Introdução
A Sociologia da Infância surgiu como uma nova disciplina no campo científico nas décadas finais do século XX, visando combater o adultocentrismo tradicionalmente presente nas investigações que tinham a infância e/ou a criança por objetos. Assim, passou-se a pensar em metodologias de pesquisa, bem como em questões teóricas e éticas, que contrariassem a invisibilidade sociológica ou epistêmica das crianças e que levassem os pesquisadores a ouvi-las em seus próprios termos.
Desenvolver uma pesquisa tendo como referencial teórico a Sociologia da Infância não é tarefa fácil, uma vez que não se trata apenas de uma escolha teórica e/ou metodológica que considera as crianças como atores sociais com capacidade de “[...] interagir em sociedade e de atribuir sentido às suas ações” (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 20). Afinal, afirmar que as crianças são atores sociais equivale a dizer que elas têm contribuições a dar à sociedade e que têm, portanto, o direito de participação social que lhes está, inclusive, garantido pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989. Mas, o que isto significa para as pesquisas que as têm por tema? Para Ferreira, (2009, p. 150) “[...] levar mais longe a perspectiva das crianças como atores sociais é incluí-las como participantes ativos no processo de pesquisa [...] dando assim cumprimento à realização dos direitos de participação consignados na Convenção dos Direitos das Crianças da [Organização das Nações Unidas] ONU”.
Escolher a Sociologia da Infância como base para uma pesquisa implica, portanto, em fazer uma escolha também política, conforme afirma Marchi (2018), pois os pesquisadores optam por olhar e escutar uma minoria sociológica, neste caso, ‘as crianças’, compreendendo-as como “[...] protagonistas e repórteres competentes das suas próprias experiências e entendimentos” (FERREIRA, 2009, p. 149). Implica, também, em realizar pesquisa com e não mais sobre crianças.
Para Christensen e James (2000) a diferença entre fazer pesquisa com crianças ao invés de sobre elas, está no fato de se as conceber como atores sociais ao invés de meros objetos de investigação, ouvindo e estando atento às diferentes formas de comunicação que estabelecem conosco. Neste mesmo sentido, Corsaro (2011, p. 57) também afirma que este movimento ou deslocamento do “sobre” para o “com”, nos processos de pesquisa que envolvem crianças, reflete uma preocupação direta dos pesquisadores em “[...] capturar as vozes infantis, suas perspectivas, seus interesses e direitos como cidadãos”. Para Alderson (2005, p. 423, grifos do autor), isto significa “[...] aceitar que as crianças podem ‘falar’ em seu próprio direito e relatar visões e experiências válidas [...]” sobre suas próprias vidas.
Tendo essa mudança de paradigma em vista, Ferreira (2009, p. 147) argumenta que é necessário buscar “[...] metodologias comprometidas em ultrapassar as perspectivas da pesquisa tradicional sobre as crianças, e apostadas em penetrar no mundo conceitual dos sujeitos e em envolvê-los como coparticipantes, construindo outros conhecimentos com as crianças”. Os autores Prout e James (1990) na obra “Constructing and Reconstructing Childhood” expõem que os métodos etnográficos são particularmente úteis para as pesquisas com crianças porque permitem aos pesquisadores ouvir as ‘vozes’ dos atores sociais no contexto micro social, até mesmo quando não é utilizada a linguagem oral, como muitas vezes acontece com as crianças pequenas.
Outros autores também se posicionam em relação às abordagens interpretativas, argumentando sobre a capacidade de comunicação e ação das crianças e do seu direito de serem ouvidas em seus contextos de vida e em seus próprios termos (MONTANDON, 2001; DELGADO e MULLER, 2005; entre outros). Corsaro (2011, p. 61) destaca que os métodos usados em análises de contextos micro sociais são “[...] especialmente adequados para documentar e apreciar relacionamentos e culturas de pares das crianças, e para demonstrar como elas constroem sentido e contribuem para os processos de reprodução e mudança sociais”. Marchi (2018, p. 729), por sua vez, afirma que o deslocamento metodológico em direção à escuta das crianças é devedor da desconstrução − ocorrida nos anos 80 do século XX − das etnografias clássicas e do seu modelo monológico, em que era comum “[...] subsumir a voz do(s) outro(s) à voz do pesquisador e seu arcabouço teórico”. Ou seja, segundo tal autora, esta mudança decorre da reflexão crítica sobre a relação de poder que se institui entre pesquisador e pesquisados (sejam esses adultos ou crianças).
Este artigo tem por objetivo refletir sobre questões éticas em pesquisa com crianças pequenas, destacando os sinais de assentimento e também questionamentos em relação à presença da pesquisadora no campo da investigação. Tais questões são tratadas em referência ao trabalho de campo de uma pesquisa realizada com crianças de 3 a 4 anos em um Centro de Educação Infantil (CEI), e são relativas aos primeiros contatos e observações em busca do aceite das crianças em participar da investigação . A pesquisa tinha por objetivo identificar e compreender a reprodução interpretativa das crianças em relação aos conteúdos digitais aos quais têm acesso em suas rotinas. A investigação foi desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos Interdisciplinar da Criança e do Adolescente/NEICA no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau/FURB.
Apresentando o contexto, os atores e a metodologia da pesquisa
A pesquisa, do tipo qualitativa, teve aporte teórico na Sociologia da Infância e utilizou, para a geração de dados, técnicas da etnografia como a observação participante, registros em diário de campo, entrevistas semiestruturadas com as professoras da turma, conversas informais, oficinas de desenhos e reconto de histórias. Os atores sociais da pesquisa foram onze crianças (de três a quatro anos de idade) e duas professoras da turma do Jardim de um Centro de Educação Infantil da Rede Municipal de Massaranduba/SC. Destaca-se que o CEI lócus da pesquisa é também ambiente de trabalho da pesquisadora na função de professora de hora-atividade da turma envolvida na investigação.
O trabalho de campo teve duração de 6 meses, de junho a dezembro de 2019. As observações aconteceram em diferentes momentos da rotina das crianças no CEI, com a pesquisadora acompanhando a turma no contraturno do seu horário de trabalho e também nas horas de trabalho como professora de hora-atividade. Como professora da turma, a pesquisadora precisava estar à frente do grupo e isto fazia com que nem sempre fosse possível perceber as minúcias dos momentos, assim, a observação participante realizada no contraturno tornou possível dedicar mais atenção à dinâmica da turma e às interações entre as crianças em diferentes momentos: tanto naqueles conduzidos pelas professoras (rodas de conversa ou de contar histórias, demais atividades pedagógicas), quanto nos momentos do ‘brincar livre’, nos quais as professoras regentes escolhiam o espaço e os materiais e as crianças, por sua vez, criavam e recriavam tais momentos tanto dentro quanto fora da sala.
Neste sentido, a pesquisadora passou por um processo no qual teve que “[...] aprender a realizar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes fórmulas: (a) transformar o exótico em familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico” (DA MATTA, 1978, p. 28). Afinal, o fato de a investigação ter sido realizada em seu local de trabalho colocava, de início, o desafio de transformar aquele cotidiano tão familiar em algo exótico ou estranho, tendo que apreender naquelas rotinas o seu objeto de estudo. Isto é, para poder observar as ações dos atores sociais e construir, a partir delas, os dados da investigação, era necessário ‘estranhar’ o que era familiar, embora não totalmente conhecido, como também destaca Da Matta (1978). Em relação ao duplo papel que a pesquisadora desempenhava diante das crianças (o de professora de hora-atividade e o de pesquisadora), Mills (2009, p. 26) argumenta que as “[...] nossas experiências de vida alimentam nosso trabalho intelectual [...]”, ou seja, para o autor, uma dimensão pode enriquecer a outra. Compreende-se, assim, que o fato da pesquisadora ser também professora das crianças facilitou a sua aproximação ao campo da investigação, pois ela já fazia parte daquele grupo – e isto lhe possibilitou passar mais tempo e ter maior proximidade com as crianças (de modo a conhecê-las melhor), o que facilitou o processo da geração de dados.
A observação participante e as conversas informais permitiram à pesquisadora ouvir as crianças em seus próprios termos, conforme destacam autores, como Cohn (2005, p. 45), para quem a observação participante “[...] é uma alternativa rica e enriquecedora, que permite a abordagem dos universos das crianças em si”. Tal metodologia permitiu também refletir sobre questões epistemológicas, metodológicas e éticas do processo de pesquisa, tendo esta reflexão sido acrescida em sua parte ética, visto que a investigação tinha por tema as crianças e seus mundos de vida (FERREIRA, 2010).
Adentrando nos bastidores de uma pesquisa com crianças pequenas
Um Centro de Educação Infantil não deixa de ser também um local permeado por relações de poder e controle, ou seja, por uma ordem social adulta (FERREIRA, 2004). Isto fez com que a pesquisadora, visando assegurar que as questões éticas da pesquisa fossem respeitadas, percorresse um longo caminho antes, durante e após a sua permanência em campo para evitar que posturas adultocentradas estivessem presentes em suas observações e reflexões. Afinal, falar em ética na pesquisa com crianças é reconhecer que elas têm muito a contribuir na investigação, é entender o seu lugar na pesquisa, assim como também compreender o papel do pesquisador nessa relação, pois “[...] normas éticas não bastam para assegurar às crianças o lugar de atores sociais, sendo necessária uma nova compreensão da posição da criança em pesquisas, assim como da posição do próprio pesquisador nesta relação” (PRADO; VICENTIN; ROSEMBERG, 2018, p. 43).
Neste sentido, Cohn (2005, p. 45) afirma que, durante o trabalho de campo, as conversas informais, o diálogo e a interação entre o pesquisador e as crianças necessitam ser enfatizados de modo a permitir que o pesquisador trate “as crianças em condições de igualdade” para “ouvir delas o que fazem e o que pensam sobre o que fazem, sobre o mundo que as rodeia e sobre ser criança, e evitando que imagens ‘adultocêntricas’ enviesem suas observações e reflexões”.
Soares (2006) define esta equidade como uma atitude de “simetria ética” que todo pesquisador deve adotar no trabalho de investigação, buscando integrar e alinhar sua metodologia às características dos diferentes atores sociais que participam das pesquisas, sejam eles crianças ou adultos. Neste sentido, esta mesma autora também alerta que “[...] não há uma ética à la carte passível de ser replicada em cada contexto [...]” investigado, visto que as relações éticas implicam tanto diversidade quanto complexidade. Por isto, embora os princípios e códigos éticos sejam importantes, eles “[...] não são suficientes para abarcar todas as complexidades com que o investigador se confronta no contexto de investigação.” Assim, estando ligada “[...] à construção ativa de relações de investigação [...]”, a ética não pode ser baseada em pressupostos ou estereótipos sobre as crianças e a infância, dependendo antes da consideração da alteridade que nelas se configura (FERNANDES, 2016, p. 763- 764).
Nesta mesma ótica, Ferreira (2010, p. 154) expõe que o pesquisador necessita se ver como um “[...] objeto de reflexividade metodológica [...], para pensar a si próprio na relação que estabelece [...] com aqueles Outros-crianças pequenas”. A autora argumenta ainda que tal reflexividade visa contribuir “[...] para sublinhar o potencial que se encerra nessa alteridade para produzir conhecimento crítico, reflexivo e transformador acerca de ambos [...]” (adultos e crianças).
Tendo por orientação o exposto, antes de iniciar a investigação, o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética na Plataforma Brasil , no dia 30/03/2019, seguindo as orientações para o desenvolvimento de um estudo envolvendo seres humanos. No caso de uma pesquisa com crianças, se exige o preenchimento de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por parte dos pais/responsáveis e/ou professores, caso a pesquisa tenha como campo uma instituição educativa. Isto porque, conforme alertam Francischini e Fernandes (2016, p. 63), “[...] não basta um olhar isolado sobre a criança para salvaguardar eticamente o processo de pesquisa, uma vez que ela, enquanto ator social, estabelece relações com uma multiplicidade de outros atores que inevitavelmente colocam-se nesse processo”.
A aprovação do Comitê de Ética foi recebida no dia 26/04/2019 . Com o projeto aprovado, no dia 13/05/2019 foi formalmente apresentada a intenção de pesquisa ao CEI campo da investigação. Neste mesmo dia a pesquisadora começou a conversar com os adultos envolvidos, esclarecendo os objetivos e o processo da pesquisa e entregando os TCLE para as professoras da turma e para os pais das crianças.
Foi de essencial importância entregar os Termos pessoalmente aos pais, aproveitando para uma apresentação tanto da pesquisadora quanto das intenções da pesquisa e seus objetivos, destacando que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética. Assim, foi esclarecido que a metodologia a ser utilizada não apresentaria nenhum risco às crianças e que a identidade delas seria mantida em sigilo, uma vez que os nomes utilizados na pesquisa seriam fictícios e não seriam divulgadas imagens, como fotos ou vídeos. No entanto, foi deixado claro para os pais que os resultados da pesquisa poderiam ser publicados em revistas, livros e eventos científicos. No dia 28/05/2019 todos os Termos, devidamente assinados, já haviam sido devolvidos à pesquisadora. O início do trabalho de campo se deu no dia 11/06/2019.
Após a pesquisadora ter obtido o consentimento da instituição, das professoras e dos pais, foi a vez de obter o consentimento das crianças, pois conforme destaca o Art. 12 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, deve-se “[...] assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança” (ONU, 1989) . O primeiro passo para se obter o consentimento das crianças é deixá-las informadas sobre a investigação: o pesquisador deve se apresentar como tal e comunicar às crianças o que veio fazer junto a elas. Esta atitude garante que os direitos de participação das crianças em assuntos que lhes dizem respeito sejam assegurados, bem como as protege de pesquisas invasivas e exploratórias (ALDERSON, 2005; FERREIRA, 2010, MARCHI, 2018). Além disto, pressupõe que as crianças são “[...] capazes de interpretar o que se passa, de decidirem ou não a sua participação [...].” (FERREIRA, 2010, p. 161).
No dia desta conversa com as crianças, a Prof.ª Madalena falou para elas, assim que viu a pesquisadora chegar no CEI: “Olhem lá... Quem chegou? O que será que a Prof.ª Dai veio fazer aqui?” (PROFESSORA MADALENA, 2019). As crianças lançaram um olhar curioso para a pesquisadora, afinal, aquele não era o seu dia de ficar com elas, e então lhe perguntaram: “Você veio fazer uma atividade prô?” “O que nós vamos fazer?” “Vamos cantar?” (fazendo referência às aulas de musicalização que a pesquisadora ministrava quando estava no papel de professora de hora atividade da turma), ao que a pesquisadora respondeu: “Eu vim aqui conversar com vocês” (PESQUISADORA, 2019) e a Prof.ª. Madalena acrescentou: “A Prof.ª veio conversar sobre um assunto muito importante, ela vai dizer o que veio fazer aqui” (PROFESSORA MADALENA, 2019). Naquele instante, a pesquisadora convidou as crianças para fazerem uma rodinha de conversa e falou que, para não esquecer de nada que eles falassem precisaria gravar aquele momento e perguntou se poderia fazê-lo. As crianças responderam “sim” e ela então perguntou se alguém gostaria de ligar o microfone (do celular). A Daniele logo se prontificou e, então, a pesquisadora disse: “Pronto, está gravando, eu vou colocar o celular aqui perto de todo mundo [...]” (PESQUISADORA, 2019).
Compreende-se que o diálogo inicial entre a pesquisadora e as crianças demonstra o cuidado e respeito ético a serem considerados desde o início das observações, e que se revelam também nos pequenos detalhes desta interação. A pesquisadora, ao pedir permissão das crianças para gravar a conversa e ao convidá-las para participar dessa ação, partiu do pressuposto de que as crianças são atores sociais de pleno direito e não meros objetos de investigação. Tal atitude, portanto, prevê resgatá-las “[...] do silêncio e da exclusão, e do fato de serem representadas, implicitamente, como objetos passivos.” (ALDERSON, 2005, p. 423).
Nesta primeira roda de conversa a pesquisadora começou perguntando às crianças se não haviam percebido nada de diferente nela, afinal, estava sem o jaleco de professora e tinha uma mochila. Mas as crianças apenas a olharam, sem responder. Então a pesquisadora explicou que naquele dia não estava ali como professora deles, mas como pesquisadora, porque no ano passado havia voltado a estudar e a frequentar uma escola. Falou que a escola onde estudava era muito grande, com muitas salas e muitos professores e que lá não havia crianças. Quem estudava lá eram os adultos, como a professora. Explicou que naquela escola as pessoas estudavam bastante, liam muitos livros e desenvolviam pesquisas. Então explicou que uma pesquisa era parecida com os projetos que as crianças também faziam ali no CEI, com as professoras, e as lembrou do projeto que a turma desenvolveu sobre flores. Falou que, assim como naquele projeto, onde eles fizeram muitas atividades para aprender sobre as flores, ela estava também desenvolvendo um projeto para aprender coisas com a turma. Destacou que no seu estudo também se escreve um livro sobre a pesquisa realizada. Explicou que já havia conversada com a diretora, com as professoras, com o papai e a mamãe deles e que agora queria saber se também aceitavam fazer parte do seu livro. As crianças apenas a olharam em silêncio por um tempo, quando a Juliana falou: “Eu... eu... a gente tá aprendendo poça de lama” (JULIANA, 2019). Ao que a pesquisadora respondeu: “Que legal” (PESQUISADORA, 2019). E continuou explicando que o seu livro iria falar sobre os desenhos animados que a turma assiste e também que iria brincar, desenhar, fazer rodas de conversa e de histórias com a turma. Então, perguntou se elas aceitavam fazer parte do seu livro. Neste momento se ouviu alguns “sim”, mas a maior parte da turma ficou em silêncio.
Para Ferreira (2010), a linguagem utilizada no momento da apresentação da pesquisa às crianças, o modo como se fala, pode levá-las a entender ou não o que realmente se quer dizer. Quanto menores forem as crianças, devido à sua capacidade de compreensão e experiência social, maior será a dificuldade de os pesquisadores esclarecerem a intenção da pesquisa. Nesta ótica, ao comparar a Universidade com um Centro de Educação Infantil, o projeto da pesquisa com os projetos de conhecimento desenvolvidos pelas crianças, e a dissertação com um livro, a pesquisadora tentou se aproximar da linguagem e das experiências do dia a dia das crianças, de modo a fazer com que o que ela estava falando e solicitando (a permissão) fizesse sentido para as crianças.
Ferreira (2010) argumenta que as primeiras reações das crianças à presença do pesquisador, sejam estas verbais ou não, não podem ser interpretadas como simplesmente negativas ou positivas, e nem mesmo como decisivas. Neste sentido, compreende-se que, apesar de a pesquisadora ter se apresentado como tal, explicado para as crianças o que desejava fazer junto a elas e perguntado se aceitavam fazer parte do seu livro, só seria possível obter a verdadeira resposta que ecoou atrás daqueles poucos “sim” ao longo do tempo das observações.
No final da roda de conversa, a Prof.ª Madalena também perguntou para as crianças: “A Prof.ª Dai pode vir aqui na nossa sala? Aprender com a gente?” (PROFESSORA MADALENA, 2019). Neste instante se ouviu, em tom bem baixo, apenas um “sim”. O restante da turma permaneceu em silêncio. Se faz necessário destacar e concordar com Ferreira (2010) que a presença da investigadora e da professora da turma podem ter conduzido/induzido a aceitação por parte das crianças. Isto porque elas poderiam não se sentir à vontade para recusar ou para se manifestar negativamente em relação ao que lhes estava sendo proposto por adultos com os quais se relacionavam e que detinham, obviamente, algum poder sobre elas. Neste sentido, essa situação pode ter levado as crianças a não se expressarem negativamente e/ou questionarem a proposta apresentada pela pesquisadora.
É por isto que Ferreira (2010, p. 163) argumenta que, em uma pesquisa com crianças pequenas, “[...] não se pode considerar, que elas ou que todas elas foram/estão plenamente informadas [...] para consentirem em seu próprio benefício, e é igualmente muito discutível até que ponto tal decisão é voluntária e resultante de uma ponderação atempada”. Esta mesma autora afirma também que o consentimento só pode ser considerado válido quando todos os participantes foram informados e quando entendem/compreendem a natureza, as finalidades e também as consequências da eventual pesquisa (FERREIRA, 2010). Diante desse cenário, ela argumenta que, mais do que falar em “consentimento informado”, em uma pesquisa com crianças pequenas talvez se deva falar em “assentimento” (FERREIRA, 2010, p. 164).
O assentimento a que a autora se refere diz respeito aos processos que se desencadeiam ao longo da pesquisa e que visam obter a concessão das crianças a fim da sua observação ser por elas aceita (FERREIRA, 2010). Frente a isso, pode-se compreender que “entrar” no campo da investigação, não é sinônimo de “aceder”, nem de “ganhar consentimento” ou ainda “fazer parte” do grupo das crianças, uma vez que o processo de assentimento pode ser plural e ambíguo para os diferentes sujeitos que dele participam (FERREIRA, 2003, p. 150). Ou seja, esse processo não acontece antes e tampouco depois da pesquisa, mas durante a mesma (em todo o seu desenvolvimento). A obtenção do assentimento das crianças depende ainda da relação de confiança constituída com o pesquisador, sendo que a aceitação da sua presença necessita ser “[...] permanentemente ativada e renegociada ao longo da pesquisa.” Ela terá, portanto, que “[...] ser refletida criticamente em função da receptividade e reciprocidade e/ou rejeições que desencadeie.” (FERREIRA, 2010, p. 17).
Sendo contínuo o processo de assentimento das crianças, isto é, acontecendo durante todo o trabalho de campo, os sinais de assentimento ou de recusa em participar da pesquisa só podem ser confirmados ao longo da investigação, mediante uma grande atenção do pesquisador às manifestações das crianças sobre a sua presença e suas ações no campo.
Quando o investigador acata a noção de “assentimento” entende que as crianças, enquanto atores sociais, mesmo tendo um entendimento um tanto “lacunar” ou “impreciso” a respeito da pesquisa, são capazes de decidir sobre a sua participação (FERREIRA, 2010, p. 165) e, igualmente, de comunicar a sua permissão ou recusa de diferentes maneiras (através de linguagem verbal e não verbal). Frente a isto, esta autora ainda destaca que a obtenção da concessão das crianças, não deve se cingir à sua mera formalização no momento inicial da pesquisa, mas sim “[...] requer que o (a)investigador(a) aprenda a conhecer suas decisões tácitas a esse respeito e ao longo da sua permanência no terreno, escutando as suas vozes e mobilizando aquilo que Skanfors (2009. p. 15) designa de ‘radar ético” (FERREIRA, 2010, p. 179). Ou seja, é necessário o pesquisador desenvolver uma espécie de radar/alerta sensível às diversas formas de expressão das crianças pequenas e, portanto, às maneiras pelas quais elas possam comunicar seus sentimentos (assentimentos e/ou resistências) em relação ao fato de serem observadas, como mostram as notas de campo a seguir.
Naquele mesmo dia, a Prof.ª Madalena convidou a turma para passear pelo pátio da igreja (que fica próximo ao CEI) com o intuito de procurar sementes, folhas secas e pauzinhos para que pudessem brincar de fazer comidinha. As crianças se animaram, e, junto com as professoras, foram se dirigindo para o portão do CEI. Quando a turma estava saindo, Joana olhou sorrindo para a pesquisadora e disse: “A prô Dai vai junto com a gente” (JOANA, 2019). Chegando lá, as professoras indicaram para as crianças um barranco com árvores no qual a turma poderia encontrar muitas folhas e pauzinhos. Feita a coleta do material para a brincadeira, a Prof.ª Madalena pediu para que dessem novamente as mãos para continuar o trajeto. Neste momento, a Daniele e o Matheus vieram dar as mãos à pesquisadora e a guiaram durante o restante do passeio.
Em um outro dia, quando a pesquisadora chegou no CEI e a porta da sala estava aberta, ela entrou pedindo licença e dando boa tarde. As crianças e professoras estavam sentadas no tapete da sala e, quando a viu entrar, Júlia veio correndo lhe abraçar, no que foi seguida pela Juliana, Daniele, Aline, Joana e Ana. A força daquele abraço coletivo quase desiquilibrou a pesquisadora que, no entanto, percebeu que estava sendo bem-vinda pelas crianças.
Em um outro momento, as professoras Madalena e Isis convidaram as crianças para irem até a sala do Pré-escolar que estava vazia porque a turma estava de férias. Antes, no entanto, as professoras solicitaram que as crianças fizessem uma fila. Aline, que era a última da fila, olhou e sorriu para a pesquisadora lhe fazendo um sinal com a mão, como se dissesse ‘vem junto’.
Durante uma tarde que passou com as crianças, a pesquisadora estava sentada em uma cadeira quando a Júlia se sentou em seu colo, olhou para a Aline e fez um sinal com a mão apontando para uma outra cadeira ao lado, dizendo: “Qué senta no ônibus? Tem um lugar!” (JÚLIA, 2019). Neste momento a pesquisadora percebeu que Júlia a havia incluído numa brincadeira.
Em uma aula de Educação Física, Astério se sentou no colo da pesquisadora e começou a olhar o seu diário de campo e a mexer em sua caneta. Em um certo momento ele fez de conta que estava lendo alguma coisa, mas falou tão baixinho que não foi possível ouvir. Quando viu no diário os desenhos dos amigos (havia no caderno uma cópia dos desenhos realizados nas oficinas), Astério falou: “Quem fez essa bagunceira?” (ASTÉRIO, 2019), se referindo aos desenhos que pareciam rabiscos. A pesquisadora, então, falou: “Não é bagunça, são os desenhos que os amiguinhos fizeram, acho que naquele dia você foi embora mais cedo” (PESQUISADORA, 2019). Júlia, que estava por perto, apontou para um desenho e falou: “Esse é meu” (JÚLIA, 2019) (no entanto, naquele dia, Júlia também não participou da oficina). Ao que Astério respondeu: “Essa bagunceira é nossa!” (ASTÉRIO, 2019).
Por algum motivo, Astério e Júlia acharam importante estarem no diário de campo da pesquisadora, afinal, ela havia dito que estava escrevendo um livro e convidado as crianças para fazer parte dele. Isto pode demonstrar também que as crianças sabiam que ela estava a observá-los e que fazia registros sobre as suas falas, desenhos e brincadeiras. Ou seja, as crianças também a estavam observando, pois em um “[...] processo de observação participante, o trabalho do etnógrafo é igualmente alvo de intensa e esmiuçada observação por parte dos sujeitos observados [...]” (FERREIRA, 2003, p. 164). É o que também mostra o relato abaixo.
Houve um dia em que a pesquisadora chegou no CEI e as crianças estavam sentadas no gramado ouvindo uma história. Quando a viram, as professoras Madalena e Isis falaram: “Boa tarde, Prof.ª Dai” (PROFESSORA MADALENA; PROFESSORA ISIS, 2019). E as crianças acenaram. A pesquisadora, então, se sentou na calçada à beira do gramado, à alguma distância, mas a Aline, esticando seu braço ao máximo, segurou na sua mão, sorrindo. Em seguida, a Prof.ª Madalena convidou as crianças para entrar na sala. A pesquisadora as acompanhou, mas, assim que a turma entrou, Astério lhe perguntou: “Mas... tu vai ficar aqui? A prô tá aqui.” (ASTÉRIO, 2019) (ele se referia ao fato de que não fazia sentido a pesquisadora permanecer na sala se a professora regente já estava lá com eles). Então a Prof. ª Madalena respondeu: “Hoje a Prof.ª não está aqui como professora, ela não vai fazer atividade, ela está fazendo as observações” (PROFESSORA MADALENA, 2019).
A fala de Astério pode ser compreendida de diferentes modos. Como um questionamento à alteração da rotina da turma; como um sinal de resistência à presença de uma outra professora na sala (pois ali já estava a professora regente); como um sinal de que não havia entendido que, naquele momento, o papel da professora de hora atividade era outro: o de pesquisadora/observadora). Seja qual for o sentido que pode ser atribuído à ação de Astério, ela indica que as crianças, como atores sociais, além de produzirem sentido sobre suas próprias ações (PINTO; SARMENTO 1997) também interpretam e levam em consideração as ações dos outros. Neste caso, o menino tentava compreender as ações e a presença do outro-pesquisador em campo. Entende-se que quando as crianças se manifestam através de um sorriso, um abraço, estendendo ou recusando a mão, ou quando emitem questionamentos à presença do investigador, fazem isso com uma intenção, sabem porque fazem e o fazem por um motivo. Neste sentido, todas as ações sociais desenvolvidas “[...] sistemática e reflexivamente reafirmadas pelas crianças” (FERREIRA, 2003, p. 155), seus sinais de assentimento, questionamentos ou recusa, notificam um processo de construção social de sentido em torno de quem é o pesquisador e o que ele faz no campo da pesquisa.
Considerações finais
Desenvolver uma pesquisa com crianças com o aporte teórico da Sociologia da Infância não é uma tarefa fácil, pois requer reconhecer a criança como um ator social. Um grande desafio, para Fernandes e Marchi (2020, p. 3), é o de que o pesquisador precisa “mobilizar a sua imaginação” para conceber metodologias que respeitem a autoridade das crianças. Isto é, se faz necessário que o pesquisador adentre ‘nas linguagens’, ‘nos tempos’, ‘nos significados’, ‘nos modos de ver, ouvir e sentir das crianças’, pois somente assim estará comprometido em apurar ‘essas vozes’ sem deixá-las apagadas ou subsumidas na sua própria (do pesquisador) voz, o que não é uma tarefa simples. Portanto, discutir ética na pesquisa com crianças vai além de simplesmente seguir princípios éticos.
Reflete-se também que os sinais ou comunicados emitidos pelas crianças não o são somente através de palavras, mas também por meio de linguagem corporal (expressões faciais, gestos), como pode ser percebido nos sorrisos ou no franzir de cenhos, no ato de segurar a mão da pesquisadora ou de acenar para que se aproxime, nos abraços coletivos e quando a envolviam em alguma brincadeira. Compreende-se, assim, que tais situações ou sinais devem ser interpretados como aceitação ou recusa das crianças em se deixar observar ou em participar da pesquisa. No caso desta investigação, a pesquisadora percebeu que, pouco a pouco, sua presença estava sendo aceita pelo grupo, mas também percebeu como eram sutis os sinais de assentimento por parte das crianças. Cabe, assim, ao investigador saber interpretar tais sinais, tendo sensibilidade para apreender, nesses pequenos gestos e expressões, as reações diante da sua presença em campo (FERREIRA, 2010; SANTOS, 2014; MARCHI, 2018).
Segundo Ferreira (2010, p. 170), em situações de maior envolvimento com as crianças, a pesquisadora progride “[...] da qualidade de observadora à de observadora participante e à de participante observadora”. No entanto, a autora argumenta que é preciso cautela para respeitar as indicações das crianças e, assim, evitar que a participação do pesquisador altere o curso das ações infantis. Por este motivo, mesmo realizando uma observação participante e interagindo com as crianças em todos os momentos, a pesquisadora procurava não interferir em suas ações e buscava reconhecer em meio a estas os sinais de assentimento ou de recusa à sua presença. Caso contrário, não faria sentido falar em questões éticas, consentimento informado e assentimento. Não levar isto em conta ou não destacar isto em suas notas de campo seria o mesmo que considerar as crianças como meros objetos de investigação, ao invés de atores sociais. Como defendem Fernandes e Marchi (2020, p. 5), no processo de investigação com crianças deve ser interrogado “[...] o modo como se constrói a relação de pesquisa entre adultos e crianças, o modo como se salvaguardam as questões de poder [...], bem como também [...] o modo como se criam condições para que a autenticidade se possa exprimir e não ficar oculta ou refém da impossibilidade de a criança se assumir como sujeito, como ator no processo de construção do conhecimento”.
O que chamou a atenção durante a observação participante foi o fato de as crianças quererem brincar, conversar, contar coisas, ter contato físico com a investigadora com uma frequência muito maior do que quando ela estava no papel de professora de hora-atividade. Durante todo o trabalho de campo, em nenhum momento ela chamou a atenção das crianças ou lhes deu comandos, sendo assim, acabou sendo vista como uma amiga, alguém que estava disponível, a lhes dar atenção e ouvidos, e que aceitava brincar com elas.
O fato da pesquisadora ser também a professora de hora-atividade das crianças pode ter feito com que durante as observações houvesse mais sinais de assentimento do que manifestações de recusa ou questionamentos por parte das crianças à sua presença, afinal, ela já era sua conhecida. Mesmo diante deste fato, os resultados mostraram que a obtenção do assentimento das crianças é, ainda assim, um processo complexo e em permanente negociação (FERREIRA, 2003). E que a ética na pesquisa vai muito além dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, estando acima de tudo alinhada com as atitudes do pesquisador em campo. Neste mesmo sentido, Prado, Vicentin e Rosemberg (2018, p. 58) afirmam que “[...] mais do que normas pré-estabelecidas, o que faz a condução ética de uma pesquisa é a busca permanente do pesquisador em respeitar as crianças junto às quais sua pesquisa é desenvolvida”.
Assim, envolvendo uma negociação constante, o trabalho de pesquisa com crianças solicita também que o “exercício da escuta” seja realizado “(...) de modo ético no campo da atuação, aprendendo a acolher a singularidade e a diferença da criança como sujeito protagonista de suas ações” (CARVALHO; MÜLLER, 2010, p. 75).
Reforça-se, deste modo, a necessidade de o pesquisador ser e estar ‘atento’ e ‘vigilante’ para além dos códigos éticos vigentes, pois a ética é construída ao longo de todo o trabalho de campo; é constituída nas relações estabelecidas com as crianças e nas quais se precisa sempre levar em conta sua alteridade e também autoria, nos diferentes tempos e espaços.