Introdução
O presente texto compartilha resultados do estudo sobre as políticas educacionais em contexto inclusivo e bilíngue para surdos, apontados em uma pesquisa de mestrado, realizada no programa de pós-graduação em educação especial (PPGEEs), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). O objetivo da pesquisa foi o de analisar a transposição dos discursos de verdade nas práticas cotidianas de Intérprete Educacional (IE), observados por meio de suas narrativas, em conjunto às análises de diretrizes norteadoras das políticas públicas de educação bilíngue para surdos, implementadas pela Secretaria de Educação, nos anos iniciais do ensino fundamental, em um município do interior do estado de São Paulo. Para responder a esse objetivo, usamos alguns conceitos filosóficos como ferramentas analíticas para problematizar a educação inclusiva de surdos, a partir da lógica da biopolítica foucaultiana. Portanto, analisamos as discursividades práticas produzidas a partir das políticas públicas, em âmbito federal e o impacto que elas produzem nas políticas públicas bilíngues em um município do interior do estado de São Paulo. Problematizamos, neste contexto, as práticas cotidianas bilíngues para surdos e a atuação do Intérprete Educacional (IE), em atendimento à perspectiva municipal. Com a pesquisa, discorremos pelos movimentos de contra-ação ,e como eles refletem o desejo da comunidade surda sobre o esperado para uma educação inclusiva. Para compartilhar parte dos resultados da dissertação traremos um dos itens que apontam as ações dos IE e as lutas cotidianas para a produção de um ensino bilíngue para surdos.
Interessa-nos antes trazer uma explicação sobre a escolha das preposições (de/para/com) usadas no título desse artigo. Esse dispositivo textual foi usado porque traz considerações teórico-reflexivas significativas. O de e o para revelam o movimento de ações políticas educativas indicando se essas ações levam em consideração a diferença surda diretamente, ou se o processo político é fruto de uma proposta que originalmente foi destinada ao público ouvinte. Esses destaques fazem sentidos na medida em que o estudo trouxe contornos com as reflexões filosóficas e as análises documentais entrelaçadas aos discursos produzidos pela comunidade surda, na luta pela educação bilíngue de surdos, e aos dados do município investigado.
A política inclusiva e os documentos jurídicos normatizados trazem estes conectivos e produzem (ou não) práticas mais (ou menos) articuladas aos movimentos surdos. Para nós, a preposição de faz referência a uma política que nasce a partir das demandas surdas. Com esse olhar, o da lógica do de e não do para (marcando apenas o público de endereçamento da proposta), buscamos articulação dos documentos políticos que trazem pautas de uma educação de surdos, considerando além dos aspectos gramaticais e sociais da língua de sinais, a ontologia surda (potência do ser surdo em sua diferença). Destacamos que o conectivo de só se efetiva como marca de políticas direcionadas aos surdos, se ele estiver interligado pelo com: uma educação de surdos só ocorre se for com eles. O uso do de/com remete à proposta de que essa educação só existe se for pensada com finalidades singulares e na condição de estar lado a lado aos sujeitos surdos. Na escrita fazemos usos distintos de cada conectivo quando anunciamos a Educação para, de e com os surdos.
Em relação à composição textual, organizamos a escrita em três partes: a primeira se configura numa reflexão filosófica sobre a Educação Inclusiva no Brasil para os estudantes surdos, abordando o percurso histórico em ordem cronológica atrelado à educação bilíngue de e com surdos, nas contra-ações aos movimentos da Educação Inclusiva no Brasil. Na sequência, apresentamos o percurso metodológico investigativo baseado nos pressupostos foucaultianos. Por fim, exibimos apontamentos analíticos e as vozes, por vezes, sufocadas e silenciadas de sujeitos que atuam no cotidiano escolar das pessoas surdas e produzem contra-ações para práticas educativas mais éticas e singulares. Trata-se de fazer proliferar a aparição das vozes dos atores que produzem a educação de surdos do município investigado: os intérpretes educacionais, professores regentes e os gestores educacionais. Faremos uso de uma narrativa-piloto feita pelas pesquisadoras como disparadora analítica das inquietações provocadas no campo de investigação.
Educação inclusiva bilíngue para surdos analisada a partir da diferença: (in/ex)clusão do surdo
A inclusão escolar é algo ainda recente no Brasil. Iniciada como política educacional pública desde os anos de 1990. Esta ação social nomeada como proposta inclusiva vem se afirmando como política pública nos últimos anos (BRASIL, 1994, 2005, 2015). Para que a prática da inclusão aconteça, os documentos legais orientam ser a escola comum, espaço ideal de inserção educacional de todos.
De acordo com Foucault (1987), as variadas instituições sociais se configuram como lugares legitimados socialmente onde se produzem e reproduzem práticas sociais que se dão pelas relações de saber-poder. Com isso enfatiza-se a necessidade social posta nas descrições e classificações dos sujeitos, sendo efeito das relações de saber-poder, internas às instituições tais como a escola, por exemplo. Tais saberes se colocam como parte da maquinaria de disciplinamento e correção dos corpos em prol da norma social estabelecida. Esse movimento se vincula ao objetivo de se obter a ordem e o avanço social advindos da ideia de padrão social.
Tal processo torna a lógica inclusiva paradoxal, já que a escola busca abranger a todos, mas a partir de uma regularidade discursiva que busca capturar aqueles que estão mais à margem dela (GALLO, 2017). Essa prática revela o movimento institucional, seja das escolas, dos hospitais psiquiátricos e das famílias, de fazerem-se lugares que produzem realidades sociais, na medida em que nelas se instaura novos saberes. E é exatamente pela produção de saberes e de modos de vida que se fazem o controle e o disciplinamento dos corpos. No corpo surdo, o controle se dá pelo uso ou não da língua de sinais na escola e a própria violação desse direito, capturando e colocando os surdos dentro de uma regularidade discursiva posta pelas línguas orais (LOPES, 2007).
Segundo Veiga-Neto e Lopes (2007, p. 954), a inclusão é um produto do Estado que opera “[...] no controle dos corpos dos indivíduos [...]”, portanto, procura padronizar e excluir as diferenças. A Resolução nº 2 de 2001 do CNE-CEB institui as Diretrizes Nacionais da Educação Especial na Educação Básica, e em seu artigo 2º, afirma que compete aos sistemas de ensino o dever de matricular todos os alunos, cabendo às escolas se organizarem para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos (BRASIL, 2001).
No entanto, a concepção inclusiva para a educação de surdos tem sido vista como algo paradoxal e até contraditória: de um lado há a importante defesa dos direitos de convivência e permanência entre surdos e ouvintes, do outro lado, há a defesa da comunidade surda por uma escola bilíngue (Libras/Língua Portuguesa na modalidade escrita) específica para surdos, onde a instrução seja feita diretamente pelo educador e em língua de sinais e, ainda, que tenha pares surdos nas salas de aula. Nessa segunda posição, há uma defesa forte para a construção de espaços educacionais apenas para surdos, reivindicando o direito da especificidade linguística e da ministração das aulas em Libras, tendo um currículo diferenciado, exatamente pela diferença linguística (LACERDA; SANTOS; MARTINS, 2016; ALMEIDA; MARTINS, 2019).
Diante disso, das distintas formas de se pensar o que seja a inclusão de surdos (conceitualmente), os movimentos políticos, tanto na militância surda, como na academia, manifestam que na prática o estar junto pode, de certo modo, privar os alunos surdos de alçarem voos na aprendizagem, ao podar as suas singularidades de vida, e de uso de sua língua, de modalidade gesto-visual, como manifestado pelas autoras surdas: Andreis-Witkoski (2013), Campello e Rezende (2014), Andreis-Witkoski (2013, p. 89) defende que o “[...] processo inclusivo dos surdos precisa, obrigatoriamente, contemplar a perspectiva destes sujeitos, rompendo com um comportamento tutelar em relação a eles”. Portanto, estarem juntos (ouvintes e surdos) não significa estar favorecendo a educação inclusiva para todos, quando ao não favorecer a aquisição de língua de sinais - ponto fundamental para a educação infantil e anos iniciais, e de conteúdos, constata-se processos de exclusão internos à própria inclusão (VEIGA-NETO; LOPES, 2007).
Sobre essa perspectiva, das inquietações quanto à lógica inclusiva, propomos certa problematização ancorada em alguns conceitos das filosofias da diferença, a partir dos estudos do filósofo francês, Michel Foucault. Defendemos a surdez como um campo de saber sendo vista numa perspectiva antropológica e ontológica, deslocada da visão patológica da deficiência (VEIGA-NETO; LOPES, 2007; WITCHS; LOPES, 2015; PAGNI; MARTINS, 2019). Pensar a surdez nesse aspecto, como um campo de saber, possibilita refletir como os saberes e os discursos de verdade foram produzidos nesses espaços, em especial, na instituição escolar que é o foco dessa pesquisa.
De acordo com Gallo (2017), olhar a inclusão escolar pela perspectiva da diversidade é nos remeter ao direito universal, sendo este um aglutinador de tudo que é diverso. Portanto, tomar a diversidade (marcas de distinções entre os sujeitos) em lugar da diferença, significa amenizar as aversões que efetivamente o diferente poderia causar e planificar as singularidades. A distinção entre diversidade e diferença mostra de que modo a configuração de espaços comuns, a partir da lógica do “uno”, reafirma-se e como pode, com isso, produzir mais a exclusão ou o apagamento das diferenças, ou seja, há uma maquiagem nos corpos, diante das normas estabelecidas pelas instituições escolares que defendem a inclusão do diverso, entendendo-o como um estranho ou “[...] um exótico, um portador de algo que os outros, normais, não possuem” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 949).
Pensar a inclusão pela diferença implica, como diz Gallo (2017), por em movimento a ação da multiplicidade, e não da unidade. Desta maneira, é impossível agrupar as multiplicidades em um único conjunto, como é a característica da política da diversidade que quer colocar para dentro do grupo (do todo) aquele que está fora, fazendo do corpo diverso, um corpo comum: os deficientes, como se fossem todos parte de uma massa homogênea e idêntica entre si (os surdos, os cegos, os deficientes intelectuais etc.). Esse é o ponto da política inclusiva questionada por Gallo (2017), a necessidade de fagocitar o diferente para dentro da norma: fazer pertencer ao grupo aquele que está fora, pertencer a um conjunto unitário, composto por vários diversos, mas em um mesmo tempo, no mesmo espaço e no mesmo percurso de aprendizagem. Problematizar a inclusão enquanto diferença é tomar as práticas discursivas dos protagonistas da educação de surdos, e da legislação em vigor, as formas de governamentalidade na educação bilíngue inclusiva de surdos e por meio delas produzir novas formas de pensar, implementando outras formas de condução da educação, talvez, como heterotopia (FOUCAULT, 1967).
Gallo (2013) e Almeida (2017), baseando-se nos princípios foucaultianos, afirma que é possível fazer o ambiente escolar outro lugar, voltado às diferenças, promovendo “[...] espaços que se encadeiam uns nos outros, entretanto contradizem todos os outros” (FOUCAULT, 1967, p. 80). Espaço em que há a aparição das singularidades sem a planificação de todos por uma mesma métrica. Portanto, é possível promover nesse espaço de governamentalidade (condução de condutas), outro espaço, um espaço diferente na autogestão. A partir do conceito foucautiano de heterotopia (FOUCAULT, 1967), podemos pensar o cotidiano escolar como espaço produzido em outro lugar. Não o local de permanência, “mas lugar de passagem, entre-lugar” (GALLO, 2013, p. 10), ou lugar de resistência e diferenças.
As lutas surdas em torno da educação bilíngue nos anos iniciais e a instrução em Libras
Sobre os documentos jurídicos legais que regem a educação de surdos no território brasileiro, apresentamos a seguir um quadro com uma síntese, em ordem cronológica, das principais publicações das Leis, Decretos e Políticas Nacionais em âmbito federal e municipal, focalizando o município investigado.
O período de análise dos documentos se concentra entre os anos de 2002 e 2015. Esses documentos oficiais se encontram em vigor e são eles que regem a educação de surdos em tempos atuais, por isso, é base para a discussão que tomam os dispositivos jurídicos como reguladores de saberes e práticas escolares.
Ano de publicação | Âmbito | Caracterização | Descrição geral das leis, diretrizes e normativas |
---|---|---|---|
2002 | Federal | Lei | Lei de Libras nº 10.436/2002 - Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais |
2005 | Federal | Decreto | Decreto Federal que regulamenta a Lei de Libras |
2008 | Federal | Política | Documento norteador da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI |
2014 | Federal | Plano | Documento que determina diretrizes, metas e estratégias para a política educacional – PNE |
2015 | Federal | Lei | LBI – Lei Brasileira de Inclusão |
2015 | Municipal | Deliberação | Dispõe sobre o atendimento de alunos Público-alvo da Educação Especial (PAEE) nas Unidades Educacionais da Rede Municipal de Ensino Pesquisada |
2015 | Municipal | Projeto | Dispõe do Projeto Político Pedagógico da Unidade Educacional Pesquisada |
Fonte: produzido pelas pesquisadoras para síntese dos documentos estudados.
O primeiro documento apresentado é a Lei de Libras , que trata do reconhecimento dessa língua enquanto meio legal de comunicação e expressão de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002). Ao reconhecer a língua de sinais, legalmente, abre-se espaço para a petição das pessoas surdas pelo uso da Libras nos mais variados espaços sociais. Com ela instaura-se o lugar de luta pela acessibilidade linguística surda. Portanto, os demais documentos (BRASIL, 2005, 2008, 2014, 2015) foram criados e colocados em prática mediante a criação desta primeira Lei, em 2002.
Outros documentos serviram como diretrizes para os projetos educativos das escolas, tanto na esfera federal como na municipal, mas a Lei de Libras traz uma das primeiras conquistas de luta da militância surda brasileira, o direito de expressar-se nessa língua (FERNANDES, 2019). Após três anos de vigência e aplicabilidade desta lei, tivemos a publicação do Decreto Federal 5.626/2005 que a regulamenta e vem apresentar de que modo e em que prazos a Lei de Libras deve ser implementada. Sobre o Decreto , ele aponta ações nos diferentes setores sociais, como na saúde e na educação. Para a área da educação, o Decreto apresenta as diretrizes específicas para a oferta do ensino (detalhamento na língua de instrução, Libras e português na modalidade escrita), portanto, conduz como devem ser organizadas as escolas e as classes de educação que atenderão os alunos surdos desde o ensino infantil ao ensino profissionalizante.
Encontramos no Decreto o formato da educação inclusiva almejada para surdos, mas também pelos/de/com surdos. O documento faz menção e permite estarem matriculados nas classes bilíngues alunos surdos e ouvintes, já que caracteriza a sala pelo uso da língua fonte sendo a de instrução, no caso a Libras. Esse dado marca o momento social vivido já que não está desconexo do todo, sendo o contexto de defesa da proposta inclusiva. Morais (2018) faz uma análise do Decreto em relação às salas bilíngues, língua de instrução Libras, reafirmando o direito de os alunos surdos estarem todos matriculados nesse formato de sala.
Moriconi (2020, p. 142) menciona a interação das crianças surdas em diversos modelos educacionais existentes nas redes municipais e estaduais do interior do estado de São Paulo. Sua pesquisa se deu com sujeitos surdos em escolas em que a proposta era com sala Libras Língua de instrução, ou seja, “[...] escolas bilíngues ou com docência compartilhada”. Nela, o processo de interação entre as crianças era muito mais qualitativo, sendo que o ambiente era propício para a interação entre os pares. Favorável também à apropriação dos conhecimentos científicos, que promovem o desenvolvimento cognitivo e favorecem “[...] as trocas de interações entre pares surdos, professores bilíngues e outras pessoas que estejam a par da língua de sinais no ambiente escolar” (MARCONI, 2020, p. 142). Desta forma, ao analisar as salas em que a língua de instrução percorre todo o processo educativo, concluiu-se que em propostas de educação bilíngue em sala instrução em Libras, “[...] o desenvolvimento acontece de forma mais natural para a criança, interagindo com diferentes pessoas sem enfrentar a barreira comunicacional” (MORICONI, 2020, p. 143).
No entanto, vemos conflitos e divergências na própria leitura dos documentos legais. No parágrafo 1º do Decreto, afirma-se na configuração das classes de surdos, ainda prevalecendo o modelo inclusivo com mescla entre surdos e ouvintes: “[...] escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental.” (BRASIL, 2005, sem paginação). A lei reforça a necessidade do docente regente ministrar a aula em Libras e não por processo interpretativo, com a presença de IE. Sobre isso, segue o documento:
São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo. (BRASIL, 2005, grifos nossos).
Lodi (2013, p. 12) ressalta “[...] a necessidade do deslocamento dos alunos a um espaço distinto ao da sala de aula para a aprendizagem dos conteúdos escolares em Libras [...]”, portanto, não é possível a defesa da inserção dos surdos, nos anos iniciais, em salas inclusivas com interpretação. A defesa caminha para salas bilíngues, como previsto no Decreto. Martins e Lacerda (2016) apontam a necessidade emergencial da construção de políticas linguísticas na educação infantil e anos iniciais,
[...] uma vez que as crianças surdas as quais frequentam esse nível de ensino não possuem conhecimentos prévios da Libras para serem colocadas em situação de tradução da língua portuguesa para a de sinais, como nas salas em co-docência (MARTINS; LACERDA, 2016, p. 174).
Com isso problematizam a interpretação para Libras nesta etapa. Dada à defesa da instrução em Libras, apontamos no último tópico pontos sobre a interpretação educacional nos anos iniciais, no município investigado, diferenciando da proposta mais almejada pela comunidade surda, as salas instrução Libras. Apresentamos os desafios observados e a luta interna para fazer funcionar um pouco da defesa legal e social do modelo bilíngue defendido. Antes, porém, apresentamos o percurso metodológico para a coleta de dados e construção da pesquisa.
Procedimento metodológico de investigação
A pesquisa foi desenvolvida em um município que fica localizado no interior do estado de São Paulo e que tem, aproximadamente, 204.800 habitantes (IBGE, 2017). Esta cidade tem desenvolvido práticas bilíngues de surdos em duas de suas escolas, sendo uma de Educação Infantil e outra de Ensino Fundamental I, onde aconteceu a pesquisa (observação de práticas escolares). O Projeto Político Pedagógico (PPP) desta unidade foi elaborado com base nos documentos oficiais federais, como proposta de educação para surdos. Em sua estrutura física, apresentam-se classes bilíngues e inclusivas, isto é, classes compostas por alunos ouvintes (grande maioria) e alunos surdos (minoria – demanda atual), com a inserção do IE para a mediação dos conteúdos aos alunos surdos. Estes profissionais, embora contratados como IE, são considerados “professores bilíngues”. A justificativa disso é porque eles devem ter conhecimentos acerca do ensino, mas efetivamente ocupam a função de intérprete de Libras (PPP/DELIBERAÇÃO, 2015). Contamos com 8 participantes: 3 intérpretes educacionais, 3 professores regentes e 2 gestores educacionais. Realizamos entrevistas e observações do cenário escolar.
Foram três as salas observadas no período de três meses para coleta empírica, mais entrevistas. Os objetivos da pesquisa foram expostos aos participantes antes das observações em sala e reforçados antes das entrevistas, garantindo assim, a segurança destes, bem como, esclarecendo sobre o anonimato e a importância da participação voluntária de cada um como descrito na cópia assinada pelos participantes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecimentos, tendo o número de aprovação do comitê de ética.
Realizamos entrevistas semiestruturadas. De acordo com Gil (2008, p. 110), esse processo é “[...] muito eficiente na obtenção de dados em profundidade acerca do comportamento humano”. Os critérios de seleção e exclusão para a participação das entrevistas foram: a) para o coordenador de educação especial, deveria ser quem estivesse exercendo a função no momento da coleta, visto que o município adota, como medida para a ocupação do cargo, a escolha por meio de defesa de projeto na área, entre outros critérios, e não se trata de um cargo efetivo, mas de um cargo de exercício temporário; b) para os intérpretes educacionais, os professores regentes e o gestor da escola, o critério adotado foi que deveriam ser da unidade investigada, pois o objetivo era triangular os documentos da escola, as práticas de ensino com as observações e as entrevistas. Para o registro das entrevistas, foram utilizados gravadores de voz, e foram transcritas para uso posterior. O diário de registro para anotação das palavras-chave foi primordial para a produção das perguntas e do questionário semiestruturado que foi norteador para a conversa.
A experiência empírica, em sala de aula observada, registro em diário, e posteriormente, confronto das inquietações nas entrevistas, fez com que os estudos fossem articulados entre si, numa qualidade significativa para falar sobre os temas estudados. A teoria foucaultiana prioriza a historicidade dos fatos, a experiência e entende que as práticas discursivas em funcionamento são bases para todo o processo da pesquisa. Como uma das características do dispositivo metodológico na proposta foucaultiana o elemento constitutivo para as práticas deve sempre ser tensionado em suas fontes produtoras de verdades. O percurso assumido nas análises se deu por meio de produções analíticas, incluindo trechos das vozes dos protagonistas da escola apresentando os dilemas, tensões e as contra-ações cotidianas.
Problematizações analíticas: a política bilíngue e o desafio da interpretação nos anos iniciais
Abordamos na cena a seguir, elementos que nos fizeram refletir pautas polêmicas acerca da inclusão de surdos, da educação bilíngue e da formação dos profissionais que devem compor o quadro de uma educação bilíngue para surdos em rumo a uma educação de/com surdos. A cena-narrativa serve de dispositivo metodológico alegórico para o processo analítico.
Narrativa-piloto das pesquisadoras: observação de sala de aula inclusiva dos anos iniciais e a instrumentalização da Libras e da atuação do IE
A organização da sala se dá de modo tradicional, isto é, uma carteira atrás da outra e o aluno surdo desta sala se senta próximo à professora, deste modo, nota-se que a língua mais utilizada entre os alunos é a língua oral portuguesa e, por vezes, alguma gestualidade. A Intérprete educacional não ocupa o mesmo espaço de atuação como o da professora, na frente da sala e em frente ao aluno surdo, mas fica no fundo da sala, direciona-se à frente somente quando promove a interpretação da língua portuguesa para a língua de sinais pontualmente. No fundo da sala, busca por imagens/ ilustrações em revistas e materiais didáticos que representem ações que possam ser nomeadas em Libras por sinais/léxicos correlatos. Deste modo, essa exposição observada e a vaga instrução em Libras, pelo curto momento de uso da Libras, com o aluno surdo, trouxe-nos muita inquietação. Ao ver a organização física da sala, carteiras uma atrás da outra, não favorável à visualidade surda e a presença do intérprete no fundo da sala, fazendo idas pontuais na frente do aluno para mediar poucas interações, afirma a língua de sinais como instrumento de funcionamento, tal qual um acessório de uso estratégico. Um uso pontual para parte da aquisição de conhecimento e para a apropriação da língua majoritária, a língua portuguesa, em sua modalidade escrita.
Fonte: produzido pelas autoras.
A retomada dessa vivência na cena-narrativa fez fervilhar os pensamentos e por ela apresentamos um pouco do nosso incômodo. Por vezes percebemos na inclusão o apagamento das diferenças, potencializados por uma falsa proposta de educação bilíngue de surdos. Esse dispositivo de exclusão bilíngue se sustenta em três asserções presentes e que reforçam o paradoxo normativo da inclusão escolar para surdos: 1) na marcação de que a língua de sinais é instrumento de apoio pontual ao ensino de surdos, sendo suplementar à língua portuguesa, ou dependente dela; 2) na defesa de que a presença de um mediador esporádico entre a língua portuguesa e a Libras tornam efetivas as práticas bilíngues, ou seja, que não importa a instrução inicial em que o conhecimento foi produzido, e para qual público, a pouca interpretação pode facilmente versar conhecimentos em algumas ações simultâneas; por fim, 3) que a ilustração ou a didatização de atividades por imagens substitui a enunciação discursivo-verbal em Libras, como exposto na imagem abaixo, sendo elemento fundante para a construção de conceito pelos surdos, tomando-o como base para o ensino visual do qual o aluno surdo necessitaria para a sua alfabetização.
Destacamos que tais premissas são substratos para as ações estabelecidas em salas de recursos e em programas que conduzem a prática inclusiva, ou seja, o apoio complementar/suplementar ao ensino comum que, no limite, segue a lógica ouvinte com base na língua oral, fazendo da Libras instrumento ou trampolim para as práticas normativas comuns.
Como apontam Veiga-Neto e Lopes (2007), tais ações se filiam aos processos de normalização e disciplinamento de corpos e que seguem a certa planificação de um ensino comum, traduzindo ao que os autores nomearam pelo paradoxo da (in)(ex)clusão: a exclusão presente e efeito na/da própria inclusão. Em Foucault (2010) emprestamos a analítica da biopolítica para pensar a ação do poder produzido pela governamentalidade – formas de conduzir as condutas dos outros – e que produz subjetivações, docentes e discentes aptos a ajustar-se ao sistema, conformando seus corpos para aquilo que (lhes) sobra. Ou seja, vemos a ação da precarização da educação bilíngue de surdos em práticas educativas (inclusivas), ainda que se veja o desejo de uma organização diferenciada e ética. Nota-se tal processo por meio da instrumentalização da língua e da falta efetiva de estrutura física, formativas e conceituais para uma composição política efetiva de uma educação de surdos em Libras.
Essa, portanto, seria a educação para surdos e não a de/com surdos. Muitos municípios fortalecem a concepção de bilinguismo com foco nessa pauta, no sentido da promoção da adequação do currículo comum para os surdos, pela instrumentalização da Libras e das práticas educacionais de modo muito superficial. Não adotam a pauta ontológica que emerge do ser surdo e de suas diferenças radicais. Baseiam-se, portanto, nestes três princípios que apontamos, sendo eles, a nosso ver, falaciosos e contraproducentes para uma educação de/com surdos.
Sobre a descrição da IE na cena-narrativa percebemos que a estrutura e organização física, como representada na imagem abaixo, refletem a falta de políticas linguísticas que favoreçam a permanência da diferença surda, só pela disposição contra a visualidade surda. Ao colocar a pouca condução discursiva pela língua de sinais, fazendo uso dela em momentos pontuais, evidencia-se a fragilidade desse sistema, a pouca segurança e a não concretude da permanência da instrução na Libras.
Além disso, a complexidade das ações da interpretação nessa etapa escolar é destacada pela diretriz do Decreto ao afirmar que nos anos iniciais, a atuação deve ser feita por professores bilíngues, embora na leitura da PNEEPEI, também seja possível entender que o bilinguismo pode ser feito com a interpretação para Libras da instrução em português oral. No entanto, Martins (2008, 2013) apontou a dificuldade de segmentação entre o ato de ensinar e interpretar quando o pano de fundo ou a esfera de atuação é o cenário escolar, em que o aprender será conduzido por meio da transposição entre línguas e efeito da ação entre sujeitos. Concordamos com Martins (2013) ao mencionar o ensino como efeito de enlace, de relação e de condução (FOUCAULT, 2010). Nesse sentido, as práticas educativas, mesmo as feitas pela interpretação educacional, só se dão no encontro de/entre corpos, com base nas filosofias da diferença.
Nas salas observadas, verificamos que essa ação e mescla entre o ensinar e o traduzir/interpretar acontecem o tempo todo. O profissional IE constantemente atua na busca por recursos estratégicos e pedagógicos para a interpretação, de modo a auxiliar os alunos na condução da aprendizagem. Produzem ações mediatizadas de práticas que não se deram na explicação do docente regente. Fazem uso de estratégias que nomeiam por visuais, não sendo a busca por ilustrações que cristalizam os sentidos, tal qual exposta no item terceiro da falaciosa proposta bilíngue. As estratégias visuais apontadas aqui se referem ao enunciado produzido nas escolhas linguísticas, nas representações imagético-corpóreas que emanam dos discursos em uma língua gesto-visual. Porém, esse recurso visual simplificado, colado pela representação de imagens/ilustrações, foi apontado por alguns dos entrevistados IE: “[...] trago sempre as imagens reais e colo ao lado do sinal em Libras e escrevo em português para que saibam como se escreve. Para fixar o sentido do sinal que ele precisa aprender” (CAROLINA, 2019).
Essa cristalização de sentidos faz o empobrecimento do conceito de visualidade e comumente é trazido como se fosse a única maneira do aluno surdo assimilar o conhecimento e acessar ao sentido na língua portuguesa. Incomoda, portanto, a não tensão sobre a aquisição de conhecimento e aquisição de uma língua simultaneamente e o seu paralelo produzido pela ideia da representação estática da imagem/sinal. Essa ação promove a falsa apropriação de sentidos (LODI, 2013). A imagética visual tal qual é mencionada pelo IE não se dá por meio da discursividade visual da própria língua e o quanto essa lógica produz outras formas de dizer o conteúdo nessa língua, pouco ainda, a necessidade do pensar pedagógico sobre isso (CAMPELLO, 2008; LACERDA; SANTOS; CAETANO, 2011; SOFIATO; CARVALHO; COELHO, 2021).
Sobre o professor bilíngue, o Decreto aponta que sua ação é aliada à aquisição de uma língua e por ela a produção de sentidos. A relação discursiva direta é algo importante sendo a defesa que se coloca contra a prática de IE nesta etapa. O documento aponta que não há como o ensino acontecer nessas etapas de escolarização com outros profissionais devido a necessidade dos alunos em receber a instrução diretamente em língua de sinais, e mais, por estarem em processo de aquisição de uma língua, dada a falta de políticas linguísticas e acesso inicial à língua de sinais em suas famílias (CONCEIÇÃO, 2019). Essa defesa questiona o processo educativo feito por processo interpretativo.
No município investigado, fica evidente que os gestores educacionais compreendem a necessidade do profissional, pedagogo bilíngue, e o quanto os alunos estariam ganhando se a escola tivesse esse profissional na sala bilíngue, como afirma “se você pegar aqui no Decreto e pensar no professor bilíngue, é o que é para ser o ideal “[...] em uma escola-polo, teria muito mais ganho enquanto escola, enquanto aluno, enquanto metodologia” (PAOLA, 2019).
Contudo, veem-se impedidos de avançarem nessa direção, pela legislação municipal, como destacado pela gestora: “[...] é uma característica das políticas públicas brasileiras: nós vamos nos apegando em fragmentos das legislações e vamos transformando isso em políticas efetivas que ocorre em sala de aula [...] e acabam construindo caminhos possíveis diante de suas realidades: “[...] temos limites, mas temos buscado estratégias com o que nos é permitido para atender aos nossos alunos surdos” (PAOLA, 2019).
Notamos a presença da ação heterotópica na prática educativa e pela interpretação educacional nestes casos apontados. A heterotopia, tal qual Foucault (2003) aponta, coloca-se na ordem da criação e usos diferenciados do espaço comum e do corpo que escapa (ainda que temporariamente) às normalizações, ou seja, um funcionamento diferenciado que se dá pela necessidade de produção de novas formas de existência. Isso para resistir ao uso padrão que engessa singulares formas de vida, como as vidas surdas aqui mencionadas e que precisam de espaços físicos (na escola, em salas bilíngues) e espaços de docência em Libras para manter-se vivas no sistema educacional e então criam enlaces por vezes não desejados, mas que os fazem ter acesso de forma marginal aos conteúdos curriculares comuns em parceria às transgressões dos intérpretes educacionais nas salas de aula.
Vale ressaltar que nos encontros de observação nas três diferentes salas, em três modos diferentes de condução de suas práticas, apreciamos a parceria entre as professoras regentes e as intérpretes educacionais para enfrentarmos dilemas no fazer pedagógico em Libras. Aqui apontamos apenas um recorte da pesquisa, em que se destaca que IE e professoras criaram armas internas em suas posições-educadoras para fazer valer uma prática significativa ao aluno surdo: ora mais mediada pela intérprete como agente de educação, ora numa gestualidade inferencial pela educadora. Considerar como as intérpretes refletem e agem em suas posições frente às imposições documentais (do só interpretar para a também ação pedagógica e interação em prol da aquisição de língua dos alunos surdos) e aos conflitos diários, fazendo de si e seu corpo, parte do trabalho pedagógico, no trabalho docente, possibilitou entender as dinâmicas conflituosas dos documentos e sua inscrição na prática real feita no chão da escola.
Considerações finais
Construir uma educação de/com surdos é retomar as considerações de Foucault (2003, 2010), Carvalho e Martins (2016), ao promover nesse ambiente educacional um espaço heterotópico (novos espaços que se abrem com outras funcionalidades aos sujeitos, com salas multisseriadas com professores bilíngues e educadores surdos).
Na pesquisa propusemos analisar as práticas de ensino produzidas pelos discursos das políticas públicas, em âmbito federal e seus impactos na construção da política pública bilíngue para surdos no ensino fundamental analisado. Ao perceber que esse município não adota as salas instrução Libras tivemos que descrever a atuação do IE nesse contexto. Verificamos que o discurso emitido nos documentos emblema discursos de verdade paradoxais (que podem ser para o disciplinamento da diversidade, ou com manutenção das diferenças), de saber-poder por vezes inquestionáveis, mas que ao promover o estar junto anuncia, muitas vezes, práticas da (in/ex)clusão dos alunos surdos (VEIGA-NETO; LOPES, 2007). O movimento de estudo das teorias foucaultianas entrelaçadas ao tema da educação de surdos serviu de ferramenta conceitual das observações na pesquisa, suscitando as indagações sobre uma educação de/com surdos que contemple a diferença desses alunos (GALLO, 2017), pensando em um currículo com base no ensino para a multiplicidade surda em que a Libras seja a língua de instrução e matriz que dará subsídios para a aquisição dos demais conhecimentos escolares e que nos anos iniciais só se efetiva com a instrução direta em Libras.