Introdução
Começo esse artigo com um truísmo que espero seja o único ao longo das páginas: nunca foi simples cruzar os conceitos de gênero e classe, nem na teoria, nem na prática. Apesar disso, as mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) estão fazendo isso.
Ao se autodeclararem feministas publicamente no ano de 2011, durante a 11ª Assembleia do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), realizada em Xaxim-SC, as militantes não se filiaram a correntes já existentes, mas elaboraram o que consideram um ‘feminismo camponês’, uma forma de feminismo socialista cujos elementos principais lembram, em muitos aspectos, o feminismo marxista dos anos 1970. Por outro lado, trazem inovações como a preocupação ecológica e a maneira de encarar o trabalho doméstico e de cuidados.
Nosso interesse em publicar algumas reflexões sobre a perspectiva marxista presente no feminismo camponês veio da leitura do dossiê temático lançado recentemente, intitulado Os Desafios do Feminismo Marxista, organizado por Danilo E. Martuscelli (2020). A ideia é contribuir para esse debate, na medida em que a produção MMC é pouco divulgada no Brasil, tanto que não consta do dossiê e nem da coletânea organizada por Heloisa Buarque de Holanda (2019) sobre o pensamento feminista brasileiro.
Do mesmo modo que Luis Felipe Miguel (2017), estávamos sentindo falta de uma retomada de algumas preocupações marxistas pelo feminismo brasileiro contemporâneo. Tem-se pesquisas importantes sobre diversidade de gênero, estratégias reprodutivas e questões de reconhecimento, mas pouco se tem falado das desigualdades de renda e propriedades. Como diz Miguel (2017, p. 1221): “ao mesmo tempo que a reflexão feminista procurou se tornar mais sensível às múltiplas diferenças e aos diversos padrões de opressão social, a desigualdade de classe e a exploração capitalista passaram para o segundo plano”.
É importante falarmos de feminismos que têm como objetivo transformações que favoreçam a diminuição das desigualdades, principalmente quando está tomando corpo o que se intitula ‘neoliberal feminism’, ou seja, um movimento que trata as desigualdades como um problema individual e não estrutural:
(...) la clave central del feminismo neoliberal se encuentra en que no ofrece ninguna crítica al neoliberalismo, sino que construye una alianza con él. De este modo se encarga de edificar un nuevo tipo de sujeto feminista: aquel que es consciente de la existencia de las desigualdades de género que perviven en nuestra sociedad, pero que acepta una responsabilidad individual total de su proprio bienestar y cuidado, algo que está específicamente relacionado con conseguir la felicidad y la satisfacción personal (María MEDINA-VICENT, 2020, p. 3).
Esclarecendo melhor os objetivos do texto, mostrar que o feminismo camponês e popular pode ser considerado legitimamente marxista tem mais de um propósito. Para se poder dialogar é preciso situar os debatedores, saber de que lugar estão falando. O campesinato foi considerado por muito tempo como não tendo lugar, ou iria se proletarizar ou apenas subsistir no campo, daí o conceito tão usado de ‘agricultura de subsistência’. Por muito tempo foram considerados ‘inclassificáveis’ e ‘isolados’. A coerência do discurso feminista das camponesas não saiu do nada, não saiu de grupos isolados.
Quem esclarece bem porque o discurso camponês parece fragmentado e nem sempre coerente é James Scott (1990). Esse autor cunha o conceito de ‘hidden transcripts’, que traduzimos como ‘transcrições ocultas’. Essas transcrições se opõem ao que o autor denominou de ‘public transcripts’, ou ‘transcrições públicas’. As segundas são as que são faladas abertamente pelos dominados frente a seus dominadores. As primeiras são pronunciadas off stage, são conversas que os camponeses trocam entre si, elaborando e ‘ensaiando’ um contra discurso, uma maneira alternativa e contestatória de compreender as relações de dominação. Foi isso que as militantes do MMC fizeram e, quando sentiram que tinham argumentos suficientes, tornaram público o feminismo que construíram. Mas o preconceito continua e elas são pouco ouvidas.
Pode causar estranheza a atenção dada à obra de Silvia Federici e algumas citações de Rosa Luxemburgo, mas o motivo é o mesmo que o anterior, chamar a atenção para a necessidade de diálogo. Há muitos pontos comuns que valem a pena serem defendidos em conjunto. A influência de Federici está muito grande na América Latina toda.
O feminismo camponês e popular e suas raízes
O feminismo entre os movimentos de mulheres rurais data da primeira década dos anos 2000, portanto, a relação entre gênero e classe não é herança direta do feminismo marxista dos anos 1970, que tinha a revolução como meta, o proletariado como revolucionário e a convicção de que a subordinação feminina desapareceria com a revolução. A ideia de classe não estava tão presente nos primeiros anos do MMC, embora também não estivesse totalmente ausente, no sentido da manutenção de uma postura anticapitalista. Esta postura sempre foi clara na Teologia da Libertação, que teve muita influência nos movimentos de mulheres do campo através da Igreja. Porém, uma postura classista torna-se mais forte, ou mais explícita, com a aproximação paulatina do MMC a duas outras organizações: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Via Campesina (Maria Ignez PAULILO; Valdete BONI, 2016).
A pesquisadora Vilênia Aguiar, na tese que defendeu sobre a Marcha das Margaridas (AGUIAR, 2015), chamou a atenção para a influência que a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) tem sobre a concepção marxista de luta de classes presente no MMC.1
O documento “Para enfrentar o conflito do capital contra a vida” (2017, p. 5 e 13), elaborado pela MMM e a Sempre Viva Organização Feminista (SOF), já depois do golpe de 2016, traz claras raízes marxistas e propostas de enfrentamento entre capital e trabalho, enfatizando os “desmontes tão velozes de políticas e direitos” e, também, a necessidade de resistir “nas ruas à ofensiva conservadora que ganha força na maioria dos nossos países”. Nos encontros do MMC, do mesmo modo, é bastante ressaltada, depois da mudança de governo, a descontinuidade de políticas públicas que beneficiavam as classes mais pobres e há um chamamento para as ruas, embora se considere que só as ruas não sejam suficientes. Teresa Cruz (2017, p. 9), militante do Movimento, diz “não é só um feminismo das ruas, é também das ruas, mas ele tem que estar baseado no cotidiano da vida das mulheres”.
A influência marxista vem, também, através da sociologia rural que se faz em outros países latino-americanos, cabendo ressaltar, aqui, o México e, especialmente, a Universidade Autônoma do México.2 Não se precisa de maior comprovação do marxismo presente na sociologia rural mexicana que citar a recente publicação Peasant poverty and persistence in the 21st century organizada por Boltvinik e Mann (2016). Em uma Nota Inicial (Foreword), é dito que todos que produziram textos para essa coletânea trabalham dentro de um amplo quadro de referência marxiano.
No Brasil, os estudos rurais estão voltados majoritariamente para os movimentos sociais, as políticas públicas e a segurança alimentar. Livros e artigos preocupados com a posição de classe dos camponeses em países capitalistas se tornaram mais raros. A existência de um governo popular, iniciado com a eleição de Lula em 2002 e que durou até à queda de Dilma Rousseff em 2016, que possibilitava a inclusão de lideranças de movimentos sociais e intelectuais, levou a uma busca por estudos sobre a conjuntura que o país estava vivendo, no sentido de dar subsídios aos órgãos e instâncias oficiais responsáveis pelas políticas públicas.
Esta postura mudou. No documento da SOF/MMM (2017), é muito forte a oposição ao capital, ou seja, ao modo capitalista de produção com suas empresas transnacionais, seus acordos desiguais de comércio e extrema exploração do trabalho. Esse tipo de política econômica as autoras denominam de ‘neoliberalismo’.3
A construção do feminismo como uma teoria e prática da resistência e da emancipação poderia ser pensada com um tecido bordado, muito colorido. Cada desenho bordado representaria a experiência das mulheres de opressão e de resistência. Cada elemento do bordado conecta os modos como o capitalismo patriarcal e colonial constrói sua rede para expropriar as mulheres de seus corpos, seus territórios, suas memórias e seus sonhos. Pela ótica das mulheres do campo, os bordados nos mostram o avanço do agronegócio - as monoculturas que expulsam os trabalhadores das suas terras e fazem com que se produza grãos para o mercado internacional, empobrecendo a população. No bordado também aparecem o uso de agrotóxicos e o perigo que eles representam para a saúde das/dos trabalhadoras/es que os manuseiam, para as populações que vivem em torno das áreas onde se aplica o pesticida, para as nascentes dos rios, para a renovação da terra e para a sustentabilidade da vida humana (SOF/MMM, 2017, p. 55).
Entre os trabalhos acadêmicos defendidos pelas militantes do MMC, a tese de doutorado de Sirlei Gaspareto (2018), já transformada em livro com boa circulação, é a obra com a qual mais interagimos nesse artigo por causa da grande possibilidade de diálogo que contém, tanto em relação ao MMC como em relação a seus embasamentos teóricos. Nesse trabalho, a autora mantém firme a ideia de ‘classe’ marxista, abrandando-a com a de ‘luta de classe’ de Thompson.
A leitura dos trabalhos de Wladimir Lênin, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, e Karl Kautsky, A questão agrária, ambas de 1899, reforçavam a ideia de desaparecimento do campesinato. Segundo Ricardo Abramovay (1992), seus leitores não levaram em conta que essas obras só poderiam ser compreendidas dentro do quadro de lutas políticas de que faziam parte.
Segundo Teodor Shanin (1980, p. 54-55), talvez o sucesso político de Lênin tenha contribuído para que suas ideias tenham sido aceitas sem muita contestação por marxistas posteriores a ele. Para Shanin, seu livro “foi canonizado junto com o autor”.
Como considerar o campesinato uma classe revolucionária se ele estaria desaparecendo? Por muito tempo, a classe revolucionária por excelência para o marxismo foi o proletariado. Poderia, então, um movimento que parte de mulheres camponesas se dizer emancipatório e mesmo classista? Veremos que sim, poderia, se forem retomados autores que se tornaram conhecidos no Brasil na década de 1970, principalmente, Teodor Shanin.
O campesinato retomado
Teodor Shanin (1980) mostra bem a importância dos anos 1970 para uma retomada dos estudos sobre o campesinato. Para esse autor, enquanto a modernização e a industrialização foram consideradas necessárias e benéficas e imperou a dicotomia ‘moderno/tradicional’, os camponeses tornaram-se invisíveis. Porém, fatos históricos obrigaram que houvesse uma reconsideração.
Uma sucessão de crises das chamadas “sociedades em desenvolvimento” e da agricultura mundial, o colapso das prescrições modernizantes, simples-e-rápidas, a decisão da China de “andar como os próprios pés”, a descoberta pelo Banco Mundial da tenacidade camponesa, etc., mas especialmente a maneira como os camponeses vietnamitas derrotaram o país mais industrializado do mundo, tudo isso trouxe os camponeses abruptamente para o foco das atenções (SHANIN, 1980, p. 72-73).
Que tenha havido uma retomada dos estudos sobre o campesinato, Shanin considera importante porque
(...) sob certas circunstâncias, os camponeses não se dissolvem, nem se diferenciam em empresários capitalistas e trabalhadores assalariados, e tampouco são simplesmente pauperizados. Eles persistem ao mesmo tempo que se transformam e se vinculam gradualmente à economia capitalista circundante, que perverte suas vidas (SHANIN, 1980, p. 58)
Quanto às mulheres camponesas, às dificuldades do marxismo para abranger em seus estudos os pequenos agricultores, soma-se a também difícil relação deste com os estudos de gênero. Vamos nos basear no livro de Andrea Nye, Teoria feminista e as filosofias do homem (1995), para levarmos essa discussão adiante.
Primeiro devemos deixar claro que o fato do feminismo camponês retomar a teoria marxista não significa nenhum problema. Como diz Nye (1995, p. 14-16), não existe teoria feminista em ‘estado puro’. Qualquer teoria que as mulheres utilizam para entender sua situação já tem uma história quase sempre elaborada por homens e centrada neles. O que elas podem fazer é “tomar os argumentos do próprio adversário, voltá-los contra ele, e gerar uma sociedade humana que incluísse as mulheres”. As primeiras defesas dos direitos das mulheres no séc. XIX “foram tomadas de empréstimo à teoria liberal e democrática”, como o fizeram Mary Wollstonecraft (1759 - 1797) e Harriet Taylor (1807 - 1858). Diz, ainda:
Esse é o dilema que as feministas têm diante de si. Uma reação esporádica, reflexa, e irrefletida à injustiça possui pouca força prática. Deve haver um centro do qual começar a tecer a teoria feminista, um patamar do qual a ação pode ser iniciada e assumir significado e força. Ao mesmo tempo, esse patamar ideológico só pode provir das ideias disponíveis. Se a cultura é cultura sexista, a teoria feminista deve ser gerada a partir de quaisquer cordas de salvação que a cultura conceda (NYE, 1995, p. 16).
Nessa obra citada de Nye (1995), fiel ao título, a autora analisa, de um ponto de vista feminista, as filosofias do homem mais importantes: o liberalismo, o marxismo, o existencialismo, a psicanálise e as teorias da linguagem. A nós interessa a parte dedicada ao marxismo, porque é dele que se nutre o feminismo camponês. Segundo Nye (1995), do mesmo modo que a teoria democrática, o socialismo não incorporou de imediato ou destemidamente as reivindicações das mulheres.
Para Nye (1995, p. 55 e seguintes), a obra A origem da família, propriedade privada e do Estado de Friedrich Engels (1974) foi muito importante por vários motivos. O autor teve como base as premissas da teoria marxista, segundo as quais o comunismo não é utópico, mas materialista e realista. O primeiro ponto importante é que ele considera o sexismo como um fenômeno histórico e não natural. A inferiorização das mulheres, segundo ele, começou com o advento da propriedade privada, não é algo presente desde o início dos tempos. Nas comunidades primitivas essa discriminação não estava presente. Baseou-se para essa afirmação nos trabalhos do antropólogo norte-americano Lewis Morgan (1818 - 1881) que, posteriormente, teve suas conclusões criticadas por outros antropólogos. Se Morgan estava certo ou não quanto à existência de sociedades igualitárias não é o que importa, o que é relevante é a preocupação de explicar a subordinação da mulher como um fenômeno social datado historicamente e que, portanto, poderia ser mudado.
O segundo ponto importante é que Engels destituiu a família de todo seu romantismo, enquanto muitos dos socialistas utópicos a colocavam como fundamental para uma sociedade mais justa. Segundo ele, o casamento não era um ato baseado no amor, mas na propriedade. O terceiro ponto deriva deste segundo. Se para as mulheres só resta a alternativa de se casarem para ter seu lugar na sociedade e poderem sobreviver, ela não é mais livre que o operário que, para comer, tem que vender sua força de trabalho. O contrato de casamento, assim como o contrato de trabalho, não é um acordo entre iguais. Tem mais poder o patrão, no primeiro caso, e o homem, no segundo.
Com tais pontos positivos, não é de se admirar que as militantes atuais do MMC aceitem plenamente a explicação dada por Engels quanto à origem da subordinação das mulheres, derivada do aparecimento da propriedade privada e não de algo biológico inato. A inferiorização feminina é um fenômeno social e natural.
Apesar dos esforços de feministas como a russa Alexandra Kollontai (1872-1952), militante revolucionária e teórica do marxismo que, inclusive, participou ativamente da revolução de 1917, “na Rússia, onde uma revolução socialista parecia ter sido realizada, a questão das mulheres não se resolveu tão facilmente como as feministas marxistas esperavam” (NYE, 1995, p. 58).
As dificuldades, segundo Nye (1995), não surgiram de dificuldades pessoais, de problemas de personalidade, essa seria uma análise medíocre. Havia impasses teóricos para a incorporação das aspirações das mulheres. O primeiro deles é que, como Marx e Engels eram evolucionistas, feita a revolução confiavam nos rumos da própria história para aumentar a igualdade. Não via, pois, sentido em investir esforços em algo que o tempo traria, principalmente quando a luta contra o capitalismo era tão ferrenha. Em segundo lugar, para a liderança marxista, a prioridade indiscutível era criar laços de solidariedade entre os trabalhadores, o vínculo entre as mulheres era secundário mesmo que isso tenha causado “trágica amargura entre as mulheres liberais e as socialistas” (NYE, 1995, p. 67). Essa prioridade se reflete até hoje quando se acusa os movimentos de mulheres de ‘dividir a luta’, de enfraquecer os esforços para resolver a contradição considerada principal entre patrões e trabalhadores. Também a análise centrada na personalidade continua. Valdete Boni (2002) mostra, em seu estudo sobre sindicatos rurais, que o fato de haverem poucas mulheres dirigentes é atribuído pelas lideranças às próprias mulheres que não saberiam ‘se impor’.
Vale a pergunta de Nye: as mulheres querem pertencer a uma sociedade mais igualitária, mas que continua a discriminá-las e inferiorizá-las?
O homem produtivo marxista, o homem a ser liberado no Estado socialista, depende desde o início do lar que alimenta e abriga e dos serviços não-produtivos que lhe dão o necessário antídoto mental e material para a sua exaustiva e destrutiva humanização do mundo físico e sua ânsia obsessiva por produtos que reflitam a sua imagem. O grande triunfo projetado da produção socialista nada mais é que o reflexo desse homem marxista no Estado autoritário. Mais uma vez deve ser feita a pergunta que as mulheres marxistas fizeram à teoria democrática: acaso as mulheres querem obter o status de camaradas em tal sociedade? (NYE, 1995, p. 85)
Temos, então, dois impasses, ou duas questões difíceis: o campesinato é uma classe no sentido marxista? As aspirações das mulheres têm lugar numa luta pelo socialismo?
Houve muitas tentativas de situar os camponeses dentro de um referencial marxista, articulando sua existência à sociedade capitalista envolvente, embora fossem considerados pré-capitalistas, não capitalistas, produtores simples de mercadorias, pertencentes a um modo próprio de produção - o modo camponês - ou assalariados disfarçados. O que importava era que deles era retirada grande parte da riqueza que produziam através de vários tipos de dominação. Não eram considerados uma ‘classe’, Shanin, porém, vai por um caminho diferente e afirma que eles constituem sim uma classe, não por sua posição na produção, mas por sua posição política. São uma ‘classe política’ por serem atores relevantes nas sociedades modernas.
Quando a análise política imediatamente relevante reconheceu o lugar dos camponeses, estes se transformaram, de derivações e deduções, em exércitos e atores; e, simultaneamente, admitiu-se, cada vez mais, a autonomia analítica relativa de classe com relação ao(s) modo(s) e/ou sociedade a que se vincula. Os camponeses tornaram-se, de fato, uma classe, mesmo “dentro de um país capitalista” (...) (SHANIN, 1980, p. 71, grifos nossos).
É como uma ‘classe política’ que Shanin classifica o campesinato e é desse mesmo modo que o MMC vê a atuação das mulheres agricultoras, como uma atuação classista e política. Nalu Faria (2020, p. 155, grifos nossos), coordenadora da SOF e membro do Comitê Internacional da MMM, defende essa mesma postura ao se referir a três premissas da relação entre feminismo e marxismo. A primeira é que “a situação de subordinação das mulheres é decorrente do processo histórico. E não de uma inferioridade biológica”. A segunda diz que “o feminismo marxista/socialista também tem como base comum a visão de que é a partir da construção de sujeitos políticos que se pode alterar a realidade e eliminar essa situação de subordinação”. Terceiro, “são as bases materiais que determinam tal relação de desigualdade”.
Há mais um ponto nas ideias de Nalu Faria (2020, p. 158) que reforça a legitimidade do MMC em se considerar um movimento classista. Segundo a autora, uma forte dimensão do feminismo marxista/socialista é a ‘dimensão das práticas’, ou seja, é através das atuações cotidianas que se dá a relação com a teoria mais ampla sobre a luta de classe. Para mostrar essa convergência, citamos Sirlei Gaspareto:
Classe não é homogêneo, é relação social, existe e também se expressa na divisão sexual do trabalho para mulheres e negros. A luta das mulheres é um aspecto da luta de classes. Apresenta tensionamentos que, por vezes, no cotidiano, explicita-se em termos de linguagem como: “sementes crioulas, ervas medicinais são lutinhas (...) é coisa de mulher”. Como se fosse possível ignorar o trabalho das mulheres camponesas. Queremos mostrar com isso que essas chamadas “lutinhas”, “coisas de mulher”, “luta específica” têm uma vinculação com a luta de classes. São marcos de determinação social que integram etnia, sexo e classe como estruturantes de um único sistema e não como soma. (GASPARETO, 2017, p. 138-139)
Devemos evitar um engano comum que é o de se pensar que quando o MMC se considera um movimento classista ele está deixando o patriarcado em segundo plano. Ao contrário, o patriarcado é considerado parte integrante da submissão que sofrem as mulheres. As militantes seguem a ideia de Heleieth Saffioti (1976, p. 195) de que há um ‘sistema’ ou um ‘nó’ que articula várias dominações. Para Saffioti, “patriarcado e capitalismo não são sistemas autônomos, nem mesmo interconectados, mas o mesmo sistema”.
Se para o MMC a posição classista é fundamental, para a feminista marxista Silvia Federici (2012) não. Considera-se ‘marxista’ mas não ‘classista’.
Sílvia Federici e Rosa Luxemburgo
Gema Esmeraldo, em sua fala no encontro 13º. Mundo de Mulheres & Fazendo Gênero 11: transformações, conexões, deslocamento (Florianópolis/UFSC, 30 de julho a 4 de agosto de 2017), faz referência às ideias de Rosa Luxemburgo, presentes no livro A acumulação de capital (1985) e aproxima a autora da passagem dos séculos XIX ao XX à atual Silvia Federici. Segundo Esmeraldo, algumas ideias de Luxemburgo têm muito a ver com o momento atual. Entre elas, temos que a acumulação primitiva não se dá apenas no início do capitalismo, mas segue acontecendo quando são destruídos modos de produção camponeses ou comunitários pelo agronegócio, enquanto também são privatizados campos, mangues, águas e florestas. Importante também é que Luxemburgo não separa a esfera da produção da de reprodução, sendo que, no capitalismo, a mulher perde importância como sujeito do trabalho.
Movida pela curiosidade despertada por Esmeraldo, retomamos a obra de Rosa Luxemburgo, porém devemos dizer que essa autora não é citada por Federici em nenhum dos trabalhos que dela lemos, inclusive no que serviu de base para esse artigo:
Como as organizações sociais primitivas dos nativos constituem os baluartes na defesa dessas sociedades (de economia natural), bem como as bases materiais de sua existência, o capital serviu-se, de preferência, do método da destruição e da aniquilação sistemáticas e planejadas dessas organizações sociais não capitalistas, com as quais entra em choque por força da expansão por ele pretendida. No caso já não se trata de acumulação primitiva, mas de um processo que prossegue inclusive em nossos dias. (...) O capital não conhece outra solução que não a violência, um método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de sua gênese, mas até mesmo hoje. (LUXEMBURGO, 1985, p. 254-255)
Além disso, não há razão alguma que nos obrigue a admitir que todos os meios de produção exigidos e os meios de consumo resultantes, devam ser fabricados de modo capitalista. Essa hipótese existe de fato, e serve de base ao esquema de acumulação de Marx; não corresponde, porém, nem à práxis cotidiana, nem à história do capital, nem mesmo ao caráter específico desse modo de produção. (...) [Exemplos históricos] demonstram quanto a acumulação capitalista depende dos meios de produção que são produzidos de modo não capitalista. (...) Sendo o método mais importante de elevação da taxa de mais valia, o aumento incessante da produtividade do trabalho implica e se vincula, por outro lado, à utilização ilimitada de todas as matérias e condições que a Natureza e a terra põem à sua disposição. (LUXEMBURGO, 1985, p. 245)
Ao desenvolver as ideias que condensa nas citações acima, a autora mostra, com exemplos, como a reprodução da mão da obra e a apropriação do papel das mulheres como responsáveis pelo nascimento e cuidado com as crianças dentro da família não difere, enquanto busca por mais valia, da apropriação capitalista da força de trabalho masculina nas fábricas.
Diante do exposto, vemos que há convergências entre o feminismo marxista não classista de Silvia Federici, o feminismo classista do MMC e as ideias de Rosa Luxemburgo que é citada por Gaspareto (2017).
Oportuno será voltarmos ao pensamento de Luxemburgo (1988) (...), visto que ele inspira o MMC a não perder o horizonte de suas lutas e saberes, bem como nem mesmo escamotear as razões de sua existência. Para Luxemburgo (1988), o que produzia a consciência política e de classe era a luta nas ruas, porque ali trabalhadores/as agiam diretamente contra a ordem estabelecida, fora da legalidade. Luxemburgo (1988) instiga a pensar que, a partir da experiência com o programa de sementes crioulas do MMC, vão nascendo ali os germes de um programa de organização de mulheres camponesas que aponta para outra forma de experimentar, inclusive o conceito de democracia. Não aquela do Estado de direito. Não aquela que incorpora a lógica da adaptação ao Sistema, mas, sim, a que indica a possibilidade de vivência democrática. (...) A experiência em Rosa Luxemburgo é o lugar por excelência para a transformação. Pela experiência chegamos à compreensão, ao aprendizado, à consciência. Nela fazemos descobertas. A experiência na luta põe fim à alienação e à perda de perspectivas. (...). É a partir daí, que em Rosa Luxemburgo, o MMC pode ser compreendido como uma nova formulação para um horizonte de outro tipo de perspectiva epistemológica para o campo, para as mulheres e para a sociedade. (GASPARETO, 2017, p.178-179)
Segundo Federici, por serem as mulheres as mais prejudicadas com a privatização das áreas comuns, porque de lá tiram parte do sustento da família, são as mais dispostas a defendê-las e dá exemplos de como isso aconteceu em vários lugares do mundo. Diz que:
Hoje, diante do novo processo de acumulação primitiva, as mulheres são a principal força social de impedimento de uma completa comercialização da natureza, enquanto promovem o uso não capitalista da terra e formas de agricultura de subsistência. As mulheres são as agricultoras de subsistência do mundo. (FEDERICI, 2019, p. 385)
Podemos acrescentar aos exemplos de lutas das mulheres pelo mundo citadas por Federici (2019), a invasão e destruição, na madrugada de 8 de março de 2006, no município de Barra do Ribeiro-RS, de um laboratório de produção de mudas de eucalipto pertencente à empresa Aracruz Celulose por mulheres agricultoras ligadas à Via Campesina, entre elas, militantes do MMC. Foi um protesto contra a grande quantidade de reflorestamentos que não só ocupam áreas agriculturáveis, como reduzem a biodiversidade e necessitam de muita água (PAULILO; Iraldo MATIAS, 2006).
Federici não naturaliza o interesse das mulheres pelos recursos naturais, esse interesse vem da luta cotidiana delas para alimentar a prole.
Muitas feministas marxistas atribuem as dificuldades de se pensar gênero e trabalho doméstico não pago nas obras de Marx e Engels, levando em conta o período em que escreveram. Para Federici essa explicação, com a qual concorda, não esclarece tudo porque muitos de seus seguidores também não ultrapassaram esses limites. Mesmo tendo uma postura fortemente anticapitalista, a autora faz uma crítica contundente a princípios que nortearam a expectativa de futuro desses autores. Primeiro, o avanço da tecnologia não permitiu o aparecimento de uma sociedade onde o trabalho humano poderia ser dispensado e onde a escassez tivesse desaparecido. Do mesmo modo, o aparecimento dos eletrodomésticos e a possibilidade de se comer fora de casa não liberaram as mulheres dos afazeres domésticos, principalmente quanto ao cuidado com os filhos, idosos e doentes, ainda mais agora que mesmo os países que implantaram o Wellfare State estão aderindo a políticas neoliberais, bem mais acentuadas nos países pobres. Embora hoje se produza muito mais alimentos que em épocas passadas, o capitalismo produz a escassez e a fome através das duras regras do mercado. Além disso, se o alimento ganhou em quantidade, perdeu em qualidade. A quantidade de agrotóxicos utilizados tem provocado doenças e incapacidades. Nesse sentido, o que o desenvolvimento tecnológico fez foi depredar cada vez mais as riquezas ambientais naturais e provocar guerras pelo controle de recursos naturais como o petróleo.
Em segundo lugar, o capitalismo não está sendo combatido pelo proletariado organizado, mas por movimentos de pequenos agricultores, indígenas, sem-terra e sem-teto, migrantes e trabalhadores industriais de países pobres, bem como movimentos anticoloniais, negros, antiapartheid e feministas. A luta das mulheres tem uma importância especial porque, contra tudo e contra todos, elas estão reproduzindo suas famílias com seu esforço próprio, sem levar em consideração os valores de mercado e, ainda assim, seu trabalho é considerado sem valor porque não é remunerado.
Em terceiro lugar, o proletariado não se transformou em uma classe unida que se opõe aos donos dos meios de produção em virtude da ação do próprio capitalismo que, ao desestruturar comunidades agrícolas tradicionais, desapropriar agricultores de subsistência, tomar posse de grandes extensões de terra, poluir as águas e deslocar grandes massas por provocar guerras e escassez, trouxe como consequência grande levas de migrantes que competem por trabalho ao se transformarem em uma mão de obra barata e desesperada. Onde o trabalho humano é necessário, chega-se a aberrações como está sendo a exploração dos trabalhadores no Japão, com suicídios e mortes precoces.
Apesar de desenhar com clareza e embasamento essa situação tão negativa, a autora não perde a esperança de que uma outra economia possa emergir com base em novas formas de economia solidária, trocas não monetárias, medicinas alternativas, ajuda mútua, comunidades agrícolas sustentáveis e outras formas de vida não regidas pelo mercado capitalista. Segundo Federici (2012), a globalização do capitalismo só não foi mais cruel devido ao esforço que milhões de mulheres vêm fazendo para manter suas famílias sem se importar com a desvalorização de seu trabalho frente ao mercado. Sua esperança, para ela, não é utópica. O enfrentamento do capitalismo, para Federici (2012), não será feito por uma classe constituída nos moldes clássicos, nem mesmo pelas ‘classes populares’ ou ‘classes trabalhadoras’, mas pelos ‘pobres’ e ‘excluídos’, não através de movimentos globais, mas de resistências locais onde a agricultura e as mulheres desempenham papéis centrais.
Acredito que essa visão do capitalismo de Federici tem pontos em comum com a luta empreendida pelo MMC, principalmente quanto aos aspectos feministas e ecológicos. Um diálogo entre as duas correntes certamente seria muito frutífero.
Concluindo
O feminismo camponês retoma muitos pontos do feminismo marxista dos anos 1970. De forma sucinta esses pontos são: necessidade das mulheres ocuparem espaços antes vedados a elas por serem considerados masculinos; retomada dos conceitos de ‘classe’ e de ‘luta de classes’ como fundamentais; a visão do capitalismo como um ‘sistema’ de dominação, onde várias discriminações (sexo, gênero, raça, etnia...) se articulam; a necessidade de enfrentamentos com os poderes dominantes, e a necessidade de superação do capitalismo por uma forma socialista de produção.
O feminismo marxista anterior, porém, não dava conta de outros elementos trazidos pelas agricultoras: a valorização do trabalho doméstico e de cuidados; o respeito à natureza; a inclusão dos homens em um mundo antes considerado feminino; a revitalização dos saberes tradicionais; e a resistência à mecanização e à produção em massa de alimentos, transformando-os em mercadorias. Esses elementos vão aparecendo muito ligados ao cotidiano das agricultoras.
Nossa principal preocupação nesse artigo foi mostrar que o feminismo socialista defendido pelas militantes do MMC encontra legitimidade e respaldo teóricos em obras de autores(as) reconhecidamente marxistas. O medo de que suas militantes possam, com suas ações, dividir uma luta emancipatória principal não se sustenta. As expressões taxando suas reivindicações de ‘lutinhas’ ou ‘coisas de mulher’ devem ficar no passado. O feminismo camponês, na verdade, amplia a luta entre poderosos e despossuídos, levando-a para campos antes menosprezados como a ecologia, o trabalho doméstico e a reprodução.
Já foi dito inúmeras vezes que não devemos falar em ‘feminismo’ mas em ‘feminismos’. Admitir a pluralidade na luta das mulheres é muito importante, mas abrir as possibilidades de diálogo entre as correntes também o é. Obviamente vão existir posições difíceis de se conciliar, mas a construção de eixos comuns poderia trazer fortalecimentos recíprocos no sentido de diminuir a já tão prolongada desigualdade entre os sexos. Nesse sentido, fizemos uma espécie de aproximação entre o feminismo camponês e o feminismo de Sílvia Federici.
O feminismo camponês que está se fortalecendo no Brasil cada vez mais, por se autodenominar ‘socialista’, ‘popular’ e ‘ecológico’, além de fundado em práticas cotidianas, tem muito a contribuir para as lutas atuais que buscam uma sociedade mais igualitária. O MMC publicou um livro intitulado Feminismo camponês e popular, em que traz importantes relatos das lutas das mulheres camponesas (MEZADRI et al, 2020). O espaço rural já foi tantas vezes identificado como um lugar de ‘atraso’ e de ‘tradições ferrenhas’, que não é descabido o temor de que esses preconceitos tão arraigados possam dificultar a aceitação, por parte de outras correntes, desse novo feminismo que nasce na horta. Pensamos que já está mais que na hora dessa corrente, o feminismo camponês, fazer parte dos debates e das coletâneas que estão surgindo sob o tema ‘feminismos’.