Introdução
A produção do espaço urbano é, frequentemente, reduzida às iniciativas que atuam de maneira direta sobre a materialidade das cidades. É baseando-se nesse pressuposto que Paola Jacques (2014, p. 298) argumenta que a história de nossas cidades se concentrou, basicamente, em uma “história das pedras”. Tal configuração, então, torna difícil o resgate do cotidiano de diferentes indivíduos que a experimentavam, assim como a significavam, de um modo particular. Se já é custosa a procura por manifestações, sobretudo imateriais, de diferentes indivíduos no cotidiano de nossas cidades, é ainda mais difícil a procura quanto à particularização de uma produção feminina do espaço, resultante da interação entre as mulheres e o ambiente urbano (Dolores HAYDEN, 1995; Doreen MASSEY, 1994). Isso acontece porque, para estudos relativos à história urbana, assegurava-se a existência de um indivíduo universal, comumente referenciado no masculino, capaz de corporificar em um sujeito neutro e único toda essa diversidade (Elizabeth GROSZ, 1992). Ou ainda, como argumenta Antônio Risério (2015, p. 267), as mulheres “não definiam alicerces, não estabeleciam paredes, nem desenhavam fachadas”. Por esses motivos, sua representatividade resta adulterada e parcial quando da conformação da memória urbana, bem como sua perenização no imaginário social.
Essa parcialidade do testemunho remanescente resulta também de uma tentativa de se homogeneizar as experiências no ambiente urbano, consequência de uma estratégia midiática de apaziguamento e pasteurização do capital simbólico de nossas cidades (JACQUES, 2014). Por sua vez, essa prioridade narrativa resulta, conforme Hayden (1995, p. 8), em políticas de definição de tombamento e preservação do patrimônio histórico, as quais, por muito tempo, ignoraram e negligenciaram a presença das minorias no ambiente urbano. Nesse sentido, a autora inicia sua discussão questionando “por que tão poucos momentos da história das mulheres são relembrados como parte constitutiva do patrimônio e da memória?”.
Então, como reação à presunção de um “ambiente produzido pelos homens”, conforme Matrix (1984), surge o exercício de “inclusão” do feminino enquanto categoria de análise (Margareth RAGO, 1998), iniciativa capaz de alargar “as noções tradicionais do que é historicamente importante” (Joan SCOTT, 2017, p. 4). No entanto, tal exercício, reivindicado também em outros campos do conhecimento, estaria sujeito a particularidades analíticas, posto que a cidade é comumente tratada como espaço da masculinidade, enquanto a casa é vista como o espaço relativo ao feminino (Zaida MARTÍNEZ, 2018). Portanto, tal imaginário pressupõe, ao menos discursivamente, a existência de um “retraimento feminino em relação ao mundo exterior” (Richard SENNETT, 2014, p. 431), impondo uma dificuldade ainda maior à procura por fontes que as relacionem ao ambiente urbano.
No entanto, a prerrogativa da constrição feminina nas cidades ao longo da história não alcança profundidade dentro da categoria “mulheres”, visto que “a experiência feminina varia de acordo com a raça, a classe, a personalidade e a orientação sexual” (MATRIX, 1984, p. 12). Com isso, sugerimos que tal prerrogativa seria pertinente apenas às mulheres brancas pertencentes à elite, posto que mulheres empobrecidas sempre se lançaram à urbanidade, em função de sua necessidade de sobrevivência (Heleieth SAFFIOTI, 2013), “seja para buscarem água das fontes, ir às lavanderias ou aos mercados” (Michelle PERROT, 1998, p. 47).
Para as cidades brasileiras, ao longo da história, poucos são os vestígios remanescentes acerca dessas mulheres (Rachel SOIHET, 2017), dentre as quais restam ainda mais invisibilizadas aquelas subjugadas à escravidão. Para elas, fica evidente o desinteresse por suas rotinas, visto que muitos relatos, quando muito, faziam referência a “imagens de vultos escuros envoltos em panos negros e quase nada mais acrescentam às suas condições de vida” (Antônio MORGA, 1996, p. 22), ou estavam carregados de parcialidade e hostilidade (Maria Odila DIAS, 1983). Ainda sobre isso, Sonia Giacomini (1988, p. 20) comenta o desafio de se falar sobre a mulher negra, posto que “as fontes disponíveis são extremamente pobres”, em face de sua “dispersão e pouca consistência”, devido à parcialidade com que esses documentos primários eram redigidos. Se considerarmos que essas mulheres eram as mais presentes nas ruas de nossas cidades, tal ausência de alusões, presentes em documentos históricos do Século XIX, mostra-se contraditória.
Apesar disso, esforços de resgate e reação a essa invisibilidade têm revelado, apesar da carência das fontes, o quão representativas eram as influências dessas mulheres no cotidiano urbano, a exemplo dos trabalhos de Dias (1995), em são Paulo, assim como Sandra Graham (1992) e Juliana Farias (2012), no Rio de Janeiro.
Nosso objetivo no presente artigo, então, é discutir as contribuições de mulheres negras escravizadas quanto às dinâmicas urbanas em Desterro/Florianópolis, materializando-as no espaço urbano à época - tendo como base o conteúdo representacional a elas relativo presente na imprensa local, posto que os jornais funcionavam como uma ferramenta à instituição de normativas comportamentais. Em específico, trabalharemos os anúncios comerciais envolvendo mulheres escravizadas, posto que, além de intermediar trocas mercantes, esses anúncios repercutiam os destinos e cotidianos das mulheres envolvidas. Isso porque, segundo Graham (1992), tal comercialização podia representar uma forma de punição, pelo potencial de desfazer os laços construídos por essas mulheres, exigindo-lhes a renegociação de suas territorialidades.
Para o contexto a que se propõe o presente artigo, constatamos que se impõem ainda outras dificuldades, baseando-nos em Karla Rascke (2014), posto que em Desterro/Florianópolis, segundo a autora, vigoraria o silenciamento desses povos e o consequente menosprezo à sua contribuição para a construção da sociedade local. Tal condicionante fica claro na passagem de Virgílio Várzea (1984, p. 22): “é raro encontrar o traço fisiológico do negro [...] de sorte que o povo catarinense é essencialmente ariano [...] cujas populações hão de ser [...] um novo tipo brasileiro interessante, superior e perfeito”. Então, ao investigar a aproximação entre essas mulheres e a cidade pretendemos, além de revelar suas possíveis territorialidades, aproximarmo-nos também de suas subjetividades, visto que “corpo e cidade se configuram mutuamente, pois os corpos ficam inscritos na cidade ao mesmo tempo que a cidade fica inscrita nos corpos” (JACQUES, 2014, p. 114).
Procedimentos de Pesquisa
A estratégia, articulada de modo a acessar passagens que revelassem o vínculo dessas mulheres a territorialidades específicas, foi a consulta ao acervo da Hemeroteca Digital Catarinense (HDC),1 o qual contempla publicações periódicas, aquelas remanescentes,2 de jornais que circularam em Desterro/Florianópolis, a partir do início do século XIX. Uma primeira avaliação das narrativas presentes nesses jornais objetivou a exclusão daqueles com pouco potencial à temática. Como resultado dessa seleção, foram consultados 20959 jornais, distribuídos de forma relativamente homogênea frente à temporalidade proposta ao estudo. A consulta a esses periódicos ocorreu tanto por meio da busca por palavras-chave3 quanto pela leitura dos jornais, sendo que essa correspondia a uma avaliação preliminar da estrutura de cada exemplar e a posterior leitura de seções4 de maior potencial. Para o desenvolvimento do mapa sobre o qual trabalharemos a distribuição dos dados coletados, o qual chamaremos de Mapa-Base, compilamos tanto a evolução do (i) arruamento quanto das (ii) edificações,5 tendo como base mapas históricos remanescentes, construídos por Eliane Veiga (2010).
As passagens coletadas nos jornais vinham acompanhadas, em sua maioria, do nome da rua e do número da residência. No entanto, quando da transposição dessas localidades para o Mapa-Base, foi possível apenas a identificação das vias às quais se referiam as informações, restando inacessível o número da edificação, posto que a numeração contemporânea diverge daquela utilizada no período de estudo. Por esse motivo, em função da imprecisão da localização exata dos endereços citados, os símbolos relativos às passagens recolhidas dos jornais foram distribuídos de forma homogênea ao longo da extensão das vias, o que possibilita a comparação entre diferentes ruas, e não necessariamente as concentrações ao longo destas.
Caracterização de Desterro/Florianópolis
Antes de problematizarmos tais anúncios frente ao território de Desterro/Florianópolis, convém uma apresentação das principais condicionantes da evolução do seu traçado urbano. A região da Ilha de Florianópolis escolhida para o primeiro assentamento, que ocorreu na metade do Século XVII, foi sua porção voltada para o continente. O território, conforme Figura 1, estava acomodado pelo Morro da Cruz (“a”), em sua porção leste, e pelas Baías Norte e Sul (“b” e “c”), sendo em frente a esta última onde estavam a praça principal, a Praça XV de Novembro (“d”), e suas primeiras construções (Lisabete CORADINI, 1995). A área urbanizada se restringiu a esse primeiro adensamento até a metade do Século XIX, momento a partir do qual passou a se expandir, de forma lenta, em direção à Baía Norte (Oswaldo CABRAL, 1979). Apesar disso, as porções norte e sul do território, indicadas na Figura 1, preservaram conformações espaciais distintas, pois, na primeira, predominaram as casas de descanso e lazer das elites, e, na segunda, moradias e comércios (VEIGA, 2010).
À esquerda, sentido da expansão urbana de Desterro/Florianópolis.
Ao centro, porção norte do território, área de baixa densidade das edificações.
À direita, porção sul do território, território inicial da ocupação e área de alta densidade das edificações
Fonte: Elaborada pelos autores (2020).
#PraTodoMundoVer Nessa figura, estão organizadas três diferentes imagens. A primeira delas mostra o sentido da expansão urbana de Desterro/Florianópolis, que se deu em direção ao norte. Essa mesma expansão caracterizou as diferentes morfologias observadas na localidade, demarcadas na segunda e terceira figuras, sendo a porção norte de baixa densidade e a porção sul do território de alta densidade.
Territorialidades de mulheres negras escravizadas
A busca por espacialidades relativas a mulheres negras escravizadas nos jornais demonstrou que as expectativas em relação ao comportamento feminino no espaço público - apesar de todas estarem sujeitas a constantes vigias - variava segundo raça e classe. Segundo Soihet (2017, p. 365), as mulheres ricas eram estimuladas a frequentar o espaço público, mas deveriam estar acompanhadas e satisfazendo as normas burguesas de comportamento. Tal prescrição era inconsistente com as rotinas de mulheres empobrecidas, posto que “toda a sua maneira de sobreviver implicava a liberdade de circulação pela cidade”. Nesse sentido, sobre as mulheres negras incidiam um maior constrangimento e coerção, podendo ser constantemente incomodadas pela polícia. Isso ficou claro na medida em que, apesar das diferentes temáticas e narrativas que faziam referência a essas mulheres na imprensa local, notamos a repetição de um padrão que objetivava sua desqualificação, num esforço discursivo que as associava a aspectos negativos inerentes à dinâmica urbana. Então, na tentativa de normatizar seus comportamentos, relatos encontrados nos jornais reivindicavam “a atenção de quem competir para uma preta que conduz tigres ferozes6 pelas ruas mais frequentadas desta capital, obrigando os transeuntes a correrem tapando o nariz”.7 Ou, ainda, as condenavam, mesmo indiretamente, como na acusação de um indivíduo que “é tão sem vergonha que em pleno dia, e mesmo na praça, se põe a fallar com a crioula”.8 Tais perseguições frente ao espaço urbano culminavam constantemente na prisão dessas mulheres, como em “foi recolhida a cadeia [...] a parda Silvana Maria de Mello, por embriaguez”.9
Anúncios
Apesar das temáticas citadas anteriormente, identificamos que a principal oportunidade por meio da qual mulheres escravizadas marcaram presença nos jornais, se procuradas suas dinâmicas espaciais, reside nos anúncios de compra, venda, aluguel e, mesmo, doação dessas mulheres, veiculados na imprensa. Adotando um discurso que, de maneira explícita, as reduzia enquanto mercadoria, tais anúncios descreviam tanto suas qualidades físicas - como em “uma escrava crioula mui robusta e sadia”10 - quanto comportamentais - como em “he de bôa índole, humilde e sem achaque algum”.11 Portanto, esse enaltecimento das mulheres escravizadas era articulado apenas com o intuito de valorizá-las enquanto propriedade, e em muito contrastava com as demais narrativas articuladas nos jornais que buscavam diminuir sua integridade, assim como restringir suas liberdades e tolher suas identidades. Ainda, observamos que tais passagens associavam essas mulheres a localidades específicas, posto que, em sua maioria, traziam o endereço no qual possivelmente se realizaria a transação - como em “aluga-se uma escrava à Rua do Vigario, 19”12 - o que representou uma potencialidade quanto à associação dessas mulheres à cidade.
Quantitativo e distribuição de frequências
A Tabela 1 demonstra o quantitativo dos anúncios encontrados, bem como a distribuição desses em frequências, seguindo o recorte temporal do estudo. As datas de início e término correspondem, respectivamente, às datas do primeiro e do último anúncio encontrado, definindo o período de 1849 a 1886. Como é possível perceber, houve uma redução dos anúncios com o passar do tempo, devido, possivelmente, à diminuição proporcional da categoria como força de trabalho - coerente com a desagregação da ordem escravocrata percebida por Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (1960, p. 88) - ou um possível constrangimento das pessoas em vincular seus nomes à escravidão, devido às campanhas abolicionistas existentes à época.
1849-1858 | 1858-1867 | 1867-1876 | 1876-1886 | TOTAL | |
ANÚNCIOS | 101 | 97 | 133 | 25 | 356 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2020).
#PraTodoMundoVer A Tabela apresenta as quantidades de anúncios para cada temporalidade de estudo, sendo 101 anúncios para os anos de 1849 a 1858; 97 anúncios para os anos de 1858 a 1867; 133 anúncios para os anos de 1867 a 1876 e 25 anúncios para os anos de 1876 a 1886, totalizando 356 anúncios de compra, venda e aluguel de mulheres escravizadas.
Territorialização dos anúncios
A Figura 2 apresenta a espacialização desses anúncios no ambiente urbano de Desterro/Florianópolis. De uma maneira geral, é possível afirmar que a maior incidência de anúncios de compra, venda e aluguel de mulheres negras escravizadas se concentrou na área de urbanização inicial da cidade, com exceção da Rua Esteves Junior, indicada em “1”. Apesar do expressivo decréscimo de ocorrências no último período considerado, podemos afirmar que, em relação à porção central, correspondente à área mais adensada, a distribuição ocorre seguindo uma relativa homogeneidade. Por esse motivo, optamos por discutir as territorialidades dessas mulheres baseando-nos em um mapa único, bem como baseando-nos na distinção entre áreas de “baixa densidade” e áreas de “alta densidade” (apresentadas na Figura 1), assim como na diferenciação entre “espaço público” e “espaço privado”.
Acima, distribuição espacial dos anúncios por temporalidade de estudo
Abaixo, sobreposição das diferentes temporalidades de anúncios
Fonte: Elaborada pelos autores (2020)
#PraTodoMundoVer A imagem apresenta o mapa da região central de Desterro/Florianópolis, sobre o qual foram distribuídos uma série de pontos que representam cada um dos anúncios coletados, classificados também segundo o intervalo temporal ao qual pertencem
Áreas de Alta Densidade
Dentre as ruas com resultados mais expressivos, destacamos a Rua Conselheiro Mafra, indicada em “2”, para a localidade da Figueira, e a Rua João Pinto, indicada em “3”, para a localidade da Pedreira, ambas paralelas ao alinhamento do mar. Essa representatividade se dá, também, ao compararmos a performance dessas duas ruas frente à evolução das temporalidades, de 1849 a 1876. Isso porque, mesmo com o decréscimo das ocorrências, podemos perceber que ambas as ruas mantêm sua preponderância frente às demais. Segundo Glaucia Müller (2002), as duas ruas possuíam um caráter majoritariamente comercial e de serviços, característica que pode ter contribuído para essas concentrações, tanto por uma maior dinamicidade das transações quanto por uma maior dependência em relação aos serviços prestados por essas mulheres. Além disso, é possível que essas localidades fossem apenas pontos de intermediação, uma vez que as famílias residentes em áreas mais afastadas, por possuírem seus negócios na área central, talvez preferissem nelas realizar tais negociações, o que sugere que parte dessas mulheres não tinha, necessariamente, seu cotidiano associado às áreas centrais da cidade.
Outras ruas saltaram à análise quanto à representatividade das ocorrências sem, no entanto, compartilharem as mesmas características daquelas citadas anteriormente. São elas as ruas Fernando Machado, indicada em “4”, do Menino Deus, indicada em “5”, e dos Ilhéus, indicada em “6”, que, além de estarem mais distantes do centro eram, segundo Veiga (2010), de caráter residencial, bem como abrigavam uma parte menos privilegiada da população.
Áreas de Baixa Densidade
Sabemos que nas ruas situadas em áreas menos adensadas estavam localizadas, em sua maioria, as grandes e confortáveis residências da elite local. Nesse sentido, pressupomos que tais áreas poderiam ter uma maior dependência quanto aos serviços executados por mulheres negras escravizadas e, consequentemente, demonstrariam uma maior concentração de anúncios. No entanto, essas áreas obtiveram um resultado tímido em relação a essas buscas, salvo a Rua Esteves Junior, que revelou uma quantidade significativa de ocorrências, podendo ser comparada, em representatividade, aos números obtidos em ruas localizadas na porção central da cidade. Tal circunstância reforça a argumentação, construída anteriormente, de que, apesar de essas mulheres atuarem em áreas menos adensadas, suas transações ocorriam nas porções mais centrais da cidade.
Divisão pública e privada do espaço urbano
A próxima categoria de análise das implicações urbanas dos serviços prestados pelas mulheres negras escravizadas é a da divisão do espaço em público e privado, suporte analítico que diferencia exterior e interior em arquitetura e urbanismo, tanto teórica quanto empiricamente (MARTÍNEZ, 2018; MASSEY, 2008). Essa diferenciação muito contribuiu para a reiteração desses papéis femininos normativos - ou expectativas comportamentais (Roberto DAMATTA, 1987) - perante a sociedade, limitando a experiência feminina e dando oportunidades distintas entre homens e mulheres na experimentação de nossas cidades (Nadja MONNET, 2013). Isso porque, de uma maneira geral, às mulheres comumente se associa o espaço privado, enquanto aos homens se associa o espaço público, pressupondo que as mulheres deveriam ocupar os espaços invisibilizados da vida privada, de modo a dar suporte ao discurso do homem público (MARTÍNEZ, 2018, p. 25).
No entanto, tal argumentação se baseia em uma experimentação feminina branca e de elite, posto que a experimentação urbana de mulheres negras se sugeria bastante diversa de tal afirmação. Exemplificamos o argumento com uma passagem retirada dos próprios jornais de Desterro/Florianópolis, segundo a qual “entrega-se uma crioulinha de 6 anos para servir em casa e levar meninas à escola”.13 A necessidade de desenvoltura frente ao espaço imposta à criança revela a ausência de um retraimento dessas mulheres em relação à cidade, se comparadas às meninas brancas da elite.
Ainda, foi necessário relativizar que a diferenciação entre público e privado nem sempre possuiu a mesma conformação com a qual a depreendemos hoje, posto que se caracterizou por uma alternância entre fases de alargamento e retraimento entre uma e outra (SENNETT, 2014). Para o presente artigo, então, presumimos que os ofícios executados por essas mulheres tenham representado um dos possíveis artifícios capazes de contribuir com as respectivas significações quanto a essa divisão em Desterro/Florianópolis, como discutiremos adiante.
A partir desse momento, avaliaremos as territorialidades femininas tendo como pressuposto a ideia de que as mulheres negras escravizadas possuíam comportamentos distintos para o espaço público e privado em Desterro/Florianópolis. A viabilidade dessa abordagem foi possível, pois os anúncios coletados vinham acompanhados da especificação do trabalho a ser executado pelas mulheres. Posto que a atuação delas ia desde o quarto da senhora até a comercialização de produtos nas ruas (Daniela SBRAVATI, 2008), esses ofícios estavam divididos entre aqueles ligados à intimidade e aqueles que se lançavam em direção à cidade, correspondendo, respectivamente, à divisão privada e pública do espaço urbano.
Tal divisão repercutia sobremaneira nas expectativas comportamentais relativas aos ofícios específicos a cada uma das esferas, uma vez que, sobre eles, incidiam diferentes hierarquizações quanto ao seu controle. Como exemplo, as mulheres que assumiam tarefas ligadas à intimidade - amas de leite e mucamas - eram vigiadas com mais rigor, devido à sua maior incursão na privacidade da família. Ao contrário, aquelas que executavam serviços no espaço público experimentavam uma maior liberdade, posto que a vigia sobre elas se enfraquecia perante o cotidiano da cidade, apesar da tentativa coletiva de disciplinar seus hábitos (MÜLLER, 2002). Apesar da proposta de distinção entre “escravas de casa” e “escravas de rua”, chamamos a atenção para o fato de que, muito possivelmente, essas escravas não pertenciam de maneira rígida a cada uma dessas categorias. Conforme Joana Maria Pedro (1992), a necessidade de sustento exigia dessas mulheres a execução de diferentes classes de ofícios, como sugerido em “é própria para qualquer serviço, principalmente o da roça”.14
Os serviços ditos “de portas a dentro”15 incutiam nos proprietários e proprietárias de escravos o receio em relação à exposição excessiva da intimidade das famílias, como sugere um anúncio que busca alugar uma mulher escravizada “sob a condição porém de não sair à rua”,16 sugerindo que a ela fosse imposta a permanência no ambiente doméstico. Nesse sentido, tanto para mucamas quanto para amas de leite se exigiam bons atributos tanto comportamentais, como em “preta morigerada na Rua do Senado”,17 quanto físicos, como em “uma pardinha de doze anos de idade, própria para mucama de qualquer família, por ser bonita figura”.18
Apesar de a casa corresponder ao lugar seguro e a rua ao local inseguro, a vivência desta última por parte dessas mulheres proporcionava um ambiente mais igualitário de troca e interação social, diferente daquela hierarquizada no ambiente doméstico. Durante os percursos, era possível interagir com outras mulheres nas janelas das casas e nas esquinas, mapeando os espaços segundo as experiências dessas mulheres. Porém, esta apropriação poderia assumir uma ambiguidade frente ao espaço, posto que essas mulheres também estavam sujeitas a violência e julgamentos, tal como na sugestão de que “se uma escrava ia à rua presumia-se que não era virgem” (GRAHAM, 1992, p. 54). No entanto, ainda assim é possível afirmar que essas mulheres possuíam “um repertório mais rico de relações sociais do que as senhoras dos sobrados” (RISÉRIO, 2015, p. 220) porque, ao exercerem seu ofício, essas mulheres se apropriavam do espaço público para buscar sobrevivência (CORADINI, 1995). Nesse sentido, Karla Rascke (2013) discute a existência de territórios negros em Desterro/Florianópolis, e como muitos deles se materializavam em ruas e praças, inclusive nas escadarias da catedral.
Os anúncios podiam até mesmo ser explícitos quanto às performances dessas mulheres em relação ao espaço, como em “boa cozinheira, sabendo lavar e engomar, não servindo porém para sair à rua”.19 A análise da passagem sugere mais do que a falta de habilidade da mulher frente ao espaço público, mas, e talvez principalmente, que esta fosse “demasiadamente desenvolta” em relação à socialização experimentada nas ruas da cidade, o que dificultaria o seu controle, chegando ao ponto de desvalorizá-la enquanto mercadoria, como também sugerido em “aluga-se uma escrava para todo serviço, menos o de quitanda”.20
A verificação da representatividade de cada um desses ofícios junto aos anúncios resultou na classificação destes em quatro categorias, balizadas segundo suas relações com o espaço público e privado. A primeira e a segunda dessas categorias representam diretamente o (i) Serviço Interno - quando o serviço se dava exclusivamente no espaço privado - e o (ii) Serviço Externo - quando o serviço se dava exclusivamente no espaço público. A terceira categoria pressupõe a conjunção entre ambos os ofícios, compilados em (iii) Serviço Interno e Externo, quando os serviços ocorriam tanto no espaço público quanto no espaço privado, como em “precisa-se de uma criada para servir no interior de casa e na rua”.21 A quarta categoria (iv), Não Especificado, agrupa aqueles anúncios que não identificavam o serviço prestado, como em “vende-se uma escrava humilde no Largo do Palácio”.22 A Tabela 2 apresenta a representatividade de cada uma dessas categorias, apontando que a maior parte dos anúncios fazia referência a escravas que podiam fazer tanto o serviço externo quanto o serviço interno de uma casa. Identificamos poucas ocorrências exclusivas ao ofício de “escrava de rua”, sobretudo se comparado também à representatividade das “escravas de casa”. Outra parte significativa faz referência aos anúncios que não deixavam claro o ofício prestado.
SERVIÇO EXTERNO E INTERNO | 213 | (59,8%) |
SERVIÇO EXTERNO | 3 | (0,8%) |
SERVIÇO INTERNO | 60 | (16,9%) |
NÃO ESPECIFICADO | 80 | (22,4%) |
TOTAL | 356 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2020).
#PraTodoMundoVer A Tabela apresenta as quantidades de anúncios classificados quanto ao tipo de serviço prestado pelas mulheres conforme descrito nos anúncios, sendo 213 para serviço externo e interno; 3 para serviço externo; 60 para serviço interno, e 80 desses anúncios não vinham acompanhados da especificação do trabalho a ser realizado.
Sobre a categoria NÃO ESPECIFICADO, por insinuarem uma despreocupação quanto à especificação de suas implicações espaciais, sugerimos que essas mulheres transitariam em ambos os espaços e, com isso, potencializariam a representatividade da categoria SERVIÇO EXTERNO E INTERNO. Desse modo, sugerimos que a maior parte dos anúncios indica que essas escravas cumpriam ambas as funções, demonstrando que transitavam entre os espaços público e privado. Tendo como base, então, essa classificação dos anúncios, partimos para a distribuição desses frente à malha urbana da cidade, conforme apresentado na Figura 3.
Fonte: Elaborada pelos autores (2020)
#PraTodoMundoVer A imagem apresenta o mapa da região central de Desterro/Florianópolis, sobre o qual foi distribuída uma série de pontos que representam cada um dos anúncios coletados, classificados também segundo os tipos de ofício executados por essas mulheres, por meio de cores específicas para cada um
Sobre o mapa, chamamos atenção para o fato de que as Ruas Esteves Junior e Conselheiro Mafra, assim como a porção oeste da Praça XV de Novembro, apresentam uma concentração ligeiramente maior de escravas que realizavam serviços essencialmente domésticos. Como possíveis justificativas a essa concentração, sugerimos o fato de que, para a Rua Conselheiro Mafra, uma maior complexidade de atividades - entre comércios e residências, assim como concentração de capital - proporcionava uma especialização dos ofícios, exigindo o aperfeiçoamento dessas mulheres enquanto força de trabalho. Já para a Rua Esteves Junior, o caráter de abrigar as edificações das residências da elite local exigia uma maior sofisticação dos serviços prestados pelas mulheres escravizadas. Nesse sentido, é possível que tais locais tivessem como característica, em paralelo a outras significações espaciais femininas, o fato de que essas mulheres tinham seus cotidianos vinculados de maneira mais enfática ao espaço privado, visto que o acesso dessas ao espaço público era desestimulado, sugerindo, por conseguinte, a significação de uma maior diferenciação entre espaço público e privado.
Apesar disso, atentamos para o fato de que, dentre as mulheres que exerciam seus ofícios contidas no espaço privado, a referência às amas de leite superou a de mucamas.23 Nesse sentido, sugerimos que tal ofício não necessariamente garantia a preservação da intimidade, contrapondo o sugerido anteriormente, uma vez que o ofício de ama de leite poderia ser requisitado durante o período da primeira infância, podendo implicar uma rotatividade dessas mulheres, ou apenas sua presença durante curtos períodos. Tal efervescência poderia contribuir para a diluição da privacidade da família, tanto pela brevidade dos vínculos quanto pelo fato de que essas mulheres acabavam por acessar a intimidade de diferentes famílias, ou ainda pelos ressentimentos e tensões que envolviam as partes (Bárbara MARTINS, 2012; Lorena TELLES, 2018).
Considerando as poucas ocorrências relativas às “escravas de rua”, e sua consequente carência de informações frente ao mapa, notamos que mesmo esses poucos anúncios estavam associados às áreas centrais da cidade e, consequentemente, estavam dissociados das famílias de maior poder aquisitivo. É possível que a justificativa para isso seja que o ofício de quituteiras, o mais representativo dentre as “escravas de rua”, fosse requisitado por proprietários e proprietárias de escravos menos enriquecidos, os quais tinham no trabalho executado por essas mulheres, muitas vezes, sua única fonte de renda, somo sugere Farias (2012).
Apesar das poucas ocorrências desse tipo de anúncio, entretanto, salientamos a representatividade dessas mulheres à produção do espaço urbano, posto que, conforme Sbravati (2008), eram elas as mais presentes nas ruas de Desterro, além de habilidosas em contornar as constantes perseguições das autoridades à informalidade que envolvia seu ofício. Sobre o alcance de suas territorialidades frente à cidade, há uma aparente concentração nas áreas mais adensadas, percorrendo tais ruas devido à maior concentração de pessoas. No entanto, percebemos também a possibilidade de essas mulheres se fixarem em locais específicos, dentre eles o Mercado Público de Desterro, situado ao sul da Praça XV de Novembro e apresentado na Figura 4.
À esquerda, Mercado Público junto à Praça XV de Novembro. Fonte: Carlos Corrêa (2005)
Ao centro, movimentação junto à praia contígua ao Mercado Público. Fonte: Corrêa (2005)
À direita, localização na malha urbana de Florianópolis
Fonte: Adaptada pelos autores (2020)
#PraTodoMundoVer A imagem à esquerda se refere a uma fotografia da Praça XV de Novembro, tirada a partir da Igreja Matriz, esta última localizada na parte mais alta da praça. A fotografia sinaliza também o antigo prédio do Mercado Público, situado na porção inferior da praça, contíguo ao mar. A imagem ao centro mostra os arredores desse mesmo Mercado Público, espaço no qual inúmeras pessoas, em sua maioria homens, pois apenas uma mulher é identificada na cena, oferecem seus produtos aos compradores. À direita, localização do Mercado Público frente ao mapa da área central de Florianópolis
Apesar das constantes referências à apropriação feminina desse espaço - como em “comprou de uma quituteira no mercado mandioca em vez de aipim”24 -, as imagens remanescentes, que ilustram a dinâmica ao redor do Mercado Público, sugerem que essa espacialidade era majoritariamente masculina. Com isso, presumimos que dessas mulheres era exigida, também, uma maior desenvoltura frente ao espaço urbano, bem como das mulheres encarregadas das compras diárias das residências, das quais também se exigia tais habilidades, como em “uma crioulinha de 10 a 12 annos de idade, para casa de pouca família, e só para compras”.25
Como dito anteriormente, os anúncios que não vinham acompanhados dos serviços a serem prestados pelas mulheres negociadas poderiam ser interpretados como relativos àquelas que poderiam cumprir ambas as funções, tanto interna quanto externamente às residências. Percebemos que a distribuição dessas ocorrências frente ao mapa da cidade de Desterro, conforme identificado na cor branca da Figura 3, aproxima-se da argumentação exposta acima, uma vez que a maior parte delas está concentrada na Rua Conselheiro Mafra, a rua de maior efervescência comercial da cidade. Então, essas transações representam, possivelmente, que essas mulheres apenas entravam como parte de negociações, pouco importando qual o serviço a ser prestado por elas.
Dentre os possíveis ofícios que transitavam entre os espaços público e privado, citamos a lavação de roupas, a qual, mesmo relativa ao ambiente doméstico, dependia da estrutura da cidade para ocorrer, devido à ausência de mecanismos no interior das residências.26 Para sua execução, então, as mulheres partiam em direção às fontes públicas e aos rios que cortavam a cidade, dentre os quais o Rio da Bulha que, segundo Carlos Humberto Corrêa (2005), era comumente associado às lavadeiras. De modo a insinuar os possíveis fluxos dessas mulheres que se dedicavam à lavação de roupa, propomos o cruzamento tanto dos (i) anúncios de escravas quanto das (ii) localizações de cursos d’água e fontes públicas, apresentados na Figura 3.
Como se pode perceber, as fontes e cursos d’água principais estão, em sua maioria, nas margens da área urbanizada de maior adensamento. Essa característica sugere que as mulheres escravizadas - cujas ocorrências estão, em sua maioria, difusas no território - tinham de locomover-se no sentido contrário ao fluxo de maior concentração de pessoas para que pudessem acessar os locais de lavação, ou ainda partir em direção à porção leste do território de Desterro, de modo a acessar o Rio da Bulha. Tal dispersão de pontos de origem e destino sugere que sua mobilidade ocorria de maneira difusa no território. Insinuamos também a existência de fluxos que as conduziam por dentro da malha da cidade - mais dispersos do que aqueles que partiam em direção às fontes localizadas nas bordas - devido à necessidade de fazer as entregas de suas encomendas aos clientes, por exemplo.
Por fim, para os ofícios que entrelaçavam espaço público e privado vale o pressuposto de que “não se pode misturar o espaço da rua com o da casa, sem criar alguma forma de grave confusão ou até mesmo conflito” (DAMATTA, 1987, p. 54). Tendo como base a representatividade dessa categoria ao cotidiano urbano de Desterro/Florianópolis, entendemos que muitas das mulheres negras escravizadas experimentavam a transição entre os espaços público e privado, e era justamente essa zona de instabilidade que permeava seus cotidianos, exigindo-lhes a negociação constante entre a casa e a rua.
Considerações Finais
Para a presente pesquisa, a busca por ocorrências que sugerissem a experimentação espacial de mulheres negras escravizadas em Desterro/Florianópolis, de modo a identificar suas contribuições à construção da paisagem urbana, teve como base uma representação dessas mulheres, mais do que em suas experiências autênticas. Temos a consciência de que a apreensão desse contexto esteve dependente de fontes unilaterais, as quais objetivavam enaltecer as dinâmicas nas quais a opressão a essas mulheres obtinha sucesso, posto que os anúncios de compra e venda, sobre os quais nos baseamos, não as qualificavam enquanto indivíduos, mas sim reduziam-nas à condição de mercadoria. Então, a parcialidade das informações fez com que não fosse possível afirmar o quão difusas eram as suas reais experiências espaciais, restando ainda ocultos marcos espaciais que representassem seus encontros, fossem calçadas, esquinas ou soleiras de portas.
Apesar disso, deslocar o conteúdo dos anúncios de seu objetivo original nos proporcionou acessar, de alguma maneira, uma de suas possíveis estratégias de atuação quando da produção do espaço urbano. Ou ainda, aproximarmo-nos da maneira por meio da qual “o corpo urbano se manifestava no corpo dessas mulheres”. Nesse sentido, imaginamos que o presente trabalho venha a se juntar a outros cujo objetivo era descrever as dinâmicas históricas que envolviam as mulheres negras de Desterro/Florianópolis, complementando-os ao inserir a dimensão espacial acerca do tema, assim como propondo outra possibilidade às narrativas que descrevem o processo de construção da paisagem urbana.
Consideramos que estratégias como as do presente trabalho contribuam, por esse motivo, esgarçando o tecido que define quais aspectos possuem relevância na construção da história urbana, revelando novas possibilidades de pesquisa e entendimento quanto à temática das cidades. Ainda, o contexto abordado no presente artigo confirma a dependência dessas mulheres invisibilizadas quanto às sutilezas cotidianas, como forma de se fazerem presentes na dinâmica urbana, pois é nessas “brechas” que residiam as oportunidades de manifestação do feminino (SOIHET, 2007, p. 284). Ou seja, basta um olhar acurado para revelarmos as espacialidades femininas que, estando sobrepostas às demais, muitas vezes não eram possíveis de revelação, em função de disputas assimétricas sobre o que iria compor o “enredo” da história.
Segundo Lynne Breslin (1996), a oferta de visibilidade, ou a possibilidade de “olhares”, é um dos definidores da condição da esfera pública, associada à rua. Nesse sentido, podemos entender que o oposto, ou o espaço privado da casa, seria o local protegido dessa exposição ao desconhecido. Baseando-nos nesse pressuposto, transpomos tal argumentação para o espaço de Desterro como forma de reforçar o argumento quanto à diluição da diferenciação entre espaço público e privado. Se imaginarmos que as mulheres negras eram “estranhas” ao núcleo familiar, e que a maior parte delas cumpria funções associadas tanto a casa quanto à rua, sugerimos que essas mulheres representassem justamente este “olhar estranho”, carregando para dentro do espaço doméstico a visibilidade até então experimentada somente nos espaços públicos da cidade, e comprometendo, com isso, a construção da intimidade, idealizada pelas camadas senhoriais urbanas.