Introdução
Neste texto trazemos como centralidade uma reflexão sobre fotografia como texto. Para isso, partimos da perspectiva da imagem como texto visual, por se constituir de narrativas ilustradas e sequenciadas, promove a leitura e a compreensão de seus traços e outros elementos que a compõe. A fotografia permite o registro de momentos, situações, pessoas, objetos, cenários naturais, enfim, tudo que o olhar pode capturar, seja para agenciamento rememorativo, para registro documental, seja como forma de identificação ou mesmo entretenimento, como diferentes modos de atribuir à imagem fotográfica caráter histórico, social e cultural.
Ao considerar que as fotografias registram eventos e que conferem importância e imortalidade ao que já aconteceu, Sontag (2004) nos mostra que tais imagens são artefatos, visto que representam pedaços de valor do universo que nos cerca, são relíquias encontradas, são fantasia e ao mesmo tempo informação. Quem coleciona fotos, consequentemente coleciona o mundo, afinal prestigiar uma imagem fotográfica é fruir da arte e simultaneamente se impactar pela evidência do real.
Para além da percepção da fotografia como registro, Manguel (2001, p. 29) aponta que a imagem pode ser percebida como obra de arte, tendo em vista que é utilizada como “[...] um artifício para comunicar ideias, sensações, uma vasta poesia”.
Nessa vertente, Flusser (2000) explica que imagens são superfícies com significados, o que nos estimula a considerar que a imagem presente nos livros de literatura infantil pode ser percebida como textos capazes de conduzir o pequeno leitor a um movimento de diálogo e de produção de sentidos.
A arte fotográfica permite uma multiplicidade de interpretações, possibilita que o leitor veja a imagem para além das molduras. Para Santaella (2012) a fotografia representa um testemunho do real por evidenciar a presença inegável do objeto então fotografado, particularidade que atrai e aproxima a atenção dos leitores, inclusive infantis.
Ao pensar que o livro para crianças pode estar carregado de representações, pois além de “[...] um suporte material para o texto, o livro, com o conteúdo carrega e com a materialidade que o caracteriza, representa uma forma de expressividade e de produção de sentidos [...]” (Goulart, 2016, p. 80), que mobiliza ações, relações e interações de modo dialógico.
Diante disso, este artigo objetiva analisar três diferentes obras da literatura infantil que trazem a fotografia como artefato da ilustração, de modo a refletir sobre as dimensões das narrativas, estéticas e literárias presentes em tais obras e as possibilidades do trabalho com livros ilustrados a partir da imagem técnica nas práticas educativas.
Para isso, optamos por uma pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, a partir da análise de três obras distintas que trazem a fotografia como foco de ilustração. Como embasamento teórico a pesquisa se apoia nos estudos de Flusser e Sontag sobre fotografia, de Ramos e Santaella sobre leitura de imagens, entre outros autores que discutem as temáticas.
Para uma melhor organização da discussão proposta, o presente artigo se divide em três seções: primeiramente apresentamos uma discussão acerca da prática de leitura de imagens e a diferenciação entre o ver, olhar e a apreensão da imagem fotográfica. Em seguida, discorremos sobre a relação entre a potencialidade da imagem como recurso para a imaginação e, finalmente, exploramos as obras em questão, por meio de uma análise reflexiva sobre cada uma delas.
Leitura de imagens: entre ver, olhar e apreender a imagem fotográfica
Por considerarmos que a imagem se caracteriza como um texto visual, que informa e comunica ideias, podemos questionar o que se entende por texto? Para avançarmos na discussão, buscamos em Belmiro (2014, p. 321) que, com base nas teorias linguísticas, define texto “[...] como uma produção, seja verbal, sonora, gestual, imagética, em qualquer situação de comunicação humana, estruturada com coerência e coesão”.
Ao trazer a imagem como texto visual, compreendemos que é possível narrar histórias a partir do ato de olhar, observar e examinar paisagens. Exercer essa prática com liberdade permite ao leitor, por mais jovem que seja é possível reconstruir memórias e associá-las ao que está sendo visto, dessa forma incorpora-se a capacidade de relatar à maneira da criança a que está sendo visto e, nesse sentido, Ramos (2013, p. 110) explica que “[...] cada um construirá a história com base em seus conteúdos emocionais e repertório intelectual [...]” e acrescenta:
Ver e descrever cenários são maneiras de selecionar o que impressiona e descartar o que não produz sentido. Enrolar as palavras, mas dar conta de expressar o visto, o vivido e o imaginado ajuda a elaborar um discurso sobre o real, a criar um jeito de falar e pensar próprio de cada um quando se é criança (Ramos, 2013, p. 48).
Sendo assim, vivemos na era digital, cercados pela tecnologia ao alcance das mãos e dos olhos: em propagandas, na televisão, em celulares, nas ruas, em lojas, no trânsito, no restaurante ou na sala de espera de um consultório, as imagens nos abraçam, bloqueiam nossos olhos, para onde viramos lá estão elas, desenhos, pinturas fotografias impressas ou em movimento. E por esse motivo Queirós (2012, p. 94) denuncia: “[...] estar em silêncio tornou-se impossível. Talvez tenham descoberto que o silêncio é perigoso, por nos permitir travar o diálogo mais profundo: quando nosso eu real conversa com o nosso eu ideal. É povoando o silêncio que reconstruímos o que nos foi dado”.
A imagem fotográfica como texto implica um ato discursivo, como assegura Bakhtin e Volochínov (2012, p. 127), se um livro pode ser considerado “ato de fala impresso”, da mesma forma nos referimos à imagem como ato de fala silenciosa, atua como enunciados visuais, repletos de sentidos. O silêncio representa a ação responsiva provocada pela imagem.
Ao povoar o silêncio com o que é dito de outra forma, com o pensar das relações construídas ou reconstruídas a partir do visível, do percebido ou lido, daquilo que fora vivenciado, compreendemos que a imagem pode ser entendida como parte da nossa formação humana. Por isso, podemos indagar: como as instituições educativas têm inserido o texto imagem, como potência da formação crítica e reflexiva do leitor sobre si mesmo e o mundo? Segundo Azevedo (2002, p. 19) grande parte das escolas desconhecem “[…] solenemente a importância, as peculiaridades e as possibilidades do conhecimento transmitido por meio das imagens [...]” e denuncia o fato de que a sociedade brasileira menospreza o ato de ver como fonte de conhecimento e acrescenta:
[…] não temos a prática de olhar por longos minutos uma obra artística, de apreciá-la, estudando sua composição, relacionando-a com o momento histórico, inventando maneiras de vê-la (Azevedo, 2002, p. 19).
Com base nos estudos de Ramos (2013), percebemos que não fomos encorajados a praticar o ato de olhar e nem tão pouco estimulados a descrever imagens e narrar com base em imagens com a intenção de compreendê-las. Para a autora, nas escolas a arte é menosprezada, considerada uma disciplina de pouca importância, sendo assim, estamos carentes de ferramentas teóricas que nos permitam destrinchar uma ilustração, um quadro, uma escultura ou uma fotografia, explorar o que vemos enquanto contemplamos ou rejeitamos uma imagem a partir da arte de olhar.
Desse modo, destacamos o fato de que ver não significa ler, olhar não significa decodificar e muito menos interpretar. Vemos imagens, porém não as entendemos, não dedicamos a elas a atenção devida. Com base em Flusser (2000), o sujeito olha uma imagem e não a decodifica, porém absorve o que vê, assimila aquela informação não compreendida e a reproduz de volta no mundo real. Santaella (2012) confirma que o leitor de imagens não tem consciência da real mensagem contida nos textos visuais que, mesmo sem compreender e sem decifrar o que vê, absorve este conteúdo, devido à tamanha ingenuidade com que o leitor lida com tais imagens carregadas de significados.
Diante disso, podemos afirmar que “ver é um ato de conhecimento”, compreendendo que olhar consiste em perceber, observar, examinar e refletir sobre o que está sendo visto, na medida que correlacionar e avaliar permite ao leitor de imagens pensar e imaginar com base nas próprias experiências, conhecimentos e visões do mundo (Ramos, 2013, p. 34).
Para Manguel (2001) o que lemos em uma imagem varia conforme a pessoa que somos e o que aprendemos anteriormente àquele momento. Dessa maneira, a criança se identifica com as imagens dos livros quando reconhece o que vê e com base nas referências do seu próprio mundo, relaciona as figuras com a sua realidade, com o seu cotidiano e ambientes que frequenta.
Assim, com base em Manguel (2001, p. 27), tal identificação entre leitor e imagem acontece porque “[...] só podemos ver coisas cuja imagem é identificável, assim como ler em um idioma que conhecemos”. Com isso, compreendemos que a imagem, que se manifesta pela arte, nos remete a alguma lembrança, ativa a memória do leitor, que vê, olha e se lembra, porque a imagem convida o observador a pensar. Para Manguel (2001, p. 273), no caso específico da imagem, como um monumento autêntico que se mostra tanto memória quanto reflexão, o autor explica que esta carrega inscrita em si a mensagem: “lembre-se e pense”.
Nessa direção, vê-se que a imagem fotográfica, sendo uma arte, nos convida a refletir, a pensar, nos desperta reações, nos remete a um determinado momento já vivido, a um certo lugar ou pessoa, nos conecta a lembranças, nos convoca a uma reflexão. A fotografia como arte representa a união ente a criatividade e sensibilidade às particularidades da narrativa visual, ou seja, à linguagem, à metalinguagem, às artes visuais, ou às artes gráficas em diálogo com o objeto livro, o leitor passa a ser guiado numa trajetória de ver e examinar, adentrando ao processo de ler imagens (Castanha, 2008).
A imagem fotográfica como memória representa algo que passou, algo que aconteceu e ficou registrado e comprovado na imagem, “[...] a fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi [...]” (Barthes, 1984, p. 127). Logo, compreende-se que o que está ali representado não é o objeto real, mas sim uma cópia, uma representação aproximada daquele objeto, “[...] é a coisa ausente reconstituída em memória [...]”, analisa Dalcin (2013, p. 94).
No caso da leitura de uma narrativa composta unicamente por imagens, o leitor, a partir da imaginação, se vê capaz de ler e criar o que acontece entre as cenas de uma página e outra. Isso ocorre porque se insere na sequência contínua de acontecimentos, de ações claramente definidas que representam e mantêm o fluxo narrativo.
Numa obra de textos visuais, este processo contínuo de movimento manifesta-se pelas imagens e pela forma como são organizadas dentro da obra literária, pois segundo Dalcin (2012, p. 14), atuam “[...] orquestrando, junto ao autor, todo esse processo, o editor é o primeiro leitor a buscar marcas na criação que realmente tragam o espaço de tempo entre as cenas […]”.
As crianças identificam o que veem, sendo assim tais imagens tendem auxiliar o pequeno leitor a se conectar com a obra, que pode ser lida tanto por uma criança quanto por um adulto. Segundo Hunt (2010, p. 237), as crianças pequenas tendem a distinguir objetos ilustrados “[...] independentemente da posição de um objeto no espaço, as crianças tendem a reconhecê-los ao ponto de facilmente conseguir nomeá-los”.
Percebemos que o ato de olhar e observar cores e cenários pode despertar o deslumbramento das crianças pelas imagens e resultar em seu envolvimento pela obra. Segundo Benjamin (2009, p. 69), o processo de envolvimento pelas ilustrações acontece da seguinte maneira: “[...] não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as vai imaginando - a própria criança penetra nas coisas durante o contemplar, como nuvem que se impregna do esplendor colorido desse mundo pictórico”. E nessa direção o autor acrescenta mais uma vez o efeito da magia das cores ilustrativas aos olhos das crianças: “[...] neste mundo permeável, adornado de cores, [...] a criança é recebida como participante [...]”, a criança se vê como parte integrante do livro pois encanta-se pelas ilustrações e identifica-se com o que é mostrado (Benjamin, 2009, p. 70).
Além disso, o estímulo colorido apresentado aos olhos da criança encoraja a prática da oralidade, remete à “[...] exortação taxativa à descrição contida em tais imagens”, isso porque “desperta a palavra na criança [...], desse modo “[...] a criança penetra nessas imagens com palavras criativas [...]”, conforme Benjamin (2009, p. 70). O que pode ser considerado um dos fatores que explicam a possibilidade de ampliação do vocabulário do jovem leitor. Frente a tais considerações, podemos afirmar que as ilustrações aproximam, conectam a criança ao objeto livro bem como colaboram para a sua evolução sensorial.
Nesse sentido, a criança como espectadora que assiste a um espetáculo, que lê em uma cena em uma página, ou mesmo em um palco, ela repara os detalhes, as cores, ela questiona, imagina e inventa. E a partir do momento que se compreende a imagem observada como um palco, ressalta-se o impacto daquela figura aos olhos do leitor, que vê, compreende, questiona, recorda-se, sente e, por sua vez, transforma-se após tal experiência.
Ribeiro (2008, p. 124) explica esse impacto da imagem ilustrativa no leitor da seguinte maneira: “[...] observamos, compreendemos, concordamos ou não com sua forma, tocamos, somos tocados ou desviamos nosso olhar; contudo [...] ao fechar o livro quando se esvai a imagem impregnada na retina, “[...] já não somos os mesmos que antes [...], pois [...] fomos iniciados”.
Para Ramos (2013), o observador é aquele que, a partir de sua dedicada concentração e de repetições deste ato, sente a necessidade de criar maneiras de ver cada vez melhor. Lemos uma imagem fotográfica, assim como se lemos uma narrativa, por isso pode ser compreendida como um texto, pois ao registrar um momento, um fato, uma cena, uma situação, provoca sentimentos, ideias, reconstrói memórias, reações, que, segundo Manguel (2001), é capaz de narrar e informar, como também de sensibilizar e criar interlocução com o leitor.
O ato de olhar, examinar, perceber, observar, permite ao leitor atribuir a cada imagem a ampliação de seus limites, para além de sua moldura, conforme detalha Ramos (2013). Para Flusser (2000, p. 9) a potencialidade interpretativa e dialógica das imagens caracteriza-se como “[…] mediations between the world and human beings [...]”, nas palavras de Manguel (2001, p. 286): “[...] para tornar-se uma imagem que nos permita uma leitura iluminadora, uma obra de arte deve nos forçar a um compromisso, a um confronto, deve oferecer uma epifania, ou ao menos um lugar para dialogar”. Dessa forma a imagem fotográfica torna-se um espaço discursivo, criando uma relação dialógica entre o leitor e a imagem.
Porém, sabemos que no início da história da fotografia, as pessoas não olhavam durante muito tempo para as imagens fotográficas, talvez por medo ou receio, pairava a impressão de que a foto poderia olhar de volta para o observador, “[...] a nitidez dessas fisionomias assustava [...]”, aponta Benjamin (1994, p. 95). O mesmo fenômeno acontecia com as pessoas que iriam ser fotografadas, estas não olhavam diretamente para a câmera, agiam timidamente, e possivelmente por tais comportamentos a postura envergonhada, caracterizada por evitar o olhar, tornou-se uma tendência após o apogeu da fotografia, no século XIX.
Entretanto, é justamente este olhar que se faz necessário no processo de apreensão da imagem. Ler, examinar e interpretar exige do leitor o pensar, o sentir, significa aprender a ler imagens, decodificá-las, é o ato necessário para que o leitor se alfabetize visualmente. Nessa perspectiva de Santaella (2012, p. 74) nomeia o efeito interpretativo de uma imagem fotográfica como “leitura da fotografia”.
Somente ver uma fotografia rapidamente não é o suficiente para o desenvolvimento de sua leitura, um olhar superficial possibilita um entendimento também superficial, pois não permite uma compreensão mais profunda, não sendo o suficiente para realmente entendê-la. Para ler uma imagem, não basta somente um breve olhar, é necessário examinar com atenção e perceber que seu significado está em sua superfície, em seus traços e linhas, que devem ser seguidos atentamente com os olhos. Para que haja um aprofundamento sobre o significado da imagem, devemos permitir que o olhar examine, contemple, navegue pela superfície sentindo e percorrendo os caminhos da imagem (Flusser, 2000).
A leitura de uma fotografia consiste em olhar para ela com atenção, consciente que ela representa uma linguagem visual, “[...] significa fazer do olhar uma espécie de máquina de sentir e conhecer [...]”, acrescenta Santaella (2012, p. 80). Desse modo, é necessário a contemplação, para que a leitura aconteça em busca de uma trajetória, seguindo o curso das linhas, luzes e sombras oferecidos pela fotografia aos olhos do observador, “[...] pois a significação imanente dos motivos e temas fotografados é inseparável do arranjo singular que o fotógrafo escolheu apresentar” (Santaella, 2012, p. 80).
Ao aprender a ler imagens, o sujeito se alfabetiza visualmente e a partir da sensibilidade torna-se capaz de desenvolver as habilidades necessárias para observar e conhecer o conteúdo do que vê, dessa forma ler uma fotografia implica em descobrir como o conteúdo ali presente se apresenta, significa adquirir os conhecimentos correspondentes. Mas como ocorre esse processo? Santaella organiza esse movimento em três níveis da seguinte maneira:
Há pelo menos 3 níveis de apreensão de uma foto. Antes de tudo, qualquer foto, produz em nós algum tipo de sentimento, às vezes imperceptível, às vezes muito intenso. Entretanto, não obstante a importância dos sentimentos, eles correspondem apenas ao primeiro nível de apreensão de uma foto. Em um segundo nível, vemos uma foto, isto é, identificamos seu motivo, aquilo que está nela fotografado. Assim, ao olharmos para uma foto, reconhecemos traços, identificamos o que foi fotografado. Quando essa identificação não é imediata, buscamos pistas e brincamos com adivinhações e acertos sobre o local e a situação que ali aparecem. Mas é apenas no terceiro nível de apreensão que surge a diferença entre ver e ler fotos (Santaella, 2012, p. 79).
Logo, percebemos que mesmo com toda a perícia do fotógrafo, o observador sente necessidade de procurar na imagem uma “[...] pequena centelha do acaso [...]” que o desperte, declara Benjamin (1994, p. 94). Para o autor da imagem, fotografar é estender e prolongar o olhar para além do registro, para capturar as centelhas do instante. Nesse sentido, verificamos que toda fotografia desperta de alguma forma um tipo de sentimento em seu leitor, podendo causar tanto o efeito de reconhecimento quanto o de estranhamento em quem a contempla (Ramos, 2013).
Isso ocorre pelo fato de que as “[...] fotografias nos impressionam, nos comovem, nos incomodam, enfim imprimem em nosso espírito sentimentos diferentes [...]” (Mauad, 1996, p. 5). Na mesma perspectiva, Barthes (1984) destaca que as imagens provocam sentimentos variados, às vezes bons, às vezes não tanto, podendo causar indiferença ou mesmo aversão, irritação, simpatia e conexão.
Para Benjamin (2012, p. 18) o sentimento de perturbação causado pela imagem fotográfica direciona o leitor a buscar por um determinado caminho para compreendê-la, porque essa imagem exige um tipo específico de recepção, “[...] não sendo mais adequadas a uma contemplação descomprometida” e Barthes (1984, p. 62) complementa: “[...] a fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa”.
A potencialidade da imagem para a imaginação
Ao olhar, sentir e/ou ler uma imagem produzimos sentidos, do primeiro contato com a imagem, ao momento de apreensão e leitura, chegando ao seu resultado como um produto de uma escolha, fruto de uma reflexão. Ao observar as imagens a criança alfabetiza-se visualmente, ela aprende a examinar, analisar, desenvolve a sensibilidade do olhar, aponta Santaella (2012). Com isso a leitura das imagens ocorre quando se narra uma história, como “[…] também é apropriação, invenção e produção de sentidos, […] pois para além da intelecção, é engajamento do corpo, inscrição no espaço e relação consigo mesmo” (Dalcin, 2012, p. 15).
O ver, o olhar, o enxergar são gestos primários que o sujeito aprende e aperfeiçoa, porém aprender a olhar significa ir além do gesto mecânico de simplesmente ver, significa deixar de lado essa atividade física e passar para um próximo estágio, que mediante esforço e exercícios mentais, o sujeito desenvolve a capacidade de absorver e compreender o que observa e examina. Olhar, então, passa a ser uma forma de perceber, passa a incorporar o ato de correlacionar, avaliar e pensar. Esse movimento mais evoluído de explorar a imagem permite que análises aconteçam, alimentando a criatividade e a capacidade de inventar porque aciona além do físico, as percepções e o psicológico (Ramos, 2013).
Dessa maneira, compreendemos que a imaginação representa a liberdade na vida de uma criança, um espaço que com sensibilidade se abre para o novo e para o possível, mesmo que impossível. Segundo Girardello (2011, p. 76) é pela imaginação que a criança sacia seu desejo pela novidade, “[...] ela em necessidade da emoção imaginativa que vive por meio da brincadeira, das histórias que a cultura lhe oferece, do contato com a arte e com a natureza, e da mediação adulta: o dedo que aponta, a voz que conta ou escuta, o cotidiano que aceita”.
Consideramos que a imaginação não se trata de um dom ou de uma característica quantificável, mas que, todavia, detém um papel de grande importância para o desenvolvimento e para a educação da criança, aponta Girardello (2011). Nesse sentido, destacamos que fantasia está ligada às emoções, inteligência e aos sentimentos, sendo assim, a educação da imaginação mostra-se como uma tarefa importante no âmbito educacional sendo que a imaginação infantil pode ser educada como por exemplo a partir do olhar e do ouvir, pois da mesma forma que o entendimento lógico da criança é trabalhado e desenvolvido, a sua capacidade de fantasiar e imaginar também precisam ser nutridas. Para a autora, a experiência proporcionada pela imaginação se mostra tão relevante quanto as experiências adquiridas a partir do pensamento lógico e, por este motivo, deve ser ensinada, alimentada, cultivada, caso contrário se atrofia.
A imaginação é citada por Flusser (2000) e a declara como uma pré-condição para a decodificação das imagens técnicas, definidas como superfícies com significados, ou mesmo como um elemento fundamental inclusive no processo de decodificação da imagem, não somente no ato da leitura, mas também no movimento de criação da arte visual. Para Flusser (2000) a imaginação representa a habilidade de capturar e subtrair superfícies de um determinado lugar e tempo bem como projetá-las de volta em um espaço e momento, logo a imaginação se mostra como uma pré-condição para a produção e decodificação de imagens.
Nessa direção, técnica e magia se misturam quando a fotografia se mostra capaz de evidenciar sonhos, provar o improvável, destacar o antes imperceptível, segundo Benjamin (1994, p. 95) “[...] a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica [...]”. O significado das imagens é mágico e por este motivo é importante considerar a magia presente nas imagens para então decodificá-las. O poder mágico das imagens está na sua natureza e no poder dialógico que elas possuem, inclusive sua contradição deve ser vista mediada por sua magia (Flusser, 2000).
A magia, a fantasia e a imaginação permitem uma maior abertura para a reflexão, possibilitam que o leitor exerça um diálogo entre o que os olhos veem e o que a mente busca na lembrança, como percebemos pelas palavras de Manguel:
[...] com o correr do tempo, podemos ver mais ou menos coisas em uma imagem, sondar mais fundo e descobrir mais detalhes, associar e combinar outras imagens, emprestar-lhe palavras para contar o que vemos, mas, em si mesma, uma imagem existe no espaço que ocupa, independentemente do tempo que reservamos para contemplá-la [...] (Manguel, 2001, p. 25).
Tanto um texto quanto uma imagem são capazes de transmitir um conteúdo, porém “[…] as imagens são recebidas mais rapidamente do que os textos, elas possuem um maior valor de atenção, e sua informação permanece durante mais tempo no cérebro”, explica Santaella (2012, p. 109). Assim, a autora acrescenta que as imagens são cada vez mais usadas como fonte de transmissão de conhecimentos desempenhando um papel fundamental no campo das ciências da observação, cumprindo uma função explicativa, cognitiva, técnica ou ainda mágica, simbólica e imaginária quando relacionadas ao texto verbal.
Texto e imagem se relacionam a todo momento, seja a partir da leitura de uma imagem ou mediante a visualização da palavra lida e escrita. Desse modo, ler uma imagem não significa traduzi-la para a linguagem verbal, segundo Santaella (2012, p. 13), o texto verbal e o visual são distintos e não substituem um ao outro, “[...] eles muito mais de complementam, de maneira que um não pode substituir inteiramente o outro”. Nikolajeva e Scott (2011, p. 21) vão além e afirmam que existe uma carência de ferramentas para decodificar um terceiro texto, criado pela interação das informações verbais e visuais, o chamado “iconotexto” definido como “[...] uma entidade indissociável de palavra e imagem, que cooperam para transmitir uma mensagem”.
Enfim, independente de quem decodifica a imagem é preciso ler suas entrelinhas, ou seja, ir além da dimensão daquilo que se apresenta frente ao olhar, buscar as relações de sentidos com as expressões e detalhes que não estão em destaque, que não pronunciáveis ou não visíveis, tal como também devemos fazer com os textos de literatura. Desse modo, não correremos o risco de nos tornarmos analfabetos da imagem, como se preciso fosse adicionar uma legenda para compreender a magia que há nela.
Um olhar para a fotografia como texto visual nos livros de literatura infantil
Neste tópico, nos dedicamos a apresentar a análise de três obras da literatura infantil caracterizadas como livros ilustrados que em comum apresentam a fotografia como arte integrante da imagem ilustrativa em suas narrativas. As obras são: Abraços pra lá e pra cá, de Sonia Rosa, Truques Coloridos, de Marcelo Xavier, e Contradança, de Roger Mello.
Sobre a classificação livros ilustrados, Nikolajeva e Scott (2011) explicam que existem quatro estilos de tipografias, e que podemos entender como livro ilustrado as obras que exibem texto e imagem, ou seja, texto escrito e texto visual igualmente relevantes.
Essa relação entre o texto verbal e o texto visual resulta em valiosas propostas principalmente na Literatura Infantil bem como em uma ampla variedade de produções culturais, pois são linguagens que se entrelaçam “[...] na vida e na arte, superando os limites com que cada uma opera”, salienta Belmiro (2014, p. 322) que acrescenta: o mediador de leitura, deve “[...] aproveitar o formato atual dos livros de Literatura Infantil para explorar esteticamente os textos visuais que circulam no cotidiano das crianças”.
O primeiro livro ilustrado em análise se intitula Abraços pra lá e pra cá. Foi escrito por Sonia Rosa1 e ilustrado por Dircéa Damasceno2 a partir da arte de costurar com tecidos, lã, linhas, fitas e botões entre outros artefatos resultando na criação de imagens coloridas e ricas em detalhes, registrando personagens e cenários que após elaborados e estruturados foram fotografados por João Sales3 e organizados nas páginas de um livro impresso.
A imagem 1 nos mostra a capa da obra, de fundo azul com um coração cor de rosa de tecido, com pequenas flores ao seu redor. No centro, duas meninas de braços estendidos para cima e o título do livro. No canto esquerdo da capa dois personagens se abraçando e no canto direito um personagem anda com o braço no ombro de outro personagem. Centralizado na parte de cima lemos o nome da escritora Sonia Rosa, centralizado na parte de baixo lemos o nome da editora Nandyala e à direita na parte de baixo lemos o nome da ilustradora Dircéa Damasceno.
A obra foi publicada em 2011 e é composta por 16 páginas ilustradas a partir da mesma técnica. Todas as páginas da narrativa constituem-se de uma imagem e um texto escrito. As imagens são variadas e todas criadas com o uso de tecidos, feltro, laços de fita, botões, linhas, rendas, lãs, barbantes entre outros materiais. A arte palpável de tecer materializa-se nas páginas de um livro a partir do registro fotográfico, que captura os detalhes, as cores e permite a organização sequencial da história narrada.
Nessa obra o ponto central da imagem fotográfica está em unir diferentes elementos, como os cenários costurados em tecidos com retalhos, botões, laços de fita, linhas e outros artefatos presentes na costura. Percebemos nas imagens a presença de diferentes cores e texturas, resultantes de variedade de materiais e técnicas de tecer.
A fotografia aqui desempenha um papel fundamental de materialização do palpável, torna bidimensional o que tem na verdade três dimensões. Sontag (2004), nos explica que a fotografia constitui uma espécie de gramática e o que seria a ética do ato de ver, pois ampliam nossa consciência do que pode ser visto enfatizando o fato de que possuímos o direito de observar o que nos cerca.
Trata-se de uma história sobre a importância de um abraço, em que os personagens vivenciam a relevância deste ato de carinho tão familiar no cotidiano dos personagens. Os cenários são diversos, uma casa, a frente de uma escola, uma sala de aula, a casa da avó, um jardim e uma mesa de festa de aniversário. Uma história de carinho, onde texto escrito e texto visual dialogam com harmonia e leveza.
A escolha da temática “abraço”, um ato afetuoso conhecido e praticado em nossa cultura, reforça os laços entre obra e leitor, afinal a literatura, além de favorecer o ensino da escrita e leitura, tem o poder de formar culturalmente o sujeito leitor. Nessa direção, Cosson (2019, p. 27) explica que “[...] ler implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde ambos estão localizados [...]”.
A segunda obra em análise chama-se Truques Coloridos, foi escrita e fotografada por Branca Maria de Paula4 e as ilustrações de massinhas de modelar foram criadas pelo artista plástico Marcelo Xavier5.
Podemos observar na imagem 3, na capa da obra de Paula, uma personagem sentada em uma poltrona com seu gato no colo e ao lado um abajur, tudo confeccionado com massinha de modelar colorida. Centralizado na parte de cima da imagem, vemos o título da obra e logo abaixo o nome da escritora e do ilustrador Marcelo Xavier. Centralizado no rodapé da capa lemos o nome da editora, Compor.
Considerando que as imagens fotográficas no suporte impresso, aqui o livro, podem apresentar narrativas organizadas de forma sequencial, percebemos que na obra de Branca de Paula e Xavier, a escritora e fotógrafa junto ao artista plástico investem muita criatividade quando variam personagens, cenários, cores e expressões entre uma página e outra, o que tornou seu trabalho não somente mais dinâmico e divertido, mas criou um conjunto narrativo e artístico, que favorece o leitor manter-se conectado entre uma cena e outra da história, seguindo e lendo de forma sequencial a cada troca de página (Naves, 2019).
Aqui, na imagem 4, observa-se que o ponto central da fotografia seria relacionado ao posicionamento da câmera que se coloca na perspectiva do leitor e também da televisão que é a temática da história. Dessa forma, entende-se que luz que atinge de frente os personagens é a luz da tela da TV que quando ligada mantem seus espectadores parados “[...] sem fazer nada, só respirando[...]” como escrito na narrativa. A fotografia captura os bonecos em sua tridimensionalidade, as texturas, as cores, as posições dos personagens, o cenário estruturado ao redor e a luz.
Com base em Sontag (2004, p. 15), o suporte livro se mostra como uma forma de organizar e assegurar a longevidade das imagens fotográficas, que fora das páginas de um livro, ou de um álbum, se mostram mais frágeis, passiveis de se perderem ou serem rasgadas. Assim, a foto, “[...] quando reproduzida em um livro, perde muito menos de sua característica essencial do que ocorre com uma pintura”.
Truques Coloridos foi publicada pela primeira vez em 1986 e possui 26 páginas que contam uma história sobre a televisão. Todas as ilustrações foram feitas com massinha de modelar, os bonecos, cenários, objetos, sendo que a finalização da imagem se deu a partir do uso de um jogo de luzes que representavam a luminosidade proveniente da tela da televisão. As cenas foram fotografadas uma a uma resultando em páginas coloridas ilustradas e acompanhadas do texto escrito. Observamos que a fotografia possibilitou trazer para as páginas bidimensionais do livro impresso, a arte tridimensional das esculturas de massinha.
Podemos dizer que a escolha pelo material maleável, colorido e que se constitui como parte do universo brincante infantil favorece a interação e aproximação da criança com a obra. Segundo Ramos (2013, p. 41), as “[...] crianças aprendem rapidamente a língua das imagens, porque estão em uma fase do desenvolvimento em que as sensações, vinculadas às formas, cores e texturas, ainda estão à flor da pele, não sofreram influência excessiva da racionalização”. Dessa maneira, observamos que as esculturas, os detalhes, as cenas criadas a partir do uso de massinhas coloridas, favorecem o diálogo e familiarização da narrativa com o leitor pois são evidenciadas aos olhos da criança por meio do registro fotográfico.
A terceira obra e última analisada, intitula-se Contradança, de autoria de Roger Mello6. Trata-se de uma história ilustrada a partir de imagens fotográficas em branco e preto. A obra não informa quem ilustrou e fotografou as imagens.
A capa pode ser vista acima, na imagem 5, que nos mostra seu formato, com fundo verde e dez imagens na cor preta e prateada espalhadas pelo espaço. O título da obra e o nome do autor encontram-se do lado direito da imagem e o nome da editora, Companhia das Letrinhas, no rodapé do lado esquerdo da imagem.
Nessa obra, com base na imagem 6, percebe-se que o ponto central da fotografia se mostra em garantir o clima de suspense, a partir da ausência de cores, do jogo de sombras e reflexos com espelhos. O posicionamento escolhido para se colocar a personagem, com a cabeça baixa de frente ao seu próprio reflexo, a escolha o ângulo em que a imagem é capturada, garantem um efeito melancólico que se concretiza com a luz estampada no fundo da imagem.
Toda a obra apresenta somente três cores: verde, branco e preto característica visual que resultou em um aspecto dramático ou mesmo de suspense para a história que em sua narrativa abraça o mistério. Fatores como este, provocados pelo livro de literatura são explicados por Cosson (2019, p. 17) da seguinte maneira: a literatura possui uma “[...] função maior, de tornar o mundo compreensível transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas [...]”.
Publicada em 2011, a história se organiza em 38 páginas. As ilustrações variam entre páginas simples e páginas duplas, entre cenários e objetos reais. Algumas imagens são desenhos, outras são fotografias, porém sempre acompanhadas pelo texto escrito. A história narrada na obra se trata de uma menina que conversa com o seu reflexo e as tantas possibilidades que ele a mostra de ser e estar no mundo, conversas que envolvem os temas medo e coragem.
Podemos pensar que a escolha pela fotografia garante ao leitor uma vivência diferenciada, oferece a ele o contato com outras artes que só é possível devido ao testemunho da foto, que comprova, evidencia aquela cena como uma prova incontestável de que aquele objeto esteve ali, ele existe, é real. Os personagens e cenários de tecido, a história constituída de massinha de modelar, as sombras em preto e branco, tudo isso existe e foram imortalizados pelo registro fotográfico, agora impresso nas páginas de livros que irão circular e podem ser observados e lidos por tempo indeterminado, enquanto se fizer necessária sua leitura.
Considerações Finais
Ao priorizar a análise de três diferentes obras da literatura infantil que trazem a fotografia como artefato da ilustração, procuramos refletir sobre as dimensões das narrativas, estéticas e literárias presentes em tais obras e as possibilidades do trabalho com livros ilustrados a partir da imagem técnica nas práticas educativas. O estudo apontou que a escolha pela imagem fotográfica como componente da arte ilustrativa nas obras da literatura infantil, favorece o envolvimento do pequeno leitor com a narrativa e sobretudo com o seu imaginário. A combinação das artes nas páginas do livro impresso, pode promover a aproximação entre o leitor e a obra.
Se a materialidade repercute de diferentes formas na relação entre leitor, livro e texto (Goulart, 2011, 2014, 2016), a fotografia ao compor a materialidade ilustrativa da obra, provoca compreensões e outros modos de interação do leitor com o texto. Pode garantir e evidenciar detalhes, a variedade de materiais, texturas e cores, a escolha dos objetos selecionados para a criação das narrativas e de forma documental, a fotografia assegura o espaço da arte de tecer, da arte de modelar e da arte de fotografar.
Logo, comprovamos que a imagem técnica no suporte livro, oferece o espaço e tempo que o leitor precisa para ver, examinar, olhar e ler a imagem, entender o que ela carrega, seguir seus traços, identificar seus elementos e seus motivos. A fotografia mostrou a força da combinação entre fantasia e o real, apresentou ao leitor um cenário de massinhas coloridas, personagens de tecidos, rendas e botões e ainda uma história com fotos de sombras e espelhos.
Compreendemos que a fotografia permite múltiplas possibilidades de trabalho, e que foi definitivamente incorporada na nossa cultura, e que seu uso associado à literatura infantil só veio a enriquecer as práticas e enaltecer outras artes visuais, aproximando leitura e a arte cada vez mais dos seus leitores, desde a infância, dentro e fora dos espaços escolares, afinal vivemos cercados por imagens.