O livro “Filosofia da educação a distância: conceitos e concepções” é uma obra organizada pela professora dra. Lílian do Valle, em conjunto com Estrella Bohadana (in memorian), Sônia Ribeiro e Ana Lúcia Gomes. Trata-se de uma coletânea de textos que exploram conceitos pouco (ou nunca) visitados na área da educação a distância (EaD), propondo a reflexão conceitual das noções de presença, distância, interatividade, comunicação, mediação, sujeito, atividade, ação, qualidade e autonomia.
Indicado para pesquisadores, professores e educadores no campo da EaD, a obra identifica a necessidade de suprir grandes lacunas nos estudos dedicados à modalidade de ensino em questão. Apesar dos crescentes estudos da última década, ainda se convive com a ausência de uma reflexão sistemática que leve em consideração os conceitos próprios da EaD e, da mesma forma, não deixe de pensá-los a partir de todo um conjunto histórico/teórico das questões educacionais (presenciais) em geral. Dessa forma, os artigos apresentados estão a serviço de uma (re)conceitualização da educação a distância, pensada em sua relação com a fundamentação filosófico/conceitual do campo da educação em si.
Considerado pela professora dra. Lílian do Valle como um “objetivo decerto muito ambicioso”, os escritos divulgados abrem portas e estimulam um debate. Trata-se, pois, de um convite aos pensadores da educação para que se debrucem sobre a realidade da EaD, enquanto uma das novas proposições do fenômeno da educação, de forma a compreender o que essa nova face tem a contribuir ao pensamento educacional atualmente.
Mesmo com toda a expansão da EaD, o que se vê predominantemente no campo teórico conceitual da área é uma preocupação exacerbada com as questões técnicas da modalidade de ensino, o que faz com que as práticas educacionais nesse campo tendam a ignorar os fundamentos teóricos que lhes permeiam e a desconhecer a ambiguidade de muitos dos conceitos que lhes são caros.
É nesse sentido que as autoras se propõem, a fazer uma reflexão mais aprofundada dos problemas conceituais que a modalidade de ensino a distância suscita. Começando esse exercício pela palavra “distância”, que, atrelada à palavra educação, parece ter criado um mundo à parte no campo das práticas educacionais. Por essa razão, é por essa questão que a reflexão filosófico-conceitual das autoras começa.
Conscientes do permanente elo entre distância e presença na educação, a obra conduz a outro conceito: a “interatividade”. Noção central na educação online utilizada para designar a característica própria de uma interface digital que permite trocas entre o usuário e a máquina, transformando-se em palavra de ordem de uma revolução social, que, amparada pela informática, reconfigurou as comunicações humanas, como apontam Valle e Bohadana. Nesse sentido, as pesquisadoras resgatam o termo “atividade” para potencializar a interatividade, contrapondo-se ao termo “passividade”, levantando importantes reflexões. Diversas produções textuais sobre a EaD insistem em opor a passividade do ensino tradicional à exigência de interatividade implicada pela nova modalidade. Porém, essa visão ingênua acaba por impedir uma reflexão mais precisa sobre a prática pedagógica na EaD, e corre o risco de reforçar ainda mais a propagação de uma educação tradicional – só que no meio online −, mantendo, assim, a dicotomia entre atividade e passividade no ensino.
Em um segundo momento, seguindo na esteira da perspectiva conceitual, as autoras se voltam para a finalidade da EaD e as políticas que a cercam. Suas contribuições para essa questão são construídas no sentido de demonstrar que a expansão da educação online no Brasil não está inteiramente ligada ao desenvolvimento da tecnologia, mas que a sua disseminação se deve à boa receptividade e aos incentivos com que as autoridades públicas brasileiras acolheram as novas possibilidades de atuação educativa em larga escala. Sob diversos interesses, políticos e econômicos, a EaD foi incluída com entusiasmo – sobretudo, pela iniciativa privada de ensino superior –, contribuindo para a percepção da EaD como uma “necessidade de mercado”.
Por conseguinte, as autoras destacam que não se pode render à ingenuidade de considerar que a EaD seja apenas mais uma modalidade de educação. Com ela, surge um novo espaço, denominado “ciberespaço”. Citam a obra de Pierre Lévy (1999) que designa esse lócus como o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores, capaz de desfazer antigos “territórios” e superar limites nas relações humanas. Logo, um novo tempo também emerge, trazendo a desconstrução de tempos, até então inabaláveis, como o histórico e o psicológico, e anuncia-se como aceleração que traz rupturas. Nesse processo, a aprendizagem se acelera e abre espaço para um novo sujeito, o cibercidadão, que não é um adulto de qualquer cultura ou de qualquer posição social. Trata-se de um novo tipo antropológico altamente sofisticado: além do acesso à infraestrutura básica (equipamentos e conexão), é preciso que ele tenha tempo disponível e um mínimo de escolaridade, além de condições para transitar por culturas e línguas diversas.
Diante desse novo ser, velhas questões são colocadas em xeque. Uma delas é o sentido da mediação pedagógica. Nessa visão, o professor tem papel quase acessório em um processo, desprovido de iniciativa, e sua prática, conforme Pierre Lévy (1999), é um instrumento para que ocorra a difusão do conhecimento. Mantem-se assim a imagem de um processo de aquisição de conhecimentos, cuja única virtude é possibilitar ao aluno trilhar cada vez mais livremente seu caminho de aprendizagem. Nesse sentido, ao professor não cabe mais ser a difusão dos conhecimentos, sua competência deve deslocar-se para o incentivo à aprendizagem e ao pensamento, tornar-se um animador da inteligência, acompanhando e gerindo as aprendizagens. Ou seja, o trabalho docente torna-se instrucional, mecanizado, perdendo a qualidade essencial da ação humana. Essa redução drástica da práxis humana faz com que o discurso sobre a mediação recorra a termos vagos como “motivação”, “incentivo”, “estimulação”.
As autoras defendem, porém, que a EaD pode ser muito mais do que isso. Enquanto os discursos definirem a tarefa do professor como aquela da “mediação”, não estarão prontos a reconhecer que o mais importante desafio colocado às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s), na atualidade, não é o de dispensar o professor, mas permitir que entre ele e o aluno se estabeleça uma relação cuja primordial exigência é a da formação de indivíduos autônomos.
Dessa forma, a obra em questão tem o grande mérito de demonstrar de forma inovadora que as promessas em EaD inserem a necessidade de lidar ao mesmo tempo com o esgotamento dos modelos tradicionais da educação, assim como responder eficaz e prontamente à necessidade de extensão do ensino superior aos jovens brasileiros.
Nessa reflexão contínua sobre o fazer educação a distância e o ser educação a distância, a obra descortina “nossos velhos conceitos” sobre educação/ educação a distância. Não cabe mais, após a leitura do livro, ignorar a importância do território conquistado pela educação online e nem pensar que pode ser realizada de qualquer forma. A EaD tem peculiaridades, conceitos e finalidade própria, mas isso não a coloca em oposição à educação “presencial”, nem garante a plena atividade e ou interatividade por si só.
A EaD está longe de ser definida pelos equipamentos, técnicas e tecnologia. Sem a força e o projeto de formação humana ela não tem sentido. Somente através da reflexão acerca dos conceitos, finalidades, políticas e práticas pedagógicas será possível construir um projeto de educação online que abarque as características cognitivas, promova a reflexão crítica, a interação e a troca entre seus atores, alcançando, assim, o objetivo de disseminar a educação, mas sem abdicar da centralidade da formação humana e cidadã nesse processo. É essa a inovadora e precisa reflexão que a obra de Lílian do Valle e Estrella Bohadana traz para o pensamento em educação, propondo questões que vão além da mera dicotomia “educação presencial” e “EaD”.