mulheres adultas aguardam esmeradamente pelo reconhecimento das famílias.
Meninas superpoderosas
Logo no primeiro ano de trabalho na escola, uma colega comentou, no decorrer de uma palestra, que não gostava de quem lia um texto para o público, mas sim daqueles que discursavam, sem suporte algum. Fiquei impressionada com o alto grau de exigência e com a importância dada à performance. Ela trabalha nos Anos Iniciais, assim como eu, e algo que me chamou muito a atenção naquele curto tempo de docência foi o quanto as professoras que trabalham com crianças pequenas são rigorosas. É certo que tenho pouco conhecimento da atuação dos colegas em outros segmentos, com adolescentes, mas das observações que fiz, muitos deles têm um jeito “descolado” na fala com os estudantes, o que dá a impressão (talvez falsa) de que são menos duros e de que as relações são mais suaves e horizontais - talvez por ausência de outra alternativa. Quanto aos que se ocupam da fase inicial da educação, quem observa a superfície (as palavras empregadas e a forma com que são proferidas) talvez não perceba o quão violentas são as relações. Palavras como “queridos” e “queridas” são usadas igualmente (sem distinções no tom de voz) para crianças, pais e colegas de trabalho. Apesar do cansaço que me causava aquele tom infantilizante (que nem mesmo às crianças cabe bem), logo mimetizei-o quanto aos pequenos, como se aquela performance fosse uma senha de entrada naquele novo universo. Parei de “ser querida”, contudo, quando percebi que usava aquele “tom” também como forma de disfarçar raiva ou impaciência, revelando-se então para mim as entranhas do seu uso: podem ser um recurso de dominação do outro, uma forma de subjugar; algo que o estranhamento quando ouvia tais palavras direcionadas a adultos já me fazia suspeitar. Uma aparente docilidade, eis a forma privilegiada da agressividade nesse lugar de majoritária presença de mulheres. Logo percebi que sorrisos, sutilezas, tons de voz suaves e especialmente a infantilização do outro, muitas vezes disfarçada como zelo - uma oportunidade conveniente para apontar as fissuras (tão mal toleradas) do trabalho de outra pessoa -, são formas de escamotear a ferocidade das relações de poder nesse espaço tão “femininio”. Raramente as disputas ocorrem de forma aberta e se assim por ventura acontecem, muitas não hesitam em recorrer à fragilidade (o choro) como recurso bélico. A rivalidade nesse ambiente altamente competitivo tem muitas facetas: ostentação de bens materiais ou de parceiros amorosos, as alianças entre pares para boicote do lugar de fala de outrem, imposição de vontades pessoais por meio de argumentos legalistas ou ditos pedagógicos, e principalmente a exaltação do esforço e do sofrimento - há uma verdadeira batalha sobre quem se esforça mais ou quem é mais devota à sua profissão-missão. O auto sacrifício é um meio perverso de exercício de poder: uma espécie de passaporte que autoriza o controle alheio, seja pela comparação e exigência de alguma forma de compensação, seja tacitamente pela culpa que tenta promover e pelo constante estado de dívida em que coloca os outros, que na comparação aparecem como preguiçosos ou incapazes. A impressão de que professoras são meninas esmeradas habitando um corpo adulto é recorrente. Meninas sedentas por reconhecimento, bastante confundido com o disputado afeto das crianças. Não por acaso também se encontra aí uma visão estrábica da infância: se é por contraste que a força se exerce, é pertinente e necessária a construção do outro como vulnerável, mas também como inocente/possuidor de uma capacidade singular. A heroína encontra muitos lugares de figuração no exercício na docência: protege e domina. As narrativas em torno da infância retroalimentam esse lugar - social e psíquico - de cuidado e (auto)controle dedicado às mulheres: a violência sob uma frágil máscara da civilidade/doçura/infantilidade.
Fortificações
Emergências são recorrentes na escola e, na ausência de um bolsista de acessibilidade, prestei auxílio. Adentrei o espaço com a expectativa (bastante elevada) de aprender com alguém mais experiente. Tão logo ela começou, lembrei do comentário de uma colega em comum, de que aquela professora achava que os alunos eram cientistas do mais alto escalão de pesquisas internacionais. Fiquei pensando se a aula era para mim ou para eles, tão pequenos. Minha perplexidade foi recebida como hostilidade, mas revelou uma dificuldade que também é minha: ser capaz de expressar um conhecimento em diferentes linguagens, para além de um conceito repetido de forma maquinal e vazia. Minha reação um tanto espontânea foi um problema. No espaço escolar, as pedagogas são soberanas. Eu era uma invasora: do local, do processo criativo e das dificuldades dela. Reconheço que a resistência de grande parte dos professores ao ensino remoto e à exposição no espaço virtual não foi algo que eu poderia considerar imprevisto. Nessa modalidade de ensino, o momento mais crítico que presenciei foi a feroz reação à interferência dos professores universitários, que, naquele momento, se propunham a nos dar determinado suporte no desafio de ensino não presencial. Assisti então, atônita, à construção de duas profundas trincheiras. De um lado, os “formadores”, que, ao invés de nos instruir sobre os recursos tecnológicos a nosso dispor, tentavam adentrar o espaço do planejamento, enquanto sucumbíamos ao desespero pelo início eminente das aulas. Do outro lado, a resistência das professoras à construção de um planejamento que fosse coletivo, aberto, e o cuidado de expor as propostas de trabalho de forma distanciada o suficiente para que não se pudesse observar qualquer falha ou fissura, blindando-se assim a qualquer correção. As quatro ininterruptas horas de reunião online se tornaram um campo de batalha, com uma insistência um pouco enfeitiçada pelo cumprimento de um protocolo de pesquisa versus uma perseverante insubordinação a servir como “objeto de investigação” - tentativa de se opor à dominação, o que, contudo, se deixava trair no esmerado e repetido ato de ressaltar (ou provar) a qualidade dos seus trabalhos enquanto professoras da Educação Básica, no que se revela que o lugar de submissão já estava dado. Do otimismo inicial de um planejamento conjunto, restou um misto de impotência, constrangimento, raiva pelo tempo desperdiçado e desespero por ainda não saber o mínimo para dar aulas diante de uma tela. Mas pude compreender melhor o distanciamento adotado pelos colegas/professores que lecionam as disciplinas que não compõem a Educação Geral, e igualmente destas professoras em relação à Universidade. Trata-se de um campo de disputas e de uma consolidada hierarquia.
Conteúdos de Educação Física
O primeiro ano foi interminável. Como meio encontrado para consolar, e quiçá demonstrar capacidade de autossuperação (elemento tão valorizado na profissão), os colegas me diziam que geralmente é assim no começo. O fato de ter tomado posse um mês depois do início das aulas e de as crianças estarem sem uma referência para aquela disciplina servia de álibi, mas eu tinha consciência de que o problema tinha raízes bem mais profundas, o que aumentava meu mal-estar. Deparei-me com crianças autoritárias e competitivas e, para piorar um quadro já difícil, a pouca experiência com aquela faixa etária e meu alto grau de exigência para corresponder às expectativas enquanto nova professora concursada levaram a uma antipatia generalizada por parte dos alunos, devido às incongruências constantes entre o real e o almejado, mas especialmente à dureza com que lidei com essa dissonância. Na época, recebi como conselho fazer o que as crianças pediam e então gerenciar o conteúdo a partir desse ponto. Não o fiz. Naquele contexto específico, ceder à vontade imediata das crianças me parecia um ato de abandono do grupo à tirania dos mais fortes: aqueles que se impunham sobre os demais pela ameaça e concretização da agressão física, pela dominância nos momentos de fala, pelo constrangimento e pela provocação, levando à perda da integridade física e psicológica do outro, mais fraco e/ou vulnerável emocionalmente. Quiçá não tenha cedido devido a essas convicções “teóricas”, que se misturam com princípios éticos, ou talvez por uma teimosia “bem fundamentada pedagogicamente”, mas provavelmente pela dificuldade de fazer de outra forma que não a prevista. Porém, muitas vezes, tive vontade de ceder sem nenhum disfarce “pedagógico”, sempre que levada - de forma tão recorrente - a um estado de esgotamento. A mediação naquele contexto era mera caricatura. Admitir isso, contudo, parecia temerário, e eu sucumbia frente à sufocante necessidade de mostrar competência e de ensinar os “conteúdos” - algo que só tornava as coisas mais difíceis e dolorosas.
Jogos
Naquele ano em que debutei na escola, me dediquei a perpetuar nas turmas de quinto ano o legado de uma professora já aposentada, que desenvolveu um projeto pedagógico baseado em Vygotsky, de ressignificação de jogos. A confiança no projeto, já realizado e também validado na instituição e na academia, era inversamente proporcional ao conhecimento que tinha sobre seus pormenores, aqueles preciosos, referentes à operacionalização da proposta no cotidiano. Eu tinha um texto em minhas mãos e a troca de ideia com outra professora que em certo momento acompanhou o projeto. Estava, assim, a tatear, de forma deslumbrada, aquele novo conteúdo. A proposta de ensino foi desenvolvida ao longo de quatro meses e tinha como etapas: a divisão da turma em cinco grupos; a construção de um jogo por cada qual; um teste do jogo; sua apresentação; seguida então da prática por toda a turma; e uma posterior reconstrução coletiva de cada um dos jogos. Após a vivência de todos os jogos construídos e reconstruídos, cada turma elegeu um deles (entre os cinco feitos) e o ensinou às outras duas turmas de quinto ano da escola. Eles aprenderam as regras dos jogos das outras turmas, praticaram, e os disputaram na Olimpíada daquele ano. Quem lê o roteiro sequencial e estruturado talvez nem de perto imagine o caos que foi a obstinada “missão” de concretizá-lo. Um elemento fundamental existia de forma apenas insipiente naquele contexto: empatia, respeito mútuo e capacidade de adaptação. A versão original do projeto, desenvolvido pela professora idealizadora e já aposentada, previa iniciar com a exposição de um jogo já pronto para cada grupo, para então depois reinventá-lo. A decisão por deixar que cada grupo criasse seu próprio jogo (ao invés do recebimento de um pronto) ocorreu em meio à insistente oposição dos estudantes a todas as atividades propostas anteriormente. Minha vingança foi apresentada como princípio pedagógico: “haverá uma maior aceitação daquilo que eles mesmos construírem”. O primeiro obstáculo foi a dificuldade de criação de jogos a partir de possibilidades tão infinitas quanto a imaginação; o segundo obstáculo foi o fato de ter de ser feito em grupo, e isso tanto pela questão do suporte simultâneo necessário para todas as equipes, quanto pelas divergências de opiniões: que eram muitas e vividas de forma apaixonada - como acontece com grande parte das pessoas, independentemente da idade, mas que são tão difíceis de aceitar nas crianças. Fatídico, porém, foi a não observância desses traços tão humanos (as paixões) e o formato da aula, desconhecido para os estudantes enquanto educação física. Eu mesma me questionava se estaria dando aula se não direcionava as ações o tempo todo, vide a exigência mais ou menos velada de que o professor esteja em posição de dominância. Por fim, todos se aperfeiçoaram nos jogos humanos de perversidade e incivilidade, por meio de relações de disputa/poder.
Compulsão
Apesar de o processo de criação dos jogos com os estudantes dos quintos anos ter sido extremamente turbulento, os momentos de maior tensão foram outros, como na hora da prática, em que as divergências dentro do próprio grupo acerca das regras criadas persistiam, ou então estas eram tão detalhadas que acabavam esquecidas por eles mesmo - algo compreensível, diga-se aqui. A exigência de colaboração e de criação estava acima do possível para aqueles grupos, com tantos conflitos internos. Diante da menor dificuldade, o jogo/grupo era mal dito, gerando conflitos que podiam se arrastar recreio adentro e mesmo pelas aulas seguintes de educação física e/ou de outras disciplinas. Era notável que os estudantes competiam quanto a quem colaboraria menos com os colegas e/ou com a proposta de ensino. Além do boicote, as aulas eram ainda um “campo aberto” para a agressão física e verbal, e também para ações sutis e maldosas visando ao desequilíbrio emocional e à exclusão, por meio de perseguição e ridicularização do outro. Enfeitiçados estavam eles, pela vontade de vencer a qualquer custo, impenetráveis a qualquer argumento, diante das paixões que os atravessava. Trapaceavam mesmo nos jogos que eles haviam criado. Não havia zelo pelo outro e não importava se destruíssem as condições de jogo. Na maior parte dos casos, a aula se resumia a dirimir os conflitos. Enfeitiçada, assim, estava também eu mesma, insistindo em desbravar os caminhos sinuosos dos padrões emocionais de cada criança (em busca de algo que pudesse acalmar dores que muito superficialmente eu reconhecia) e em seguir com aquela proposta “(de)formativa”. As reflexões eram com frequência esquecidas no retorno ao grande grupo, como se todos fatidicamente sucumbissem ao sedutor estado de conflito permanente, numa espécie de animalidade automatizada.
Fé na razão
Na tentativa de escapar daquele circuito enfeitiçado, do caos absoluto, repetia-o à minha maneira, “civilizada”: seguia tentando o “recurso” do esclarecimento. Havia certa esperança vã de que conseguiria dissipar os conflitos falando sobre eles. Na maior parte do tempo, eu duvidava, mas seguia no lugar de fala, como se ele fosse um refúgio, um meio desesperado para dar sentido àquilo. Dentro da sala, eu me resguardava do descontrole emocional que inevitavelmente era levada assim que os corpos e as paixões infantis eram liberados no espaço externo. Correntemente, encerrava a aula em sala, sempre que alguma dificuldade inviabilizava a efetivação do jogo (ou seja: recorrentemente), seguindo dessa forma os “princípios pedagógicos”, ao mesmo tempo em que tentava apaziguar certas emoções, enquanto dava vazão a outras, como a vontade de vingança/punição. Em sala, os estudantes eram então instigados a identificar, por meio de perguntas, quais seriam os aspectos a aperfeiçoar no jogo. Eu insistia em forçar uma colaboração (por meio da culpa) que não iria acontecer. Impotente, eu repetia: “é importante ver o que há de positivo no que foi criado pelos colegas” ou “se eu não vejo algo bom no outro, isso é uma limitação minha ou do outro?”. Por vezes, fazia uso de outros recursos, não menos obscuros: instigava-os a refletir a partir da experiência de estar no lugar do outro (no caso eu, professora, e os demais grupos) nos momentos em que deveriam falar sobre alguma situação ocorrida, à frente da turma. O choque de estarem em um lugar de fala e de não serem ouvidos saltava aos olhos, causando neles raiva ou estarrecimento. Ao mesmo tempo em que me esmerava em garantir que pudessem se expressar, também os instigava a reconhecer o mal-estar diante da impotência, e os encorajava a não fazer o mesmo com os colegas. Da minha parte, usava uma pseudo-racionalidade para atender a princípios irracionais que também me atravessavam.
Performances
Como primeira atividade no ensino não presencial, propus a gravação de um vídeo com circuito realizado com obstáculos criados no interior da casa de cada um. Uma aluna, muito tímida em aparecer diante da tela, me perguntou se o circuito poderia ser para o seu hamster de estimação. Fiquei alguns segundos sem palavras. Acho que porque a sugestão dela me pareceu perspicaz, ao identificar um propósito oculto e nefasto da atividade: uma redução à condição de animal em adestramento/ treinamento. Enquanto ia recebendo os vídeos das crianças, fui percebendo (não sem desconforto) as diferenças em suas casas e o quanto aquilo tudo era invasivo. Para aqueles que já adentravam a adolescência, percebi que a dimensão de exposição se evidenciava mais fortemente não quanto ao espaço doméstico, mas aos seus corpos em movimento. Melhor que fosse o hamster ou o irmão pequeno a aparecer diante da tela. Quanto àqueles que estavam alheios a essas questões, geralmente se identificavam como youtubers. Em meio a esses dilemas, fiquei pensando se a alegria que senti ao vê-los foi por saudade ou por relembrar minha própria infância, pois adorava criar obstáculos desafiadores pela casa, ou ainda se era uma satisfação pela atividade realizada, como uma marca de força e auto importância enquanto professora, ou mesmo alívio por conseguir realizar algo no ensino semipresencial. Talvez tudo isso. Mas, no fim, achei aquilo violento, tanto pelos que se viam forçados à exposição, quanto pelos que o faziam se identificando enquanto “estrelas da internet” - uma violência de tipo subjetiva, mas sutil e perniciosa como a outra. Encontrei alento ao ver rostinhos felizes nos vídeos quando distraídos com as ações, mas tinha um (contra) choque sempre que me deparava com um olhar assustado, que fugia do encontro com a câmera, ou ainda quando algum familiar (fora do meu alcance de visão) estimulava algo ameaçadoramente à repetição mecânica do circuito. Nesses momentos, a ludicidade pretendia era carregada com o peso da saúde e da repetição mecânica, assim como a filmagem era muitas vezes apenas a prova da realização da tarefa.
Avaliação
A escola é um labirinto de espelhos e, apesar de tudo que se diga, avaliam-se menos os estudantes do que os demais personagens que compõem esse microcosmos. Os conselhos de classe são permeados de informações sobre comportamento e as relações de simpatia por uns ou outros. Mesmo as disciplinas mais “sérias”, em que eu imaginava que os critérios de avaliação fossem melhor delimitados, devido à tradição, recaiam num campo de análise mais subjetiva do que se espera. Talvez a experiência acadêmica anterior era o que me conduzia à impaciência, tanto com as lacunas da minha própria prática, quanto com as incoerências do cotidiano escolar, às quais eu aceitava tão mal, mesmo quando as reproduzia. Eu era uma estrangeira não somente porque recém-chegada e aprendiz, mas por me sentir como de outra espécie: não-professora. A prática de receber estagiários, contudo, me empurrou para um outro lugar, familiar e estranho. Ali fui colocada sob análise, e as narrativas dos anos 90, do “professor rola-bola”, ressurgiram atualizadas. Colocada na berlinda, fui questionada se minha abordagem era desenvolvimentista - um insulto para uma professora que se identifica com as propostas “progressistas” da área. Isso não é novo, quando graduanda já era assim, eu, porém, estava no outro lado. Desconcertada com a situação e com o “título” recebido, controlo os indícios de contradição e falo sobre a importância da técnica e a compreensão do contexto, do objetivo em que é ensinada. Falo sobre o desafio de enfrentar outros temas, que ultrapassam mesmo as propostas “críticas” e sobre a não existência de uma metodologia bem definida para isso. O desconcerto então muda de lado, mas foi duro o golpe, não apenas pelas lacunas expostas, mas especialmente por estar nesse lugar de professor antiquado, que fica “sob a sombra da árvore”. Então, entendo melhor o contraste que aparenta ser sempre necessário: a inadequação versus um heroísmo da academia, que pretende “superar” a prática escolar. O professor orientador afirma que gostaria de “deixar algo de durável para a escola em que faz o estágio”. O sofrimento, porém, para fazer o projeto de intervenção é visível, e o professor orientador se envolve organicamente, como se fosse ele mesmo a ser avaliado. Há uma super preocupação para que os estagiários tenham experiências de sucesso, como se fossem ainda crianças a serem protegidas - quiçá estivesse protegendo o seu próprio status, em alguma medida abalado com o encontro na escola de uma personagem menos folclórica do que a área, nos anos noventa, criou, mas que persiste, atualizado, no imaginário de oposição entre teoria e prática (ou razão e corpo).
Ritmos
Um lugar outro de aprendizado sobre o fazer docente foram as passagens entre aulas. Olhava atentamente a forma como as professoras mais experientes se relacionavam com os estudantes. Confesso que ficava fascinada quando encontrava as turmas de quinto ano concentradas em uma atividade. Havia da minha parte um interesse pela técnica miraculosa utilizada, dada a grande angústia diante da perda de controle, tão recorrente e considerada significativa quanto ao sucesso ou insucesso como docente. Um modo de agir que aprendi prontamente foi o gerenciamento do timer de dar a palavra e a atenção ao exato instante de sua retirada. Mesmo reconhecendo certa violência nessa forma de proceder, essa “arte” um tanto perversa me livrava da culpa que vinha da confusão, pelo limite pouco claro, entre (os riscos da) fala livre e o tão recomendado protagonismo infantil. Outro jogo sutil e delicado aprendido como essencial é a distinção entre o que se deve ceder e o que é inegociável. O fantasma do autoritarismo por vezes causa problemas muito maiores. Entre esses dilemas e formas de fazer, encontrei no brincar um caminho menos tortuoso. Quanta leveza nas ironias da professora Sofia, ou nas músicas da Maria! Mas como eu ficava sem graça (porque sempre é uma exposição) ao cantar e dançar para as crianças. Quando não havia outros adultos na sala (são tantos bolsistas, estagiários, co-docentes, terapeutas ocupacionais, equipe pedagógica, intérpretes!!), por vezes eu e as crianças dos quartos anos nos tornávamos cúmplices: nos divertíamos, sem tanta preocupação com o conteúdo que, naquele momento inicial, me sufocava. Naquele ambiente em que não precisava salvar ninguém de uma agressão física ou verbal, então eu podia ser uma atriz: imitava vozes, fazia caretas, contava piadas. Me sentia segura com eles, os menores, menos ameaçadores, e percebia que havia espanto em seus olhinhos ao ver uma professora que brinca e se movimenta livremente e com desenvoltura. Eles queriam ser e fazer igual. E eu ria sozinha, de satisfação e alívio, ao descobrir como era fácil conduzi-los e como era bom me deixar levar. Ali, eu não sentia medo.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Na experiência da escrita, a partir da revisitação de memórias e nas autorreflexões feitas, foi possível lançar um olhar ao mesmo tempo interno e externo ao vivido. Na escrita/leitura, o ritmo da narrativa e o tom de cada relato em particular dizem sobre os diferentes graus de elaboração alcançados. Em alguns deles, por exemplo, o lamento e repetição são algo de que não se pode escapar. Entende-se que todo esse processo que aqui se iniciou segue aberto, e no exercício de identificar as contradições e as dores - as fissuras entre ser e “dever ser” - que atravessaram a minha prática e daquelas com quem eu trabalho, é notável que há questões que ultrapassam a dimensão da experiência pessoal e dizem sobre o universo escolar e a cultura como um todo, com algumas particularidades referentes à Educação Física e ao corpo.
As considerações que aqui se faz não se pretendem conclusivas, sendo retomados alguns elementos que emergiram da narrativa. A pouca racionalidade observada no espaço escolar, em contraposição ao idealizado pela tradição da Aufklärung, foi um dos pontos chave da análise, se revelando em variadas e não evidentes facetas. A insistência na retórica e em pretensos postulados educacionais, ao preço de negação da realidade, é uma delas. O recurso da fala/esclarecimento se revelou, por vezes, como sintoma de uma impotência velada ou não reconhecida, até mesmo como forma de punição dos estudantes. Também surgiu como tentativa de validação narcisista e/ou atitude desesperada para salvar uma autoimagem (pessoa-profissional) que dava indícios de desmoronar, e como forma de combater o medo sentido por estar numa situação de avaliação. Contra a realidade, ou mesmo alheia a ela, o “esclarecimento” serviu de modo muito precário à Formação (Bildung), sendo, em muitos casos, uma mera tática de sobrevivência psíquica e de disputa de força.
Outra faceta da barbárie no cotidiano escolar foi a presença massiva da lógica da concorrência. No caso das relações interpessoais das professoras, encontrou-se no elemento de gênero matizes singulares para formas perniciosas de competição. Alta (e auto) exigência, sacrifício, comparação, e necessidade de validação se imiscuem nos fazeres e relações cotidianas, no que pessoal e profissional têm limites indefinidos. Esse modus operante do “ser professora” desdobra-se em uma relação instrumental com as crianças e seus afetos, além de revelar uma necessidade de autoafirmação que a aproxima da condição infantil - no sentido empregado por Adorno (2003). A forma como a agressividade é canalizada por parte das docentes-mulheres, de forma dissimulada, bem como o ideário de sofredora-heroína, indicam ser um agravante para o não reconhecimento das contradições inerentes à Educação, devido à forte identificação com os ideais da sociedade e o consequente entrave para o reconhecimento da violência inerente às próprias práticas, sendo um tema que merece ser aprofundado em pesquisas posteriores. Ainda sobre o princípio da concorrência, ele aparece na hierarquização das disciplinas, no que das mais diversas e sutis formas as “intelectuais” reclamam primazia sobre as corporais/estéticas. Tal desnível apresentou-se também entre Educação Básica e Ensino Superior e afeta a formação inicial dos graduandos.
A irracionalidade tem ainda um viés singular nas aulas de educação física, quando a violência se dá a ver sem tantos ardis, de maneira crua - comum quando o embate corporal é o seu meio privilegiado de manifestação, e muitas vezes assim o é no decorrer das aulas. Se o desafio do enfrentamento dessas situações é imenso, pelo desgaste físico e emocional vivido, ele ganha profundidade, por um lado, a partir da associação entre boa aula e controle dos estudantes, e por outro, pelo vazio no campo progressista a respeito do tema da violência, geralmente tomado como mera excrescência da prática, e não como o seu tema premente. Se as pedagogias críticas e/ou relatos de experiência se ocupam de uma idealização da prática pedagógica (e mesmo do ser humano, da infância, e do poder do esclarecimento), ao invés do enfrentamento aberto dos fracassos, elas então acabam por contribuir para a continuidade do escamoteamento das contradições, e também suas consequências: a indiferença/frieza, e em todos os jogos de poder que lhe são constitutivos, se desdobrando em barbárie.
Para encerrar, alguns pontos a respeito do processo e objetivo da autorreflexão docente na formação de professores. Um deles é a centralidade que deve possuir o elemento ético-político em detrimento a aspectos meramente instrumentais, relacionados à performance do professor - algo que exerce grande fascínio, sobretudo na fase inicial da carreira. Outro ponto a destacar é que a prática pedagógica e o contexto escolar sejam pensados de forma conjunta, com todas as suas personagens e as relações que estas estabelecem entre si, no que se inclui não apenas as pessoas/funções em particular, mas o imaginário em torno do corpo, da infância, da alteridade e do feminino - já que as professoras ainda compõem maioria, especialmente nos Anos Iniciais. Todos estes são temas que apresentaram uma composição singular em torno da noção de indiferença/frieza burguesa, e podem ser objeto de estudo por parte dos docentes/graduandos, desde a obra adorniana como em seus desdobramentos no campo da Educação e da Educação Física. Por fim, a importância para aqueles que se propõem a refletir sobre a própria prática de preservarem a capacidade de estranhamento, de ainda se impressionar com o vivido e, sobretudo, de terem liberdade para expressar a insegurança e a impotência. Uma estratégia possível para formação de professores, especialmente os que se encontram em uma posição algo estrangeira ao universo escolar (pretensamente aqueles em início da carreira e/ou realizando estágio curricular), é o registro, à luz da teoria, desses elementos tão mal aceitos nos professores: frustrações, limites e inquietações. Identificar, por exemplo, os desconfortos no exercício da docência e, especialmente, os disparadores dos mal-estares; mas também reconhecer o próprio sentimento de impotência e os impulsos agressivos diante do que causa perturbação, bem como as formas encontradas para retomar o controle da situação/do outro: os castigos, ameaças, depreciações, etc, em suas múltiplas e sutis facetas. Mais um ponto profícuo de análise são as hierarquias internas do cotidiano escolar, o que é enaltecido ou desvalorizado nas condutas dos colegas de profissão e dos estudantes, enquanto formas idealizadas sobre o fazer docente e sobre a infância. Entende-se que estes são alguns aspectos que podem configurar uma primeira abertura no enfrentamento, acompanhado de um exercício reflexivo, daquilo sobre o que se fundam a contradição e a barbárie cotidiana.