INTRODUÇÃO
O desempenho escolar na educação básica é tema de pesquisa em diferentes áreas do conhecimento. Uma questão fundamental do campo educacional é entender os fatores que levam os estudantes a terem sucesso nos meios escolares. A área da sociologia da educação tem apontado, desde meados dos anos 1960, que o desempenho escolar dos estudantes depende muito da sua configuração e estrutura familiar (COLEMAN et al., 1966; BOURDIEU; PASSERON, 2014).
Até o início dos anos 1980, grande parte das investigações no campo da sociologia da educação tinha o objetivo de estabelecer correlações entre categorias socioeconômicas e o rendimento escolar dos sujeitos a elas pertencentes. Se por um lado essas análises contribuíam para a identificação de fatores importantes para o desempenho escolar, por outro elas deixavam de lado as ações individuais e os processos familiares internos de socialização. Nesse sentido, constituiu-se um novo campo de investigação, preocupado com as trajetórias escolares dos sujeitos e com as estratégias utilizadas pelas famílias no decorrer da sua escolarização (NOGUEIRA, 2005). Com isso, a partir do reconhecimento da heterogeneidade dos contextos sociais e de uma análise não determinista da realidade social, a temática do sucesso escolar em meios populares ganhou espaço nas pesquisas sociológicas no final da década de 1980 (ZAGO, 2000). Essas investigações surgiram com o objetivo de compreender o sucesso acadêmico, estatisticamente improvável, de estudantes oriundos das camadas populares. Destacam-se, como trabalhos de vanguarda nessa linha de investigação, as pesquisas de Zéroulou (1988), Terrail (1990), Laurens (1992) e Lahire (1995).
Em seu estudo, Zéroulou (1988) comparou dois grupos de famílias de argelinos na França que possuíam condições econômicas e culturais muito semelhantes, contudo, desempenhos acadêmicos significativamente diferentes. No primeiro grupo, a maior parte dos filhos teve acesso ao ensino superior; já no segundo, nenhum filho concluiu o nível de primeiro grau. A autora sustenta que essas diferenças no desempenho acadêmico, especialmente no bom desempenho do primeiro grupo, são um reflexo das diferentes práticas educativas conduzidas pelas suas famílias. Em outras palavras, os integrantes das famílias dos estudantes que alcançaram o ensino superior apresentaram um maior envolvimento e uma maior valorização da educação dos filhos.
Esse trabalho, em termos de resultado, assemelha-se às investigações de Terrail (1990) e Laurens (1992), que também atestam a importância da história familiar. Laurens (1992) investiga os poucos casos - 1 em 500 - de filhos de operários que conseguem obter o diploma em cursos de Engenharia na região francesa de Midi-Pyrennés. Para a autora, esses poucos casos que contrariam a regra têm em comum o forte investimento familiar na educação, materializado em um conjunto de práticas que favorecem a escolarização dos filhos. Já para Terrail (1990), que também estudou filhos de operários que obtiveram diploma em cursos no ensino superior, para entender esses casos de exceção, é preciso levar em consideração a relação dos pais com o percurso escolar dos filhos e os investimentos do filho na sua própria escolarização. Dessas investigações, portanto, destacamos que apesar dos diferentes contextos familiares estudados, mais importante do que a existência de uma condição social favorável para o sucesso escolar é o compartilhamento de um projeto de sucesso social familiar que resulta em avanços escolares importantes, ou seja, a família toda mobilizada para um programa sistemático de escolarização dos filhos.
A multiplicidade de fatores associados ao sucesso escolar, indicada pelos trabalhos já citados, está em consonância com a sociologia à escala individual de Bernard Lahire. Lahire (1997), em sua obra Sucesso escolar em meios populares: as razões do improvável, procura compreender as diferenças nos resultados escolares - sucesso e fracasso - a partir do cruzamento de diferentes configurações familiares. Em vez de escolher traços sociológicos explicativos isoladamente, o autor analisa, a partir de um estudo etnográfico descritivo, a interdependência dos elementos que configuram a singularidade das realidades sociais. Lahire foi um dos primeiros pesquisadores a estudar a fundo as dinâmicas familiares para compreender quais diferenças internas seriam capazes de justificar as diferenças de comportamento e de desempenho das crianças nas escolas. Uma das conclusões do autor é a de que a criança não reproduz diretamente as ações de sua família, mas ela molda seu comportamento a partir das relações de interdependência com outros membros do seu grupo familiar (LAHIRE, 1997). A família é o primeiro espaço de socialização para a formação de disposições que futuramente servirão para a escola e é “através da qual cada indivíduo aprende a descobrir o mundo social e a encontrar o seu lugar, é o primeiro espaço (primário) que tende a estabelecer objetivamente - sem o saber ou pretender - os limites do possível e do desejável” (LAHIRE, 2011, p. 13). Quer dizer, se uma criança possui pais, irmãos, avós, tios, tias, primos e primas que passaram pelo ensino superior, ela vai interiorizando as expectativas em relação ao seu futuro escolar e isso vai modificar seu modo de agir dentro do sistema de ensino. Para Lahire (2011), as ações e reações de uma criança se ancoram nas ações dos adultos, não de forma direta, mas a partir da sua relação com eles. Ou seja, as estruturas mentais cognitivas dos indivíduos são formadas a partir das suas relações sociais de interdependência, e não pela simples apreensão de estruturas objetivas.
No contexto brasileiro, com o suporte e a inspiração dos trabalhos franceses, emergiram algumas investigações que tiveram como objeto de análise o sucesso escolar em contextos populares a partir das relações familiares e escolares, considerando suas práticas materiais e simbólicas de escolarização (PORTES, 1993; VIANA, 1998; SILVA, 1999). Esses estudos se dedicaram a analisar o sucesso escolar do ponto de vista das exceções estatísticas e dos casos singulares. Portes (1993) buscou compreender de que maneira as trajetórias escolares percorridas e as estratégias escolares utilizadas contribuíram para que estudantes das classes populares conseguissem acessar a universidade pública, no caso desse trabalho, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Assim como Zéroulou (1988) e Laurens (1992), Portes (1993) aponta que a mobilização e o superinvestimento familiar na educação dos filhos são condições necessárias para um desempenho acadêmico positivo. Por outro lado, Viana (1998), a partir de entrevistas realizadas com cinco universitários e dois pós-graduandos e suas respectivas famílias, e Silva (1999), com base em reflexões sobre relatos de jovens da maior favela do Rio de Janeiro acerca de suas trajetórias escolares até a universidade, concordam que esse esforço familiar é apenas um fator que se relaciona de forma interdependente com outros elementos importantes para a construção do sucesso escolar, consonando com os resultados de Lahire (1997).
Após o estabelecimento do tema do sucesso escolar nos meios populares no contexto da pesquisa brasileira, houve a difusão de investigações que trataram, a partir de múltiplos olhares, da análise das trajetórias escolares dos alunos e sua relação com os investimentos e patrimônios familiares - capital cultural, econômico e social1 (ZAGO, 2000; LACERDA, 2006; PIOTTO, 2008; ALVES et al., 2013; SANTOS; DIAS, 2013; GONÇALVES, 2015; CASTRO; TAVARES JÚNIOR, 2016). Apesar de o número de publicações sobre o tema do sucesso escolar nos meios populares ter aumentado nos últimos dez anos, ainda é incipiente o número de trabalhos que abordam o problema apoiados em estudos quantitativos, como propomos no presente artigo. A maior parte das investigações utiliza, como procedimento metodológico, entrevistas com os estudantes (ZAGO, 2000; LACERDA, 2006; PIOTTO, 2008; SANTOS; DIAS, 2013), ancoradas majoritariamente no corpus conceitual de Bourdieu e Lahire (MASSI; MUZZETI; SUFICIER, 2017). Esses trabalhos destacam fatores que são muito associados com diferentes itinerários escolares, como as características morfológicas e estruturais do grupo familiar do estudante e aspectos relacionados com os processos internos da família, a exemplo de suas concepções sobre a educação e suas práticas desenvolvidas no que diz respeito à educação dos filhos.
Com o objetivo de contribuir com as investigações sobre o sucesso escolar em meios populares, porém numa perspectiva metodológica diferente, alguns estudos emergiram pautados em análises quantitativas (ALVES et al., 2013; GONÇALVES, 2015; CASTRO; TAVARES JÚNIOR, 2016). Alves et al. (2013) utilizaram modelos de regressão linear para analisar a associação entre os fatores familiares e o desempenho escolar a partir de dados disponibilizados por um estudo longitudinal realizado na cidade de Belo Horizonte. Nesse modelo, a variável dependente foi a proficiência em Língua Portuguesa de estudantes da primeira série do ensino fundamental e os fatores familiares foram tomados como variáveis independentes. Os autores não selecionaram apenas estudantes com bom desempenho escolar para a investigação, mas todos os alunos com origem social homogênea, oriundos de classes populares e frações inferiores da classe média. A partir desse recorte, os pesquisadores construíram dois modelos de regressão linear para comparação: um simples, utilizando apenas o Nível Socioeconômico (NSE) dos alunos como variável independente; e um modelo de regressão múltipla, no qual foram adicionadas variáveis relacionadas ao tipo de escola e aos fatores familiares. Após o teste do efeito de cada um dos fatores no desempenho dos alunos, um “modelo final” foi construído, tendo as seguintes variáveis explicativas: NSE, tipo de escola, conhecimento do sistema de ensino por parte dos pais e a posse de bens culturais (ALVES et al., 2013). Essa investigação teve mérito ao analisar a influência das famílias sobre o desempenho escolar dos filhos a partir de uma outra escala de análise, para além das análises de trajetórias, entrevistas biográficas e observações. Para os autores, as análises microssociológicas sobre as relações família-escola, embora revelem processos importantes por trás das desigualdades escolares, “correm o risco de gerar uma dispersão de dados que não contribuem para compreender as configurações mais gerais desses processos na estrutura social” (ALVES et al., 2013, p. 592).
De forma semelhante ao trabalho de Alves et al. (2013), ao investigar as condições que favorecem o sucesso no campo escolar com base em dados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),2 Gonçalves (2015) combina técnicas quantitativas, como regressão logística, com qualitativas, examinando o conteúdo de entrevistas. A partir da análise quantitativa, o autor busca dimensionar a influência das estruturas objetivas no sucesso escolar dos estudantes em geral, sem a seleção de uma amostra específica de candidatos, como fizeram Alves et al. (2013) separando apenas os alunos das classes populares. Já com as entrevistas de sete estudantes ao estilo “retratos sociológicos” (LAHIRE, 2004), Gonçalves (2015) objetiva entender as condições sob as quais ocorre o sucesso escolar dos estudantes das classes populares. Para o autor, o sucesso escolar é definido como a permanência até o ensino superior, quantificado a partir do ingresso em cursos ofertados por meio do Sisu. Dos resultados obtidos por Gonçalves (2015), destacamos que o capital econômico dos estudantes foi o fator mais determinante para as chances de sucesso, mesmo com uma importância efetiva do capital cultural, especialmente no indicador de frequência de leitura e de realização de curso pré-vestibular.
Já Castro e Tavares Júnior (2016), para traçarem o perfil dos jovens de contextos sociais desfavoráveis que chegaram ao final do ensino médio sem nenhuma reprovação, realizaram uma análise puramente quantitativa, com base nos microdados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2011. Os pesquisadores chamam a atenção para o fato de que apesar do contexto social desfavorável, muitos indivíduos conseguem completar a educação básica sem reprovação. Sobre o perfil desses estudantes, Castro e Tavares Júnior (2016) alegam que as diferenças em relação aos alunos que não obtiveram o mesmo sucesso na escola são muito sutis e discretas. Pode ser destacado, contudo, que a maioria dos jovens que obtiveram sucesso escolar estava inserida em famílias nucleares, com mães alfabetizadas e pais com ensino fundamental incompleto. Diferentemente do trabalho de Gonçalves (2015) e Alves et al. (2013), não foram encontradas relações importantes entre o sucesso escolar e as práticas de leitura e escrita dos alunos (CASTRO; TAVARES JÚNIOR, 2016). Esse resultado contraria o conhecimento há muito compartilhado pela sociologia da educação sobre a importância da familiaridade dos alunos com a norma culta da língua (BAUTIER, 2011).
De maneira semelhante às investigações de Alves et al. (2013), Gonçalves (2015) e Castro e Tavares Júnior (2016), nosso trabalho se insere nesse contexto de descrição quantitativa das condições que favorecem o sucesso de estudantes no campo escolar, apesar de situação econômica e social desfavorável. Nosso objetivo principal é determinar, de forma quantitativa, quais as características da estrutura familiar e do comportamento dos estudantes das classes populares que, em média, mais contribuem para o seu sucesso escolar. Para tanto, utilizamos como fonte os microdados do Enem da edição de 2009. Nossa pesquisa avança em relação aos trabalhos anteriores em dois aspectos importantes. O primeiro, metodologicamente, no que diz respeito às técnicas estatísticas utilizadas e na interpretação dos resultados obtidos; e o segundo, na forma como definimos o sucesso escolar. A definição de sucesso escolar costuma ser bastante subjetiva, pois depende diretamente do espaço social dos sujeitos analisados. Geralmente o sucesso escolar é definido na literatura como sinônimo de longevidade escolar, que seria a permanência dos estudantes na escola até o ensino superior (VIANA, 1998; PIOTTO, 2008; CASTRO; TAVARES JÚNIOR, 2016). Para além da longevidade e para fins heurísticos, na presente investigação, estamos considerando sucesso escolar como um desempenho de excelência na média das provas objetivas do Enem, diferentemente dos autores que definem o sucesso como a conclusão da educação básica sem reprovações ou a conclusão com o ingresso no ensino superior. Argumentamos que a definição de sucesso a partir da longevidade está muito vinculada à dimensão da escola, ou melhor, o nível de exigência da instituição pode influenciar uma possível aprovação ou reprovação. É muito comum, especialmente no contexto das elites escolares, encontrar casos de pais que evitam o “fracasso” escolar transferindo o filho para instituições menos exigentes (ALMEIDA; NOGUEIRA, 2002). Na utilização do desempenho no Enem como critério de sucesso escolar, a possibilidade de “mascarar” o sucesso é minimizada, uma vez que todos os estudantes realizam a mesma prova, independentemente da instituição de ensino a que estiveram vinculados ao longo da sua trajetória acadêmica.
A metodologia utilizada nesta pesquisa pode ser dividida basicamente em duas partes distintas, mas que estão intimamente relacionadas. Primeiramente, realizamos o processo de seleção dos candidatos, que são alunos com baixo capital econômico e cultural, mas com desempenho satisfatório no Enem de 2009. O ano de 2009 foi escolhido pois é o primeiro ano em que o desempenho dos alunos foi utilizado como critério de seleção para o ensino superior e, além disso, o questionário econômico é mais rico do que os dos anos subsequentes. Nessa dimensão, valemo-nos de alguns métodos estatísticos, como Análise Fatorial de Informação Completa Exploratória (Afice) e Análise Fatorial Confirmatória (AFC), Teoria da Resposta ao Item (TRI) e análise de cluster, para compor esse grupo a partir de uma cuidadosa definição do seu nível socioeconômico (NSE). Na segunda etapa, focamos nosso olhar no grupo selecionado com o objetivo de pormenorizar as respostas dadas por esses estudantes ao questionário socioeconômico. A partir da integração entre essas duas análises, buscamos compreender melhor as condições que fizeram esses alunos terem sucesso escolar, apesar do nível socioeconômico muito baixo. Todos os cálculos foram realizados no ambiente proporcionado pelo software R, versão 3.4.3 (R CORE TEAM, 2015).
DEFINIÇÃO DO NSE E SELEÇÃO DOS CASOS DE SUCESSO ESCOLAR EM MEIOS POPULARES
Os microdados do Enem são bases de dados com uma alta quantidade de informação sobre os candidatos. Podemos encontrar, por exemplo, as respostas dadas ao questionário socioeconômico,3 a taxa de resposta para cada uma das quatro provas objetivas, as médias nas provas objetivas e na redação e outros tantos dados. Cabe aos pesquisadores, com isso, realizar uma espécie de garimpo (data mining) nesse arsenal de informações para estabelecer associações entre as variáveis presentes. Nesta seção, será detalhado o processo que levou à construção do NSE dos estudantes que fizeram o Enem em 2009. A amostra foi filtrada considerando apenas candidatos vinculados a escolas4 e que responderam a todos os itens do questionário socioeconômico (resultando em 576.779 candidatos, agrupados em 27.596 escolas). A definição de um NSE para os candidatos do Enem vai muito além da sua renda familiar média. Para Bourdieu (1986), afora o capital econômico de um estudante, que no caso do presente artigo pode ser representado pela renda familiar e posse de diversos bens e recursos, o capital cultural e o capital social são também “moedas” que servem para caracterizar melhor esse nível. O capital cultural pode ser separado em três diferentes modalidades (BOURDIEU, 1986): uma forma dita institucionalizada, que é aquela que tem reconhecimento institucional, como os títulos escolares; uma forma dita objetivada, porque se materializa em bens valorizados pela cultura dominante, como livros, obras de arte, computadores, entre outros; e uma dimensão incorporada, que representa todas as disposições duráveis do indivíduo, adquiridas ao longo da sua socialização de maneira dissimulada e inconsciente. Já o capital social está associado com relações sociais mais ou menos institucionalizadas e duráveis que um indivíduo consegue mobilizar; seu volume está condicionado ao volume dos outros tipos de capital - econômico, cultural ou simbólico - em posse dos integrantes dessa rede. De acordo com Portes (2000), a definição de Bourdieu para capital social divide-se em dois elementos: o primeiro é a existência de uma relação social que permita ao indivíduo acessar os recursos dos membros do grupo; e o segundo diz respeito a quantidade e qualidade desses recursos. Uma análise que considera essa conexão entre os capitais bourdieusianos é proposta aqui para se construir um nível social e econômico para os candidatos. Contudo os itens do questionário do Enem não permitem estimar o volume de capital social dos candidatos. Por isso, a construção do NSE vai se concentrar na articulação do volume de capital econômico com o volume de capital cultural dos estudantes.
O questionário socioeconômico respondido pelos alunos que prestaram o exame é constituído por mais de 200 itens que abordam aspectos familiares, educacionais e profissionais. A escolha das questões que irão compor o NSE não pode ser realizada apenas pela intuição do pesquisador. É necessário que se utilize um procedimento estatístico que, em conexão com a fundamentação teórica bourdieusiana, auxilie a identificar os itens do questionário socioeconômico mais relevantes para cada tipo de capital. No presente trabalho, inicialmente foi utilizada a Afice, por intermédio do Modelo de Resposta Graduada (SAMEJIMA, 1969), recorrentemente empregada em pesquisas com questionários semelhantes (TAKANE; DE LEEUW, 1987; EDELEN; REEVE, 2007).5
A aplicação da Afice permitiu a identificação prévia de quatro possíveis fatores (traços ou variáveis latentes) no questionário socioeconômico do Enem de 2009. Um fator está mais associado com itens de caráter econômico, como renda familiar, número de geladeiras em casa e outros bens e serviços. A esse fator demos o nome de capital econômico.
Essa parte do questionário que envolve apenas renda familiar e posse de bens e serviços, ou seja, o traço latente capital econômico, pôde ser considerada como essencialmente unidimensional, sendo tratada em separado das demais. Tal resultado é semelhante ao encontrado no trabalho de Alves, Soares e Xavier (2014), no qual fizeram o cálculo de NSE tomando itens semelhantes aos considerados para o que chamamos aqui de capital econômico, acrescidos de itens relativos ao nível de instrução do pai e da mãe do candidato (que aqui consideramos como itens relacionados ao capital cultural institucionalizado).
Para o questionário relativo ao tipo de capital cultural, foi realizada uma AFC (FINCH; FRENCH, 2015), no sentido de refinar o modelo construído na articulação entre a Afice e a teoria bourdieusiana, articulação essa que identificou os três tipos de capital cultural: um deles foi interpretado como capital cultural institucionalizado, no sentido estrito proposto por Bourdieu (1986); outro como capital cultural relacionado à cultura geral; e um terceiro capital cultural relacionado ao nível de consciência social (NASCIMENTO; CAVALCANTI; OSTERMANN, 2018). Espera-se que questionários envolvendo itens relativos ao capital cultural sejam complexos, tal como estabelecido na teoria de Bourdieu (2016). A AFC foi feita com o pacote lavaan (ROSSEEL, 2012) e, ao contrário da AFE (Análise Fatorial Exploratória), que identifica fatores, mas pode associar o mesmo item a mais de um desses fatores), a Afice possibilita que sejam associados os itens do questionário às variáveis latentes mais condizentes com a fundamentação teórica, ou seja, cada grupo de itens pode ser associado ao tipo de capital cultural segundo o referencial bourdieusiano. A qualidade do ajuste desse modelo pode ser medida basicamente por um conjunto de três índices: Comparative Fit Index (CFI), Tucker-Lewis Index (TLI) e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA), para os quais se obtiveram, respectivamente, os valores 0,956, 0,952 e 0,063. Tais valores correspondem a um ajuste de adequado para bom (FINCH; FRENCH, 2015, p. 42-43). O modelo final é representado graficamente pelo diagrama apresentado na Figura 1 e tem similaridade com outros modelos adotados na literatura (ver, por exemplo, BYUN; SCHOFER; KIM, 2012). Nessa figura, os fatores que identificam as três formas de capital cultural são representados por círculos. As variáveis (no caso, itens do questionário socioeconômico) aparecem como quadrados. Os índices são rotulados por CC (capital cultural), seguido pelo número do item correspondente no referido questionário.
Na Figura 1 são apresentados os fatores (traços latentes) obtidos da análise dos itens relacionados ao capital cultural dos estudantes, com as respectivas cargas fatoriais (NASCIMENTO; CAVALCANTI; OSTERMANN, 2018). Quanto maior for a carga fatorial, maior a influência do item no respectivo traço latente.
Para todos esses tipos de capitais, por meio da Teoria da Resposta ao Item,6 foi calculado um escore em uma escala cujo desvio-padrão é 100 e a média é 500, ou seja, a mesma escala dos escores das provas objetivas do Enem. Esses escores, que quantificam os diferentes fatores, são os seguintes: Índice de Capital Econômico (ICE), Índice de Capital Cultural - Institucionalizado (ICC_INST), Índice de Capital Cultural - Cultura Geral (ICC_GER) e Índice de Capital Cultural - Consciência Social (ICC_CS). Neste trabalho nos concentraremos mais no primeiro (ICC_INST).
A partir dos escores foi possível efetuar cálculos da respectiva correlação de Pearson com o desempenho no Enem (a média geral do candidato nas provas objetivas). Dos fatores identificados, os que mais se correlacionam com o desempenho no Enem são o Índice de Capital Econômico (ICE) e o Índice de Capital Cultural - Institucionalizado (ICC_INST), quer dizer, a associação entre os bens econômicos e culturais dos candidatos revela uma apreciável correlação com o desempenho no exame. Isso permite inferir que, no geral, estudantes com elevados capitais econômicos e culturais obtêm melhores resultados no Enem do que candidatos com capitais correspondentes mais baixos. A articulação desses dois fatores foi utilizada para a definição do nível socioeconômico dos candidatos (NSE). Essa articulação, contudo, foi realizada por meio de uma análise de cluster k-means bivariada, permitindo assim a melhor delimitação dos grupos de alunos. Tal análise foi feita classificando os candidatos em sete grupos diferentes, formados de acordo com o capital econômico (ICE) e com o capital cultural institucionalizado (ICC_INST) do estudante. O ordenamento dos grupos do mais baixo para o mais alto índice de capital econômico foi CE1_CC1, CE2_CC4, CE3_CC2, CE4_CC6, CE5_CC3, CE6_CC5 e CE7_CC7, nos quais o número precedido pela sigla CE indica o nível do capital econômico, e o número precedido pela sigla CC, o nível de capital cultural institucionalizado.7 Esse tipo de classificação é bastante adequado aos nossos propósitos, pois permite identificar separadamente os níveis de capital econômico e cultural institucionalizado em cada grupo.
Tendo definido o NSE dos candidatos a partir da associação dos capitais culturais institucionalizados e econômicos, a etapa seguinte da investigação foi encontrar dentro dos grupos de NSE mais baixos aqueles casos específicos de sucesso escolar. É fundamental nesse momento definirmos o que estamos chamando de sucesso escolar. Para essa análise, classificamos o desempenho dos estudantes nas provas objetivas do Enem em cinco níveis diferentes: Péssimo, Ruim, Regular, Bom e Ótimo. Tomamos como indicador a média geral do candidato nas quatro provas objetivas,8 classificada também por meio de análise de cluster k-means.
No âmbito desta pesquisa, são considerados casos de sucesso escolar em meios populares os candidatos que, apesar das condições socioeconômicas desfavoráveis, apresentam desempenho Bom ou Ótimo no Enem. Para selecionar apenas esses estudantes, foi discriminado o número de candidatos de cada grupo socioeconômico para cada faixa de desempenho no Enem. A presente investigação tem como foco apenas os níveis CE1_CC1 e CE2_CC4, conforme ilustra a Figura 2. Foram analisados somente os estudantes com desempenho Bom ou Ótimo dentro desses dois grupos, resultando em uma amostra de 14.995 indivíduos.
FATORES ASSOCIADOS COM O SUCESSO ESCOLAR
Estudantes que vivem em condições sociais desfavoráveis, em geral, tendem a ter mais dificuldade no meio escolar. Essa amostra de 14.995 estudantes nos indica, contudo, que apesar das dificuldades impostas pelo contexto, esses candidatos conseguiram obter uma média geral que corresponde a um desempenho Bom ou Ótimo no Enem. A questão fundamental nesse momento é identificar o perfil desses candidatos bem-sucedidos. Quer dizer, como esses estudantes conseguiram esse desempenho enquanto tantos outros com contextos similares obtiveram desempenho Ruim ou Péssimo?
Como estamos investigando alunos de grupos socioeconômicos muito parecidos, por vezes, as estruturas objetivas se assemelham muito para esses candidatos. Renda e nível de instrução dos pais, nesse sentido, se tornam variáveis pouco relevantes para tentar explicar o sucesso escolar desses alunos. Isso quer dizer que o capital econômico e o capital cultural institucionalizado, por si sós, não justificam o sucesso no Enem desses 14.995 candidatos. Desse modo, na presente seção apontamos possíveis fatores explicativos para o sucesso desses estudantes, sendo eles: a) a frequência de leitura dos candidatos; b) o tamanho da família dos candidatos; e c) o interesse dos candidatos por política. Todos esses fatores emergiram a partir da análise dos itens do questionário do Enem e a sua relação com o desempenho dos alunos.
a) Frequência de leitura
Famílias com importantes recursos culturais entregam à escola crianças que possuem boas habilidades linguísticas, com conhecimentos culturais e escolares significativos. É com a família que os indivíduos tendem a se habituar às práticas da escrita e da leitura, antes mesmo do contato com a escola (LAHIRE, 2011). Lahire (2011) nos mostra que esse processo de socialização de crianças das classes populares com a cultura escrita ocorre de diferentes maneiras, mas especialmente a partir da sua participação na execução de algumas práticas domésticas em parceria com seus familiares. Por exemplo, ao participar da elaboração de uma lista de compras, no auxílio da redação de um cartão de aniversário, ao acompanhar um irmão mais velho na realização de algum trabalho escolar, etc. Nas práticas de leitura, as crianças podem acompanhar os pais na leitura de uma história, de uma notícia do jornal ou em consultas na internet.
Em todos esses casos, as crianças, em parceria com um adulto com o qual nutrem algum laço afetivo positivo, aprendem sobre as atividades e funções próprias da leitura e da escrita. É preciso apenas ter a cautela de compreender que a incorporação dessas funções organizacionais e cognitivas próprias da escrita e da leitura ocorre por impregnação indireta e difusa, quer dizer, a partir de todo um ambiente familiar específico, e não apenas por ações diretas e isoladas de leitura e escrita (LAHIRE, 2011).
Mas essas diferenças na socialização das práticas de leitura e de escrita não podem ser detectadas diretamente dos microdados do Enem. A presença de itens do questionário que indagam sobre a frequência com que os estudantes leem jornais, livros, revistas e outros nos permite apenas associar algum hábito de leitura com o desempenho no Enem e, a partir daí, elaborar hipóteses explicativas fundamentadas teoricamente. Pela análise desses itens, percebemos que alunos dos meios populares com desempenho Bom ou Ótimo leem mais do que os alunos de mesmo NSE com desempenho Péssimo, especialmente em relação aos livros de não ficção, conforme indica a Figura 3.
Notamos que o percentual de estudantes que leem regularmente livros de não ficção aumenta, em média, 15 pontos percentuais quando comparamos os candidatos de desempenho mais baixo com os de desempenhos mais altos. É importante notar que esse aumento não provém de uma diminuição do percentual de alunos que leem às vezes, e sim do grupo que afirma não ler nunca. A partir do que foi exposto, podemos considerar, a título de hipótese explicativa, que o gosto pela leitura pode ser um indicativo de que esse estudante interagiu com adultos, com os quais guardava alguma relação afetiva, que compartilhavam práticas de leitura e escrita favoráveis para o desenvolvimento dessa cultura. Essa relação positiva entre hábito de leitura e desempenho já foi apontada em outros estudos com delineamento quantitativo (ALVES et al., 2013; GONÇALVES, 2015). Mas por que algumas famílias, dentro desses grupos de baixo índice de capital, conseguem compartilhar o gosto pela leitura e outras não? Uma das hipóteses explicativas que aventamos é a de que o tamanho da estrutura familiar contribui muito para a socialização de práticas de leitura, conforme discutimos na próxima seção.
b) Tamanho da família do candidato
Com base no item do questionário relativo ao número de pessoas que vivem com o candidato na mesma casa, o fator tamanho da família desponta como variável importante na tentativa de justificar diferenças de desempenho em grupos socioeconomicamente semelhantes. Isso pode ser observado na Figura 4, que apresenta o número de estudantes com desempenho Péssimo e com desempenho Bom ou Ótimo para cada uma das categorias do item que investiga o número de pessoas que vivem com o candidato.
Notamos que a proporção de estudantes que moram com seis ou mais pessoas praticamente dobra quando comparamos os candidatos com desempenho Bom ou Ótimo com os de desempenho Péssimo, passando de 14,62% e 9,28% - nos grupos CE1_CC1 e CE2_CC4 respectivamente - para 26,15% e 16,16%. Apesar de possuírem capitais econômicos e culturais muito parecidos, a distribuição desses capitais pode ser diferente quando o número de indivíduos no domicílio aumenta. Esse fato se justifica pela influência do tamanho da família nos diferentes processos de escolarização. Glória (2007) mostrou que a diluição de recursos em famílias com muitos filhos prejudica o processo de escolarização das crianças. De fato, como afirma Lahire, “uma configuração familiar relativamente estável, que permite à criança relações sociais frequentes e duráveis com os pais, é uma condição necessária à produção de uma relação com o mundo adequada ao ‘êxito’ no curso primário” (LAHIRE, 1997, p. 26). Isso ocorre pelo fato de ser mais provável que os pais (ou outros adultos) consigam compartilhar efetivamente um habitus educativo - ou o gosto pela leitura, organização e disciplina, etc. - com dois filhos do que com quatro ou cinco.
A Figura 4 chama a atenção para o fato de que quatro pessoas morando na mesma casa parece ser uma quantidade peculiar para os níveis bivariados CE1_CC1 e CE2_CC4, pois dentre os que alcançam o desempenho Bom ou Ótimo a maioria mora em casas com quatro pessoas, diminuindo bastante o número de candidatos que moram com seis ou mais pessoas (categoria 6+ pessoas). Portanto, é importante investigar qual seria o número de pessoas em casa que mais se associa ao desempenho Bom ou Ótimo na média geral das provas objetivas do Enem. Tal análise não pode ser feita apenas a partir dos resultados mostrados na Figura 4, mas também por uma técnica conhecida como Análise de Correspondência Simples (ACS). A seguir esse tipo de análise será explicado em mais detalhe.
A ideia da ACS é produzir uma visualização gráfica das associações entre duas variáveis categóricas, partindo de uma tabela de contingência como a mostrada na Tabela 1(a) - as quantidades nessa tabela são as frequências de ocorrência de candidatos dos níveis CE1_CC1 e CE2_CC4 considerando duas categorias cruzadas: número de pessoas com quem o candidato mora na sua casa e o seu desempenho no Enem (por exemplo, 1.558 candidatos que alcançaram desempenho Bom ou Ótimo moram em casas que têm seis ou mais pessoas). Essas quantidades são chamadas de valor observado. No presente caso, nosso objetivo é analisar as associações entre as variáveis desempenho no Enem e número de pessoas que moram na casa de cada candidato. Para uniformizar o resultado com o que é mostrado na Figura 4, as categorias Bom e Ótimo da variável desempenho no Enem foram aglutinadas em uma, chamada Bom ou Ótimo, sendo mantidas as restantes. Para a variável número de pessoas na casa, foram usadas as mesmas seis categorias apresentadas na Figura 4.
A Tabela 1(b) mostra os valores esperados para as frequências, e esses valores são calculados a partir dos valores observados. A partir da Tabela 1(a), podemos calcular a proporção de candidatos dos dois níveis socioeconômicos mais baixos cujo desempenho no Enem foi Bom ou Ótimo: (208 + 1.526 + 3.316 + 4.997 + 3.343 + 1.558) / 172.396 ≈ 0,0867073. Podemos interpretar essas proporções como uma estimativa das probabilidades de ocorrência dos diversos atributos da tabela, ou seja, nesse caso, a probabilidade de que candidatos dos níveis CE1_CC1 e CE2_CC4 obtenham desempenho Bom ou Ótimo é próxima de 0,09 (ou 9%). Assim, o valor esperado em cada célula da Tabela 1(b) pode ser interpretado como uma estimativa probabilística, sendo obtido pelo produto das estimativas de probabilidade de ocorrência simultânea de dois atributos cruzados multiplicado pelo total de ocorrências da tabela.
Tabela 1(a). Valores observados | |||||||
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DESEMPENHO NO ENEM 2009 | NÚMERO DE PESSOAS QUE VIVEM COM O ESTUDANTE | ||||||
MORA SÓ | 2 PESSOAS | 3 PESSOAS | 4 PESSOAS | 5 PESSOAS | 6+ PESSOAS | TOTAL | |
Bom ou Ótimo | 208 | 1.526 | 3.316 | 4.997 | 3.343 | 1.558 | 14.948 |
Regular | 418 | 3.461 | 7.784 | 11.984 | 8.861 | 4.925 | 37.433 |
Ruim | 777 | 5.443 | 12.137 | 18.612 | 15.292 | 10.477 | 62.738 |
Péssimo | 745 | 4.706 | 9.893 | 15.551 | 14.013 | 12.369 | 57.277 |
Total | 2.148 | 15.136 | 33.130 | 51.144 | 41.509 | 29.329 | 172.396 |
Tabela 1(b). Valores esperados, calculados a partir da Tabela 1(a) | |||||||
DESEMPENHO NO ENEM 2009 | NÚMERO DE PESSOAS QUE VIVEM COM O ESTUDANTE | ||||||
MORA SÓ | 2 PESSOAS | 3 PESSOAS | 4 PESSOAS | 5 PESSOAS | 6+ PESSOAS | TOTAL | |
Bom ou Ótimo | 186,3 | 1.312,4 | 2.872,6 | 4.434,6 | 3.599,1 | 2.543 | 14.948 |
Regular | 466,4 | 3.286,5 | 7.193,6 | 11.105,1 | 9.013 | 6.368,3 | 37.433 |
Ruim | 781,7 | 5.508,3 | 12.056,6 | 18.612,2 | 15.105,9 | 10.673,4 | 62.738 |
Péssimo | 713,7 | 5.028,8 | 11.007,1 | 16.992,1 | 13.791 | 9.744,3 | 57.277 |
Total | 2.148 | 15.136 | 33.130 | 51.144 | 41.509 | 29.329 | 172.396 |
Tabela 1(c). Resíduos padronizados, calculados a partir das tabelas 1(a) e 1(b) | |||||||
DESEMPENHO NO ENEM 2009 | NÚMERO DE PESSOAS QUE VIVEM COM O ESTUDANTE | ||||||
MORA SÓ | 2 PESSOAS | 3 PESSOAS | 4 PESSOAS | 5 PESSOAS | 6+ PESSOAS | ||
Bom ou Ótimo | 1,6 | 5,9 | 8,3 | 8,5 | -4,3 | -19,5 | |
Regular | -2,2 | 3,0 | 7,0 | 8,3 | -1,6 | -18,1 | |
Ruim | -0,2 | -0,9 | 0,7 | 0,0 | 1,5 | -1,9 | |
Péssimo | 1,2 | -4,6 | -10,6 | -11,1 | 1,9 | 26,6 |
Fonte: Elaboração própria com base em dados do Inep (BRASIL, 2009).
A Tabela 1(c) contém os resultados mais importantes para a ACS, os chamados resíduos padronizados. O resíduo padronizado é definido como:
onde V obs e V esp são, respectivamente, os valores observados e os esperados. Assim, o resíduo padronizado informa para cada categoria cruzada o desvio em relação ao valor esperado em unidades da raiz quadrada do valor esperado. Na tabela são destacados, para cada linha, os resíduos de maior magnitude, seja ela positiva (cor cinza claro) ou negativa (cor cinza escuro). Resíduos baixos indicam que os atributos são fracamente associados, ou seja, as quantidades observadas são muito próximas dos respectivos valores esperados (não havendo associação significativa). Esse é o caso dos candidatos cujo desempenho na prova foi classificado no atributo Ruim. O fato de os resíduos serem todos muito baixos indica que candidatos dos níveis CE1_CC1 e CE2_CC4 e com desempenho Ruim não se diferenciam entre si pelo atributo número de pessoas que moram na casa. Para estes, as quantidades observadas são muito próximas das quantidades esperadas.
A ACS tem como objetivo explorar as associações entre duas variáveis categóricas dispostas em tabelas de contingência, permitindo analisar graficamente as relações existentes através da redução da dimensionalidade do conjunto de dados. A qualidade do mapa de correspondência, como é chamada essa representação gráfica, pode ser aferida pela quantidade de variância explicada, calculada na aplicação do algoritmo da ACS - quanto mais próxima de 100%, mais fiel é o mapa. A Figura 5 mostra a visualização que resulta da ACS feita a partir da Tabela 1, para a qual foi obtida uma variância explicada de 99,83%, ou seja, um mapa de muito alta fidelidade. A interpretação das associações entre as variáveis categóricas se baseia essencialmente em dois aspectos geométricos do mapa: o comprimento dos segmentos (ou setas) e o ângulo entre esses segmentos - ângulos menores do que 90 graus indicam associação e maiores do que 90 graus indicam a ausência dela.
Nesse mapa, escolhemos como referência a variável desempenho no Enem (cujas categorias são representadas por setas pretas). Quanto mais próximo de zero for o ângulo entre dois segmentos e maior o comprimento desses dois segmentos, mais forte a associação. Quanto mais próximo de 180º for esse ângulo e maior o comprimento dos segmentos, maior a disparidade. Segmentos muito curtos ou ângulos entre segmentos longos muito próximos de 90° indicam associação muito baixa.
Por exemplo, nota-se pelo mapa que 3 pessoas e 4 pessoas são os dois atributos relativos ao número de pessoas que moram na casa do candidato que formam ângulos menores com o atributo Bom ou Ótimo. O ângulo entre o segmento que representa no mapa o atributo 4 pessoas e a seta que representa o atributo Bom ou Ótimo é maior do que o ângulo entre o segmento representando o atributo 3 pessoas e a mesma seta (o que enfraquece a associação), mas o comprimento do segmento representando 4 pessoas é maior (o que fortifica a associação). Assim, conclui-se do mapa que os candidatos dos níveis CE1_CC1 e CE2_CC4 e que moram em casas com três ou quatro pessoas são os que aparecem em quantidade que mais supera o valor esperado no desempenho Bom ou Ótimo. Dessa forma, diz-se que são os atributos de desempenho no Enem Bom ou Ótimo (e também Regular) aqueles que mais diferenciam os candidatos que moram em casa com três ou quatro pessoas (em relação aos demais).
O mapa da ACS também mostra que, para candidatos dos níveis CE1_CC1 e CE2_CC4, indivíduos que moram em casas com seis ou mais pessoas se caracterizam mais pelo desempenho Péssimo. E, para qualquer das categorias de número de pessoas na casa, os que atingem desempenho Ruim aparecem em quantidade muito próxima do valor esperado, ou seja, o desempenho Ruim não constitui um atributo discriminativo para candidatos dos níveis CE1_CC1 e CE2_CC4.
Ao que parece, a transmissão de disposições culturais é muito sensível ao tamanho da família, especialmente nos grupos de menor estruturação socioeconômica. Como hipótese explicativa, podemos considerar que famílias muito numerosas ou pouco numerosas - com duas pessoas, por exemplo - dificultam a transmissão de disposições, afinal obstaculizam a interação discursiva entre os membros da família, seja por ter muitos ou poucos integrantes.9 Para reforçar essa tese, procuramos no questionário do Enem outros elementos culturais que estivessem associados com o desempenho dos alunos, para fazer uma posterior correspondência com o tamanho da família dos candidatos. Essa associação apareceu no item que questionava sobre o interesse dos estudantes por política, conforme indica a Figura 6, mais adiante.
c) Interesse por política
Em um estudo aprofundado sobre a distinção entre as classes sociais, Bourdieu (2016) mostra, entre outras coisas, que o interesse pela política está intimamente associado ao nível de instrução das pessoas. O autor faz essa afirmação a partir de uma detalhada investigação do perfil de pessoas que não respondiam a perguntas específicas de entrevistas realizadas por institutos de pesquisa da França. Indivíduos com menor grau de instrução tendem a não responder a perguntas sobre política externa ou economia em maior proporção do que as pessoas com nível de estudo elevado. Para o autor, essa indiferença em relação à política é o reflexo de um sentimento de impotência e de desinteresse gerados pelo distanciamento entre a realidade dessas pessoas e as discussões políticas; em outras palavras, os cidadãos menos instruídos formalmente se sentem excluídos do jogo democrático pela configuração do próprio sistema democrático. A falta de representatividade faz com que as classes populares, ou as menos instruídas, se sintam alijadas do sistema democrático como um todo (BOURDIEU, 2016). Olhando para o contexto da nossa pesquisa, a partir da associação entre nível de instrução e interesse por política indicada por Bourdieu (2016), podemos supor que os estudantes das classes populares que possuem capital político tenderiam a obter um melhor desempenho no exame. E foi possível realizar essa investigação, pois o questionário do Enem de 2009 tem um item que indaga exatamente sobre o interesse do candidato pela política.
Nossos resultados indicam que a suposição inicial estava correta, afinal, os alunos com desempenho Bom ou Ótimo dos grupos de NSE mais baixos tendem a ter maior interesse pela política do que os indivíduos com desempenho Péssimo. O percentual de candidatos que se interessam muito por política, quando comparamos os alunos com desempenho Péssimo com os de desempenho Bom ou Ótimo, aumenta de 19,98% para 39,71% no grupo CE1_CC1, e de 18,82% para 38,32% no grupo CE2_CC4, como ilustrado na Figura 6. Além do interesse pela política, o gosto por questões relacionadas com a economia também se mostrou um diferencial no desempenho dos estudantes das classes populares no Enem (NASCIMENTO et al., 2019).
Para analisar a relação entre os fatores frequência de leitura, interesse por política e tamanho da família com o desempenho do candidato no Enem, realizamos uma Análise de Correspondência Múltipla (ACM), conforme ilustra a Figura 7. A ACM permite visualizar associações entre mais do que duas variáveis. O princípio é análogo ao da ACS, mas envolve algoritmos mais complexos. Para mais detalhes sobre a utilização da ACM na pesquisa em educação em Ciências, consultar Nascimento, Cavalcanti e Ostermann (2017).
Aqui usamos um dos tipos de ACM, chamado Análise de Correspondência Conjunta (ACC), que produz mapas mais fiéis do que os produzidos por outros tipos de ACM (CAMIZ; GOMES, 2013; GREENACRE, 2017). A interpretação de um mapa produzido por uma ACC segue as mesmas linhas gerais da ACM: a associação entre as variáveis é inferida pela aproximação angular entre os diversos segmentos e pelos seus comprimentos.
Geralmente as setas são usadas para representar as categorias das variáveis mais discriminativas (que aparecem com maior comprimento e, portanto, fornecem mais informação no mapa). No caso da Figura 7, essa variável é o interesse pela política. No entanto, usamos as setas nas categorias da variável desempenho no Enem, pela representatividade dessa variável no escopo do trabalho. A ACC foi realizada utilizando as respostas dadas pelos estudantes dos grupos CE1_CC1 e CE2_CC4 aos itens que tratam do seu interesse pela política (int_pol), da frequência de leitura de livros de não ficção (le_nficcao), do número de pessoas que vivem na mesma casa e, além disso, da média geral desses alunos no Enem. Para simplificar a visualização e facilitar a análise do mapa, filtramos apenas os candidatos desses dois grupos que declararam viver com quatro pessoas, afinal essa estrutura familiar em termos numéricos indicou ser uma das que mais se caracterizam por um desempenho satisfatório no exame, conforme observado na Figura 5. Como esperado, de um lado do mapa os estudantes desses grupos que não possuem interesse por política e que afirmam nunca ler livros de não ficção estão fortemente associados ao desempenho Péssimo no Enem, já no outro extremo, alunos com muito interesse político e que leem regularmente estão muito associados a desempenhos Bom ou Ótimo no exame, corroborando a nossa hipótese de que o tamanho da família seria um fator importante no processo de transferência de elementos culturais. Diferentemente da ACS, a ACC não calcula o percentual de variância explicado pelo mapa em cada uma das dimensões, mas globalmente. Esse mapa é bastante fiel, pois a variância explicada é 99,49%.
O mapa obtido a partir da ACC, portanto, ilustra um possível perfil para os candidatos que, apesar de terem convivido em ambientes familiares de baixo capital econômico e baixo capital cultural, conseguiram obter um desempenho bem satisfatório nesse exame de seleção. Seria interessante estender essa análise para além do ambiente familiar, tanto quanto os dados possibilitam. Contudo, considerando que no presente trabalho estamos interessados em caracterizar as condições familiares que mais contribuem para o sucesso escolar de estudantes oriundos das classes populares, não vamos aprofundar as discussões sobre o papel da escola no desempenho dos estudantes no Enem. Para um detalhamento do tema, especialmente a partir dos dados do Enem, consultar Cavalcanti, Nascimento e Ostermann (2018).
Não existe condição social que defina a priori o futuro escolar dos estudantes, no entanto, nosso estudo mostra que alguns elementos são bons indicadores de que o estudante teve contato, ao longo da sua vida, com disposições importantes para proporcionar um bom desenvolvimento na escola. Compartilhar essas disposições com os filhos é uma tarefa árdua, conforme o número de integrantes aumenta significativamente. Nossos resultados mostram que candidatos de famílias com núcleo formado por seis ou mais integrantes têm um menor interesse por questões políticas e um hábito pela leitura reduzido, o que poderia sugerir que os estudos formais não são prioridade nas discussões desse ambiente social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta investigação teve como objetivo central analisar em detalhe o perfil dos alunos outliers do Enem, que são aqueles estudantes que não acompanham o comportamento da maioria de seus semelhantes em termos de desempenho escolar. Especificamente investigamos o perfil dos candidatos de baixo capital econômico e cultural, porém, com desempenho muito satisfatório no exame. Não fomos atrás de cada um dos 14.995 candidatos com esse perfil para fazer uma análise sociológica descritiva e minuciosa desses casos singulares, realizando entrevistas com os próprios candidatos, seus familiares e professores, como é tendência nos trabalhos que tratam do mesmo tema (ALVES et al., 2013; MASSI; MUZZETI; SUFICIER, 2017). Certamente essa seria a melhor forma de fazer esta pesquisa, no entanto, realizamos uma cuidadosa análise quantitativa das respostas dadas por esses estudantes ao vasto questionário socioeconômico do Enem, dando continuidade a uma nova forma de analisar os casos de sucesso em meios populares (ALVES et al., 2013; GONÇALVES, 2015; CASTRO; TAVARES JÚNIOR, 2016).
Dialogando com referenciais da sociologia da educação, percebemos que a linguagem assume um papel central nos processos de transmissão de capitais na infância e na adolescência. O hábito de leitura dos estudantes pode ser inferido a partir de itens do questionário socioeconômico. Essa análise mostrou que os estudantes que regularmente leem livros de não ficção estão mais associados com o desempenho Bom e Ótimo, enquanto os alunos que afirmam nunca ler esse gênero textual se aproximam mais de um desempenho Péssimo. A transmissão de capitais revelou ser bastante sensível ao tamanho da família, especialmente na população investigada. Os alunos que obtiveram desempenho Péssimo, em geral, vivem em casas com seis pessoas ou mais. Nossa hipótese é a de que morar com muitas pessoas dificulta interações significativas das crianças com os adultos com os quais guardam algum laço afetivo.
Outro aspecto que se destacou das análises como característica dos alunos com desempenho Bom ou Ótimo foi o interesse pela política. Fizemos um paralelo com os estudos de Bourdieu (2016) sobre a distinção entre as classes sociais, mostrando que o interesse por questões políticas pode ser um indicativo de maior grau de instrução por parte do sujeito. Notamos que estudantes com desempenho Bom ou Ótimo declaram, em média, ter muito interesse por política, ao passo que alunos com desempenho Péssimo não se sentem interessados pelo tema. Destacamos que o gosto pela política não é um critério para inteligência. Pessoas com desempenho escolar muito bom podem tranquilamente detestar questões que envolvam política ou economia, assim como indivíduos que enfrentam dificuldades extremas na educação básica podem vir a desenvolver um forte gosto pela política e mesmo participar ativamente das discussões e tomadas de decisão políticas. O que aconteceu em nossa investigação foi que, ao analisar os milhares de estudantes simultaneamente, detectamos o comportamento médio daquela população, no caso, os alunos que melhor desempenharam no Enem foram os que mais afirmaram gostar muito de política.
Em resumo, a despeito de não termos analisado em detalhe cada um dos 14.995 casos singulares encontrados nesta pesquisa, foi possível tecer algumas considerações sobre o perfil desses candidatos. Nossa pesquisa se torna relevante no campo da sociologia da educação pois dá continuidade a uma longa discussão sobre a compreensão do sucesso escolar nos contextos populares, porém, a partir de um delineamento metodológico distinto.
Por fim, destacamos que a nossa pesquisa investiu na caracterização quantitativa dos fatores que mais contribuem para o sucesso escolar de estudantes oriundos das classes populares. Seria importante, nesse momento, investir na elaboração de questionários socioeconômicos mais detalhados para os exames brasileiros de larga escala, como Enem, Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) e Saeb, a fim de que futuros estudos quantitativos possam mapear fatores associados com o sucesso escolar dos estudantes não identificados na presente pesquisa.