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Perspectiva

Print version ISSN 0102-5473On-line version ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.4 Florianopolis Oct./Dec 2018  Epub Aug 30, 2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n4p1357 

Artigos de Demanda Contínua

A FORÇA DA CULTURA HISTÓRICA: REPRESENTAÇÕES DE ESTUDANTES BRASILEIROS SOBRE HERÓIS NACIONAIS

The strength of historical culture: brazilian students’ representations on national heroes

La fuerza de la cultura historica: representaciones de estudiantes brasileños sobre héroes nacionales

Flávia Eloísa Caimi2 
http://orcid.org/0000-0001-5509-6060

1Universidade Estadual de Ponta Grossa, UEPG

2Universidade de Passo Fundo, UPF

3Universidade de Passo Fundo, UPF


RESUMO

A história escolar, ao longo das últimas décadas, tem sido palco de profundas controvérsias quanto ao seu lugar nos sistemas educativos e ao seu papel na formação da consciência histórica dos jovens. No marco das culturas globalizadas, visualiza-se um crescente fascínio pelo passado e, paradoxalmente, coloca-se em questão se (e o que), de fato, podemos aprender com a História. O artigo ora apresentado resulta de um projeto internacional e interinstitucional intitulado Jovens e a História no Mercosul, tomando dados sobre a cultura histórica de estudantes secundaristas brasileiros, ao analisar os personagens da história que habitam suas representações sociais. Trata-se de buscar compreender as interpretações que os sujeitos fazem do passado, considerando as representações sociais como lugar de confluência entre a cultura, as práticas sociais, a memória coletiva e as suas identidades sociais. Os estudantes indicaram os três principais heróis nacionais em sua opinião, por ordem de importância, e os dados foram tratados pelo software Evoc 2000, com base no conceito de núcleo central da Teoria das Representações Sociais.

Palavras-chave:  Cultura histórica; Herói Nacional; Consciência histórica; Identidades sociais

ABSTRACT

The history taught in the schools, over the past two decades, has been the stage of profound controversy over its place in education systems and its role in molding the historical consciousness of young people. Within the mark of globalized cultures, it is possible to visualize a rising fascination for the past, and paradoxically becomes questionable whether and what can be actually learnt from History. The present article is a result of an international and interinstitutional project entitled Youth and History in Mercosur (Jovens e a História no Mercosul), whence the data about the historical culture of Brazilian sophomore students was colected, when analyzing the characters of the history that inhabit their social representations. It is a matter of seeking to understand the individuals’ interpretations of the past, considering social representations as a place of confluence between culture, social practices, collective memory and their social identities. The students pointed out three major national heroes in their opinion and in order of importance, and the data was treated by the Evoc 2000 software, based on Abric’s central core concept from the Theory of Social Representations.

Keywords:  Historical culture; National hero; Historical consciousness; Social identity

RESUMEN

La historia escolar, a lo largo de las últimas décadas, ha sido escenario de profundas controversias acerca de su lugar em los sistemas educativos y su rol en la formación de la conciencia histórica de los jóvenes. En el marco de las culturas globalizadas, se visualiza una creciente fascinación por el pasado y, paradójicamente, se pone en cuestión si (y qué) de hecho podemos aprender con la Historia. El presente artículo es resultado de un proyecto internacional e interinstitucional llamado Los Jóvenes y la Historia en el Mercosur, que recoge datos sobre la cultura histórica de estudiantes de enseñanza media brasileños, al analizar los personajes de la historia que habitan sus representaciones sociales. Se trata de buscar comprender las interpretaciones que los sujetos hacen sobre el pasado, teniendo en cuenta las representaciones sociales como lugar de confluencia entre la cultura, las prácticas sociales, la memoria colectiva y las identidades sociales. Los estudiantes indicaron, según su opinión, los tres principales héroes nacionales en orden de importancia, y los datos fueron procesados por el software Evoc 2000, basado en el concepto de núcleo central de la Teoría de las Representaciones Sociales

Palabras clave:  Cultura histórica; Héroe Nacional; Conciencia histórica; Identidades sociales

Introdução

Partimos de uma instigante provocação de Gumbrecht (2011, p. 33) para introduzir o tema deste estudo, quando o autor apresenta a (aparentemente) singela pergunta: “como se explica o crescente fascínio pelo passado, mesmo com a descrença no valor pedagógico da história?” Gumbrecht (2011) orienta-se pela premissa de que estamos diante de um paradoxo contemporâneo que se traduz, de um lado, na perda da convicção de que a história tenha algo a ensinar para a condução da vida cotidiana e, de outro, no interesse cada vez mais expressivo pelas experiências pretéritas, na medida em que museus e espaços de memória estão sendo crescentemente visitados; as mídias popularizam programas, livros e filmes ambientados no passado; há progressiva preocupação com a preservação do patrimônio histórico, etc. O argumento central de Gumbrecht (2011, p. 28) para explicar a ausência de legitimação pedagógica da História é de que “[...] desde muitas décadas, ninguém realmente leva a sério personagens da história como modelo de atuação”. Assim, ainda que os jovens possam admirar este ou aquele personagem que figura de forma canônica nos livros didáticos de História, tais “heróis” não seriam tomados como paradigma histórico, nem tampouco forneceriam modelos de atuação para o nosso próprio tempo, segundo a análise do autor.

Mediante tais provocações, consubstanciamos este estudo no propósito de contribuir para a discussão sobre a cultura histórica da geração de jovens que, em poucos anos, estará assumindo posições de protagonismo nos múltiplos espaços em que a sociedade brasileira é gerida. Ainda que Gumbrecht (2011) ofereça uma visão um tanto pessimista em relação ao caráter pedagógico da História, não podemos nos furtar de tentar compreender como os jovens lidam com a tensão presente nas diversas formas de conhecimento escolar: os saberes disciplinares, os saberes conceituais construídos individualmente e as representações sociais. Dito de outro modo, apoiando-nos em Carretero e Castorina (2012), perguntamos acerca das interpretações históricas que os jovens elaboram, considerando sua condição de indivíduos que recordam e produzem sentidos, tanto a partir de suas experiências pessoais como de sua condição de agentes sociais habitados pela história do coletivo ao qual pertencem. Assim, a análise que empreendemos sobre os dados empíricos está alicerçada em três principais categorias: representações sociais, cultura histórica e consciência histórica, as quais serão brevemente tematizadas na sequência.

A Teoria das Representações Sociais (TRS), elaborada no final dos anos 1950 e início da década de 1960 por Serge Moscovici, apresenta a preocupação em construir uma psicologia social que apreenda os fenômenos sociais (crenças e ações) em sua gênese construtiva, como resultado de processos psicológicos e sociológicos. Ela tem como objetivo central compreender “[...] como se formam e como funcionam os sistemas de referência que utilizamos para classificar pessoas e grupos e para interpretar os acontecimentos da realidade cotidiana” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p. 60). No campo da história escolar, a TRS oferece um caminho original para investigar o modo como os jovens interpretam os fenômenos sociais e orientam suas práticas culturais. As representações sociais consistem em um complexo de significados produzidos coletivamente para dar sentido às experiências cotidianas, originando-se nas interações sociais de que fazem parte os membros de determinado grupo. Tais representações são apropriadas pelos sujeitos em um processo ontogenético, mas se ativam sob a forma de identidades sociais e incidem como base, tanto comportamental quanto de tomadas de decisão e de posição dos indivíduos.

De acordo com Carretero e Castorina (2012), pode-se entender, de modo mais efetivo, as interpretações que os sujeitos fazem das categorias implicadas no ensino-aprendizagem das Ciências Sociais se apelamos às figuras do seu passado, aos valores de seu grupo e à sua identidade social. Enfatizam os autores que, do ponto de vista psicológico, as representações sociais constituem uma ponte entre a cultura, as práticas vividas na experiência social e as noções que os indivíduos elaboram acerca da história e da sociedade, uma vez que estão vinculadas à memória coletiva, à identidade social dos estudantes e à sua carga de valores e emoções (CARRETERO; CASTORINA, 2012).

Entendemos cultura histórica como o conjunto organizado de referenciais imagéticos, ideias, valores, conhecimentos e atitudes que são a expressão visível e viva da consciência histórica (RÜSEN, 1994; 2001; 2007; 2009). A cultura histórica é exercida na e pela consciência histórica, fornecendo aos indivíduos orientação temporal para a vida prática e para a compreensão de si mesmos. Segundo Rüsen (2009), a cultura histórica, como todas as demais culturas, é multidimensional e contém expressões morais, pedagógicas, políticas e retóricas. Este autor distingue três dimensões básicas da cultura histórica, que são responsáveis por distintos critérios de sentido: 1) uma dimensão política, que diz respeito à legitimação de certa ordem política e a relações de poder e, assim, toda a ordem política ou liderança carismática carece de legitimação histórica; 2) uma dimensão estética, “[...] relacionada com a eficácia psicológica das interpretações históricas, ou com a parte de seus conteúdos que afetam os sentidos humanos” (RÜSEN, 2009, p. 172); e 3) uma dimensão cognitiva, que se expressa nos eventos passados significativos para o presente e o futuro, na qual concorre fundamentalmente o aspecto do conhecimento. Pode-se concluir, então, que a cultura histórica diz respeito ao conjunto de operações da memória histórica e da consciência histórica que se efetiva em determinado contexto social. Neste sentido, é na cultura histórica que se encontra a articulação prática e operante da consciência histórica em determinada sociedade.

Por sua vez, a consciência histórica pode ser definida como um aspecto inerente da vida mental, pelo qual se procede o exercício indispensável de atribuir significado ao tempo, em outras palavras, é reconhecer e dar significado ao passado e orientar as ações presentes, tendo em vista as expectativas do futuro que se almeja. Trata-se de um processo mental de criação de sentido, sem o qual a vida prática se tornaria impossível. Isto porque é pela consciência histórica que o sujeito, seja no plano individual ou coletivo, estabelece uma determinada relação com o passado e produz uma explicação de si mesmo e do mundo, da existência humana e da cultura.

Nesse universo, o estabelecimento de personagens que são construídos na coletividade como referências importantes e/ou positivas, tanto para conhecer e significar o passado comum quanto para atribuir-lhe valores, é uma prática comum na maior parte das culturas. A escola e, dentro dela, o saber histórico escolar, em consonância com os mais diversos agentes e instituições que se responsabilizam pela história oficial, são sujeitos coletivos que desenvolvem a prática de identificar e caracterizar personagens do passado que, uma vez ensinados e aprendidos, ajudam a pontuar, destacar e contar a história de acordo com uma ou mais versões dela.

Rejeitando uma visão estática e unilinear, é preciso afirmar que esse processo, por ser social e histórico, é resultante de confrontos entre grupos que disputam tanto o Estado quanto a memória histórica de uma sociedade, e se transforma ao longo do tempo, expressando exatamente as mudanças de forças e de grupos que disputam e ocupam as instâncias de poder. Um substrato fundamental de todo esse processo verifica-se na construção de próceres, de heróis nacionais, que são divulgados em discursos, nomes de ruas, efemérides, festas, e concretizados em pinturas, gravuras, fotografias, esculturas, e estátuas.

Trata-se de uma temática que vem envolvendo sucessivos estudos ao longo do tempo, nos mais diversos enfoques da história e da antropologia e referindo-se a distintos personagens. São referências gerais e obrigatórias os estudos já clássicos de Carvalho (1990) e Da Matta (1997), além dos mais recentes, como o de Almeida (2011) ou Enders (2014), que abordam histórica e sociologicamente as estratégias, conteúdos, sujeitos e contextos em torno da construção de heróis nacionais, dentro da perspectiva de produção e reprodução da identidade coletiva. No que tange às reflexões sobre a produção e reprodução de imagens de heróis no contexto educacional e no ensino de história em particular, podemos exemplificar a produção atual com os textos de Fonseca (2001), Cainelli (2004) e Mistura e Caimi (2013).

Delineamentos do projeto Jovens e a História no Mercosul

Em que medida, com que graus de concentração e dispersão na memória e nas representações, com que hierarquias de importância os heróis nacionais são assimilados pelos jovens? Procuramos fornecer uma contribuição para essa resposta no âmbito de um amplo projeto de levantamento de dados quantitativos, em que uma das perguntas solicitava ao estudante que escrevesse, pela ordem de importância atribuída, três nomes de heróis da história de seu país.

O projeto Jovens e a História no Mercosul vem sendo desenvolvido desde o ano de 2010 (após um projeto piloto entre 2007 e 2009), e está sustentado em abordagem de investigação quantitativa, mediante a aplicação de dois questionários, um para professores de História e outro para estudantes com idades entre 15 e 16 anos. A amostra envolveu cinco países da América do Sul – Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. Foram selecionadas algumas cidades nesses países, nas quais se procurou desenvolver os questionários em uma turma de cada uma das sete tipologias de escola entre as dependências pública (central, periférica, de excelência e rural) e privada (laica empresarial, confessional e comunitária/ alternativa)1. Nos limites deste texto, trabalhamos exclusivamente com a amostra brasileira, que envolveu 22 cidades nas cinco regiões do país. Nos questionários constam perguntas sobre ensino e aprendizagem de história, impressões sobre passado e futuro, opiniões sobre períodos e recortes temáticos da História, decisões e posições sobre aspectos da vida política atual. Os conceitos que sustentam a investigação são os de cultura histórica (como face visível da consciência histórica) e cultura política.

O recorte selecionado para este texto refere-se à pergunta 33 do questionário, que é a única de caráter aberto, ou seja, requer que o estudante escreva livremente, em três espaços delimitados, o nome de três heróis de seu país, por ordem de atribuição de importância. Essas respostas são registradas em letra de forma (tipo bastão), o que favorece a leitura dos arquivos escaneados de cada questionário por um software de reconhecimento de caracteres e marcas2, gerando uma linha de planilha para cada questionário respondido. As colunas referentes a cada uma das respostas – herói 1, herói 2, herói 3 – são processadas utilizando o software Evoc 20003, criado por Pierre Vergès, com base no conceito de Núcleo Central, vinculado à Teoria das Representações Sociais4.

Adotamos, metodologicamente, a perspectiva da Teoria das Representações Sociais e, particularmente, a Teoria do Núcleo Central, de Jean Claude Abric, como estratégia para produzir dados empíricos sobre os fenômenos que foram conceituados anteriormente, como consciência histórica e cultura histórica. Segundo Sá (2002), as representações sociais são compostas e hierarquizadas com um núcleo central que concentra as representações mais disseminadas e aceitas e, portanto, mais estáveis no tempo. Entretanto, a reprodução desse sistema em sociedades progressivamente complexas impõe uma dinâmica às representações, que seria improvável caso houvesse apenas esse núcleo central. Assim, representações que estão em vias de se consolidar como centrais, ou representações outrora centrais que começam a sofrer desgaste, são encontradas em zonas intermediárias das representações. Por fim, temos as representações periféricas e menos estáveis, que contestam as visões do núcleo central. Pode-se inferir que o mapeamento da hierarquia das representações de um determinado grupo sobre um dado tema, feito progressivamente ao longo do tempo, revelará a dinâmica das representações, com o deslocamento de ideias, imagens e valores entre as diferentes zonas.

O software Evoc opera, basicamente, com a construção de duas variáveis: frequência da menção de um determinado nome e sua ordem média de evocação (OME), o que significa a posição média em que ele aparece quando os nomes são citados. Por exemplo, um nome que aparecesse em primeiro lugar em todas as evocações teria uma ordem média de evocação igual a um (OME = 1), e outro que sempre aparecesse em terceiro lugar, teria OME igual a três. Assim, quanto menor a OME, mais prontamente e mais prioritariamente o nome foi lembrado/evocado. Nomes que apresentem uma grande frequência e uma baixa OME são aqueles que muito provavelmente pertencem ao núcleo central dessa representação social. Nomes com alta frequência, mas baixa OME, assim como nomes com baixa frequência, mas alta OME figuram nas zonas intermediárias, enquanto nomes com baixa frequência e alta OME são localizados no núcleo periférico.

A investigação configurou-se com um número de 1.937 respondentes, considerado de um total de 2.420 participantes brasileiros da pesquisa, o que significa que 483 estudantes não responderam à pergunta. Este dado introduz um fator importante, que deve ser considerado na análise: o item do questionário não sabe/não respondeu, se computado, seria o item de menor OME e de maior frequência entre todos os nomes considerados.

Os questionários foram desenvolvidos entre agosto de 2012 e maio de 2013, tendo sido suspensa a aplicação quando das chamadas Jornadas de Junho de 20135, mediante a avaliação de que o novo contexto, para a juventude, poderia incidir de forma significativa sobre as opiniões e impressões em circulação. Desta forma, a continuidade da coleta arriscaria reunir, em um mesmo corpus documental, dados que não seriam convenientemente comparáveis, pois teriam sido produzidos em contextos históricos/cronológicos muito diferentes entre si. É preciso asseverar, ainda, que a análise que segue não tem a pretensão de ser representativa, em termos estatísticos, de toda a juventude que se encontra nessa faixa etária de 15-16 anos. Tratam-se das representações sociais tão somente do grupo constituído com pouco menos de dois mil sujeitos. Todavia, pelas suas dimensões, aponta um resultado significativo que, embora não permita mensurar com precisão o quanto se aproximaria ou se afastaria de uma amostra representativa (determinar margens de erro, por exemplo), certamente guarda aproximações significativas com o quadro geral naquele momento. Na seção subsequente, focalizamos os principais resultados produzidos no processo investigativo.

Os heróis que habitam as representações sociais dos estudantes

Conforme anunciado anteriormente, tomamos uma vertente da Teoria das Representações Sociais (TRS), notadamente a teoria do Núcleo Central (NC), como instrumental metodológico para realizar a análise das manifestações dos estudantes acerca dos heróis nacionais que compõem a sua representação social.

A análise de uma representação social, segundo Jean-Claude Abric (2001, p. 71), exige que se conheçam três componentes essenciais: o seu conteúdo, a sua estrutura interna e o seu núcleo central. Para tanto, o autor propõe que se faça uso, na pesquisa em representações sociais, de um enfoque plurimetodológico, com objetivo de compreender e verificar, em profundidade, as inferências construídas ao longo do processo de investigação. Os procedimentos para a aproximação de uma leitura densa da representação social deveriam se articular em três momentos. A primeira etapa consistiria da coleta do conteúdo da representação e, nesse caso, a entrevista, agregada a um método associativo - a evocação livre, pelo sujeito participante, de todas as palavras que lhe ocorrem, associadas a um termo indutor (a caracterização do objeto representado), seria uma técnica pertinente. A segunda etapa consubstanciaria a busca da estrutura do núcleo central, orientada para a identificação das relações segundo os elementos já apurados – aqui, as técnicas sugeridas envolvem a organização e hierarquização, pelos participantes da pesquisa, das informações já fornecidas. A terceira etapa configuraria a verificação da centralidade, que exige do pesquisador uma nova incursão junto aos sujeitos de pesquisa. Em tal situação, um dos métodos destacados é o proposto por Moliner (1992, apudABRIC, 2001), que consiste em apresentar, ao sujeito, informações que contrariam os elementos que anteriormente ele caracterizara como parte de sua representação, permitindo que exista uma avaliação, pelo participante, da permanência ou mudança de sua representação. Só após estes procedimentos seria possível compreender aqueles três componentes essenciais da representação e almejar uma última aproximação: o entendimento de como ela é articulada em um discurso socialmente argumentado.

Sá (2002) discute extensamente sobre problemáticas metodológicas acerca de investigações em representações sociais, especialmente a respeito dos procedimentos utilizados para coleta de informações que, nos métodos experimentais, artificializam o contexto do qual surgem as evocações, o que prejudicaria sua construção pelos sujeitos. Farr (1984, apudSÁ, 2002), no entanto, reconhece a legitimidade de métodos como o questionário, do qual aqui fizemos uso, como instrumento de coleta. Isto porque, segundo o autor, embora exista a introdução (quase artificial) que intenta provocar uma liberação evocativa nos sujeitos, por meio de uma categoria léxica ou palavra, as percepções que resultam dessa introdução não são de controle do pesquisador. Significa que são expressas socialmente, legítimas representações sociais, já que a própria palavra desencadeadora utilizada pelo pesquisador está imersa em um mundo semântico (de representações). Nosso recorte de estudo, a questão de número 33 do questionário, como já comentado, era a única que permitia a resposta aberta do depoente. Além disto, oferecia duas orientações direcionadas: sua resposta deveria tanto corresponder a uma categoria representativa (herói nacional) quanto obedecer a uma hierarquização (por ordem de importância). Entendemos, neste sentido, que a análise desta questão específica atende às duas etapas iniciais de delineamento de uma representação social, como as propostas por Abric (2001).

Tecemos essas considerações iniciais com dois propósitos: o primeiro, de salientar que investigações em representações sociais compreendem processos metodológicos complexos, cuja eficiência/pertinência segue, ainda, em discussão interna à própria teoria; o segundo, de explicitar que, embora seja possível, por meio de um questionário, delinear o que seria uma representação social de herói nacional para o grupo de sujeitos investigados e obter o posicionamento dos elementos de sua composição e de seu núcleo central, não é possível aqui, pelos limites da investigação e do texto, analisar em profundidade as relações sociais implicadas em nossas inferências; e a verificação, nas palavras de Abric (2001), dos contornos efetivos da representação, que incluiria entender como ela está localizada contextualmente e sob quais argumentações (cognitivas/individuais e sociais/coletivas) os sujeitos investigados aportaram suas evocações.

Estas observações também permitem uma defesa da análise aqui proposta, no sentido de conferir às categorias de cultura histórica e consciência histórica, veiculadas especialmente pelo campo do ensino de história e pela história escolar, um papel importante no que tange à sua configuração como uma força agindo em um contexto possível de aporte para as menções de heróis nacionais pelos estudantes, sujeitos da pesquisa. Se não possibilita o entendimento em um formato mais completo do universo de pesquisa, é um indicativo de base por meio do qual pudemos tecer referências estruturalmente contextualizadas (senão diretamente nas práticas sociais vivas dos estudantes, em uma historicidade de práticas expressa indiretamente em suas evocações), sem nos orientarmos por um caráter intuicionista de interpretações, como observa Jodelet (1986, p. 171-172, apudSÁ, 2002).

Na Tabela 1, a seguir, visualizamos a sistematização possibilitada pelo software Evoc, onde os dados das ocorrências estão distribuídos em quatro quadrantes, que permitem identificar o núcleo central, os elementos intermediários, os elementos de contraste e os elementos periféricos de uma representação. O núcleo central é entendido por Abric (2001) como um conjunto que significa a representação social e a organiza em torno de um sistema que funciona como uma entidade, dotado de um cerne (o núcleo central), com função estruturante, e dos elementos periféricos, em que cada parte tem um papel específico e complementar.

Tabela 1 - Cálculo de evocações de estudantes brasileiros em resposta à solicitação: “Escreva abaixo o nome de 3 heróis, por ordem de importância para o seu país” 

Frequência >= 134 e OME <1,9 Frequência >= 134 e OME >=1,9
Tiradentes 471 1,841
Vargas 440 1,884
J. Kubitschek 413 1,814
Cabral 396 *1,528
D. Pedro I 269 1,695
Religiosos 165 1,784
Lula 610 *1,957
Nomes do esporte 389 2,100
Ressignificação 303 1,993
Irreverência 216 1,977
Princesa Isabel 186 2,016
Nomes da música 145 2,269
Dilma 137 2,328
Frequência < 134 e OME <1,9 Frequência < 134 e OME >=1,9
D. Pedro II 120 1,883
Carlos Chagas 19 1,684
Chico Mendes 19 1,789
Zilda Arns 12 *1,667
Ant. Conselheiro 12 1,833
Duque de Caxias 12 1,833
Cristóvão Colombo 197 1,938
Santos Dumont 126 *1,921
Zumbi 94 1,979
FHC 56 2,071
Deodoro da Fonseca 38 2,158
Collor de Mello 25 2,120
Machado de Assis 25 2,200
Oscar Niemeyer 25 2,240
Joaquim Barbosa 18 2,056
Bento Gonçalves 16 2,125
Marechal Rondon 14 2,143
Luís C. Prestes 13 2,077
Drummond 11 2,091
Hitler 11 2,182
Maria da Penha 10 2,300
Barão de Mauá 10 2,400
Jose de Alencar 10 2,400

Fonte: Dados do Projeto Jovens e a História no Mercosul (2012/13) organizados pelos autores. * Menor ordem média de evocação na respectiva célula da tabela.

Assim, reportando-nos à Tabela 1, podemos inferir que, no quadrante superior esquerdo, localizam-se as palavras que constituiriam o núcleo central da representação; no quadrante superior direito estaria a primeira periferia; no quadrante inferior esquerdo estariam os elementos de contraste; e por fim, no quadrante inferior direito, estaria situada a segunda periferia da representação social. Vejamos:

Além dos nomes de heróis registrados pelos estudantes, a Tabela precedente traz cinco termos que reúnem grupos de nomes consubstanciados por nós em cinco categorias: 1) irreverência; 2) ressignificações; 3) religião; 4) personagens do esporte; 5) nomes da música. Na primeira categoria, denominada irreverência, incluímos todas as respostas que continham nomes de heróis da ficção em quadrinhos (Batman e Superman, os mais mencionados) ou de personagens da mídia, tidos como celebridades ou subcelebridades (como a dançarina Mulher Melão e o comediante Mussum, por exemplo), dadas como um claro exercício de irreverência e criatividade, que é uma característica muito própria dos jovens na faixa etária dos participantes da pesquisa. Foram 216 menções a nomes dessa natureza, razão pela qual esta categoria agrupadora (irreverência) conquistou um lugar destacado no espaço da zona intermediária de representações, com uma ordem média de evocação similar à do ex-presidente Lula, embora com cerca de um terço das evocações atribuídas a ele.

A categoria religiosos, com 165 menções, reuniu todas as evocações de alguma forma ligadas à fé, tendo à frente o médium expoente do Espiritismo no Brasil, Chico Xavier, com 60 evocações, seguindo as menções a Deus, com 49 evocações e a Jesus Cristo, com 29 evocações. A categoria ficou posicionada no núcleo central das representações por sua baixa ordem média de evocação, equivalente a 1,784.

A categoria personagens do esporte (389 evocações) abriga principalmente jogadores de futebol do passado e do presente, destacando-se o jogador ícone do futebol, Pelé, que teve 190 evocações, o que o colocaria sozinho pelo menos na zona intermediária; e o piloto Airton Senna (81 evocações). Em outros termos, não fosse pela presença de Senna, a categoria nomes do esporte ficaria descrita de melhor forma como “nomes do futebol”, expressando o grande apelo dessa modalidade esportiva entre os jovens. Há, ainda, a categoria nomes da música, constituída por 145 evocações representadas por músicos, como Renato Russo (o mais lembrado, com 29 evocações), Cazuza, Luiz Gonzaga e Raul Seixas.

Por fim, a categoria ressignificação (303 evocações) resulta a mais interessante como fenômeno de identificação com personagens considerados importantes. Todavia, o movimento mais relevante nessa categoria é a menção de familiares (pai, mãe, avós, tios, irmãos, etc.) como heróis da história do país. Reunidos, totalizam 104 evocações, o que permite esboçar algumas linhas interpretativas. Por um lado, parece indicar uma forma de privatização da história nacional, reduzida à história familiar, uma espécie de subproduto do individualismo, na lógica da pessoa que não responde boa tarde, argumentando que ainda não é tarde porque ela ainda não almoçou. Ou seja, a tarde deixa de ser uma convenção arbitrária e universal e passa a ser um dado privativo, um fenômeno pessoal que ocorre a partir do momento em que se almoça. Na mesma lógica, a história nacional não existe até que se ingresse nela e, portanto, os referenciais da história nacional não são coletivos, mas são os referenciais da história de cada um. Trata-se de um fenômeno que a pesquisa indica não ser central, mas também não é uma atitude periférica.

Por outro lado, pode-se analisar esse fenômeno sob um ponto de vista diferente, entendendo que esses jovens estão aderindo à tão propalada ideia de que todas as pessoas têm e fazem história, e de que a história escolar precisa levar em conta as suas experiências sociais e práticas culturais. Nesta direção, ao indicar seus familiares como heróis, podem estar buscando valorizar a chamada história de baixo, a história daquelas pessoas que, como diz Hobsbawm (1998, p. 21), “[...] ao longo da história, fora de seu bairro, apenas têm entrado para a história como indivíduos nos registros de nascimento, casamento e morte”. Ainda se pode concordar com Gumbrecht (2011), quando este autor alega a ausência de legitimação pedagógica dos personagens históricos e a sua insuficiência como modelos a serem seguidos.

Outra vertente relevante dentro da categoria ressignificação vai em um sentido semelhante e envolve a recusa de qualificar pessoas famosas como referenciais de história e de identidade, só que, nesse caso, pela referência a personagens coletivos da história. O subgrupo de personagens coletivos tem 64 menções, sendo 23 referentes aos índios, 8 aos professores, 6 aos trabalhadores, entre outros subgrupos com menos de 4 menções cada. Nesta categoria também notamos a recusa à ideia de herói ou o questionamento da própria pergunta do questionário, na medida em que há um subgrupo que reúne 29 evocações do tipo nenhum, ninguém, não há heróis, e assim por diante. Cada um desses subgrupos internos à categoria ressignificação, se tomados isoladamente, cairiam para a zona periférica da representação ou não chegariam ao mínimo de evocações (134) para serem considerados na análise, mas sua reunião se deve à identificação de uma postura comum a todas as diferentes respostas agregadas pelos pesquisadores.

Feitas essas considerações tangenciais, focalizemos a análise da Tabela 1 quanto às posições que emergem dos quadrantes. A representação social aqui posta em análise está inscrita no conceito de herói nacional, ou herói da história do país, como se lia na questão de cujas respostas obtivemos as informações para compor os dados que analisamos. Foi possível perscrutar, de acordo com a tabela organizada pela frequência e OME (ordem média de evocação) da amostra analisada, quais são os nomes dados à representação social de herói por um grupo social específico: jovens estudantes brasileiros.

Ao adotarmos a Teoria do Núcleo Central de Jean-Claude Abric como pressuposto teórico-metodológico, tanto no recorte e organização dos dados quanto na análise deles, e das categorias de consciência e cultura históricas propostas por Jörn Rüsen, é possível que tracemos um diálogo entre os elementos da representação social de herói nacional e os vestígios de consciência e cultura histórica que estariam no suporte de suas evocações. Assumimos, então, a representação social como modo de expressão ou evocação da difusão da cultura histórica no meio social, uma vez que a cultura histórica é o fenômeno que caracteriza o papel da memória histórica no espaço público (RÜSEN, 1994). Portanto, ela carrega referenciais de diversas instâncias, como a cultura midiática e o saber histórico escolar, por exemplo.

Colocando em diálogo a Teoria do Núcleo Central e os dados obtidos, passamos a um corte da representação social de herói nacional, tal como o grupo de estudantes brasileiros a compôs.

No núcleo central da representação (localizado no primeiro quadrante, no canto superior esquerdo), vemos emergirem em evocação os nomes de Tiradentes e Pedro Álvares Cabral, em destaque, respectivamente, por sua frequência de evocação e OME. Seguem a eles fortes nomes representativos da história política do Brasil: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, D. Pedro I; e a categoria representativa de religiosos, evocações que se vinculam com representações de fé.

Segundo Abric (1993), o núcleo central é determinado pelo tipo de relações que o grupo social mantém com o objeto representado e pelo sistema de valores e normas sociais que constituem o grupo social, conjunturalmente. As funções do núcleo central são a de gerar sentido para a representação e consolidá-la, determinando os elos entre os elementos que a compõem. Sua propriedade é essencialmente a de estabilidade e continuidade da representação, o que significa afirmar que o núcleo central une capacidades, tanto de mobilidade e evolução quanto de resistência à mudança da representação. No entanto, aqui temos uma amostra do dinamismo da representação social de herói nacional: os elementos nucleares presentes não estão completamente centralizados. Isto implica admitir que, por um lado, a representação de herói nacional, no Brasil, está em movimento e, por outro, que essa mobilidade tem a ver com o ensino de história e com a cultura histórica.

Embora o personagem lembrado mais prontamente nesta pesquisa seja o descobridor Pedro Álvares Cabral (OME 1,528), a frequência das evocações de seu nome é apenas a quarta maior do quadrante e a quinta maior da pesquisa, já que o ex-presidente Lula foi o personagem mais lembrado no conjunto da amostra. Interpretamos a presença de Cabral como um ícone, não de si mesmo, porque pouco se sabe ou pouco se estuda sobre sua vida antes e depois da viagem do descobrimento, mas da inauguração de uma história do Brasil ligada umbilicalmente à ação dos portugueses. Assim, saber quem descobriu o Brasil é o conteúdo mínimo, tornado canônico, que deve ser conhecido pelos alunos, e vira uma resposta quase automática, cujo significado – mais que a identificação de um sujeito cuja vida inspira as práticas recomendáveis à brasilidade – é a vinculação da história nacional à centralidade europeia e portuguesa na definição da identidade nacional. Não por acaso, é o único personagem de toda a tabela cuja vida é referenciada nos séculos XV/XVI.

Ainda no primeiro quadrante da Tabela 1 destaca-se, como evocação de maior frequência, o nome de Tiradentes, símbolo construído pelo movimento republicano brasileiro como mártir da independência, em oposição ao marco monarquista do mesmo processo, D. Pedro I, que aparece com relevância bastante menor, embora ainda no núcleo central. O aspecto relevante que deve ser salientado é a presença destacada de nomes como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, praticamente no mesmo nível em que se posiciona Tiradentes. Eles somam-se ao nome de Lula, claramente destacado e que, por centésimos na ordem média de evocação, não está no primeiro quadrante, representativo do núcleo central. Se considerarmos, ainda, que a maior parte dos nomes agrupados na categoria religiosos é de personagens do século XX (especialmente Chico Xavier), fica patente o peso da história recente na definição do núcleo central da representação social sobre os heróis por parte dos jovens da amostra constituída nesta pesquisa. Esse dado pode ser representativo, em alguma medida, da consolidação de um novo pressuposto da história escolar, que diz respeito à superação da ideia de que a história consiste no estudo do passado remoto, sem interlocuções com o tempo mais recente. Porém, comparando com os resultados da mesma pesquisa no Chile (GONZALEZ CALDERÓN; ROSSO; CERRI, 2016) e na Argentina (COUDANNES; RUIZ, 2016), também se pode lançar a hipótese de que se trata de um traço específico da cultura histórica brasileira.

A elaboração (ou gênese) de uma representação social é entendida por Moscovici (1961, apudABRIC, 1996) como composta por dois processos: objetivação e ancoragem. A objetivação é o movimento que permite que uma representação social abstrata se torne concreta (ou, de invisível, torne-se visível, apreensível) por meio de eleição, seleção e simplificação de um discurso teórico inicial. A objetivação implica, também, a descontextualização de elementos/informações do discurso teórico e da dissociação deles à abstração teórica a que pertenciam. A importância deste processo está na organização posterior desses elementos, retirados de seu lugar contextual: eles constituirão o núcleo imagético que compõe a moldura central da representação que, posteriormente, será determinante na decisão/processo de inclusão e categorização de novos elementos ou informações na representação. A ancoragem, por sua vez, é o movimento que permite a inclusão de novas informações em um sistema de imagens familiares, por meio da transformação do estranho em familiar, denominando e classificando os elementos. Por meio da ancoragem, novidades podem ser agregadas a um sistema antigo, criando uma rede de significados aportada em um sistema de interpretações, oferecendo uma “estrutura para a determinação de comportamentos, criando expectativas, necessidades e antecipações” (ABRIC, 1996). É o que, por exemplo, caracteriza um dos paradoxos patentes em representações sociais: o fato de que podem ser consensuais e também carregadas de variadas concepções individuais, ou mesmo contraditórias.

Há outra aproximação de Moscovici quanto à gênese das representações sociais, exposta por Abric (1996): ele cria hipóteses sobre as representações sociais se constituírem a partir de temas concisos, perenes, capazes de interessar e mover socialmente buscas cognitivas, e promover interlocução, comunicação destas procuras. Abric (2001) ainda caracteriza duas dimensões que podem ser assumidas pelo núcleo central, de acordo com a especificidade da representação social da qual fazem parte: a funcional, em que os elementos nucleares cumprem finalidades operatórias; e a normativa, aportada em “[...] dimensões sócio-afetivas, sociais ou ideológicas” (ABRIC, 2001, p. 22). Nesta última, o núcleo possui elementos que caracterizam um estereótipo ou uma normatização social, claramente no sentido da necessidade de orientação/comunicação social.

Podemos inferir, desta forma, que os contornos da representação social que procuramos compreender estão diretamente ligados a processos históricos de busca pela orientação da vida social, uma vez que são expressos em heróis nacionais, em um constructo de evocações que vai de personagens históricos canônicos a membros familiares, e aportam na cultura histórica – e no ensino de história, como processo mediador - uma das vias de acesso a esta orientação. Se avançarmos nessa inferência, podemos compreender a cultura histórica como força presente na construção de representações sociais de heróis.

Talvez seja seguro, então, entender que as entidades heroicas evocadas no núcleo central da representação sejam as que vêm atuando mais fortemente em um movimento diacrônico, tanto da história escolar quanto na legitimação social/cultural/memorialística de processos históricos, por meio de produções mercadológico-culturais, como o livro didático de História, as cinematográficas e literárias. Segundo José Murilo de Carvalho (1990, p. 14), “[...] o processo de heroificação inclui necessariamente a transmutação da figura real, a fim de torná-la arquétipo de valores ou de aspirações coletivas”. Neste caso, as figuras heroicas destacadas no grupo central parecem compor um quadro de legitimidade política na história brasileira, representando não estreitamente cada personagem histórico, mas um coletivo comum de inspirações ao progresso da sociedade brasileira, em uma linha temporal que vai do Brasil Colônia aos Cinquenta anos em cinco.

Como já exposto, da presença da categoria Religiosos no núcleo central da representação social se pode inferir uma ênfase de concepções renovadas da história escolar. Ela coloca em interlocução o passado e o presente, bem como pode sugerir outra forma de constituir sentido histórico, que aporta na fé religiosa um papel essencial na história humana, extrapolando a materialidade/mundanidade do homem histórico e transcendendo o herói nacional. Nesta direção específica, o reconhecimento de figuras religiosas como heróis nacionais não estaria ligado à sua participação direta nos fenômenos históricos, mas faz parte de um modo de conferir sentido ao passado histórico por meio da cultura histórica.

Os quadrantes superior direito e inferior esquerdo, logo abaixo do quadrante que reúne os elementos do núcleo central, compõem o que entendemos pela movimentação dos elementos intermediários da representação social. Eles não fazem parte do sistema central, possuem OME maior do que a do núcleo central e maior frequência do que a periferia da representação. Em um meio caminho entre a periferia e o núcleo central, os elementos intermediários tanto poderiam estar no movimento de composição (e mudança) do núcleo central quanto no de se constituírem como partes efetivas de uma grande periferia. Se tomarmos a suposição de que essa poluída zona intermediária configuraria uma grande periferia, poderíamos entender estes elementos como evidência da representação social como um processo dinâmico. Isto porque existem evidentes proximidades com o núcleo central (como a significativa evocação do ex-presidente Lula, que acumula o maior número de frequência de menções da amostra), ao mesmo tempo em que existem construtos de categorias que admitem ressignificações e contradições da própria representação.

Segundo Abric (2001, p. 78), o sistema periférico da representação social provê a “[...] interface entre a realidade concreta e o sistema central”, contendo os componentes mais acessíveis e vivos da representação social (tem função de concretização). É o que caracteriza a mobilidade e o dinamismo das representações no tempo, bem como a adaptação da representação ao contexto (por sua função de regulação). Também funciona (operando em defesa) como uma espécie de para-choque em relação ao núcleo central: é na periferia que são organizadas as informações novas, agregadas à representação, que podem sofrer modificações, especialmente quando são contraditórias e ameaçam a estabilidade do núcleo central. Elementos que oferecem paradoxos ou contradições podem, na periferia, ganhar status de exceção, por exemplo. Por outro lado, é o sistema periférico que garante a sobrevivência da representação social como guia para leitura de uma situação, já que permite a inclusão de interpretações individuais. Segundo Abric (2001), em uma representação social em que o núcleo é normativo (como a de herói nacional, por exemplo), o sistema periférico é geralmente funcional, e seus elementos servem operacionalmente em uma tomada de decisões. Na representação social aqui analisada (e a partir do pressuposto de uma grande periferia nos três quadrantes que sequenciam o NC), a categoria ressignificações é um exemplo claro desta característica do sistema periférico: um estudante, em uma situação-problema e, ainda que possa recorrer aos valores exemplares de personagens políticos, tem os pais e familiares como heróis próximos de si, de quem pode inspirar comportamentos ou demandar aconselhamento.

A abundância de dados obtidos com a aplicação dos questionários, em particular com a questão selecionada para o presente estudo, possibilitou realizar a análise das relações entre a frequência observada e a frequência esperada dos cinco nomes mais citados pelos alunos, fazendo uso do cálculo do qui-quadrado. Trata-se de um teste de hipóteses que permite estudar a distribuição das frequências em uma amostra, especificando a diferença entre a distribuição esperada e a distribuição efetivamente observada. Por exemplo, se há 50% de representantes de cada sexo, o esperado é que as evocações de um nome se distribuam em duas metades praticamente iguais. O qui-quadrado permite estudar as diferenças de distribuição significativas, significa que as variações não se devem a aspectos aleatórios, mas indicam que a variável (por exemplo, sexo) é relevante para explicar a distribuição verificada.

Nas células da Tabela 2, o primeiro número representa a frequência observada. O segundo número, que se encontra entre parênteses, representa a frequência esperada, de acordo com a proporção de sujeitos em cada variável, ao passo que o terceiro número, entre colchetes, representa o qui-quadrado calculado. Assim, quanto mais alto o qui-quadrado, mais relevante é a tendência daquele grupo na escolha de um personagem. Por exemplo, os dados da Tabela 2 revelam que a variável sexo é irrelevante para a indicação dos personagens, uma vez que as respostas se distribuem mais ou menos igualmente entre os dois grupos. Elas seguem a proporção de rapazes e garotas, exceto para o caso de Cabral, em que se percebe uma indicação maior desse personagem por parte das garotas, razoavelmente acima da frequência esperada, enquanto os rapazes mencionam Cabral abaixo da frequência esperada.

Tabela 2 - Frequências esperadas e observadas de heróis nacionais evocados pelos estudantes, considerando o sexo, o tipo de escola e o interesse pela política 

Cabral Lula Tiradentes Juscelino Kubitschek Getúlio Vargas Total da linha
Sexo Masc. 94 (108.77) [2.00] 102 (95.68) [0.42] 85 (81.24) [0.17] 79 (74.01) [0.34] 71 (71.31) [0.00] 431
Fem. 147 (132.23) [1.65] 110 (116.32) [0.34] 95 (98.76) [0.14] 85 (89.99) [0.28] 87 (86.69) [0.00] 524
Tipo de escola Pública 157 (141.74) [1.64] 152 (126.44) [5.17] 110 (105.86) [0.16] 86 (96.45) [1.13] 59 (93.51) [12.74] 564
Privada 84 (99.26) [2.35] 63 (88.56) [7.37] 70 (74.14) [0.23] 78 (67.55) [1.62] 100 (65.49) [18.18] 395
Interesse pela política Não 125 (113.02) [1.27] 110 (96.50) [1.89] 71 (76.01) [0.33] 60 (70.06) [1.45] 59 (69.40) [1.56] 425
Sim 46 (57.98) [2.47] 36 (49.50) [3.68] 44 (38.99) [0.64] 46 (35.94) [2.82] 46 (35.60) [3.04] 218

Fonte: Dados do Projeto Jovens e a História no Mercosul (2012/13) organizados pelos autores.

Pode-se notar, também, que na variável tipo de escola, os estudantes de escola pública citam Lula e Cabral com frequência acima do esperado, ao passo que a Tiradentes são atribuídas respostas que praticamente não variam por tipo de escola. Em contrapartida, tanto Juscelino Kubitschek quanto Getúlio Vargas são muito mais mencionados por alunos de escolas particulares do que por alunos de escolas públicas.

Por fim, na variável interesse pela política há destaque ligeiramente maior para Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas, e levemente menor para Lula e Cabral. Tiradentes é claramente uma figura do núcleo central da representação sobre os heróis nacionais, sendo a característica da sua estabilidade a que mais se destaca nessa análise do qui-quadrado. É o personagem para o qual as três variáveis menos interferem e, portanto, a sua menção como primeiro nome evocado é a de frequência mais homogênea entre os grupos das três variáveis elencadas.

Considerações finais

Encerramos a exposição do estudo considerando que a análise aqui desenvolvida exemplifica o que vem a ser um dos aspectos de uma reflexão histórico-didática (BERGMANN, 1990), enquanto uma produção da pesquisa histórica que difere da historiografia. Neste sentido, o que se buscou trazer foi uma discussão que se vincula às preocupações em torno da circulação e da assimilação do conhecimento histórico em suas relações com a escola e com a academia, mas que as extrapola em grande medida. Trata-se de uma reflexão que interessa igualmente à teoria e à didática da História, na medida em que lida com as condições e contextos nos quais o conhecimento histórico é produzido e recepcionado, assim como discute os modos como os futuros historiadores são recrutados, dentre outras implicações.

Atendo-se a uma breve sistematização dos dados produzidos no decorrer do estudo, é forçoso reconhecer que as representações dos estudantes brasileiros acerca dos heróis nacionais seguem um fluxo dinâmico, em um movimento intenso em que estão presentes elementos que advêm mais diretamente da história escolar, especialmente pela presença de nomes relacionados aos conteúdos canônicos (Cabral, Tiradentes, D. Pedro I, Princesa Isabel, dentre outros), como também comparecem nomes que se originam na cultura histórica. Aqui, a cultura histórica está apoiada na longa presença de um sentido moralista na história do ensino de história nacional, que operou com recortes, seleções e veiculações de fenômenos e personagens históricos emblemáticos, de acordo com interesses conjunturais, especialmente na esfera do poder político. As entidades heroicas evocadas no núcleo central da representação atuam fortemente por meio de produções mercadológico-culturais, como o livro didático de História, as cinematográficas e literárias. Este núcleo central é caracterizado pelo sentido de continuidade representativa e integrado pelas diversas funções operadoras da cultura histórica.

O estudo permite delinear, com certa clareza, os contornos de uma grande periferia nas evocações contidas nos quadrantes superior direito, inferior esquerdo e inferior direito: para além da incontornável presença do ex-presidente Lula e uma discreta presença da ex-presidente Dilma Rousseff. Destacam-se as duas atitudes de resistência à pergunta, uma de caráter destrutivo, a irreverência, e outro de caráter construtivo, a ressignificação, já discutidas anteriormente. Os nomes do esporte e da música, a maior parte representativa de figuras contemporâneas, fortalece a ideia de que o centro de gravidade da representação social dos jovens sobre os heróis nacionais na história situa-se prioritariamente nos séculos XX e XXI. É interessante observar também que, diante do confronto nos campos da memória e da história entre uma leitura conservadora e uma leitura progressista sobre a abolição da escravatura (Princesa Isabel versus Zumbi dos Palmares), como apontado por José Murilo de Carvalho (2001), a Princesa Isabel exerce proeminência, aparecendo com maior frequência de evocação do que Zumbi. Neste caso, não apenas o confronto de leitura histórica se faz presente, mas também uma perspectiva sociocultural, uma vez que a Princesa Isabel pertence à categoria de heroína fundamentalmente política, corroborando o núcleo central; e o heroísmo de Zumbi está mais alocado à representação de um grupo étnico-social identitariamente específico na história do Brasil e alheio à consensualidade do NC.

Entendemos, ainda, que a característica tão extensa e plural da periferia aqui analisada está diretamente ligada à manutenção da estabilidade do núcleo central, e oferece a visualização de uma representação social como sistema vivo. Mesmo que existam atitudes de irreverência que sugiram deslocamentos da própria concepção de herói, veiculada pela história do ensino de história como representante de um modelo conservador, elas não foram suficientes para a invasão do núcleo central, que permanece aparentemente consensual. Nesta fase da análise seria interessante, como o sugerido por Abric (2001), que fossem apresentados aos estudantes argumentos que estivessem em confronto com suas evocações, para uma final verificação de consensualidade e existência efetiva da representação social de herói nacional e a apuração final de seu núcleo central. Embora se configure como um dos limites do alcance de nossa análise, foi possível avançar em compreensão sobre o dinamismo, tanto das representações sociais – e aqui, especificamente, da representação de herói nacional e da própria historicidade desta categoria histórica – como da memória histórica (ou coletiva). Ela é longitudinal e intrincada à história do ensino da história nacional, sempre sombreada por uma intencionalidade moral que ofertou, e ainda oferta, decisões e recortes sobre lembranças ou esquecimentos.

Acredita-se, por fim, que este tipo de estudo pode contribuir com a compreensão dos sujeitos, condições e contextos com os quais o historiador – seja atuando como pesquisador e/ou como docente, da universidade ou da escola – precisa lidar para exercer a parte de seu trabalho que se refere à comunicação.

1Uma tabela detalhada com os dados da amostra por país, cidade e tipo de escola está disponível em <http://gedhiblog.blogspot.com.br/p/jovens-e-historia-no-mercosul.html>.

2Neste caso, usamos o Abbyy FlexiCapture.

3Sigla para Ensemble de Programmes Permettant l’Analyse Des Évocations.

4A TRS cunhada por Moscovici desdobra-se em três correntes teóricas complementares: uma mais fiel à teoria original e associada a uma perspectiva antropológica, liderada por Denise Jodelet; outra que articula a teoria original com uma perspectiva mais sociológica, proposta por Willem Doise; uma terceira que enfatiza a dimensão cognitivo-estrutural das representações, denominada de Teoria do Núcleo Central, e que tem em Jean-Claude Abric seu principal representante, mas que está ligada também a autores como Claude Flament (SÁ, 2002).

5Em junho de 2013 desenvolveu-se, no Brasil, um intenso movimento popular que reuniu milhões de pessoas, em sua maioria jovens, que saíram às ruas por todo o país, em centenas de cidades, em um período de cerca de duas semanas, para protestar inicialmente contra o aumento das tarifas do transporte público e contra a repressão policial. O movimento desdobrou-se a partir de outras demandas, nos meses subsequentes.

Notas

Referências

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Recebido: 22 de Junho de 2017; Aceito: 06 de Junho de 2018

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