INTRODUÇÃO
A animação Divertida Mente (2015) sensibiliza-nos com os sentimentos de uma professora no contexto de sala de aula. A docente em questão faz uma pergunta e não há sinal de que os alunos venham a respondê-la. O desinteresse na atividade exercida pela trabalhadora encontra sua manifestação máxima em uma criança que dorme enquanto a professora leciona. Tal exemplo fictício chama a atenção para uma perspectiva socialmente compartilhada a respeito do gênero profissional docente: o destinatário para o qual se dirige o endereçamento da atividade, ou seja, para quem se dirige o objetivo do trabalho, não parece receptivo e interessado na atividade exercida. A atividade, tanto prática quanto psíquica (sendo que essas não se desvinculam no trabalho docente), implica na produção de um contexto para existir (CLOT, 2010). Quando o trabalhador age sem se sentir ativo na atividade, ele torna a própria eficácia da sua ação questionável, além de deixá-lo sujeito às psicopatologias laborais. Nesse sentido, a docente dessa animação ausenta sua mente da atividade, pois essa não representa para ela um contexto de existência.
Não obstante, cada trabalho e profissão contém seu próprio gênero social, isso é, “[...] parte subentendida da atividade, o que os trabalhadores de determinado meio conhecem e observam, esperam e reconhecem, apreciam ou temem” (CLOT, 2010, p. 121-122). Devemos considerar sempre que o trabalho é, na perspectiva teórico-metodológica marxista, aquilo que fundamenta a formação do gênero humano (MARX, 2010). De modo que o “[...] processo de trabalho é considerado atividade, e que esta sempre deve responder a alguma necessidade do sujeito e estar dirigida ao objeto capaz de satisfazer essa necessidade” (URT et al., 2020, p. 258). Logo, temos em perspectiva o trabalho e, na base deste, a atividade como categoria fundamental da constituição psíquica. Além disso, cada gênero social de trabalho possui determinados atributos que revelam parte de sua lógica dialética, entre aspirações, objetivos e temores.
A questão do adoecimento psiquiátrico para a psicologia, em contextos de trabalho, deve ser avaliada enquanto um processo. Clot também aponta que a atividade se torna insuportável na medida em que a experimentação do trabalhador é inibida, vedando o reconhecimento inter e intrapessoal deste em seu labor. Esse processo afeta sua saúde por meio de um julgamento negativo “[...] em relação ao que desejaria ter feito, ao que realizou comparado com o que poderia ter realizado, ao que acabou realizando diante do que pensava ter feito” (CLOT, 2010, p. 300). Ao ponderar sobre o acometimento psíquico docente, Duarte (2020) considera que há um entrecruzamento de fatores objetivos e subjetivos. Devemos pormenorizar esses fatores sempre fazendo referência a uma constituição dialética que tenha em perspectiva a totalidade do ser humano, isto é, considerar que, em muitos casos, a constituição social do adoecimento constitui-se em cerceamento da possibilidade desse processo vir a ser uma forma de atravessar novas vivências. A objetividade (condição real de vivência) precisa se relacionar intimamente com a subjetividade (expressa pelo poder de agir), considerando-se a precariedade como condição da contemporaneidade que acomete o cotidiano escolar, provocando baixa valorização do professor, simbólica e econômica (HASHIZUME, 2020).
Uma apreensão materialista histórica e dialética considera que os sujeitos fazem sua própria história, conquanto “[...] não a fazem de livre e espontânea vontade; pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 1852/2021, p. 25). Desse modo, o adoecimento docente é evidenciado em um contexto de possibilidades e impossibilidades, ou seja, da atividade real que considera tanto a atividade feita como a que poderia ser realizada (CLOT, 2010). Nesse sentido, a atividade pedagógica, ao invés de desenvolver as potencialidades docentes, faz o professor vivenciar “[...] condições objetivas de trabalho, como a alienação do trabalho e a precarização, que impactam em sua atividade de forma concreta e pontual, nas quais os profissionais não conseguem desenvolver a prática docente da forma ideal” (NÜSSLE, 2021, p. 91).
Assim, aprofundarmo-nos nas apreensões do adoecimento docente reflete diretamente a necessidade de também se relacionar com o objeto de trabalho, considerando que o significado social da escola é “[...] ensinar aos alunos os conhecimentos científicos, provocando neles o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, tais como a memória, atenção concentrada, abstração, criatividade, entre outras funções” (FACCI; URT, 2018, p. 286), o papel do professor é o de mediador entre aluno (ou criança, no caso da educação infantil) e o conhecimento. Sua finalidade é de “[...] levar o indivíduo a se apropriar dos elementos culturais produzidos histórica e coletivamente, necessários à sua formação como ser humano” (NÜSSLE, 2021, p. 90). O objetivo de seu trabalho, para o qual se direciona o sentido de sua atividade, é outro humano, implicado no próprio objeto do seu fazer.
Segundo Clot, nas atividades profissionais em que o objeto da atividade são outros sujeitos, se configura um “[...] lugar de uma colisão entre atividades ou, no mínimo, de uma troca” (2010, p. 22, grifo nosso). Acrescentemos: o trabalho docente na educação básica tem como uma de suas especificidades lidar com sujeitos de diferentes níveis de desenvolvimento e origens socioculturais, o que o transforma em um processo ainda mais desafiador para a saúde mental, com múltiplas possibilidades de satisfação e sucesso laboral - mas também de frustração e de fracasso.
Além disso, a categoria vigotskiana do drama configura, para nós, um forte recurso teórico para a análise da experiência docente, considerando primeiro o “[...] desenvolvimento humano como transformação, ao longo do tempo, de todo um conjunto de relações sociais e do sistema de relações interfuncionais que lhes é correlato - comparável ao desenrolar de um ‘enredo’ encenado em vários ‘atos’” (DELARI JR., 2011, p. 185). A depender da função social (papel) que a pessoa desempenha, haverá um conflito entre papéis que podem ser antagônicos quanto à evolução (tomada de decisão). Há uma possível hierarquia de papéis em diferentes esferas da vida social; o choque entre elas estabelece o drama. “Assim, dizer que ‘a dinâmica da personalidade é drama’ ultrapassa a imagem da ‘peça em vários atos’” (idem, p. 185). Consideramos como fundamental para o raciocínio entender essa natureza dramática de desenvolvimento da personalidade que “[...] como processo ‘dramático’ é repleto de importantes decisões vitais cujos ganhos e perdas não se apagam da memória facilmente” (NÜSSLE, 2021, p. 48, grifo nosso). Neste sentido, enxergamos a valiosa distinção de Clot entre a atividade realizada (activité reelle) - o que se faz, nos limites impostos pelo real - e o real da atividade (réel de l´activité), que também abarca “o que não se faz, o que se tenta fazer sem ser bem-sucedido - o drama dos fracassos [...] o que se desejaria ou poderia ter feito e o que se pensa ser capaz de fazer noutro lugar” (CLOT, 2010, p. 103). As atividades intencionadas acabam adquirindo uma energia adoecedora. O real da atividade envolve também o plano psíquico dos desejos solapados de uma certa pessoa em contraste com as cruas limitações do trabalho que é instada a realizar. Tivemos vários indícios desses fenômenos dos quais tivemos diversos indícios em nosso mergulho nos prontuários indicativos da psiquiatrização docente. Como também observa Delari Jr. (2011), aquilo de que se abriu mão continuará a pairar na existência do sujeito de determinada escolha.
A sala de aula é o cenário principal do drama de adoecimento docente, onde transcorre o enredo interativo com o aluno que dará (ou não) o sentido à atividade desse gênero profissional. Dessa forma, o cerceamento do poder de agir frente às condições precárias do labor provoca ou colabora para o adoecimento psicológico. É nesse sentido que, neste trabalho, temos como objetivo adentrar na relação entre magistério e seu objeto (humano) de trabalho, ou seja, a relação professor-aluno e seus desdobramentos no processo de psiquiatrização docente no município de Goiânia, aprofundando em uma análise das características dramáticas das histórias de adoecimento documentadas nos prontuários.
METODOLOGIA
Em etapas anteriores do projeto de pesquisa da orientadora, foram elaboradas fichas-síntese1 com base em prontuários de licença médica docente arquivados na Junta Médica Municipal de Goiânia (JMM). Para essa elaboração, selecionaram-se prontuários de docentes da educação infantil, do ensino fundamental (ciclo I e II) e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que possuíssem licença(s) por motivos psiquiátricos (capítulo F do CID-10) entre os anos 2015-2017, e cujo adoecimento, a partir da leitura do prontuário, mostrasse relação com o trabalho docente. Posteriormente, inseriram-se os dados na plataforma webQDA2, o que proporcionou a elaboração de trabalhos qualitativos, também com análises simples utilizando estatísticas descritivas. Assim, os dados que analisamos referem-se aos dramas de psiquiatrização de docentes envolvendo versões do próprio sujeito e de terceiros sobre tal processo - como familiares e chefia imediata -, endereçadas à equipe da JMM, como peritos e assistentes sociais. Detalhamos esses aspectos, pois é necessário ter em mente o endereçamento do discurso que usaremos em nossa análise, bem como os objetivos subjacentes à descrição do adoecimento3.
Notou-se, no decorrer da elaboração das fichas-síntese, a relação professor-aluno como determinação principal ou acessória do processo de adoecimento psíquico, o que se confirmou através da pesquisa de texto no webQDA a partir dos termos: “alun*”, “estudant*”, “crianç*” e “adolescent*. Por meio do webQDA, selecionamos 62 fichas dentre as 109 elaboradas. Após análise inicial, permaneceram 35 fichas que vinculavam a interação professor-aluno ao processo de adoecimento. Lemos minuciosamente as fichas selecionadas, destacando todos os pontos atinentes à relação investigada, culminando na criação de duas categorias (queixas4 e desdobramentos5) que focam a relação professor-aluno e o trabalho em geral, a seguir apresentadas. Para melhor expressar nossos achados, construímos as seguintes tabelas que identificam as categorias criadas e sua frequência:
CATEGORIA | FREQUÊNCIA |
---|---|
Trauma (evento dramático) | 13 |
Agressão/Violência sofrida ou vivenciada | 10 |
Problemas familiares | 10 |
Stress | 6 |
Indisciplina | 6 |
Saúde (sem relação laboral) | 5 |
Sobrecarga de trabalho | 4 |
Impossibilidades na inclusão de alunos com deficiência | 3 |
Dificuldades na mediação aluno-conhecimento | 3 |
Sofrer preconceito | 2 |
Barulho | 2 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com dados da pesquisa.
CATEGORIA | FREQUÊNCIA |
---|---|
Aversão ao aluno | 13 |
Medo da sala de aula | 12 |
Problemas na educação infantil | 6 |
Agressão/descontrole com aluno | 6 |
Dificuldades/problemas pedagógicos | 5 |
Baixa autoestima para com a atividade profissional | 4 |
Comportamentos inadequados do docente | 2 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com dados da pesquisa.
Apesar de evidenciarmos o número de vezes em que cada categoria é notada, nosso interesse consiste em avaliar a interação de todas em uma totalidade dialética. Portanto, nossa discussão segue esmiuçando detalhes dessa categorização, tendo em mente que cada ficha integra um longo, complexo e contraditório processo singular de sofrimento. Em nossa discussão, atribuímos nomes fictícios aos professores e expusemos trechos das fichas-síntese.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A dinâmica dramática da constituição da personalidade atravessa todas as queixas e os desdobramentos em um contexto de precarização e de alienação do trabalho. Para explicitá-la, começamos a discussão especificando que as categorias Evento dramático, Stress, Sobrecarga, Sofrer Preconceito, Dificuldade/problemas pedagógicos, Problemas familiares e Saúde (sem relação laboral) serão trabalhadas não isoladamente, mas em diálogo com as demais.
Escolhemos primeiro tratar da categoria Evento dramático, ou seja, como já apontado por Nüssle (2021), eventos/vivências que incidem na memória insistentemente e que são momentos de virada, marcando um antes e um depois na relação subjetiva com o trabalho/atividade. Nesta categoria, incluímos os trechos das fichas-síntese nos quais os docentes em licença se dizem traumatizados com uma situação no contexto escolar. Nas treze vezes em que isso foi mencionado, doze se relacionam às situações de agressão (sofridas ou cometidas) e de violência no contexto escolar. Tratamos, então, juntamente com o trauma, o desdobramento agressão/descontrole com aluno e a queixa agressão/violência sofrida ou vivenciada.
Aqui, manifesta-se a singularidade dos dados e as contradições dramáticas do trabalho docente, pois, em muitos momentos, temos relatos precisos de comportamentos violentos e agressivos cometidos por professores. Lírio relata que “Pânico e ansiedade na regência de classe é o mais frequente, além de stress e sobrecarga de trabalho. Após agredir a menina, passou a se mostrar receoso em manter contato com crianças” (Extrato da ficha-síntese de Lírio)6. Assemelha-se a Lírio o drama de Amélia:
A servidora relata que, desde que se iniciou o trabalho no município, é muito cobrada por suas atividades, gerando stress e ansiedade, os quais, mais tarde, foram potencializadas por acontecimentos familiares que contribuíram para a piora do quadro emocional dela, que chegou a cometer agressões com alunos (Extrato da ficha-síntese de Amélia).
Também temos o relato de Agapanto, mencionando que “[...] teve medo de agredir os alunos, já tendo dois processos contra ele por parte de alunos por agressões verbais e físicas (empurrão)” (extrato da ficha-síntese de Agapanto). Percebemos, por meio desses extratos - representativos do drama desses e outros docentes, um atravessamento dialético de stress, sobrecarga, problemas familiares e outros fatores que constituem a relação professor-aluno, mesmo que indiretamente.
Finalizamos a categoria de agressões cometidas por docentes com uma descrição detalhada: “A situação de agressão de que ele foi autor ocorreu quando uma aluna o procurou repetidamente durante a aula, apenas para mostrar-lhe um relógio. Em um suposto surto, ele lançou o objeto contra a parede da sala de aula, gritando” (extrato da ficha-síntese de Antúrio). A explosão do docente em sala de aula com a aluna, que nesse momento mostrava-lhe um objeto, sustenta a recorrente percepção docente sobre a sala de aula como espaço determinantemente estressante, como pode ser observado de forma generalizada nas referências consultadas (com destaque para FACCI; URT, 2020; FERREIRA, 2016; APEOESPE, 2012).
Notamos (em especial no drama de Lírio) a marcação de um antes e um depois ao evento dramático, o que também se apresenta quando a agressão ou violência é sofrida pelo professor. Relata Gérbera, professora do EJA, que “Em 2015 foi vítima de assalto no ambiente escolar, e iniciou quadro de adoecimento psíquico, com sintomas de ansiedade, síndrome do pânico, e mal-estar em relação à escola e aos alunos” (Extrato da ficha-síntese de Gérbera). Margarida “[...] relata ter sido ameaçada de morte por aluno, tendo oscilação de humor, insônia, anedonia e apragmatismo” (extrato da ficha-síntese de Margarida). Já Rosa declara “Transtorno ansioso afetivo bipolar, manifestado agudamente após ser agredida por aluno durante atividades laborais” (extrato da ficha-síntese de Rosa).
A violência, antes de mais nada, está presente na sociedade e invade o espaço escolar, como efeito da luta de classes na sociedade capitalista, “[...] que o homem sofre diante de sua incapacidade de realização e, (sic) como não consegue sentir-se seguro, reage às situações postas como impulsos em forma de ira contra o outro” (FACCI, 2019, p. 134). Clot considera que na “[...] patologia, existe, de fato, uma criação subjetiva” (CLOT, 2010, p. 100). Ou seja, a experiência com agressões e violências no contexto laboral configura uma recriação subjetiva que cerceia a possibilidade de desenvolvimento. “O sujeito previne-se fazendo apelo a proteções instauradas outrora, no decorrer de situações análogas. O indivíduo defende-se contra o medo, ao defender-se com o medo” (CLOT, 2010, p. 108). A marcação traumática que a violência proporciona ao drama de adoecimento docente relaciona ações agressivas como um limite subjetivo que, ao ser ultrapassado, desnuda a insuportabilidade das condições impostas ao trabalho. Nesse sentido, passamos para a sala de aula como cenário principal da relação professor-aluno, carregada por Medo/aversão dos docentes em processo de adoecimento. Existe um processo de generalização do temor que podemos considerar como uma formação afetiva (VIGOTSKI, 1933-1934/1996) que transcende, pois, a própria situação na qual ele foi gerado, tornando-se uma verdadeira aversão ao principal espaço no qual o trabalho deveria revestir-se de emoções gratificantes e propósitos socialmente relevantes.7
Consideramos as categorias Stress, Indisciplina e Barulho indicativas da ambientação da sala de aula. O docente Teobaldo “[...] relata estar com ‘pânico de sala de aula’, fobias diversas, ansiedade paroxística, e uso de medicação [...] relata ainda não suportar o ‘efeito estressor’ da sala de aula’” (extrato da ficha-síntese de Teobaldo). A professora Torênia menciona a condição socioeconômica da escola em que atua, considerando que seu adoecimento aumenta ao ser transferida para uma “[...] escola de periferia que possuía muitos problemas com indisciplina dos alunos” (extrato da ficha de Torênia). Tulipa reclama da “[...] indisciplina dos alunos e que sofre preconceito por sua deficiência motora e pede melhores condições para o seu trabalho” (extrato da ficha síntese se Tulipa). Por outro lado, a chefe da professora indica que os estudantes reclamam da irritação e da falta de respeito dessa professora para com eles, bem como de sua didática.
A direção de uma escola relata, a respeito do adoecimento do professor William, que “[...] os alunos aproveitam a condição emocional fragilizada do professor, sendo indisciplinados” (extrato da ficha-síntese de William). Nemésia diz não suportar o barulho “[...] dos alunos e ficar muito angustiada” (extrato da ficha-síntese de Nemésia). Já Gardênia diz à perícia que a readaptação “[...] auxiliou na melhora do quadro, pois o barulho dos alunos e o nível de exigência cognitiva desencadeiam crises de ansiedade” (extrato da ficha-síntese de Gardênia). Cordélia entra em um “[...] quadro de medo, pânico, após assistir à troca de tiros entre alunos adolescentes na escola onde leciona. Está traumatizada com medo [...], só chora constantemente” (extrato da ficha-síntese de Cordélia). Viola aponta problemas de saúde e familiares junto ao “[...] medo de trabalhar com os alunos do Instituto, pois é um curso de Educação para adolescentes, jovens e adultos - EJA. Alguns são difíceis, têm problemas com drogas e o medo constante não a tem deixado trabalhar” (extrato da ficha-síntese de Viola).
Esses breves extratos são dotados de conteúdos indicativos da dinâmica escolar: um lugar estressante, onde barulho e indisciplina imperam face a um trabalho que, em condições precárias, leva o professor Cravo a ter “[...] como ‘hipótese que a sala de aula pode ter sido o fator primário para as dificuldades apresentadas’” (extrato da ficha-síntese de Cravo). Segundo Borges, a docência é “[...] marcada por um intenso processo de violência, tanto verbal quanto física, desrespeito, indisciplina e falta de interesse para o aprendizado” (2014, p. 175). Nesse sentido, pode ser considerado um impedimento objetivo e material na atividade de mediação, pois, longe de ser um trabalho inerte, o trabalhador docente reflete características mais amplas do contexto histórico. Nessa mesma pesquisa, Borges (2014) aponta que as tensões mais consideradas pelos docentes são a indisciplina/falta de apoio da família dos alunos, bem como as salas lotadas. Ou seja, novamente, a sala de aula como campo de atuação insalubre já é dado como temor comum do gênero profissional docente.
Azaleia também indica que “Tem ‘pânico’ de sala de aula e se irrita com os estressores cotidianos virando ‘bicho’ se as coisas não são feitas do seu jeito” (extrato da ficha-síntese se Azaleia). A docente Gardênia relata que “[...] pensar na possibilidade de voltar à sala de aula ‘causa pânico e extremo sofrimento’” (extrato da ficha-síntese de Gardênia). Esse temor da sala de aula se interliga diretamente à natureza da relação professor-aluno, pois é nesse cenário que a atividade pedagógica - em geral - ocorre.
Trataremos agora de algumas categorias que caracterizam essa interação, primeiro no que tange à Dificuldades na mediação aluno - conhecimento, passando pela Impossibilidades na inclusão de alunos com deficiência e pelos Problemas na educação infantil.
Como já consideramos, amparadas em outros trabalhos, o gênero profissional docente consiste na mediação entre um sujeito-objeto (aluno ou criança) e o compartilhamento do conhecimento acumulado historicamente. Nesse sentido, alguns docentes apresentam um sofrimento particular relacionado ao papel da medicação, levando Íris a queixar-se “[...] das dificuldades enfrentadas em sala, e principalmente da postura dos alunos que a cada ano tomam-se mais complexos” (extrato da ficha-síntese de Íris). Lamentamos que, no momento da entrevista pericial, não se tenha questionado à docente sobre o que ela considera “ser complexo”.
A dificuldade na compreensão desse gênero, ou seja, do papel de mediador (além de condições objetivas que impedem a mediação), também se desdobra em Comportamentos inadequados do docente no contexto da sala de aula, em formas bastante idiossincráticas. Como no drama de Teobaldo, em que a chefia da escola menciona que o docente: “[...] fala palavrões, tira a camisa, os sapatos, coloca os pés na mesa, deita-se no chão pedindo para que alguma aluna suba em suas costas para massageá-lo, alegando sentir dores” (extrato da ficha-síntese de Teobaldo). Consideramos agora que “A renúncia ao gênero, por qualquer razão que se possa imaginar, é sempre o início de uma desordem da ação individual. Ele desempenha, portanto, uma função psicológica insubstituível” (CLOT, 2010, p. 125). É exatamente o que notamos no processo de adoecimento docente: a renúncia às funções e às atividades do gênero profissional configura um processo de desordem da ação, levando então a comportamentos considerados inadequados pela apreensão social do gênero.
Outro exemplo dessa mesma categoria de desdobramento está no drama de Catarina, sobre o qual a chefia relata “[...] que ela tem dificuldades pedagógicas e em lidar com os pais. Diversas pessoas consideram-na sem perfil para a EI e que ela não respeita as regras impostas na escola” (Extrato da ficha-síntese de Catarina). Para a Educação Infantil (EI), consideramos a diferença entre aluno e criança, no qual o segundo exige um laço estreito em cuidar e educar8, além de uma relação em estreita cooperação: professor-aluno-família9. Esse processo exige vínculo com a criança para que a mediação dos símbolos, signos e regras compartilhados socialmente seja internalizada. No processo de adoecimento de Jasmim, ficam evidentes as particularidades da EI e seus potenciais desdobramentos frente a uma sociedade que, num compartilhamento do gênero social docente, não considera o cuidar como parte do processo de educar:
[...] não se sente bem trabalhando com crianças de três anos, pois é como se ela estivesse regredindo profissionalmente, e que ela não quer dizer que é ‘tia’, nem estabelecer vínculos com elas. [...] faz acompanhamento com psicólogo desde 2010 e ainda sente tremor perante crianças agressivas, enjoo ao preencher relatórios, demorando muito para fazer o planejamento [...] reduzindo acentuadamente a sua capacidade de sentir ternura pelas crianças e dificuldades em concentrar-se ou completar tarefas relacionadas ao trabalho, indicando que as agressões sofridas pela servidora anteriormente no seu ambiente de trabalho assumiram proporções impeditivas para a vida da servidora. [...] refere frustração por não ter conseguido lidar com a situação vivenciada (Extrato da ficha-síntese de Jasmim).
Para a pedagoga, as atividades da educação infantil são regressões profissionais. É comum “[...] confundir educação infantil com educação escolar, criança com aluno, sala de atividades com sala de aula” (MELLO, 2015, p. 3). Até pouco tempo, as creches pertenciam à Secretaria do Bem-Estar, e não ao Ministério da Educação, dissociando-se cuidar de educar. “Ao pensar assim, promovemos duas desvalorizações ao mesmo tempo: desvalorizamos o papel do profissional que cuidava (e educava) a criança e desvalorizamos a capacidade da criança de aprender” (MELLO, 2015, p. 4). A desvalorização do papel do professor no contexto de educar crianças pequenas transparece na fala de Jasmim e é parte fundamental do seu processo de psiquiatrização.
Passamos agora para a especificidade das Impossibilidades na inclusão de alunos com deficiência. Magnólia “Diz que teve ‘problemas psicológicos’ após dar aula para criança com deficiência mental [...]” (extrato da ficha-síntese de Magnólia). Já Prímula relata “Medo de não conseguir após ter em sua sala um aluno autista; de já ter chegado ao seu limite” (extrato da ficha-síntese de Prímula). Aqui, notamos novamente a marcação de um antes e depois a um evento dramático; nesse caso, consequência do desafio da inclusão de alunos com deficiência, que, a nosso ver, deveria conduzir uma recriação singular do gênero profissional (ou estilização do trabalho, segundo CLOT, 2010), pois cada demanda de inclusão é única.
Destacamos novamente o complexo adoecimento de Jasmim: “[...] teve aos seus cuidados uma turma com uma criança portadora de deficiência. Essa criança a agredia fisicamente de forma rotineira, sem que houvesse auxiliar disponível” (Extrato da ficha-síntese de Jasmim). Essa docente demonstra as condições precárias que cerceiam a recriação subjetiva do gênero através do estilo, o qual, a partir de Clot, podemos entender que “[...] tem o poder de ampliar as possibilidades de transformação pessoal e profissional dos sujeitos, mas, para isso é necessário que ele ultrapasse os limites impostos pelo gênero” (PIZZI; MELLO, 2012, p. 142). Ou seja, a modificação do gênero depende dos recursos disponíveis para a atividade, sendo que a precarização do trabalho impede a recriação do gênero. Continuando nesse mesmo drama de adoecimento, temos que:
Num dado momento da entrevista, [...] aflita, disse ‘eu não era assim, eu sempre fui uma pessoa criativa e motivada para com o meu trabalho’. Nessa CMEI10, a professora afirma não mais querer estabelecer vínculos com as crianças, nem querer se envolver afetivamente com a instituição. (Extrato da ficha-síntese de Jasmim).
Ficam evidentes os atravessamentos de queixas e desdobramentos que, neste caso, ao impedirem a estilização do trabalho por uma impossibilidade material - a falta de auxiliar educacional -, modificam drasticamente a constituição dramática da personalidade, incidindo em uma Baixa autoestima para com sua atividade profissional. Segundo Clot (2010; 2021), estilo é a libertação profissional do gênero, existindo como mediação entre a atividade prescrita e a atividade realizada. Sendo assim, o sentido de um trabalho bem feito é dado não apenas pela possibilidade de seguir e cumprir o trabalho prescrito. Estilo seria a forma com que o indivíduo se apropria do gênero, podendo redefinir e ressignificar a tarefa prescrita, criando assim uma variante original e subjetiva da profissão, que não deixa de ser social e histórica, podendo vir a se tornar parte do gênero (PIZZI; MELLO, 2012). A constituição dramática da personalidade e o cerceamento do desenvolvimento na patologia levam os docentes a uma cisão entre o objetivo da atividade prescrita e as possibilidades de estilização do ofício. Clot afirma que:
No decorrer da atividade que se inicia, o pleno desenvolvimento do gênero se divide em dois momentos: a atividade do sujeito que se engaja no pressuposto da atividade de outro, o qual se engaja, então, usando o gênero adaptado à situação. O estilo individual é, antes de mais nada, a transformação dos gêneros na história real das atividades no momento de agir em função das circunstâncias (2010, p. 126).
Há uma metamorfose no gênero, no curso da ação, o que leva o trabalhador a se reconhecer no seu trabalho, sendo isso o seu poder de agir, gravemente solapado nas situações descritas. A partir daqui, podemos trabalhar o último - e mais significativo - desdobramento: Aversão ao aluno. Ele emerge fundamentalmente do cerceamento do poder de agir docente, em especial, quando o produto de trabalho é a apropriação do conhecimento e da cultura por outro humano. Na Aversão ao aluno - já evidenciada em alguns trechos -, temos o expressivo drama do professor Hibisco que:
[...] sente que vai desmaiar quando se estressa em sala de aula, palpitação e se cansa com facilidade [...] contato com os alunos piora o seu quadro. Tentou uma função de coordenador, mas se sentiu ainda pior por ter que lidar com todos os alunos da escola. Relata ainda ter dificuldades para planejar aula, recordar dos conteúdos ministrados, dificuldade para manter a disciplina dos alunos, desmotivação com todo o tipo de atividade e desacordo com os ‘moldes atuais’. Por fim, o professor se sente desmotivado e limitado com a readaptação, mas teme voltar à sala de aula e piorar novamente sua condição de saúde (Extrato da ficha-síntese de Hibisco).
Além dos relatos de estresse específico da sala de aula, à dificuldade no papel de mediador do conhecimento e uma falta de reconhecimento do significado social da escola - expresso pelos moldes atuais da educação -, temos casos de completa aversão aos alunos. Em algumas fichas, os docentes demonstram aversão a uma faixa etária ou ciclo, mas, no caso de Hibisco, isso se estende a todos os alunos, mesmo fora do contexto de sala de aula. Deixamos, por fim, o drama de Amarílis que, após a readaptação de função, diz “[...] que agora já se sente muito melhor sem o contato com os alunos e que tentaria se matar novamente se voltasse a ter contato com os mesmos” (extrato da ficha-síntese de Amarílis).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em primeiro lugar, questionamos: qual o sentido da atividade para docentes que sentem aversão ao aluno, ou seja, não suportam seu sujeito-objeto de trabalho? Não dispomos de respostas para isso até o momento, mas a indagação permanece, em nome da relevância de entender quais aspectos do gênero profissional docente esses professores reconhecem e qual a relação dessa aversão com as precárias condições materiais e humanas de realização do trabalho.
É evidente, por hora, a constituição dialética e dialógica do adoecimento, atravessado por uma hierarquia de atividades que frequentemente se chocam, se confundem e se opõem. Nesse sentido, professores em seus diversos papéis desempenhados sentem-se sobrecarregados. As mazelas sociais constituem a escola de modo que a expressão da alienação e do sofrimento - por violência e desprestígio profissional - atravessam os muros das instituições de ensino, conduzindo a um número assustador de expressões violentas e agressivas não como responsabilidade subjetiva do trabalhador ou do aluno que as comete, mas como uma perda do significado do gênero socialmente compartilhado do professor.
Em suma, existe um cerceamento do poder de agir frente à heterogeneidade do objeto humano de trabalho docente e às várias especificidades que esse assume - a depender da territorialidade, faixa etária e condições específicas de inclusão - em contextos precários. Compreendemos, com Clot (2010), que a doença deve ser um meio de desenvolvimento dramático da personalidade, e não mero fim da atividade. Porém, a experiência penosa aniquila essa força, que se realiza “[...] apenas se ele encontra também à sua volta, com os outros - seus pares - recursos de compensação na vida social coletiva e na pluralidade social dos círculos onde está inserido” (2010 p. 115). Ou seja, o trabalho, mesmo conflituoso, se apresenta como um meio de existência frente a um coletivo fortalecido. De modo que, sem desconsiderar a necessidade de tratamento do sujeito adoecido, a doença, como processo socialmente constituído, apenas será, de fato, tratada por via coletiva. Como a estrutura dos interesses internalizada a partir das relações sociais interfere na regulação social da conduta, podemos considerar que o drama de certo indivíduo é também o dessas relações particulares, que, por sua vez, se inserem na esfera mais geral de certo modo de produção (por exemplo, o capitalismo). Conforme destacado por Toassa (2014), o projeto de psicologia vigotskiano abarcava a psicologia geral, particular e concreta; assim: “A toda ideologia (social) corresponde uma estrutura psicológica de tipo definido - mas no sentido da assimilação subjetiva e portadora da ideologia, mas no sentido da construção das camadas, de estratos e funções da personalidade” (VIGOTSKI, 1929/2000, p. 33). Ao pesquisar dramas singulares, produzimos também conhecimento sobre as relações sociais deles constitutivas, seus cenários laborais, além dos dilemas e sofrimentos vivenciados individualmente, mas de significação comum a muitas pessoas.
O fortalecimento do coletivo será recurso, inclusive, para uma luta integrada e concisa que enfrente a precarização laboral. Faz-se necessário, como exemplo, fortalecer movimentos sindicais e subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental docente. Nesse sentido, refletimos que a clínica da atividade de Clot pode ser uma forte aliada se, em conjunto com as instâncias de saúde pública (como a própria JMM), proporcionar encaminhamentos coletivos e não apenas de cunho individualista, como a readaptação. Pois essa (a readaptação) causa consequências como uma cisão entre trabalho e seu objeto humano (o aluno ou criança) . Ademais, constitui-se em um recurso paliativo - tal como o uso de psicofármacos e as licenças - ao invés de, de fato, intervir sobre os determinante s da psiquiatrização docente. Colocamos, portanto, em destaque a importância da reflexão, deliberação e ação coletiva para que o processo de saúde-doença transcenda tratamentos individualistas das formas sociais de sofrimento docente.