Estávamos na Avenida São João, e fomos subindo e parando o trânsito. A adrenalina cadenciava os nossos passos e dava um novo ritmo aos nossos corações. Improvisando para fazer coincidir os eventos com os deslocamentos e prever o fluxo. Tínhamos que segurar com discrição a multidão por um tempo antes de ela chegar aos pontos dos ônibus. O objetivo valia a intervenção. Estávamos ali para exigir que parassem de perseguir, torturar e matar pessoas que tinham cometido só o crime de amar de forma não convencional. Não tinham culpa de não fazer coincidir corpo, coração, sexo e a cor da pele com as regras morais, sociais e religiosas. Não tinham culpa de existir.
E foi assim que, no trajeto, uma mulher quase nua se debruçou sobre o peitoril da janela de um prédio e, em peignoir transparente, começou a dançar para nós. Rir com a gente que comovidas começamos a gritar: “-Vem, desce, vem com a gente, vem aqui pra dançar". Ela nos mandou um beijo, primeiro beijando as pontas dos dedos da mão direita, depois colocando-as sobre o coração, e o lançou sobre nossas cabeças. A emoção e o rumor invadiram a rua e fizeram todas as janelas da Rua Júlio de Mesquita se abrirem. Seguimos em frente com mais força e menos medo, e as janelas se povoaram de pessoas alegres e muito pobres.
(“Do lado do Mappin, mesmo com chuva”, Rose Mancini, Um Outro Olhar, 2012)
O relato acima é da ativista lésbica Rose Mancini e se refere ao dia 13 de junho de 1980, quando ocorreu, na cidade de São Paulo, a primeira passeata de gays, lésbicas, bissexuais e travestis, também com feministas e negros, contra o delegado Wilson Richetti, que promovia arrastões nos bares e nas boates lgbt paulistanas na época, com o objetivo de prender quem estivesse na cena em questão. Há, no relato da integrante do Grupo Lésbico Feminista, sensações e afetos que se encontram com a inspiração e com o propósito que alinhavaram os textos tecidos nesse dossiê, estes também costurados com os fios de nossas vidas e com diálogos entre as autoras e as pareceristas.
Trata-se de um grupo de mulheres lésbicas que, ao fazerem uso do que se pode chamar de insubordinação criativa (Josânia BARBOSA; Celi LOPES, 2020), ora mais, ora menos desnudadas, também como a moça no peitoril da janela, conforme a exposição de Rose Mancini, relembram que não têm culpa nenhuma de existir e, ao contrário, têm orgulho, reflexão, trabalho, texto e tesão suficientes para invadir, ocupar e resistir não apenas as ruas, mas também as variadas vias de acesso da Academia, usualmente interditadas para quem parece, por exemplo, “muito militante”, em uma colocação que pode, para olhos binários, colocá-las como “pouco acadêmicas”.
Em um primeiro olhar, como descreve Mancini ao se referir às mulheres presentes na manifestação, pode parecer que apenas estamos “improvisando para fazer coincidir os eventos com os deslocamentos e prever o fluxo”. Mas ocorre que, assim como no caso das manifestantes, temos propósitos e reside nos nossos itinerários a potência da nossa força transformadora. Promovemos o retraçado dos caminhos em nós e à nossa volta, com necessária passagem visível, que afirma que existimos, ao nos enunciarmos; que reafirma que seguimos, ao nos mobilizarmos; e que revaloriza, ao partilharmos como nos sentimos bem em sermos quem somos, estando inclusive em constante e dinâmica renovação, a partir das espacialidades dos afetos, contidos nas letras e lutas que traduzem a vida.
Esse lugar da visibilidade consiste, portanto, em afirmar, reafirmar e revalorizar todas as mulheres, naquilo que Adrienne Rich (2019, p. 69) chamou de Continuum Lésbico, e pode arquitetar o que denominamos como uma teoria das mulheres que não se localizam e não são localizadas,1 ou, pelo menos, não o são da maneira como se espera usual e tradicionalmente. Essa contra-cartografia - na melhor inspiração da canção em que se entoa “você não me pega, você nem chega a me ver” - não nega o território, as origens, as ancestralidades, as geolocalizações, as naturalidades, antes, as ressignifica como elementos politicamente contextualizados em trânsitos, andanças e caminhos de mulheres que, ao existirem em suas espacialidades, promovem justiças epistêmicas e acadêmicas.
Fundamos assim nossa concepção de Topografias Feministas, tanto inspiradas nas “geografias misteriosas” (Nadia NOGUEIRA, 2005, p. 167) dos nossos deslocamentos, refúgios e migrações, quanto fortalecidas pela “noção de um cosmopolitismo feminista horizontal e translocal” (Claudia de Lima COSTA; Sonia ALVAREZ, 2009, p. 739), que prevê uma política feminista da localização, a qual envolve “uma temporalidade de luta, e não uma posição fixa” (ALVAREZ, 2009, p. 744).
Nessa perspectiva, ao citar Claudia de Lima Costa et al. (2014), em seu livro Translocalities/Translocalidades: Feminist Politics of Translation in the Latin/a Américas, Sonia Alvarez elucida e cartografa o mote do presente dossiê:
Muitas feministas e outras teóricas críticas transitam, hodiernamente, por uma série de circuitos íntimos, familiares, libidinais, culturais, financeiros, políticos e trabalhistas, dentro de e atravessando diferentes locais das Américas Latinas e além. Nosso feminismo, como sugere Margara, é uma “prática multilocalizada”. Assim como as “teorias viajantes” e os transmigrantes de hoje, nossos próprios cruzamentos - teóricos, políticos, pessoais e íntimos - são pesadamente patrulhados e frequentemente obstruídos por diversos tipos de vigilantes (patriarcais, disciplinares, institucionais, capitalistas/neoliberais, geopolíticos, sexuais e por aí vai […]) (ALVAREZ, 2009, p. 744).
Nesse sentido, o presente dossiê é um lugar nesse mapa, onde a escrita se coloca como forma de espantar a tristeza, a saudade, a falta e as faltas, sobretudo no triste auge de uma pandemia a ser transposta em um país no qual a democracia é ameaçada, abafada, encolhida e amarrotada. Nessa conjuntura, a escrita também é o ato de alongar, distender, arejar e nos deixar ventilar por uma passagem, quem sabe um túnel, para um outro lugar, onde talvez estejamos sendo procuradas, onde talvez sejamos necessárias, uma espécie de ponte desta sociedade para outra, na qual possamos ser, nós, todas as mulheres, livres, leves e lidas.
Nesse circuito, encontramos a Revista Estudos Feministas, a quem agradecemos o aceite para publicação do presente dossiê, assim como agradecemos a possibilidade de encontro que muito nos traduz, entre Movimento Feminista e Academia. Tal relação, como se sabe, é constituída ricamente de tensões e de alianças, como nos contam Joana Maria Pedro e Marisa Barletto (2019, p. 12), ao perceberem as contribuições dos estudos de mulheres e feministas e dos movimentos sociais como pontes potentes para a própria academia e, especialmente, para a historiografia.2 Com efeito, a Revista Estudos Feministas expressa, celebra e promove as alianças e pontes tematizadas pelas autoras em variados campos de conhecimento.
Historicamente, os dossiês constituem uma seção da Revista de Estudos Feministas que se dedica à abertura de um espaço de diálogo entre a produção acadêmica e intelectual e a militância, o ativismo e as políticas feministas, como pontua Sônia Maluf (2004), em artigo intitulado “Os dossiês da REF: além das fronteiras entre academia e militância”. A autora assinala a maneira como, na polifonia presente nos dossiês, reside a riqueza e permanente renovação do campo dos estudos feministas e de gênero, com inquietações e questionamentos anti-hegemônicos, próprios ao movimento feminista e de suas lutas.
Ao considerar essa perspectiva, organizamos o Dossiê Feminismos e Lesbianidades em Movimento: a visibilidade como lugar, cujos textos acabam por seguir a vocação lembrada por Maluf (2004), ao afirmar que “se por um lado fornecem instrumentos para a militância e as políticas públicas, por outro, provocam e contaminam as teorias, não apenas renovando-as, mas gerando, nas brechas dessa fricção, novas teorias e novos conhecimentos” (p. 241).
Desta maneira, trata-se de um dossiê que se coloca como lócus de fricções entre Academia e Militância, no alinhavar dos movimentos feminista, negro e lgbtqi+, de modo a ir além das dicotomias entre ação e reflexão ou teoria e prática. Ao lado dessa perspectiva, o dossiê busca reafirmar pesquisas realizadas sob marcante influência dos Estudos Feministas e dos Estudos Lésbicos Feministas, assim como dos Feminismos Negro e Decolonial. Busca-se, assim, com a escrita, ressaltar a amplitude e a excelência desses estudos, que expressam e potencializam pesquisa, docência, extensão, militância, ativismo e variadas ações, disposições e propósitos no intercruzamento dos campos da Educação, da Arte e da Comunicação.
Nesse sentido, são apresentados artigos que podem contribuir para o debate epistemológico e político nos variados campos, searas e espacialidades de suas autoras, mulheres representativas no que se refere tanto à interseccionalidade quanto à transversalidade de suas vivências, subjetividades e identidades de raça, gênero, classe, geração e orientação sexual. A partir das ricas diversidades, as visibilidades das autoras, em suas múltiplas localidades, é o que as coloca, de diferentes maneiras, unidas no mesmo lugar, em tessitura constante das lesbianidades nos movimentos sociais, assim como na construção dos movimentos sociais nas lesbianidades e, ainda, no fazer dos saberes acadêmicos e militantes, na interface das trilhas por onde elas pisam e edificam seus caminhos, a si mesmas e a outras mulheres, em interação.
A partir dessa maneira de mirar as realidades, e assim construir conhecimento, o presente dossiê já dá o tom, em ritmo e poesia, desde o primeiro texto, de autoria das professoras Viviane Melo de Mendonça e Kelen Leite. No artigo, as pesquisadoras da UFSCar-So discutem a relação entre mal-estar contemporâneo e resistência nos campos da experiência de gênero, sexualidade e lutas sociais, ao partirem da análise dos eixos políticos e simbólicos presentes nas práticas discursivas das letras produzidas pela rapper lésbica, negra, brasileira, Luana Hansen.
Daniela Auad,3 também docente da UFSCar-So e da Faculdade de Educação da UFJF, ao entrelaçar feminismos e lesbianidades, desenha um mapa afetivo, formativo, militante e intelectual, o qual permite localizar itinerários de mulheres lésbicas no campo da pesquisa educacional, bem como rememorar e refletir sobre práticas habitualmente consideradas dissidentes, transversais e, portanto, “outsiders” ou abjetas.
Nadia Nogueira, doutora pela Unicamp e docente de Sociologia e Filosofia do Sesi de São Paulo, aborda a militância de lésbicas negras brasileiras, que tiveram suas histórias de vida marcadas pela raiva e pela indignação diante dos poderes estabelecidos, de modo a alicerçar, na luta, as múltiplas segregações às quais estiveram historicamente submetidas.
No intento de ofertar fontes de reflexão para ações políticas e acadêmicas para quem quer se ancorar nos estudos de gênero e saberes feministas, propostos sobretudo pelo feminismo negro, como também pelos estudos lésbicos feministas, ao lado do texto de Nadia, surge o texto das professoras Ana Luisa Cordeiro, da UFMT, e Daniela Auad, que a supervisionou em estágio pós-doutoral. Trata-se de pesquisa que aborda estratégias de resistência de mulheres negras cotistas, lésbicas e bissexuais, em uma Universidade Estadual no Centro-Oeste do Brasil.
O texto de Cordeiro e Auad se coloca ainda sob a perspectiva do “não-lugar social” e analisa fatores interferentes na permanência das mulheres na universidade, ao considerar a interface entre educação, gênero e relações raciais, feminismo negro e lésbico.
O texto das professoras Zuleide Paiva, da UNEB, e Janja Araujo, da UFBA, se coloca como encerramento do dossiê Feminismos e Lesbianidades em Movimento: a visibilidade como lugar. Trata-se de um convite à ginga epistemológica contra-hegemônica, a partir do pensamento lésbico, ao apresentar fios teóricos das correntes políticas do pensamento lésbico produzidos no ocidente, sobretudo no século XX. Com a pesquisa, as autoras reconhecem o movimento de lésbicas como corpo político constituído por pessoas e organizações produtoras de identidades lésbicas, bem como outras identidades sexuais contra-hegemônicas.
A partir da escrita dos textos, como organizadoras, tecemos um diálogo com as autoras e um pequeno grupo de pareceristas anônimas, todas docentes em Universidades Federais, lésbicas, feministas e pesquisadoras, de variadas gerações e localidades do Brasil. Agradecemos às autoras, às pareceristas e às editoras que, de diferentes modos, são mulheres que também amam outras mulheres.
Mais do que sempre, na atual conjuntura brasileira, não sabemos o que virá a seguir, após essas escritas feministas. De todo modo, sentimos que nossa escrita, nossa memória e nossas vozes são importantes e urgentes, sobretudo em momento no qual observamos outras narrativas, memórias e discursos sendo resgatados, sob formas contemporâneas fascistas e necropolíticas. Nesse contexto, seguimos perseguindo a criação de uma sociedade onde as lésbicas possam viver, sobreviver e vicejar, porque, então, nessa realidade, todas as mulheres serão livres