INTRODUÇÃO
Neste artigo, objetivamos analisar o processo de constituição profissional das coordenadoras pedagógicas da Educação Infantil e suas interfaces com a organização do trabalho pedagógico em creches e pré-escolas. Por meio de dados oriundos de uma investigação mais ampla, realizada em nível de Mestrado, que objetivou analisar o processo de organização e de implementação do currículo nas creches e pré-escolas de Turmalina, Minas Gerais (MG), com base nas falas de profissionais que atuam nesse município1, discutimos as especificidades da coordenação pedagógica frente à organização coletiva das práticas de cuidado e educação, a partir das experiências sociais vividas por essas trabalhadoras.
Os avanços relativos à política educacional brasileira, principalmente após publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2010), representam o amadurecimento da compreensão do papel do Estado na organização e na oferta pública de vagas destinadas às crianças de 0 a 6 anos, já que as referidas diretrizes delimitam e ratificam as especificidades educacionais do atendimento dessa parcela da população brasileira em espaços coletivos que se ocupam do cuidado e da educação de bebês e de crianças pequenas.
Por um lado, as DCNEI (BRASIL, 2010) avançam ao ressaltarem a importância da gestão democrática e do trabalho coletivo institucional como condições estruturantes para o cumprimento da função sociopolítica e pedagógica de creches e pré-escolas, que se concretiza no cotidiano a partir da construção de uma proposta educativa com foco nas crianças e em suas experiências. Por outro lado, as indefinições das atribuições profissionais dos agentes responsáveis por coordenar o trabalho educativo nessas instituições criam um cenário de imprecisão quanto ao fazer cotidiano das coordenadoras pedagógicas. Assim, problematizamos, nas linhas deste texto, o “lugar” dessas profissionais e suas implicações para a organização de ações coletivas de cuidado e educação.
A produção acadêmica da área da Educação Infantil, tanto no Brasil (ALVES, 2011; BRUNO; ABREU; MONÇÃO, 2010; PEREIRA, 2015; SANTOS, 2015, entre outros) quanto no exterior (CAGLIARI; FILIPINI; GIACOPINI, 2016; FILIPPINI, 1999; SAITTA, 1998; SAVIO, 2017, entre outros), considera ser a coordenação pedagógica um dos principais sustentáculos dos projetos coletivos de cuidado e educação destinados às crianças de até 6 anos, já que representa “[...] instrumento de programação, estudo, organização, verificação e síntese do projeto pedagógico, [que] garante o princípio de continuidade da experiência educacional” das instituições de Educação Infantil (SAITTA, 1998, p. 114).
A literatura de referência do campo educacional brasileiro evidencia que a coordenação pedagógica na Educação Infantil constitui lacuna da produção científica nacional (MONÇÃO; TRINDADE, 2019) que é fortemente orientada por preceitos gerencialistas, cujos matizes se encontram na gestão escolar do Ensino Fundamental (FERNANDES; CAMPOS, 2015). Na literatura nacional do campo da educação, é possível identificarmos que o trabalho de coordenação pedagógica na Educação Infantil abrange: i) a organização do trabalho educativo (individual e coletivo) no que tange à organização dos tempos, dos processos, dos ambientes, dos espaços, dos materiais, dos grupos de crianças; a análise dos momentos da rotina; a construção de uma proposta que tenha a criança, suas ações, suas interações e suas experiências como centro do trabalho educativo (GALDINO; CÔCO, 2018; NASCIMENTO; CAVALCANTE, 2019). De igual modo, a coordenação pedagógica atua no sentido de: ii) promover o desenvolvimento do grupo de profissionais que atua no cuidado e na educação das crianças (MARTINS; BATISTA, 2019; MELLO; LUZ, 2015; SAVIO, 2017; SILVA; MACHADO; PACÍFICO, 2018). Também constitui objeto de trabalho da coordenação a: iii) efetivação do projeto educativo das creches e pré-escolas, em especial no que concerne à articulação das práticas de educação e cuidado; o compartilhamento da proposta educativa com as famílias; o reconhecimento do brincar como linguagem por meio do qual as crianças se desenvolvem e que, portanto, é eixo estruturante do trabalho educativo (BORGES, PANDINI-SIMIANO, 2019; CÔCO, GALDINO, 2016; FONTENELES; MARQUES; MELO, 2012). Ademais, a aproximação com a produção acadêmica recente da área da Educação Infantil evidencia que ainda são incipientes estudos que analisem os modos de construção da experiência profissional das coordenadoras pedagógicas que atuam em creches e pré-escolas.
Em síntese, a realidade da coordenação pedagógica na Educação Infantil é tema invisibilizado no cenário da educação nacional por diferentes motivos, dentre os quais destacam-se: i) a falta de legislação específica que regulamente a profissão de coordenador pedagógico no Brasil; ii) a ausência de políticas de formação que atentem para a organização do trabalho pedagógico em creches e pré-escolas; iii) a baixa reverberação dessa temática na produção acadêmica nacional. Consideramos que esse quadro revela um horizonte no qual os registros de ação das coordenadoras pedagógicas que atuam em creches e pré-escolas se encontram dispersos, e essas profissionais se veem obrigadas a atuar de modo ativo na construção de sua profissionalidade, ora alinhando-se à legislação local, ora estabelecendo relações entre os fins e os meios no processo de ação, ora atuando a partir de princípios por elas elencados. Tal dispersão permite compreendermos que a profissionalidade das coordenadoras pedagógicas resulta da construção de suas próprias experiências sociais (DUBET, 1996).
O objeto de estudo aqui analisado diz respeito à construção profissional das coordenadoras pedagógicas que trabalham na Educação Infantil. Dessa maneira, as questões que orientam a escrita deste artigo consistem em: Como as coordenadoras pedagógicas constituem seu estatuto profissional a partir das experiências que vivenciam em creches e pré-escolas? Quais as lógicas que orientam o trabalho cotidiano dessas profissionais? Quais as implicações dessa experiência social para o aprimoramento do trabalho pedagógico na primeira etapa da Educação Básica? Buscamos debater essas e outras questões, tendo em vista os dados produzidos em uma pesquisa, cujo trabalho de campo incluiu a realização de entrevistas semiestruturadas com profissionais que trabalham em instituições de Educação Infantil de Turmalina, Minas Gerais, além de analisar documentos legais que tratam das atribuições da coordenação pedagógica naquele município.
Percebemos que a coordenação pedagógica no âmbito da Educação Infantil, mesmo diante dos avanços no plano didático-pedagógico e das recorrentes discussões sobre a necessidade de afirmação da intencionalidade das práticas educativas em creches e pré-escolas, assume um conjunto de atribuições que pouco (ou nada) têm a ver com a organização do trabalho coletivo. Tais práticas são marcadas pelas imprecisões e indefinições tanto nos aspectos do instituído - no plano da legislação - quanto no âmbito do instituinte - das ações cotidianas (SILVA; FERNANDES, 2017), o que acaba afetando a profissionalidade desse sujeito e, consequentemente, o desenvolvimento do trabalho coletivo.
Desse modo, buscamos contribuir com o campo de estudos e pesquisas sobre a coordenação pedagógica na Educação Infantil na medida em que, por meio da análise das experiências sociais vividas no decurso do trabalho e narradas pelas próprias profissionais que se encontram à frente da organização das ações de cuidar e educar em creches e pré-escolas, temos a possibilidade de entender as especificidades desse campo de atuação.
COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL COMO EXPERIÊNCIA SOCIAL
A coordenação pedagógica na Educação Infantil constitui tempo-espaço de atuação profissional relativamente novo no cenário educacional brasileiro, cujas atribuições vêm sendo estabelecidas a partir de processos sócio-históricos não lineares. Assim, para compreendermos a experiência social das coordenadoras pedagógicas que atuam em creches e pré-escolas, torna-se essencial a realização de um exame crítico da caracterização dessa função no âmbito da escola pública e, especificamente, de sua configuração no contexto da primeira etapa da Educação Básica (ALVES, 2011).
Apesar de sua relevância para a organização do trabalho pedagógico, a função de coordenador se estabeleceu a partir de um percurso histórico de “[...] descontinuidade e de difícil reconhecimento nas políticas públicas brasileiras, o que afetou a constituição de sua identidade profissional” (FERNANDES, 2010, p. 1). Nos contextos hodiernos das instituições da Educação Básica, inclusive das creches e das pré-escolas, as atribuições exercidas pela coordenação pedagógica evidenciam um quadro de imprecisão relativo ao campo de trabalho dessas profissionais. No contexto da escola pública, as incumbências da coordenação pedagógica estabeleceram-se por meio do imbricamento da história do curso de Pedagogia e da extinção do ofício de supervisão escolar, especialista em educação e profissional não docente - cujos matizes se encontram no tecnicismo que remonta à educação do período militar (ALVES, 2011).
As mudanças no modo de organização da escola, orientadas pela produção capitalista, configuram-se como fatores que também contribuíram para a emergência de novas atribuições da coordenação pedagógica (ALVES, 2011; FERNANDES, 2010). Assim, a partir do final dos anos de 1990, a autonomia das escolas, tão almejada pelos movimentos progressistas em defesa da educação (e consecutivamente dos profissionais à frente da coordenação pedagógica), paulatinamente, vai sendo substituída por conceitos advindos da área empresarial, marcados por fortes apelos gerenciais, caracterizados pela ação dos órgãos de controle sobre os profissionais da educação, visando à “[...] utilização calculada de novas técnicas e artefatos de organização das relações sociais, baseados na competição, na eficiência, na produtividade e no cumprimento de metas, ou seja, uma moral utilitarista” (BELLO; PENNA, 2017, p. 72).
Se, de um lado, a emergência da coordenação pedagógica no interior da Educação Básica é marcada por contradições e retrocessos, o que afeta sobremaneira a atuação das profissionais que laboram na organização do trabalho coletivo nas instituições que articulam situações de educação e cuidados destinados aos bebês e às crianças pequenas, por outro lado, a cisão histórica entre creches e pré-escolas também configura fator de imprecisão do “lugar” da coordenação pedagógica na Educação Infantil. O reconhecimento da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica resulta da luta de movimentos populares e de mulheres em defesa da criança pequena e de seus direitos - desse modo, evidencia um processo marcado por um misto de descontinuidade e rupturas com efeitos sobre a constituição do estatuto profissional das coordenadoras pedagógicas que trabalham nas instituições de cuidado e educação.
Do ponto de vista histórico, a Educação Infantil sempre foi vista por duas concepções distintas e, por vezes, contrapostas: a assistencialista e a educacional. A primeira esteve direcionada aos cuidados de crianças de até três anos e comumente associada a abordagens custodiais voltadas às populações mais pobres. A segunda, dispondo de um enfoque mais pedagógico, diz respeito à preparação das crianças para a escolarização vindoura e compulsória. Entretanto, Kuhlmann Jr. (2003) considera que é fulcral transcender essa visão dicotômica que compreende creches e pré-escolas como instituições com enfoques distintos e paradoxais. Para o autor, a diferença entre as duas instituições se dá de acordo com o público atendido, e não pelos seus propósitos educacionais. Para ele, historicamente, essas duas instituições (creches e pré-escolas) não se distinguem em função das propostas pedagógicas, mas, sim, em função do público e da faixa etária das crianças nelas atendidas. Dessa maneira, “[...] é a origem social e não a institucional que inspirou objetivos educacionais diversos” (KUHLMANN Jr., 2003, p. 54). Nesse caso, a ausência de um projeto de trabalho com objetivos sociopolíticos e pedagógicos predefinidos, tanto em creches quanto em pré-escolas, pautado, sobretudo, na indissociabilidade entre cuidado e educação, compõe fator que exacerba ainda mais as ambiguidades em torno do campo de atuação profissional da coordenação pedagógica na Educação Infantil (SANTOS, 2015).
A transição da Educação Infantil do campo da assistência para o da educação - a partir das novas configurações legais inauguradas com a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) - Lei No 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996) - e com as DCNEI (BRASIL, 2010) - configura um grande avanço das políticas públicas para a infância. Com o estabelecimento desse novo marco regulatório, a área da Educação Infantil defende a ideia de superação de perspectivas assistencialistas e/ou de cunho preparatório, tentando avançar para a definição de projetos pedagógicos que, fundamentados na indissociabilidade entre o cuidado e a educação, reconheçam o direito da criança de 0 a 6 anos à educação pública, gratuita e de qualidade.
Cumpre destacarmos que, diante das reformulações na política educacional brasileira, no que tange ao desenvolvimento pleno de bebês e de crianças pequenas, a Educação Infantil se define por ser complementar e compartilhada à ação da família e da comunidade, tendo por finalidade cuidar e educar de forma indissociada (BRASIL, 2010). Isso remete ao fato de que a construção da proposta pedagógica de creches e de pré-escolas demanda a junção do trabalho coletivo e, nesse sentido, aponta para a relevância da coordenação pedagógica que necessita articular todo o trabalho educativo a partir das especificidades da Educação Infantil. Contudo, como realizar essa tarefa se pouco (ou nada) sabemos sobre as especificidades do campo de ação profissional das coordenadoras? É preciso considerarmos que, no bojo da Educação Básica, não há clareza sobre o campo de atuação da coordenação pedagógica, sendo esta encarada como cargo (cujas vagas são preenchidas por concurso público) em alguns estados e como função docente em outros contextos - o que também tem efeitos sobre a coordenação pedagógica na Educação Infantil.
Savio (2017), fundamentada na abordagem ecológica de Urie Bronfenbrenner, considera que há uma refração no campo de ação das coordenadoras pedagógicas no que concerne à polifonia de vozes e discursos que atravessam a construção da identidade de creches e pré-escolas. Para essa autora, em nível macro, compete à coordenação pedagógica a articulação com a política em termos de orientações legais que regulam e orientam o trabalho pedagógico. Em nível exossistêmico, a coordenação produz processos e orientações que visam apoiar as decisões das profissionais de Educação Infantil que se relacionam aos aspectos externos ao coletivo de professores, ao mesmo tempo em que negocia e auxilia o grupo na construção de significados partilhados sobre o trabalho pedagógico. Em nível meso, a coordenação atua de modo a articular interlocutores importantes para o trabalho educativo em creches e pré-escolas, em especial no que diz respeito à relação com as famílias. Por fim, em nível micro, Savio (2017)considera que a coordenação pedagógica auxilia as profissionais na organização das situações de aprendizagem que emergem das experiências cotidianas das crianças. Desse modo, a tarefa de coordenação, para além de complexa e multifacetada, “[...] não é trivial e exige um profissionalismo elevado e especializado. Abre-se então a questão de sua formação, que obviamente não pode se limitar à aquisição de conteúdos psicopedagógicos, mas que deve prever cursos de formação sobre a prática educativa” de modo reflexivo e participativo (SAVIO, 2017, p. 148) - o que ainda é incipiente na realidade brasileira, em função das reformas educacionais da década de 1990 que, dentre outras questões, impuseram pautas gerenciais (e uma racionalidade orientada pelos preceitos da Nova Gestão Pública) aos profissionais da educação (BELLO; PENNA, 2017; MONÇÃO; TRINDADE, 2019).
Diante desse cenário, as coordenadoras pedagógicas que atuam em creches e pré-escolas se encontram diante de um sistema de ação multifacetado, complexo, disperso e, por vezes, contraditório, no qual elas têm de realizar um trabalho sobre si mesmas no processo de constituição na qualidade de profissionais de Educação Infantil - o que foi por nós analisado como a construção de uma experiência social2 (DUBET, 1996). Assim, a produção teórica de Dubet (1996) constitui-se como lente interpretativa para a compreensão do campo de atuação profissional das coordenadoras pedagógicas que atuam em creches e pré-escolas, na medida em que, ao focalizarmos em suas experiências sociais, evidenciamos o exercício que elas realizam cotidianamente para constituírem-se profissionais. Dito de outro modo, essa teoria permite compreendermos o trabalho de socialização profissional que elas realizam sobre si mesmas (DUBET, 1996).
Para Dubet (1996), o conceito de experiência social torna-se altamente apropriado para as análises dos comportamentos individuais e coletivos, pois se mostra capaz de identificar “[...] a natureza do objeto que se acha em alguns estudos empíricos em que as condutas sociais não parecem redutíveis a puras aplicações de códigos interiorizados ou a encadeamentos de opções estratégicas que fazem da acção uma série de decisões racionais” (DUBET, 1996, p. 93). O ponto de partida para essa afirmação é a consideração, por parte do autor, de que, na atualidade, os comportamentos sociais - sejam direcionados para as questões de foro individual, sejam associados às dimensões reguladoras da esfera coletiva - não se encontram totalmente reunidos no fluxo da vida cotidiana. Pelo contrário, dada à dispersão dos sentidos da vida social, as condutas são orientadas por princípios estáveis dotados de maior variabilidade, e é essa heterogeneidade que consente que se fale em experiências, definidas por Dubet (1996) como a articulação de distintas lógicas de ação pelo indivíduo no processo de constituir-se como ator, com vistas a manter o maior controle sobre as diferentes dimensões da vida (pessoal, profissional, social etc.).
Na perspectiva de Dubet (1996), a experiência social é produzida quando os atores têm de, simultaneamente, gerir diferentes lógicas de ação, cujas origens se encontram reafirmadas pelas diversas lógicas constantes no sistema social. Importante considerarmos que, do modo formulado pelo autor, o sistema social já não se apresenta aos indivíduos como um bloco unitário, coerente e alinhado a uma única lógica - tal como previam as correntes clássicas da sociologia3. O sistema social desvela-se para os atores a partir da coexistência de sistemas estruturados por princípios autônomos ora concorrentes, ora articulados, evidenciando que a noção clássica de sociedade já não apresenta alcance para a análise sociológica.
Cumpre esclarecermos que, para além da presença desses diferentes sistemas de ação acessíveis aos atores e que orientam a construção de suas condutas cotidianas nas instituições de Educação Infantil, a condição de sujeito não totalmente socializado - essencial à sociologia da experiência social - é inerente à classe profissional das coordenadoras que atuam na organização do trabalho pedagógico no interior das instituições constitutivas da primeira etapa da Educação Básica, em função das imprecisões históricas atreladas às suas atribuições (ALVES, 2011; FERNANDES, 2010; SANTOS, 2015).
Para Dubet (1996), a articulação de lógicas de ação capazes de orientar (ou até mesmo regular) a experiência dos sujeitos não possui um cerne, pois não se baseia em uma lógica única. Segundo o autor, “[...] a experiência social, na medida em que sua unidade não é dada, gera necessariamente uma atividade dos indivíduos, uma capacidade crítica e uma distância em relação a si mesmo” (DUBET, 1996, p. 94). Desse modo, a noção de experiência sugere uma atividade cognoscitiva, ou seja, ela se configura como uma forma de atribuir sentido à realidade e, principalmente, de verificá-la, de experimentá-la por parte do ator - fator importante no processo de compreensão e análise da constituição profissional de coordenadoras pedagógicas que atuam na Educação Infantil.
Para Dubet (1996), cada experiência social resulta da convergência, isto é, da combinação de três lógicas de ação correspondentes a três grandes sistemas sociais, quais sejam: i) a lógica da integração - ancorada na ideia de integração social, que durante muito tempo se convencionou chamar de comunidade; ii) a lógica da estratégia - fundamentada na compreensão do sistema social como um espaço concorrencial - uma espécie de mercado - que prevê e promove a competitividade entre os sujeitos; iii) e a lógica da subjetivação - fundamentada em um sistema cultural, no qual a criatividade dos atores não se reduz à tradição e à utilidade.
A lógica integradora corresponde à orientação da sociologia clássica e abarca os mecanismos de integração presentes em toda e qualquer sociedade. Nessa lógica da ação, a identidade do ator se alinha à versão subjetiva da integração do sistema. Na lógica da integração, a identidade nada mais é do que a expressão do conjunto de valores institucionalizados que foram interiorizados pelo ator por meio dos papéis sociais por ele desempenhados (DUBET, 1996). Segundo o autor, essa identidade é, muitas vezes, vivida como uma história, como narrativa pessoal que distingue e diferencia o sujeito dos demais. Desse modo, a oposição “nós/eles” indica a configuração das relações sociais associadas à identidade integradora. Dubet considera que não necessariamente as relações sociais entre eles e nós devam ser hostis para se inscreverem na lógica da integração. Basta apenas que elas ocorram com base no reconhecimento de uma diferença que mantém e fortalece a identidade integradora. Entretanto, de acordo com o autor, em muitas ocasiões, o conflito4 retroalimenta o sentimento de pertença dos indivíduos e, consecutivamente, sua integração e sua identidade.
A segunda lógica da ação apontada por Dubet é a lógica da estratégia, a qual pode ser compreendida como uma racionalidade instrumental, isto é, um utilitarismo da ação que objetiva combinar as finalidades pretendidas com as oportunidades que emergem na e por meio da situação. Nessa perspectiva, a sociedade é concebida como um mercado, um campo concorrencial, fazendo com que a identidade dos atores passe a ser concebida como um recurso. Desse modo, ela (a identidade) é definida em termos de estatuto que designa a probabilidade que um indivíduo possui de influenciar os demais, ou seja, a posição relativa que ele assume graças aos meios ligados a essa posição. Assim, o que permite distinguir a identidade integradora da identidade de recurso - uma vez que essas duas identidades se influenciam mutuamente - é a identificação da lógica em que se situa o registro da ação (SILVA, 2008).
A terceira e última lógica identificada por Dubet (1996) é a da subjetivação. Ela se configura como a lógica cuja origem reside no sujeito e se manifesta de forma indireta na atividade crítica, “[...] aquela que supõe que o ator não é redutível nem aos papéis nem aos seus interesses, quando ele adopta um ponto de vista diferente do da integração e da estratégia” (DUBET, 1996, p. 130). Desse modo, essa atividade crítica supõe a existência de uma lógica cultural que o ator é capaz de distinguir das outras lógicas. Para o autor, é nessa lógica da ação que o ator, por meio de sua reflexividade, do movimento de distanciamento que toma em relação à integração e à concorrência, por intermédio do uso de sua criatividade, pode experimentar-se como sujeito.
Em suma, é preciso considerar que a ideia de lógicas de ação identificadas por Dubet (a qual ele nomeia como sociologia da experiência) pode constituir-se em lente interpretativa para a apreensão das experiências das coordenadoras pedagógicas de creches e pré-escolas de Turmalina, Minas Gerais, na medida em que evidencia o processo de construção profissional dessas mulheres.
CAMINHOS METODOLÓGICOS PARA A ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DA COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA
Na medida em que o que se sabe da experiência resulta daquilo que os atores dizem sobre ela, é no discurso que estão presentes as categorias que permitem a compreensão da experiência social (DUBET, 1996). Considerando essa assertiva, desenvolvemos o trabalho de campo de maio a agosto de 2020 - contando com um desenho de pesquisa que primou pela conversação com seis coordenadoras pedagógicas de Turmalina, cidade situada na porção setentrional do estado de Minas Gerais.
Assim, a entrevista foi eleita por nós como o principal instrumento de produção de dados e se configurou como um emaranhado de fios, pontos e planos (TEIXEIRA; PÁDUA, 2006), cujas conexões precisaram ser percebidas e interpretadas por nós, a partir de um quadro teórico que, fundamentado na sociologia da experiência de François Dubet (1996), evidenciou as relações entre a regulação institucional e as ações das coordenadoras nos contextos de sua atuação profissional, sem privilégio de uma sobre a outra.
As seis coordenadoras pedagógicas que participaram da entrevista aceitaram prontamente o convite e manifestaram interesse em contribuir com nosso estudo. Todas as entrevistas ocorreram individualmente, após acordarmos o melhor dia da semana para cada participante e iniciaram-se no horário previsto, às 14 horas, ocorrendo nas dependências do auditório da Secretaria Municipal de Educação de Turmalina - espaço gentilmente cedido pela secretária para a produção de dados por meio da conversação com as coordenadoras. As entrevistas duraram um tempo médio de 60 minutos, tendo a mais breve duração de 45 minutos e a mais longa, 1 hora e 35 minutos. As entrevistas foram realizadas obedecendo um roteiro semiestruturado, distribuído em quatro blocos compostos por, no mínimo, cinco e no máximo dez perguntas, que foram registradas por meio de diferentes recursos, tais como: gravação de arquivos audiovisuais e em cadernos de notas (no qual foram registradas impressões pessoais de um dos pesquisadores sobre as entrevistas).
Dubet (1996) considera que a análise sociológica, para ter credibilidade, tem de ser verossímil, isto é, deve expressar a experiência dos atores. Segundo o autor, “[...] a teoria mais convincente, ao mesmo tempo em que responde a critérios de cientificidade, será aquela que esteja mais perto da experiência dos actores” (DUBET, 1996, p. 239). Nesse sentido, a verossimilhança pressupõe uma dupla exigência: por um lado, deve estar em conformidade com os pressupostos teórico-metodológicos comuns aos investigadores; por outro, deve passar, ao mesmo tempo, pelo crivo dos atores, na medida em que eles percebam suas falas e ações representadas nas análises. Assim, após a eventual transcrição das conversações, submetemos os textos das entrevistas ao escrutínio das coordenadoras como forma de validação desses registros.
A etapa seguinte valeu-se da interpretação dos dados que foi realizada por meio da técnica de análise de conteúdo que, segundo Bardin (1977), configura-se como
[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1977, p. 42).
Como procedimento de análise, essa técnica transita entre os extremos da investigação científica, pois concentra o rigor metodológico característico da objetividade e a fertilidade oriunda da subjetividade, resultando na elaboração de apontamentos quantitativos e/ou qualitativos que conduzem o pesquisador a uma segunda leitura da comunicação, baseado na dedução, na inferência (BARDIN, 1977). Para fins deste estudo, optamos por realizar uma análise de conteúdo categorial, devido ao seu alinhamento à proposta de investigação e ao seu alcance na “[...] aplicação de discursos diretos (simplificações manifestas) e simples” (BARDIN, 1977, p. 153). Conforme Bardin (1977), foi necessário realizarmos o tratamento das informações contidas nos dados produzidos, pressupondo um processo dedutivo a partir de indicadores, buscando sistematizá-los por meio de categorização temática.
As informações obtidas por meio dos dados produzidos nas entrevistas, quando analisadas à luz dos aportes teóricos aqui reunidos, evidenciaram nuances importantes em torno da constituição do estatuto profissional da coordenação pedagógica presente nas instituições de Educação Infantil.
CONSTITUINDO-SE COORDENADORA DA EDUCAÇÃO INFANTIL POR MEIO DA EXPERIÊNCIA SOCIAL
A legislação municipal de Turmalina, no que concerne à previsão dos cargos e respectivas atividades do magistério (docentes e técnicos), apresenta apenas a Lei Complementar Municipal Nº 2, de 25 de outubro de 2017, que dispõe sobre o plano de cargos, carreiras e vencimentos dos servidores do magistério (TURMALINA, 2017). Além desse documento, creches e pré-escolas contam com o Regimento Escolar que disciplina as atribuições das coordenadoras pedagógicas que atuam nesses estabelecimentos (TURMALINA, 2018, 2020).
Verificamos que o profissional que atua na coordenação pedagógica de creches e pré-escolas do município de Turmalina é denominado como Especialista em Educação - o que já aponta para a sua inadequação em relação às especificidades da Educação Infantil. Assim, conforme a descrição sumária do cargo de especialista em educação, prevista na Lei Complementar Municipal Nº 2/2017, esse profissional “[...] tem como atribuições a realização de trabalhos de Orientação, Supervisão e Administração Escolar” (TURMALINA, 2017, p. 42). Dessa maneira, podemos perceber que os ocupantes do cargo de coordenação pedagógica que atuam nas creches e nas pré-escolas de Turmalina assumem três atribuições concomitantes, com diferentes especificidades, evidenciando o excesso de funções determinadas a tal profissional5.
Segundo a Lei Complementar Municipal Nº 2/2017, as tarefas da coordenação pedagógica nas instituições educativas do Município, incluindo aquelas que atuam em creches e pré-escolas, envolvem:
Executar atividades inerentes à profissão de Pedagogo e/ou equiparados, em especial quanto ao seguinte: realizar estudos, pesquisas e levantamento que forneçam subsídios à formulação de políticas, diretrizes, planos e ações para implantação, manutenção e funcionamento de programas relacionados com as atividades de ensino aprendizagem; Aplicar leis e regulamentos de legislação escolar; Participação na elaboração do Plano Anual de Educação; Realizar diagnósticos e propor soluções aos problemas de produtividade e qualidade das escolas; Coordenar a elaboração dos planos de ensino das escolas; Supervisionar e avaliar a metodologia, métodos e técnicas e instrumentos de avaliação do rendimento utilizado na escola; Elaborar fluxo escolar; Desempenhar outras atribuições que, na forma da Lei se regulamenta a sua profissão, se incluam na sua competência. Zelar pela conservação e manutenção de equipamentos e materiais colocados à sua disposição; obedecer às normas administrativas concernentes às atividades do órgão de atuação; executar outras tarefas afins à sua responsabilidade (TURMALINA, 2017, p. 42).
Na descrição dos cargos de coordenação pedagógica do município de Turmalina, verificamos um campo de trabalho fortemente orientado por resultados de avaliações padronizadas e no cumprimento de metas, fator que, em consonância com o cenário nacional, tem provocado alterações nas condições de trabalho dos professores e no cotidiano escolar, com a introdução de novas formas de gestão pedagógica, que mais do que focalizar no desenvolvimento dos estudantes ou nos processos de ensino, passa a focar a produtividade, com objetivo de alcançar níveis de qualidade previamente estabelecidos (BELLO; PENNA, 2017; FERNANDES; CAMPOS, 2015). No entanto, por mais que a Educação Infantil também seja atravessada pelas transformações que se concretizam no contexto educacional brasileiro, não se pode desconsiderar que, “[...] em função de sua especificidade, os impactos e as respostas às mudanças estarão, provavelmente, marcados por sua especificidade” (GALDINO; CÔCO, 2018, p. 291-292), uma vez que muitas dessas novas atribuições impostas à organização pedagógica escolar nada têm a ver com a coordenação do trabalho pedagógico coletivo nas instituições de Educação Infantil.
Estudos da área da Educação da Criança de 0 a 6 anos (ALVES, 2011; PEREIRA, 2015; SANTOS, 2015) têm evidenciado que a coordenação é peça-chave no desenvolvimento do trabalho pedagógico nas instituições de Educação Infantil. As profissionais que trabalham com a coordenação pedagógica têm papel fundamental no processo de construção coletiva do grupo e do sentimento de pertencimento a essa coletividade por parte de cada professor (SAITTA, 1998; SAVIO, 2017). O trabalho coletivo implica, portanto, a construção de um Projeto Político-Pedagógico (PPP), a elaboração e a definição de objetivos educacionais que não provenham de escolhas espontâneas, individuais, improvisadas e não coordenadas. Ao contrário, pressupõe uma construção alicerçada na interlocução entre os vários membros do grupo, com a finalidade de efetivar o que foi decidido e planejado em conjunto (SAITTA, 1998). Mais ainda, Savio (2017), ao discorrer sobre o papel da gestão escolar na realidade da Educação Infantil italiana, considera que a coordenação pedagógica representa “[...] um recurso precioso e, sobretudo, sustentável para a formação permanente em serviço de uma equipe educativa” (SAVIO, 2017, p. 146). Diante disso, podemos destacar que, no caso de Turmalina, essas atribuições não se encontram previstas em lei e, desse modo, não contribuem para o processo de construção profissional da coordenação pedagógica da Educação Infantil, já que a Lei Complementar Municipal Nº 2/2017 não especifica quais são as atividades próprias das coordenadoras frente à organização do trabalho pedagógico coletivo em creches e pré-escolas. Outra questão importante diz respeito à falta de referências em relação à responsabilidade da coordenação que, dentre outras questões, tem a premissa de organizar e implementar o PPP e o Currículo da instituição educativa em que atua. Também não foram identificadas menções relacionadas à condução e à articulação do trabalho pedagógico coletivo, ao apoio e ao suporte docente no que se refere ao processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças.
Ressaltamos que nenhum dos dispositivos legais analisados relacionou as competências da coordenação pedagógica em instituições de Educação Infantil de Turmalina à gestão pedagógica, à gestão de processos educativos, mesmo sendo essa premissa ponto central do trabalho de coordenação (ALVES, 2011; SAITTA, 1998). A Lei Complementar Municipal Nº 2/2017 e os regimentos dessas instituições pouco ou nada falam sobre as especificidades sociopolíticas e pedagógicas da primeira etapa da Educação Básica, dentre as quais destacamos: a indissociabilidade entre cuidado e educação; a centralidade das crianças, de suas ações, interações e experiências na organização do trabalho cotidiano; o brincar e demais formas de interação das crianças como eixo central dos currículos; a articulação e a complementariedade das ações das famílias. Destacamos, pois, que o Município de Turmalina, seguindo uma tendência nacional, carece de uma “[...] política pública de Educação Infantil que esclareça as finalidades e diretrizes para Educação Infantil, a organização administrativa e pedagógica, o perfil e as atribuições de seus profissionais e a formação do quadro profissional” (FERNANDES; CAMPOS, 2015, p. 153) - fator que potencializa ainda mais a imprecisão das atribuições das coordenadoras pedagógicas de creches e pré-escolas (BRASIL, 2010).
Esse cenário evidencia que o processo de constituição profissional das coordenadoras pedagógicas de Turmalina vem sendo construído em meio a um contexto de incertezas e de imprecisão, ocasionadas tanto pela indefinição da natureza de suas atribuições legais quanto pela falta de clareza sobre as especificidades em torno da organização dos processos pedagógicos em creches e pré-escolas. Dessa forma, as profissionais que ingressam na coordenação das instituições de Educação Infantil, nesse município, se veem diante de um sistema de ação cuja regulação apresenta múltiplos sentidos que, isoladamente, não são capazes de produzir uma única orientação com vistas ao estabelecimento de competências profissionais; pelo contrário, essa regulação refrata-se em múltiplas possibilidades de atuação e em diversificados registros de ação. Dito de outro modo, as coordenadoras defrontam-se com um cenário de atuação disperso no qual elas são compelidas a construir a própria experiência social ao combinar diferentes lógicas de ação (DUBET, 1996).
Assim, as entrevistas com as seis coordenadoras permitiram-nos identificar experiências, compreendidas no sentido de um trabalho delas próprias, frente às situações que vivenciam tanto na inserção no trabalho quanto na organização do fazer pedagógico em creches e pré-escolas de Turmalina. Conforme Dubet (1996), a experiência social é o resultado de um trabalho dos próprios atores sobre si mesmos, no qual eles atuam a partir da combinação de diferentes lógicas de ação. Na perspectiva desse autor, os elementos que compõem a experiência social não pertencem aos atores, mas lhe são oferecidos (ou impostos), ora por meio de um conjunto de normas, ora por meio das relações sociais, ora por intermédio de tensões que derivam de situações de conflito. Nas palavras do autor, “[...] o ator constrói uma experiência que lhe pertence, a partir de lógicas de ação que não lhe pertencem e que lhe são dadas pelas diversas dimensões do sistema que se separam na medida em que a imagem clássica de unidade funcional da sociedade se desfaz” (DUBET, 1996, p. 140).
A princípio, discutimos com as entrevistadas sobre as especificidades do trabalho das coordenadoras pedagógicas em creches e pré-escolas. Buscamos compreender, para tanto, as possíveis aproximações e os distanciamentos do trabalho realizado pelas coordenadoras na Educação Infantil com aquele desenvolvido em outras etapas da Educação Básica. Salientamos que, das seis participantes entrevistadas, apenas Luísa6 não trabalhou como coordenadora pedagógica em outros níveis de ensino que não a Educação Infantil. Assim, quando questionadas se há aproximações entre as ações por elas desenvolvidas na Educação Infantil e o trabalho das coordenadoras pedagógicas realizado em outros níveis de ensino, três participantes responderam que sim e declararam:
Luísa - 18/05/2020: Existe proximidade entre os trabalhos - o trabalho da supervisão pedagógica é muito importante, independentemente do nível de ensino em que o supervisor atua, já que é ele que orienta e norteia o professor no desenvolvimento do processo pedagógico.
Geovana - 13/05/2020: Existem semelhanças, mas com formas diferenciadas para se chegar ao resultado final.
Isabela - 15/05/2020: Percebo que as atividades desenvolvidas em um nível de ensino podem ser as mesmas que aquelas desenvolvidas em outro nível, mas a forma de se trabalhar, o objetivo de trabalho deve ser diferente.
Campos (2013) afirma que o trabalho com crianças pequenas é complexo e exige conhecimento, dedicação, criatividade e disponibilidade, por parte de quem o realiza, para aprender sempre - fator que integra os aspectos emocionais, cognitivos, físicos e sociais. O trabalho junto às crianças exige cuidados específicos e é função do coordenador pedagógico promover um ambiente em que o principal objetivo do grupo consiste em melhorar a qualidade da educação por meio da apropriação de novas e melhores formas de educar (PLACCO; SOUZA, 2010). Já Alice e Maria Clara acreditam que não há aproximações do trabalho realizado pelas coordenadoras pedagógicas da Educação Infantil com o trabalho realizado nos outros níveis de ensino. As duas têm visões semelhantes e destacam:
Alice - 19/05/2020: Não tem nada a ver. Tem muita diferença. O trabalho de supervisão de 6º ao 9ºano [do Ensino Fundamental] é totalmente técnico. A relação com a família já não é tão estreita.
Maria Clara - 20/05/2020: Acho tão diferente a Educação Infantil em relação aos outros níveis. Na Educação Infantil, a gente tem que ter uma proximidade maior com a família, com os professores, tem que conhecer melhor a criança. Acho que nos outros níveis como já passou essa etapa, a nossa função se torna mais técnica.
As formas diferenciadas de organização do trabalho coletivo em instituições de Educação Infantil, destacadas por Geovana e Isabela, talvez se fundamentem na posição colocada por Alice e Maria Clara, que abordam as diferenças que existem no trabalho da coordenação pedagógica em relação aos outros níveis de ensino: uma relação mais estreita entre o coordenador pedagógico e as famílias, as professoras e as crianças, evidenciando uma lógica integradora que remete à interiorização de saberes e de fazeres que são próprios da coordenação pedagógica na Educação Infantil. Para Dubet (1996), a lógica da integração é orientada pela construção de uma identidade integradora que pressupõe a diferenciação “nós/eles”. De acordo com o autor, na lógica integradora, as relações “nós/eles” são dialeticamente definidas pelas relações sociais, ao mesmo tempo em que são definidoras dessas relações. Segundo Dubet (1996, p. 116), nessa perspectiva, “[...] o outro é definido pela sua diferença, pela sua estranheza”. Para o autor, tais relações não necessitam ser necessariamente hostis para se inscrever em uma lógica integradora, “[...] basta que elas funcionem no reconhecimento de uma diferença que mantém e fortalece a identidade integradora. Com muita frequência, no entanto, o conflito reforça o sentimento de pertença dos indivíduos e, por conseguinte, a sua integração, a sua identidade” (DUBET, 1996, p. 117). É isso que afiança às coordenadoras a identificação com os pressupostos do trabalho pedagógico na Educação Infantil. Para elas, reconhecer-se como parte constitutiva da Educação Infantil implica, sobretudo, atuar com base em suas especificidades, e isso porque, na lógica da integração, a identidade é vista como elemento que promove a coerência do sujeito com seu grupo de pertença.
Além disso, é preciso considerar que a técnica, expressa na fala de algumas coordenadoras, é por nós compreendida como realização de tarefas burocráticas que pouco se aproximam das atribuições pedagógicas das coordenadoras de Educação Infantil de Turmalina. O trabalho pedagógico na Educação Infantil estrutura-se a partir de outras lógicas de ação e, por conseguinte, demanda outras noções técnicas do fazer pedagógico, tais como: i) maior aproximação com as famílias das crianças com vistas a complementar as ações de ambas as instituições no que concerne ao desenvolvimento pleno das crianças; ii) compreensão da brincadeira e dos diferentes modos de interação da criança; iii) centralidade das experiências sociais das crianças como elemento fulcral dos currículos e das propostas pedagógicas de creches e pré-escolas; iv) indissociabilidade entre cuidado e educação na organização do cotidiano das instituições de Educação Infantil - elementos que, indubitavelmente, denotam o quão técnico é o trabalho pedagógico em creches e pré-escolas. Assim, para Alice e Maria Clara, o trabalho pedagógico na Educação Infantil não é menos técnico do que em outros campos de atuação profissional, mas, sim, regido por princípios distintos e que, no caso de Turmalina, nem sempre são levados em consideração do ponto de vista da legislação municipal.
É preciso considerarmos que, no contexto da Educação Básica, a Educação Infantil se distingue dos demais níveis de ensino, pois abriga ações educativas mais amplas e complexas que se pautam, sobretudo, na integração entre cuidado e educação em uma ação compartilhada com a família - fator que incide sobre a qualidade do processo educativo em creches e pré-escolas (BRUNO, ABREU, MONÇÃO, 2010). Assim sendo, o fato de a Educação Infantil, por ter como finalidade o desenvolvimento pleno da criança, a partir da articulação das práticas de educação e cuidado de modo complementar à educação da família, questiona e põe à prova modos tradicionais de gestão nas instituições educativas (BORGES; PANIDINI-SIMIANO, 2019, p. 545). Portanto, podemos perceber que é específico do trabalho das coordenadoras pedagógicas que atuam na Educação Infantil fomentar relações de proximidade com as famílias, principalmente pelas condições específicas das crianças no que concerne às suas necessidades básicas, a saber: bem-estar, afetividade, proteção e cuidados.
Verificamos que as coordenadoras pedagógicas constroem modos pessoais de avaliar os fins e os meios sobre o fazer cotidiano, visto que constroem de modo subjetivo as práticas de cuidado e educação que, embora não estejam presentes na regulamentação oficial do Município, se fazem necessárias para a coordenação do trabalho pedagógico na Educação Infantil, articulando ora lógicas estratégicas, ora lógicas marcadas por suas subjetividades (DUBET, 1996). Foi perguntado às participantes se existe algo que é específico do trabalho realizado pelas coordenadoras pedagógicas que atuam em creches e pré-escolas, ao passo que elas responderam:
Maria Cristina - 14/05/2020: A Educação Infantil, por ser uma etapa diferenciada, tem as suas peculiaridades, como a observação mais atenta, cuidados específicos e uma relação mais estreita com a família.
Maria Clara - 20/05/2020: É específico do supervisor pedagógico da Educação Infantil a relação com a família que precisa ser mais forte, mais estreita. Compete à supervisão pedagógica acompanhar o desenvolvimento das crianças junto aos professores e à família.
Geovana - 13/05/2020: O trabalho na Educação Infantil é diferenciado, já que trabalhamos com crianças; exige um cuidado maior, uma observação maior. Devemos estar sensíveis e sermos criteriosos quanto à observação e análise das diversas situações do dia a dia.
Alice - 19/05/2020: O supervisor da Educação Infantil deve ter sensibilidade - acolher e acalentar a criança, ter um olhar mais atento aos cuidados e educação da criança. A gente precisa realizar o acompanhamento junto ao professor, de perto, orientando quanto às músicas, brincadeiras, ludicidade.
Isabela - 15/05/2020: Na Educação Infantil, a família é mais presente, o nosso contato tem que ser mais forte, mais efetivo - é um trabalho conjunto.
Luísa - 18/05/2020: O trabalho do supervisor da Educação Infantil tem um relacionamento mais próximo com a família e com o professor. Buscar essa parceria - família e escola é o ponto fundamental para o sucesso do trabalho na Educação Infantil. E nós fazemos essa mediação, buscando uma intervenção pedagógica. Nós, juntos, podemos detectar aspectos na criança que podem afetá-la para o resto da vida.
Assim como as coordenadoras afirmam realizar um trabalho estrategicamente alinhado aos pressupostos da Pedagogia da Infância (ROCHA, 2001), que tomam as crianças e seus processos de desenvolvimento como centro da ação pedagógica em creches e pré-escolas, o fazem de modo crítico, expressando a assunção de suas subjetividades no processo de construírem-se coordenadoras. A esse respeito, Dubet (1996, p. 152) afirma que “[...] a atividade crítica do sujeito não se desenrola nem num vazio social nem num vazio cultural e, até nos arcanos das consciências, a introspecção nada mais é que um diálogo social interiorizado”. O autor considera que a crítica pode ser realizada por três vias possíveis: a descoberta (fundamentada na revelação de princípios desconhecidos), a invenção (que implica a ruptura com as coerções sociais) e a experimentação (que pressupõe o ensaio, a repetição e a verificação). Assim, é preciso reconhecer que, distanciando-se do prescrito pela legislação municipal, as coordenadoras pedagógicas entendem que precisam assessorar os professores a se aproximarem das experiências das crianças, por meio de abordagens sensíveis, no auxílio relativo à organização dos tempos e dos espaços que possibilitem o desenvolvimento e a aprendizagem de meninos e de meninas a partir das interações, das brincadeiras, do compartilhamento de cuidados e educação das crianças com suas famílias, conforme expresso nas falas das participantes.
Essa relação mais próxima que o coordenador pedagógico estabelece com a família e com os professores pode ser justificada, tendo em vista as especificidades da Educação Infantil que é balizada pela compreensão de que o cuidado é “algo indissociável ao processo educativo” (BRASIL, 2010, p. 19). As participantes apontaram condições importantes ao trabalho pedagógico da Educação Infantil que o difere daquele realizado nas outras etapas da Educação Básica: a acolhida, a observação, a sensibilidade e a atenção às crianças. Esses cuidados se relacionam diretamente com as linguagens da criança, ou seja, as suas falas, as suas expressões e sentidos produzidos no cotidiano dos ambientes coletivos. No contexto de cuidado e educação, cabe às professoras, educadoras, coordenadoras pedagógicas, diretoras, dentre outros profissionais, compreenderem essas condições identitárias da Educação Infantil que se fazem imprescindíveis à escuta das necessidades das crianças e à efetivação dos seus direitos.
A indissociabilidade entre o cuidado e a educação figura entre as tarefas primordiais à atuação do coordenador pedagógico no segmento da Educação Infantil. A prática pedagógica na Educação Infantil visa, dentre outros fatores, a formação integral da criança (BRUNO; ABREU; MONÇÃO, 2010). Nessa lógica, podemos depreender que o coordenador que atua nos contextos de cuidado e educação investiga situações específicas em torno das infâncias e possibilita que as professoras articulem “[...] o conhecimento prévio e as experiências práticas [das crianças] na construção do conhecimento novo” (ROCHA, 2001, p. 28).
Dumont-Pena e Silva (2018) defendem o cuidado como manifestação da atenção às necessidades do outro, sendo uma prática social que envolve diversos aspectos como os educativos, da saúde e interpessoais, ressaltando sua integração também às práticas de educação. Nesse sentido, as autoras afirmam que o cuidar e o educar expressam o que se entende como funções da Educação Infantil que são, sobretudo, direitos das crianças. Assim, cuidar pressupõe a organização de situações capazes de promover o desenvolvimento do outro - seja este outro criança ou adulto, professor, família, seja a própria coordenação pedagógica.
Nesse sentido, na perspectiva do cuidado, é atributo da gestão pedagógica, no contexto da Educação Infantil, reconhecer que “[...] o processo pedagógico deve considerar as crianças em sua totalidade, observando suas especificidades, as diferenças entre elas e sua forma privilegiada de conhecer o mundo por meio do brincar”, conforme apontam os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL, 2006, p. 17). Nessa perspectiva, Santos (2015, p. 46) afirma que o coordenador pedagógico deve “[...] auxiliar coletivamente o corpo docente a ampliar as habilidades de ouvir e de observar as crianças, de documentar e registrar projetos, atividades e situações e de conduzir investigações na própria prática docente”.
Conforme dispõe o inciso II do Art. 7º das DCNEI, “[...] a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve garantir que elas cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica, assumindo a responsabilidade de compartilhar e complementar a educação e cuidado das crianças com as famílias” (BRASIL, 2010, p. 98). Ressaltamos que os regimentos internos das creches e da pré-escola que foram por nós analisados preveem, dentre as atribuições da coordenação pedagógica, a integração da instituição de Educação Infantil com as famílias (TURMALINA, 2018), como já evidenciado. Nesse sentido, Bruno, Abreu e Monção (2010) salientam que, no âmbito da gestão, o cuidado se desvela nos processos de formação continuada da equipe em busca da construção de uma gestão democrática e participativa que garanta voz a todos os sujeitos que compõem o cenário da instituição: crianças, profissionais e famílias. É possível inferirmos, dessa maneira, que o trabalho coletivo desenvolvido em creches e pré-escolas se efetiva e se qualifica a partir da participação democrática desses sujeitos no processo de gestão institucional.
Percebemos, por conseguinte, que as peculiaridades da Educação Infantil influenciam diretamente no modo como o coordenador pedagógico pode atuar, e que esse profissional necessita, a partir disso, articular as dimensões da gestão em busca de traçar estratégias diante as limitações e os avanços observados no decorrer do processo de organização do trabalho pedagógico coletivo.
Contudo, três entrevistadas destacaram que a coordenação pedagógica da Educação Infantil exerce uma ou várias funções incompatíveis com as atribuições que lhe são pertinentes:
Geovana - 13/05/2020: O supervisor, hoje, na Educação Infantil tem essa função: de ser um animador, que faz palhaçada e promove brincadeiras nos momentos para as crianças; a introdução de conteúdos junto às turmas. O supervisor pedagógico é visto como uma figura sem nenhuma importância, que está ali para atender a tudo em uma escola, um profissional perdido, como se não tivesse um plano de ação, que está ali só para acudir as datas comemorativas da escola, os momentos. Falta uma postura firme do supervisor de encarar e expor a sua função.
Maria Clara - 20/05/2020: A supervisão pedagógica da Educação Infantil precisa ter um olhar diferente, o professor precisa começar a enxergar o supervisor como aliado deles e não como inimigo; a gente quer que ele agregue conhecimento, renove o seu conhecimento, que ele se aprimore. Na visão do professor, o supervisor deve estar na escola a serviço do professor, para fazer o que ele quer - cortar um papel, fazer um momento para as crianças, dando aulas de reforço para a criança com dificuldade de aprendizagem.
Maria Cristina - 14/05/2020: Sempre os supervisores pedagógicos aqui na escola assumiram essas demandas, de fazer momentos... Isso já faz parte do nosso trabalho. A direção e os professores já esperam que vamos fazer isso. Foi necessária uma reunião com a equipe da escola (diretores) sobre a função dos supervisores em organizar e realizar os momentos, pois me senti uma “promoter de eventos”. Diante de tantas atribuições próprias do supervisor não conseguiria fazer os momentos da escola. [...]. Posso auxiliar na organização dos momentos, mas fazer, isso não é minha função.
Dubet (1996) considera que, na lógica da subjetivação, o sujeito - que não se reduz a reproduzir os princípios integradores oriundos da socialização, tampouco se restringe a manipular interesses em espaços concorrenciais - é capaz de exercer a crítica e, nesse sentido, Maria Cristina, Maria Clara e Geovana não se furtam de realizar uma severa apreciação acerca das atribuições conferidas às coordenadoras que, deliberadamente, não constituem ações da coordenação pedagógica. A crítica que elas realizam, além de contundente, é deliberada, já que expressa a subjetividade que empregam à sua constituição como profissionais, não se alinhando às visões integradoras que, embora inadequadas, se expressam na regulação institucional.
A investigação sobre como as coordenadoras pedagógicas se constituem como profissionais demanda um exercício analítico que consiste em “subir da experiência ao sistema” (DUBET, 1996, p. 112), isto é, empreendendo um exercício interpretativo capaz de identificar as diferentes lógicas de orientação normativa das condutas presentes no sistema social mediante os modos como os atores as articulam e as sintetizam tanto no plano da ação individual como no plano da ação coletiva. Diante disso, ressaltamos que as entrevistadas em questão (Maria Cristina, Maria Clara e Geovana) atuam nas pré-escolas do município de Turmalina e, assim, buscamos verificar se tais funções encontram regulação no Regimento Interno dessas instituições. Nesse documento, em seu Art. 52, constam as seguintes competências dos especialistas em educação das pré-escolas que têm relação com as atribuições citadas pelas participantes: “l) Exercer atividades de apoio à docência; m) Promover momentos “Conviver e Aprender”, momentos cívicos e outros; III) Realizar a orientação dos alunos, articulando o envolvimento da família no processo educativo” (TURMALINA, 2018, p. 31-32).
O que consta no Regimento Interno relativo às queixas das entrevistadas está regulamentado de maneira imprecisa, já que não especifica as atividades a serem desenvolvidas pelas coordenadoras pedagógicas das pré-escolas, o que remete a ambiguidades no desempenho de suas funções. Isso confere à coordenação pedagógica uma imagem profissional descaracterizada e, consequentemente, desprovida de sentido. Além disso, verificamos um total descompasso entre o regimento interno e as concepções fundantes da política de Educação Infantil de nosso país que, dentre outras questões, reconhece a criança como centro do processo pedagógico e não futuros alunos. Podemos perceber também, conforme as falas das entrevistadas, a incompreensão por parte da equipe docente e dos diretores da instituição das atribuições devidas às coordenadoras pedagógicas. Desse modo, a imprecisão das funções das coordenadoras pedagógicas que atuam na pré-escola surge no cotidiano, nas ações coletivas entre os sujeitos - diretoras, coordenadoras e professoras.
Podemos inferir, segundo o relato de Maria Cristina, que a realização dos “momentos” já era uma atividade considerada própria da coordenação pedagógica da pré-escola que, ao longo dos anos, passou a constituir-se como parte de suas atribuições; dessa maneira, a descaracterização das funções foi gerada a partir das ações coletivas no cotidiano da pré-escola. Para Dubet (1996apudSILVA, 2008, p. 47), na lógica da subjetivação, a identidade do sujeito “[...] (aquele que quer construir sua própria vida) é sempre uma tensão entre a ação integradora e a estratégia - uma tensão com o mundo na qual o sujeito é sempre um mau sujeito, afirma, utilizando a expressão de Touraine”.
A forma com que essas profissionais se inserem no contexto institucional pode favorecer a delimitação das atribuições que, dentre outros aspectos, se constituem na profissionalidade das coordenadoras pedagógicas. Ressaltamos que as três participantes se referem à realização dos “momentos” de maneira pejorativa - não compreendendo tais situações como função pertinente à coordenação pedagógica de creches e pré-escolas. Os momentos “Conviver e Aprender”, momentos cívicos, e outros (previstos em regimento interno da pré-escola), são eventos institucionais que deverão ser promovidos pelo coordenador pedagógico, conforme já destacado neste estudo. Atribuições como os “momentos”, no contexto investigado, são repassadas para as coordenadoras pedagógicas da Educação Infantil sem um debate mais amplo sobre a função sociopolítica e pedagógica de creches e pré-escolas no contexto da Educação Básica. Isso resulta da constituição histórica da coordenação pedagógica no bojo da escola pública brasileira, uma vez que as atribuições dessa ocupação profissional foram se constituindo a partir de um percurso não linear e de reconhecimento tardio nas políticas públicas brasileiras, o que afetou a constituição de sua identidade profissional (FERNANDES, 2010). Logo, há indícios de que, no ambiente da pré-escola, houve uma redefinição dos valores e da visão profissionais acerca das atribuições do coordenador pedagógico e que não necessariamente foram inicialmente debatidos, refletidos e significados por aquelas profissionais.
Nesse ínterim, destacamos um fragmento da fala de Geovana: “Falta uma postura firme do supervisor de encarar e expor a sua função” - expressão que celebra o emprego da subjetividade no processo de produção de sentidos sobre o fazer cotidiano das coordenadoras pedagógicas da Educação Infantil. Geovana expressa-se de forma a buscar uma solução diante do quadro de desvalorização do coordenador pedagógico no contexto da Educação Infantil de Turmalina. Nesse sentido, consideramos que o exercício da crítica, realizado por essas coordenadoras, deve ser considerado para fins de definir a formação e a função do trabalho profissional por elas realizado. Para Dubet (1996), o exercício da crítica configura-se como uma forma de orientação da ação social em que o ator, por meio de sua capacidade crítica, se constitui como sujeito, o que ocorre por meio do movimento de distanciamento que ele toma em relação à integração e à concorrência. Contribuindo com essa reflexão, Santomé (1997) considera que o exercício da crítica deve ser considerado para fins de definir a formação e a função do trabalho profissional. O exercício da crítica, para esse autor, configura-se mediante práticas democráticas e, dessa maneira, “[...] é possível que seja mais fácil detectar e fazer frente às situações de injustiça e dominação que sofrem para os coletivos sociais com menor poder” (SANTOMÉ, 1997, p. 7), o que justifica a ocultação e a marginalização das vozes e dos grupos sociais oprimidos. Assim, a fala de Geovana pressupõe uma autocrítica construída em meio a um contexto coletivo de desvalorização profissional -
o que também nos faz refletir sobre quais os possíveis entraves que impossibilitam à coordenadora pedagógica encarar e expor a sua função. No caso específico, tal profissional não poderia ressignificar tais “momentos” na direção de um trabalho coletivo, democrático e dinâmico, de enriquecimento cultural? O que impede que isso aconteça?
Outra observação realizada quanto às atividades destacadas pelas três participantes diz respeito ao teor conservador e escolarizante com que essas atividades são colocadas, o que vai de encontro às normativas que regulamentam a organização da Educação Infantil bem como às perspectivas da Pedagogia da Infância. A introdução de conteúdos, a organização de momentos cívicos e as aulas de reforço são atividades com vieses mecanicistas e preparatórios, contradizendo as concepções norteadoras da política de Educação Infantil que primam pelas experiências sociais das crianças em espaços coletivos, a partir do cuidar e do educar, tendo o brincar e demais formas de interação da criança com o mundo como eixo central da ação pedagógica (BRASIL, 2010).
Além disso, a crítica realizada pelas coordenadoras configura-se, também, como uma autocrítica. Pudemos ouvir de Maria Clara que: “A supervisão pedagógica da Educação Infantil precisa ter um olhar diferente, o professor precisa começar a enxergar o supervisor como aliado deles e não como inimigo; a gente quer que ele agregue conhecimento, renove o seu conhecimento, que ele se aprimore”. Para que isso ocorra, é necessário um movimento das próprias coordenadoras no sentido de renunciar “[...] ao exercício de uma posição de poder, de liderança diretiva [e prescritiva], controladora, sancionadora” (SAVIO, 2017, p. 144) que pode ser assumida de forma defensiva frente à complexidade da função de coordenação. Demanda, assim, um processo de parceria, de co-ordenação no enfrentamento de incertezas e dificuldades impostas pela complexidade das práticas de cuidado e educação de bebês e de crianças pequenas em espaços públicos.
Embora se conforme como campo de ação de um ator social específico, a coordenação pedagógica na Educação Infantil congrega diferentes sentidos que convergem para a construção de espaços e tempos coletivos que incidem diretamente sobre suas próprias atribuições profissionais. Na medida em que cada contexto educativo tem suas especificidades, é na atuação junto às professoras, identificando as reais necessidades da instituição de Educação Infantil, que essas profissionais constroem a experiência social na qualidade de coordenadoras pedagógicas de creches e pré-escolas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de constituição profissional das coordenadoras pedagógicas é produto das construções cotidianas e coletivas de suas próprias experiências sociais - sobre si mesmas, conforme ressalta Dubet (1996). Assim sendo, a profissionalidade das coordenadoras pedagógicas é, também, constituída a partir de sua inserção e socialização no contexto institucional. Como visto, mesmo diante de um cenário político de invisibilidade, imprecisão e desvalorização profissional, as coordenadoras pedagógicas da Educação Infantil, assim como evidenciam as entrevistadas, buscam por meio de diferentes lógicas de ação atender aos preceitos pedagógicos que vislumbram, dentre outros aspectos, a indissociabilidade entre as práticas de cuidado e educação, principalmente no que diz respeito à relação com as famílias e à sensibilidade e atenção dispensadas às crianças em suas diversas interações.
As atribuições da coordenação pedagógica da Educação Infantil revelam-se nos cuidados e na educação que elas destinam, não somente às crianças, mas também às professoras e famílias, acolhendo-as, ouvindo-as, orientando-as e possibilitando que elas se desenvolvam mediante saberes múltiplos, advindos do contexto de reflexões e de interações que emergem do trabalho coletivo. A comunhão desses saberes busca superar abordagens, conceitos e práticas assistencialistas ou de natureza escolarizante, assim como evidencia as especificidades sociopolíticas e pedagógicas dos espaços de cuidado e educação, o que contribui ativamente para o processo de construção da identidade da Educação Infantil. Em síntese, a coordenação pedagógica articula a polifonia de vozes dos diferentes sujeitos presentes no contexto de creches e pré-escolas (crianças, seus familiares e profissionais, legislação, bem como a regulação do sistema social mais amplo), os diversos saberes e distintos fazeres que cotidianamente estruturam o fazer pedagógico na Educação Infantil.
Assim, a emergência de novos/outros sentidos relativos à organização do trabalho coletivo de creches e pré-escolas necessita considerar as especificidades sociopolíticas e pedagógicas da Educação Infantil, de modo a valorizar as competências profissionais das coordenadoras pedagógicas que atuam nesses espaços e que emergem de suas próprias ações. Tais sentidos são regidos muito mais pela experiência social das coordenadoras - e que surgem do trabalho pedagógico - do que pela regulação institucional. Essa assertiva parte do reconhecimento de um trabalho específico e, ao mesmo tempo, complexo, que expõe as condições e as peculiaridades desse ofício e permite-nos, a partir disso, refletir, individual e coletivamente, sobre as possibilidades de aprimoramento do trabalho pedagógico coletivo na Educação Infantil.
Por fim, ressaltamos a importância de ampliar os estudos, os diálogos e as pesquisas que tratem sobre a profissionalidade do coordenador pedagógico da Educação Infantil, a fim de problematizar, refletir e evidenciar o lugar, as especificidades desse sujeito - que conduz a dinâmica das interações coletivas nos contextos de cuidado e educação.