Introdução
Na contemporaneidade, amplia-se o número de pesquisas sociais que visam dar visibilidade e compreender como as mulheres rurais se inserem em processos de construção social da agroecologia, tratando de analisar, dentre outros temas, como e em que medida essas ações geram mudanças nas relações de gênero no campo. Nessa esteira, intersecções entre gênero, agroecologia, diversidades sexuais e étnico-raciais, dentre outras, são tematizadas.
Das pesquisas até aqui realizadas nesse campo de estudos, identifica-se que a agroecologia possibilita às mulheres rurais a retomada do seu protagonismo produtivo na agricultura, bem como a construção de autonomia e novas habilidades sociais. No entanto, questões relativas à divisão sexual do trabalho permanecem ou se recriam dentro das formas alternativas de produção. Para compreender em profundidade essas dinâmicas sociais, no presente artigo, buscamos responder à seguinte questão: que transformações são observáveis nas relações sociais que constituem a divisão sexual do trabalho em experiências agroecológicas protagonizadas por mulheres Sem Terra em territórios de reforma agrária localizados no Paraná? Por meio dessa pesquisa, buscamos compreender a relação entre a divisão sexual do trabalho e a construção da agroecologia em territórios de Reforma Agrária a partir da experiência das mulheres Sem Terra.
A abordagem teórico-conceitual adotada neste estudo se baseia na teoria crítica, e faz aproximação com o campo das epistemologias feministas do Sul (María LUGONES, 2008; 2014; Yuderkys Espinosa MIÑOSO; Diana Gomes CORREAL; Karina Ochoa MUNHOZ, 2014; Catherine WALSH, 2005). Para isso, dois conceitos se tornam chaves: ‘agência’ e ‘experiência’. Optamos pela utilização desse marco referencial teórico pela perspectiva de análise que nos possibilita construir. Entendemos que as epistemologias feministas do Sul tendem a nos aproximar de realidades mais análogas às realidades das ruralidades brasileiras, tomando como ponto de partida o entendimento de que o Brasil se constitui como colônia de exploração, de forma análoga ao que se passou na colonização dos demais países da América Latina. Nos constituímos, tanto Brasil quanto outros países da América Latina, como colônias de exploração, cujo paradigma de sociedade se baseia na exploração, expropriação e violência, tanto do trabalho humano, quanto das naturezas não humanas da Terra. E é essa trajetória comum que nos aproxima mais e nos afasta de países do Norte, cujo paradigma hegemônico de sociedade se baseia em concepções eurocêntricas, e cuja formação social se deu com base em um paradigma da regulação. De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2001), o pilar da regulação trata do estabelecimento de normas para a regulação da vida em sociedade. Isso gera implicações específicas na formação das relações sociais de gênero, classe e raça de nossos países. Dessa forma, sem negar contribuições válidas do feminismo de primeira e segunda onda, mas, também, apontando seus limites, entendemos que as epistemologias feministas do Sul nos possibilitam analisar as relações sociais de gênero, mais de acordo com o que nos constitui como paradigma da exploração, expropriação e violência, e nos constitui enquanto sociedade até os dias atuais. Essas epistemologias possibilitam a construção de outros olhares sobre nossas relações de gênero, sobretudo no que se refere às interseccionalidades de gênero, classe e raça, qualificando entendimentos coletivos, bem como a construção de alternativas à hegemonia do sistema mundo-moderno-colonial. Elas nos permitem compreender a historicidade da relação oprimir-resistir, visualizar as “resistências concretas, vividas, à colonialidade do gênero” (LUGONES, 2014, p. 942), e construir processos de decolonialidade a partir de experiências de re-existir à colonialidade, por meio da assunção e da transformação material e simbólica daqueles traços e padrões que nos constituem até os dias atuais como sujeitos, territórios e culturas colonizadas (WALSH, 2005).
Nessa perspectiva, alguns conceitos são chaves. O primeiro deles é o de ‘agência’, que implica a construção de uma subjetividade ativa capaz de resistir à sujeição e à naturalização da dominação masculina (LUGONES, 2014). Isso se torna possível através da desnaturalização e da desconstrução da autoinferiorização, desvalorização, passividade e complacência e, ao mesmo tempo, da liberação de capacidades ativas de expressão da fala, da vontade, da criação e da ação ativa mediante situações opressoras. Significa a ruptura com a dominação e a violência, abrangendo dimensões subjetivas, simbólicas e materiais, em nível individual e coletivo (Teresa de LAURETIS, 1994). Nessa perspectiva, outro conceito-chave é o de experiência. Lauretis (1994) define a experiência “[…] como um complexo de efeitos, hábitos, disposições e associações e percepções significantes que resultam da interação semiótica do eu com o mundo exterior [...]” (LAURETIS, 1994, p. 288). As experiências constroem as práticas sociais, as culturas e as normas sociais de convivência, bem como os sentidos e os significados que estes atribuem às suas existências.
Para tanto, captar as experiências e a agência das mulheres Sem Terra no trabalho de construção da agroecologia através da metodologia da história oral torna-se crucial, na medida em que possibilita um olhar mais aprofundado e atento sobre o tema.
Sobre o caminho metodológico percorrido
Para visibilizar o trabalho das mulheres na agroecologia, realizamos pesquisa de campo no período de março a setembro de 2018, com base na história oral como método de construção de conhecimento, a partir da memória e da história narrada pelos sujeitos sociais (Cristiane CORADIN, 2020).1 Associada ou não a outras ferramentas metodológicas, a pesquisa de campo possibilita aos pesquisadores reconstruir, com os interlocutores de pesquisa, narrativas acerca de mudanças e persistências de dinâmicas sociais, bem como os sentidos e os significados que estes atribuem às suas experiências (Alistair THOMPSON, 1997; Alessandro PORTELLI, 1997).
Como método subjetivo, a história oral implica o reconhecimento da interferência da subjetividade dos interlocutores e dos historiadores na sua produção. São os sujeitos, através de suas dinâmicas materiais e subjetivas de vida, que desvelam e produzem significados às suas trajetórias e histórias de vida (PORTELLI, 1997), de forma que “[...] os documentos de história oral são sempre o resultado de um relacionamento, de um projeto compartilhado no qual ambos, o entrevistador e o entrevistado, são envolvidos, mesmo se não harmoniosamente” (PORTELLI, 1997, p. 35). Na presente pesquisa, optamos pela história oral tópica, que é aquela que “focaliza uma etapa ou um determinado setor da experiência em questão” (Maria Cecília de Souza MINAYO, 2012, p. 59-60).
Quanto à escolha e o número dos sujeitos de pesquisa, Jaques Marre (1991) destaca a importância da diversificação da amostra, como critério para definição do grupo a ser entrevistado. Além disso, ele cita a saturação, que é quando as entrevistas começam a se repetir, o que permite obtermos um parâmetro para encerrarmos a pesquisa. Dessa forma, o pesquisador consegue obter a construção do enredo de forma densa e abrangente. Ao todo, foram realizadas 33 entrevistas em profundidade. Para contemplar o critério da diversificação da amostra (MARRE, 1991), entrevistamos mulheres de diversas idades, com diferentes níveis de escolaridade, engajamentos econômicos e sociopolíticos, bem como de diferentes territórios de reforma agrária do Paraná.
A partir da nossa inserção prévia no Acampamento Emiliano Zapata e na organização das Jornadas de Agroecologia, optamos por analisar essas duas experiências. A partir disso, identificamos as primeiras interlocutoras-chave, as quais nos indicaram outras mulheres que vivem tanto no Acampamento Emiliano Zapata e que praticam agroecologia, bem como em outros territórios de reforma agrária do Paraná onde houve Jornadas de Agroecologia - que são eventos2 construídos por redes de movimentos sociais ecológicos do Estado do Paraná e abrangem movimentos sociais do campo, órgãos públicos de pesquisa e extensão rural, universidades e organizações não governamentais que trabalham com agricultores familiares e agroecologia. Para compreender a relação das mulheres com o trabalho, com a construção da agroecologia e sua relação com as Jornadas, entrevistamos 17 mulheres Sem Terra, das quais 8 vivem no Assentamento Walmir Motta (Cascavel); 4 nos Assentamentos Eli Vive I e II (Londrina); e mais 5 mulheres Sem Terra mediadoras estaduais e nacionais, com diferentes vínculos (de terra, e/ou de relações familiares e/ou sociopolíticas) com territórios de reforma agrária da região de Londrina, Francisco Beltrão, Irati e Lapa.3 Para aprofundar o entendimento das relações de gênero no território, desenvolvemos um estudo de caso no Acampamento Emiliano Zapata. Nesse território, foram realizadas mais 16 entrevistas, com objetivo de compreender as trajetórias e o cotidiano das práticas sociais das mulheres na produção, comercialização e organização social, e política agroecológica. O Acampamento Emiliano Zapata é um território de Reforma Agrária localizado na região dos Campos Gerais do Paraná, no Município de Ponta Grossa. Desde que foi ocupado, em 2003, por 80 famílias, os sujeitos locais buscam desenvolver experiências agroecológicas, onde a participação das mulheres se destaca.
As entrevistas com as mulheres Sem Terra foram gravadas, com a permissão das interlocutoras.4 As histórias gravadas e transcritas na sua integralidade permitiram compreender a experiência e a agência das mulheres na construção da agroecologia. A partir da sistematização das transcrições dessas entrevistas, as narrativas das interlocutoras foram separadas em diferentes temáticas (construção do conhecimento, produção e comercialização, divisão sexual do trabalho e sentidos das ecologias), que foram analisadas com base nas categoriais agência, experiência e subjetividade ativa. A partir da escuta atenta das histórias de vida dessas mulheres, pudemos tecer narrativas que nos possibilitam compreender em profundidade as relações sociais que permeiam tanto o cotidiano quanto as relações sociais ampliadas, vivenciadas pelas mulheres em redes de movimentos sociais do campo, ecológicos e feministas.
Experiências e agência das mulheres Sem Terra na construção da agroecologia
Adotando a estratégia política de ocupações de terra, desde a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ainda nos anos 1980, os Sem Terra começaram a ocupar terras improdutivas e a territorializar lutas sociais por Reforma Agrária em todas as regiões do Brasil. Ao longo de sua trajetória, as pautas políticas do movimento ampliaram-se para além do acesso a terra, passando a reivindicar assistência técnica, educação, saúde, habitação e recursos financeiros para infraestrutura e investimentos produtivos, integralizando reivindicações feministas e também culminando com a adesão desse movimento social à agroecologia.
Destaca-se que foi no IV Congresso Nacional do MST, realizado de 07 a 11 de agosto de 2000, que foi aprovada uma deliberação específica sobre esse tema, que afirma a necessidade de “[...] Estimular práticas agroecológicas e o respeito ao meio ambiente” (Marcelo HARSEN SCHLACHTA, 2008, p. 59). Neste congresso, o MST passa a assumir oficialmente a agroecologia como categoria de construção da Reforma Agrária Popular e do Projeto Camponês Popular para o campo.
Desde a formação inicial do MST, as mulheres Sem Terra problematizam desigualdades de gênero para dentro e para fora desse movimento social, reivindicando condições igualitárias de participação das mulheres na luta pela terra e por Reforma Agrária (Gema G. S. L. ESMERALDO, 2013; Andrea BUTTO, 2017; Sônia Fátima SCHWENDLER, 2015; 2017). Dentro dessa luta de classe, “as mulheres Sem Terra vão ocupando espaços e se tornam protagonistas da luta pela terra” (SCHWENDLER, 2015, p. 92). Além disso, elas se articulam com redes de movimentos sociais do campo - que se caracterizam por articular a heterogeneidade de múltiplos atores coletivos em torno de unidades de referências normativas, relativamente abertas e plurais.
Como parte do projeto feminista, colocam em pauta a soberania e segurança alimentar e nutricional, bem como a defesa da agroecologia (SCHWENDLER, 2015; 2017). Nessa luta, “as mulheres acumulam força política de conhecimento para compreenderem a questão agrária no contexto nacional e internacional e o papel da agricultura camponesa na produção da soberania alimentar” (SCHWENDLER, 2015, p. 101). Igualmente, elas problematizam a produção e reprodução da condição subalternizada da mulher na sociedade e na especificidade do campo, tendo como referência a categoria teórica de gênero, articulada à categoria classe (SCHWENDLER, 2015). É dentro desse contexto que a agenda feminista se encontra com os movimentos ecológicos, e desde onde as mulheres Sem Terra também passam a assumir a construção da agroecologia como categoria constitutiva de sua construção feminista e camponesa popular.
Esse feminismo camponês e popular, para as mulheres do MST, se constrói com as lutas de resistência das mulheres rurais ligadas à Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo - CLOC. Ele é constituído por uma perspectiva interseccional de classe, gênero e raça, e assume o enfrentamento direto ao capitalismo colonista, extrativista, racista e patriarcal. Nessa esteira, esse feminismo assume a centralidade da luta pela terra; da luta pelo controle e gestão social dos bens naturais (solos, águas, matas etc.); da luta pela soberania e segurança alimentar e nutricional; da luta na defesa da agrobiodiversidade; na luta pelo direito das mulheres ao acesso a terra; bem como a luta contra a violência e pela igualdade de gênero nas múltiplas dimensões da vida doméstica, social e do trabalho (MST, 2020).
No Brasil, experiências agroecológicas são desenvolvidas por agricultores familiares e organizações não governamentais desde idos de 1960. A agricultura familiar brasileira se constitui como uma categoria política que apresenta traços sociais de permanências e transformações com relação a formações sociais camponesas, e é marcada pela luta constante por autonomia relativa frente à dominação de sistemas agroalimentares globais (Maria de Nazareth B. WANDERLEY, 2009; Jan Van der PLOEG, 2008). Para essa categoria, a agroecologia representa, portanto, uma importante estratégia coletiva de resistência camponesa e familiar, frente à dominação de sistemas agroalimentares globais.
A partir das mudanças contemporâneas, podemos encontrar três possibilidades de definição do conceito de agroecologia: 1) como sistemas de produção agroecológica em sentido estrito; 2) como sistemas alimentares e; 3) como estudo da relação entre a produção de alimentos e a sociedade de forma mais ampla (Pierre STASSART et al., 2012). Para estes autores, os sentidos e significados das agroecologias devem ser buscados do interior das experiências.
Nessa perspectiva, desde as experiências das mulheres rurais, Emma Siliprandi (2013; 2015) argumenta que a agroecologia, por se construir através da valorização de atividades históricas e culturalmente praticadas por mulheres, tais como quintais produtivos e hortas, pode, potencialmente, gerar maior autonomia econômica para elas, e proporcionar transformações de relações de gênero em sentido mais igualitário. Além disso, a autora frisa a relevância da indissociabilidade entre organização sociopolítica das mulheres e autonomia socioeconômica, como condições de produção e de sustentação da igualdade de gênero em agroecologia. (SILIPRANDI, 2013; 2015).
Outros estudos recentes no campo de gênero e agroecologia no contexto do Nordeste brasileiro (Laeticia Medeiros JALIL; ESMERALDO; Maria do Socorro de Lima OLIVEIRA, 2017) demonstram como metodologias participativas e formações de gênero influenciam na participação das mulheres em processos coletivos e produtivos na construção da agroecologia. Através dessas ações, as mulheres conquistam autoconfiança a partir do acesso ao conhecimento sobre desigualdades de gênero e violência contra as mulheres, o que contribui na promoção de transformações nas relações de gênero no âmbito doméstico e comunitário.
No contexto do Sul do Brasil, Valdete Boni et al. (2017a; 2017b) descrevem experiências agroecológicas realizadas por mulheres rurais dos três estados do Sul do Brasil, engajadas em movimentos sociais e sindicatos. Essas pesquisas destacam os protagonismos das mulheres na promoção da segurança alimentar e nutricional. Nessa esteira, Ceres Hadich e Tânia Mara de Bastiani (2017) analisam a experiência das mulheres assentadas de Reforma Agrária do Oeste Catarinense e identificam que “[...] via de regra, o trabalho feminino (em atribuições e tempo) está concentrado em sistemas dedicados à reprodução e autossustentação da família [...]. E isso é controlado, organizado e realizado pelas mulheres [...]” (HADICH; BASTIANI, 2017, p. 139).
Bruna Mendes de Vasconcellos (2015), em pesquisa sobre a participação das mulheres de contextos de Reforma Agrária na construção da agroecologia, analisa que o trabalho das mulheres nessa atividade gera ampliação de sua participação política, que se dá por meio do reconhecimento da importância das atividades historicamente realizadas pelas mulheres na economia camponesa.
No entanto, no âmbito da divisão sexual do trabalho, o conjunto dessas autoras (JALIL; ESMERALDO; OLIVEIRA, 2017; VASCONCELLOS, 2015) analisa que, mesmo ampliando sua capacidade produtiva e política, as mulheres Sem Terra permanecem vivenciando tradicionais divisões sexuais do trabalho, onde se mantém a clássica dimensão reprodutiva do trabalho feminino.
Mediante tais reflexões, consideramos relevante aprofundar a compreensão teórico-prática das especificidades que a divisão sexual do trabalho assume na construção dessas experiências agroecológicas em contextos de Reforma Agrária, a fim de compreendermos em profundidade se e como efetivamente essas experiências possibilitam ou não reconstruções de divisões do trabalho em uma perspectiva mais igualitária de gênero.
A divisão sexual do trabalho desde as experiências analisadas
Para a realização desse estudo, buscamos abranger diversidades de vozes, experiências e agências de mulheres na construção da agroecologia no conjunto dos territórios descritos. Como foram 33 entrevistadas ao todo, não temos aqui como detalhar o perfil de cada uma. Portanto, reunimos o perfil pesquisado em três grupos principais. Uma parte delas são mulheres jovens de até 27 anos de idade, filhas de assentados(as), acampadas e/ou assentadas, oriundas de cidades próximas desses territórios de reforma agrária, casadas, e estão começando a se constituir como unidade familiar e produtiva agroecológica. Essas mulheres concluíram o ensino médio e/ou a graduação, não possuem filhos ainda, ou possuem um ou dois filhos com até 10 anos de idade. Após iniciarem o plantio de hortas, pomares mistos e agroflorestas, elas têm começado a comercializar seus produtos, a participar de atividades sociopolíticas, de cooperativas locais, e a agenciar grupos de consumo e entregar seus alimentos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Seus cônjuges trabalham nas cooperativas locais, regionais, e/ou fora dos territórios de reforma agrária (pedreiros etc.), e/ou cultivam as produções agroecológicas junto com suas esposas. Esses casais estão focados na geração de renda e na estruturação de suas moradias e dos lotes.
Outro grupo de mulheres é representado por mulheres de meia idade (acima de 27 e com menos de 60 anos). Esse grupo de mulheres possui ensino médio completo e algumas graduação. São casadas, possuem um ou dois filhos de até 20 anos de idade. Elas já cultivam hortas, pomares mistos, agroflorestas, pequenos animais há mais tempo. Participam de cooperativas, organizam grupos de consumo e entregam alimentos para o PNAE. Algumas participam ativamente de atividades sociopolíticas do movimento social e em redes de movimentos sociais agroecológicos, do campo e feministas. Seus cônjuges cultivam predominantemente roçados em maior escala e convencionais e/ou trabalham com as mulheres nos cultivos ecológicos. Somente algumas exceções trabalham fora dos territórios e com atividades não agrícolas. Esse grupo é composto por famílias já mais estruturadas em termos de moradia e infraestrutura produtiva dos lotes, voltadas para a produção para abastecimento familiar, mas sobretudo para a comercialização.
O último grupo de mulheres é representado por mulheres com mais de 60 anos de idade. Essas mulheres normalmente já estão aposentadas, possuem menor escolaridade (ensino fundamental e/ou médio completo), têm três a quatro filhos adultos, casados e independentes. Elas plantam pequenas hortas, pomares mistos e agroflorestas junto com seus cônjuges, participam de cooperativas, grupos de consumo e atividades sociopolíticas, sendo algumas delas representantes políticas do movimento social. Esse grupo possui infraestrutura produtiva estável, produz e comercializa em menor escala, predominando cultivos para abastecimento familiar, ao invés da comercialização.
Olhando para as experiências de campo pesquisadas, identificamos que a agroecologia emerge em territórios de Reforma Agrária no Paraná a partir da monetarização da produção diversificada de espaços e cultivos histórica e culturalmente vinculados às mulheres rurais, tais como hortas, quintais e pomares mistos, espaços até então não valorizados simbólica e monetariamente. Essa situação se assemelha àquelas identificadas nos estudos de Siliprandi (2013; 2015), Vasconcellos (2015), Jalil, Esmeraldo e Oliveira (2017).
Esse trabalho das mulheres nas hortas e pomares contribui historicamente com a segurança alimentar e nutricional dos membros da família. Além disso, através da agroecologia, essas produções e espaços passam a constituir renda monetária significativa para as mulheres - principalmente por meio da inclusão produtiva delas em programas institucionais de compras diretas (PNAE) e da construção de feiras livres e de grupos de consumo.
No âmbito das relações de trabalho e gênero, Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007) argumentam que, nas sociedades capitalistas modernas, diferentes sexos estabelecem diferentes papéis sociais e trabalhos exequíveis ou não por homens e mulheres. Essa divisão social “[...] tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado [...]” (HIRATA; KERGOART, 2007, p. 599). Essas relações criam um sistema sexo-gênero desigual, que extrapola o âmbito doméstico, e se institui no mundo do trabalho moderno como a divisão social do trabalho, determinando condições desiguais de acesso das mulheres à educação profissional, ao mercado de trabalho e às políticas públicas. Além disso, esse sistema constrói e reproduz hierarquias de valor entre os sujeitos e seus trabalhos, vinculadas aos papéis sociais de sexo-gênero exercidos na sociedade (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Aproximando essas relações do mundo rural, Maria Ignez Paulilo (2016) enfatiza que não se pode separar o trabalho individual de cada indivíduo que compõe a família camponesa, porque os arranjos desse trabalho se constituem no âmbito familiar. Ela categoriza o trabalho desenvolvido pela mulher rural em: a) trabalho doméstico, b) trabalho produtivo no lar, e c) trabalho produtivo fora do lar. “Como trabalho doméstico foram consideradas as atividades de lavar a passar roupa; cozinhar, lavar a louça, arrumar a casa e cuidar das crianças” (PAULILO, 2016, p. 43). O trabalho produtivo realizado no lar “[...] abrange os cuidados com a horta e com os animais domésticos. O trabalho produtivo fora do lar se refere às atividades realizadas nos campos” (PAULILO, 2016, p. 44). De acordo com essa autora, as atividades desenvolvidas pelas mulheres rurais são histórica e culturalmente interpretadas como atividades ‘leves’, porque são executadas pelas mulheres e, por isso, possuem status inferior, não sendo valorizadas e nem visibilizadas, porque não geram renda monetária direta. Já o trabalho produtivo, considerado ‘trabalho pesado’, porque é realizado pelos homens, se situa prioritariamente nas atividades geradoras de maior renda monetária. Essas atividades, por sua vez, possuem maior status valorativo hierárquico de superioridade sendo, portanto, dignos da realização do status de masculinidade (PAULILO, 2016).
Para Paulilo (2016), as fronteiras entre as atividades realizadas pelas mulheres rurais não são fixas: ora esse trabalho se situa no âmbito doméstico e produtivo do lar, ora no trabalho produtivo fora do lar. De acordo com a autora, isso depende do grau de capitalização e da estratégia de reprodução adotada pela família camponesa. Do conjunto desses estudos, ela problematiza a invisibilidade estrutural do trabalho feminino: “[...] A desvalorização das múltiplas tarefas femininas nas estatísticas oficiais, daí a expressão ‘trabalho invisível’ é um reflexo da desvalorização que perpassa toda a sociedade e suas principais instituições, incluindo a família” (PAULILO, 2016, p. 192). A autora também destaca a relevância dos movimentos sociais feministas na desconstrução de tais desigualdades e na construção de relações de gênero e de divisões sexuais do trabalho mais igualitárias.
No contexto de campo analisado, identificamos que as mulheres interlocutoras da pesquisa dividem seus tempos na execução do trabalho doméstico e produtivo ‘do lar’, que é composto pelas atividades de rotina doméstica, com o cultivo de hortas, pomares, quintais produtivos e pequenos animais, participando de forma esporádica no trabalho produtivo ‘fora do lar’, que é composto pelo cultivo de roçados de milho e feijão, o qual segue sob a gestão masculina.
Em campo, identificamos que a transição agroecológica delas se deu pela introdução e/ou ampliação da atividade das mulheres no cultivo de hortas ecológicas e pomares mistos. Para aquelas mulheres de origem camponesa e que já executavam ações no âmbito do trabalho doméstico dentro e fora do lar, identificamos que, com a agroecologia, elas continuam executando as mesmas ações e, em alguns raros casos, também assumiram de forma pontual o trabalho produtivo nos roçados, tal como nos narrou Jasmim:
[...] na verdade, eu faço tudo, trabalho na casa, na roça, na horta, eu faço tudo. [...] porque os piás não gostam de fazer nada em casa. [...] tem um piá ali que ajuda, mas é difícil [...] (Entrevistada Jasmim, 41 anos, julho/2018. Informação verbal).
O estudo evidencia que a construção da agroecologia por essas mulheres gerou ampliação daquele trabalho, considerado por Paulilo (2016) como trabalho produtivo do lar, que é composto pelo cultivo de hortas, pomares, quintais e pequenos animais - sem que, ao mesmo tempo, essas famílias tenham vivenciado redefinições significativas na divisão sexual do trabalho, em termos de construção de maior igualdade na divisão sexual do trabalho, sobretudo do trabalho doméstico do lar. A voz de Orquídea define as mulheres Sem Terra ecologistas da seguinte forma:
[...] a mulher na agricultura eu acredito que ela é duas vezes mulher. [...] a mulher trabalha mais do que o homem. A mulher da roça cuida da casa, da vaca, da roça, da galinha, do porco, faz pão, planta a horta, vai entregar na cooperativa, produz e cozinha (Entrevistada Orquídea, 37 anos, junho/2018. Informação verbal).
Orquídea afirma que elas são ao mesmo tempo mulheres e homens, pois as mulheres Sem Terra realizam tanto os trabalhos considerados ‘pesados’ como os trabalhos ‘leves’. As mulheres Sem Terra executam todas as atividades que precisam para produzir, comercializar e movimentar a agroecologia e o movimento social no território e em redes de movimentos sociais ecológicos. Além disso, quando elas se envolvem em trabalhos no roçado, tal como colheitas e plantios, isso é considerado pelos membros da família como ‘ajuda’. Com relação aos maridos e filhos homens, quando auxiliam as mulheres em atividades domésticas, isso também é considerado ‘ajuda’. Quanto aos maridos, parte deles trabalha fora, por dia ou como contratados. Em raros casos, o casal trabalha somente no lote (cerca de 30%). Na maioria dos casos analisados (cerca de 70%), os homens trabalham fora alguns dias da semana, ou todos os dias, e as mulheres trabalham nos lotes, nas hortas, pomares, parte dos roçados, na casa, cuidam dos filhos, participam de cooperativas e associações locais e em movimentos sociais.
Observamos que somente para os casos em que a família já conseguiu adquirir infraestrutura básica e um nível de capitalização suficiente, capaz de conseguirem se reproduzir socialmente somente da unidade produtiva familiar, é que o homem passa a trabalhar exclusivamente no território do lote com a mulher. Isso pode ser observado para os casos de Jasmim, Ipê Roxo, Rosa Rosa e Amora: J: “[...] Só que quando ele começou a trabalhar a gente já lidava com a horta, mas era pouquinho. [...] daí aumentou os projetos e daí a gente começou a trabalhar os dois aqui né [...]” (Entrevistada Jasmim, 41 anos, julho/2018. Informação verbal).
Aqui é importante refletir sobre esses dados de campo em relação com o estudo de Paulilo (2016) sobre a atividade leiteira no Estado de Santa Catarina. Naquele estudo, a autora analisou a atividade do leite como trabalho histórico e culturalmente praticado pelas mulheres. Nesse estudo, a autora identificou que, quando os homens se inseriram na atividade do leite, passaram a dominá-la e as mulheres perderam seu espaço produtivo e renda monetária.
Estudos de Schwendler (2020a) em territórios de Reforma Agrária também revelam que os homens têm aderido às hortas quando elas se tornam rentáveis. E que, em muitos casos, eles buscam assumir também o controle do processo de planejamento e comercialização da produção, como parte de uma lógica patriarcal, em que a família é representada pelos homens no espaço público e de decisão. No caso aqui analisado, identificamos que, mesmo com a inclusão dos homens nessa atividade, quando ela assume maior capacidade de geração de renda familiar, as Sem Terra agroecologistas não têm perdido, necessariamente, seu espaço produtivo e nem sua capacidade de gestão financeira. Isso, segundo elas, se deve à ampliação da sua agência e subjetividade ativa feminina, conquistadas por meio da luta política de gênero que as Sem Terra empreenderam nesse movimento social, em associação com a maior escolaridade alcançada, condições de transitoriedade campo-cidade e menor idade das mulheres e casais.
Decolonialidade do gênero nas experiências agroecológicas protagonizadas pelas mulheres Sem Terra
As narrativas das mulheres elucidam a relevância da luta de gênero dentro da luta pela terra e pela agroecologia na criação, valorização e reconhecimento do espaço produtivo e do trabalho produtivo feminino na construção da agroecologia. Por meio da formação sociopolítica de gênero, elas puderam conhecer o que são e como atuam as desigualdades de gênero nas relações familiares e coletivas, e se fortalecerem enquanto mulheres. Isso tem gerado aumento da sua subjetividade ativa e capacidade de agência, como revelam as colocações de Hibiscus, que explica que:
[...] por isso que hoje tem toda essa dinâmica de produção e liberdade das mulheres por conta desses cursos [de formação de gênero]. [...] a partir daí começou, reunimos um grupo de companheiras, quatro mulheres, plantaram as suas hortinhas [...] (Entrevistada Hibiscus, 42 anos, setembro/2018. Informação verbal).
Com a organização para a formação sociopolítica de gênero e para as práticas agroecológicas, as mulheres ampliam condições de expressar limites à atuação colonialista patriarcal dos homens na construção da agroecologia, provocam transformações nas relações de gênero, e asseguram maior autonomia, no âmbito do seu espaço e seu trabalho. A autonomia, aqui, é expressa na capacidade de as mulheres assegurarem renda monetária, associada à ampliação da sua capacidade de agência e subjetividade ativa, a qual se associa à ampliação do respeito e de maior valorização da sua capacidade feminina de produção, tomada de decisão, comercialização e agenciamento sociopolítico. Essas ações friccionam a colonialidade do gênero, e expressam a sua capacidade decolonizadora quanto aos padrões de gênero, que as experiências agroecológicas protagonizadas por mulheres podem portar. Igualmente, as interlocutoras destacam a necessidade da permanente organização sociopolítica de gênero na agroecologia, a fim de evitar com que ocorram perdas de suas conquistas: “É uma questão assim que a princípio as mulheres têm que ficar atentas, mas muitas mulheres estão no comando aqui dos seus lotes, tão decidindo o que fazer, como fazer” (Entrevistada Copaíba, 41 anos, julho/2018. Informação verbal).
Os estudos de Siliprandi (2013; 2015) sobre relações de gênero e agroecologia destacam a importância da organização sociopolítica feminista das mulheres na construção de agroecologias baseadas em relações de gênero mais igualitárias. Os dados de campo obtidos na presente pesquisa corroboram as análises de Siliprandi, na medida em que identificamos também, para os casos analisados, que a luta de gênero dentro da luta pela terra e pela agroecologia constitui categoria fundamental da ação decolonizadora de gênero, entendido como um processo social constante e contínuo.
Identificamos que somente quando há combinação entre formação sociopolítica de gênero, com maior escolaridade, e/ou com menor idade e/ou com maior transitoriedade campo-cidade é que pudemos encontrar maior igualdade de gênero em termos da divisão sexual do trabalho. Compreendemos que a luta de gênero na construção de divisões sexuais do trabalho mais igualitárias, como parte do processo decolonizador de gênero, também se constitui como luta política constante dentro da luta pela terra, pela agroecologia e pela decolonialidade de gênero.
Em campo, observamos que, mesmo para aqueles casais que realizaram a transição para a agroecologia na totalidade dos seus lotes e que vivem ambos dessa atividade, em raros casos o homem passou a auxiliar a mulher na execução de atividades domésticas de cuidado. Identificamos que, normalmente, casais mais jovens e de meia idade (até 45 anos), mais escolarizados, com maior experiência de transitoriedade campo-cidade e que possuem maior engajamento sociopolítico com o movimento social e com temáticas de gênero, tendem a construir divisões de trabalho mais igualitárias.
Esses dados corroboram a análise de Schwendler (2020b), em pesquisa realizada em áreas de Reforma Agrária, por meio de oficinas realizadas com jovens assentados, que revela que “embora haja níveis significativos de cooperação no espaço familiar camponês, a divisão sexual do trabalho e a naturalização e invisibilidade do trabalho da mulher são marcantes, com efeitos significativos nas novas gerações” (SCHWENDLER, 2020b, p. 03). Contudo, como essa pesquisa evidencia, essas relações sociais passam a ser tensionadas a partir da agência de jovens mulheres com formação de gênero, obtida na maior parte no contexto escolar e do movimento social. Adquirindo tal agência, essas jovens conseguem questionar em alguma medida essas relações sociais patriarcais familiares e passam a incitar transformações da divisão sexual do trabalho doméstico familiar, em sentido mais igualitário, embora esse processo não ocorra de forma generalizada.
Tanto os dados da presente pesquisa, quanto aqueles obtidos por Schwendler (2020b), reforçam a relevância da formação pedagógica de gênero constante e continuada na promoção da agência das mulheres e na decolonialidade do gênero no meio rural. Na mesma direção, Celecina Sales (2010, p. 436) mostra que o lugar das jovens no MST começa a ser reivindicado e sua participação começa a questionar as estruturas de poder e de saber. Elas “estão se desterritorializando, construindo outros projetos, se opondo às representações e comportamentos prefixados que determinam o papel e lugar das mulheres no campo”. Para a autora, o acesso à escolarização e à participação política tem provocado mudanças no comportamento das mulheres jovens.
Essas relações também passam a ser tensionadas em alguma medida a partir da maior experiência de transitoriedade campo-cidade. Essa categoria se dá a partir de uma relação de “espaço-tempo que transita entre ruralidade e urbanidade” (Fabiano GONTIJO; Igor ERICK, 2015). Aqui entendida, por um lado, pela vivência de relações de gênero mais igualitárias nos contextos urbanos, experienciada ao longo dos anos antes de ingressarem nos territórios de reforma agrária; ou, por outro lado, pelas relações que elas estabelecem com sujeitos urbanos, com movimentos feministas, a partir de seus atuais territórios de vida. Através dessas conexões, elas conseguem ampliar sua capacidade de agenciamento e subjetividade ativa feminina, ampliando sua capacidade de tensionamento de relações de gênero binárias e patriarcais no interior dos territórios de reforma agrária e no interior de suas atuais relações familiares.
Dessa forma, entendemos que mulheres mais jovens, e/ou mais escolarizadas e/ou com maior transitoriedade campo-cidade conseguem reconhecer com mais facilidade desigualdades de sexo-gênero em termos de divisão sexual do trabalho e, com isso, qualificam sua capacidade de enfrentamento e de desconstrução de divisões sexuais do trabalho desiguais no âmbito doméstico, do lar e fora do lar, ampliando a sua capacidade de construir e sustentar experiências agroecológicas, bem como de decolonizar o gênero. Isso se fortalece quando essas categoriais se vinculam com a formação sociopolítica de gênero e quando essas mulheres assumem narrativas feministas.
Quando identificamos a combinação entre uma ou mais dessas três categorias (idade, escolaridade e transitoriedade campo-cidade) com a categoria formação sociopolítica de gênero, observamos transformações mais significativas em termos de maior igualdade de gênero na divisão do trabalho. Para todas as experiências analisadas, a simples vinculação dessas três categorias (idade, escolaridade e transitoriedade campo-cidade), isoladas e/ou apenas combinadas entre si, porém, sem serem associadas com a formação sociopolítica de gênero, não foi suficiente para gerar alterações significativas em termos de divisão sexual do trabalho. Outrossim, a formação sociopolítica por si só também não se demonstrou capaz de gerar alterações significativas na divisão sexual do trabalho. Por isso, entendemos que quando a formação sociopolítica de gênero e, em especial, acerca da divisão sexual do trabalho, se combina com uma ou mais dessas outras três categorias (idade, escolaridade e transitoriedade campo-cidade), é que a experiência se torna mais propensa a gerar transformações mais significativas em termos de divisão sexual do trabalho, o que amplia a capacidade de decolonialidade do gênero dessas experiências.
Outro aspecto identificado em campo, e que se relaciona com essas categorias analisadas, relativo à mecanização ou não da atividade, e vinculadas àqueles tipos de trabalhos executáveis por homens e mulheres, diz respeito às hierarquias valorativas do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007). Os homens participam da construção da agroecologia desde que possam ganhar dinheiro em somas significativas, e que possam mecanizar pelo menos parte dessa atividade. Por conseguinte, estas atividades são mais valorizadas por eles. O estudo de Esmeraldo (2013) é significativo para evidenciar a forma como os homens se apropriam de conhecimentos, técnicas e instrumentos de trabalho produtivo, como construções simbólicas hierárquicas de valores dos sujeitos e dos trabalhos, reproduzindo relações sexistas e patriarcais. No contexto do campo, o “trabalho é constituidor da identidade e da autoridade masculina e requer a invisibilidade e omissão do trabalho feminino que se anuncia nos roçados como ajuda” (ESMERALDO, 2013, p. 240). O trabalho masculino se alicerça tanto no “domínio e controle dos processos de produção do conhecimento que envolvem a gestão do ‘fazer-aprender’ e do ‘saber-fazer’ e no planejamento para a realização de todo o ciclo produtivo” (ESMERALDO, 2013, p. 240), quanto na ordem simbólica das regras de relacionamento com o mercado, que qualifica de forma diferenciada e hierarquizada o trabalho de homens e mulheres.
Em campo, observamos que enquanto o trabalho da agroecologia não gera renda monetária significativa e não é passível de mecanização - e, por conseguinte, não se torna capaz de realizar esse status de masculinidade rural -, permanece sendo desvalorizado e exercido apenas pelas mulheres. A reprodução social desse status de masculinidade, associada ao domínio da agricultura do ‘bastante’, do roçado, dos grãos e do uso intensivo das máquinas, reproduz um status de masculinidade colonizada, que impede que os homens valorizem os trabalhos produtivos e domésticos manuais realizados pelas mulheres, e se reconstruam como masculinidades decoloniais e emancipatórias como ser, saber e poder masculino, o que é fundamental para que eles passem tanto a assumir de forma mais igualitária a divisão do trabalho doméstico, quanto o trabalho produtivo do lar e fora do lar, bem como invistam em experiências agroecológicas.
Esses dados de campo corroboram a análise de Esmeraldo (2013) e de Siliprandi (2013; 2015), na medida em que evidenciamos a persistência de divisões sexuais do trabalho binárias e patriarcais também nas experiências agroecológicas analisadas. Com isso, pode se afirmar que a agroecologia por si só não gera alterações significativas em termos de divisão sexual do trabalho e de valorização do trabalho doméstico e produtivo executado pelas mulheres Sem Terra.
Dessa forma, compreendemos que, embora essas famílias tenham deixado de praticar a agricultura convencional e tenham iniciado experiências agroecológicas, o que pode gerar oportunidades para a construção de divisões do trabalho mais igualitárias e decoloniais, essa atividade ainda reproduz binários hierárquicos valorativos no âmbito do trabalho, os quais relegam às mulheres a responsabilização plena pelas atividades de cuidado e, aos homens, somente o trabalho produtivo fora do lar. Essa situação geralmente se modifica em alguma medida, por questões de experiência campo-cidade, idade, escolaridade, combinada com formação sociopolítica de gênero. Tal como elucidado em parágrafos anteriores.
Esses dados de campo corroboram os estudos recentes sobre gênero e mundo do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007), que apontam que, mesmo com os avanços obtidos nas últimas décadas através dos movimentos sociais feministas, ainda hoje se encontra um conjunto de desigualdades de gênero nos âmbitos profissionais e domésticos, e que incide também em experiências agroecológicas.
A “generificação” do trabalho e a falta de colaboração efetiva geram sobrecargas de trabalhos, cansaço e falta de tempo para descanso e lazer para as mulheres. Em campo, observamos ainda o esgotamento e exaustão corporal feminino. Essas sobrecargas de trabalhos se tornam tão mais ampliadas, quanto maior o volume e a diversidade da produção, e quanto menos capitalizadas forem essas unidades de produção familiares: “[...] na verdade eu faço tudo, trabalho na casa, na roça, da horta, eu faço tudo. [...] é muito serviço para fazer, é dentro de casa é fora de casa. É tudo quanto é canto” (Entrevistada Jasmim, 41 anos, julho/2018. Informação verbal).
Embora haja evidências de que essas experiências agroecológicas analisadas, apesar de ampliarem a autonomia, agência e subjetividade ativa das mulheres, o que contribui com a decolonização das relações de gênero no campo, notamos que isso se dá de forma incompleta e parcial, na medida em que identificamos que essas experiências não vêm sendo acompanhadas de redefinições significativas em termos de divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres, bem como de valorização das atividades ditas de “cuidado” com a vida, as quais geram ampliação de jornadas de trabalho para as mulheres, resultando em sobrecargas e exaustão de seus corpos.
Corrobora para essa argumentação o fato de termos identificado em campo que as atividades coletivas do movimento social e de redes de movimentos sociais ecológicos também são assumidas majoritariamente pelas mulheres. Os homens (dos 20 aos 65 anos de idade) geralmente participam das atividades sociopolíticas somente quando são espaços de aprendizagem e de tomadas de decisão que implicam ganhos monetários e de produtividade, consideradas, portanto, atividades dignas da realização do seu status de masculinidade. As mulheres, ao contrário, além dos demais trabalhos produtivos e domésticos já assumidos, acabam por se engajar na organização social coletiva e comunitária. É por isso que muitas delas analisam que estão sobrecarregadas, e acabam por optar em não participar mais de reuniões: “[...] elas também não se envolvem muito, porque envolve as obrigações da casa: ah eu não saio porque eu tenho filho para criar, tenho que mandar para a escola [...]” (Entrevistada Ipê Roxo, 56 anos, setembro/2018. Informação verbal).
Esses dados de campo corroboram a pesquisa de Schwendler (2013) sobre a participação das mulheres na Reforma Agrária no Brasil e no Chile, que evidenciou o impacto da divisão sexual do trabalho sobre o nível e o espaço de participação sociopolítica das mulheres assentadas, acarretando uma sobrecarga de trabalho, para aquelas que são militantes, produtoras e mães. A pesquisa ainda revela a organização familiar como sendo o espaço mais difícil para a modificação das estruturas e relações de gênero. Destaca, no entanto, que a consciência de gênero, a renda monetária e a construção da agência coletiva das mulheres têm contribuído para renegociar e redefinir a agenda de trabalho na esfera doméstica, produtiva, assim como nos espaços de participação política.
Em decorrência de tal situação, como também demostra o estudo de Schwendler (2013), identificamos, em campo, uma tendência da migração da participação sociopolítica das mulheres do âmbito sociopolítico para o âmbito produtivo, em virtude da sobrecarga de trabalho feminino, associada à inexistência ou inexpressão de redefinições mais igualitárias do trabalho entre os sexos. Segundo Araucária, esse contexto constitui um impasse atual da agroecologia no contexto da reforma agrária:
Mas elas se tornam produtoras e esquecem que elas fazem parte de um coletivo maior. [...] Então aqui nós temos um impasse [...]. Então me parece que na organização hoje nós precisamos compreender que tipo de debate nós precisamos fazer com as mulheres para que a ascensão econômica delas, o acesso delas à renda, não tire elas do debate político (Entrevistada Araucária, 68 anos, agosto/2018. Informação verbal).
De acordo com esses dados identificados em campo, entendemos que, embora a agroecologia possibilite maior autonomia, agência e subjetividade ativa das mulheres, essas experiências permanecem reproduzindo status de masculinidades, valorizações hierárquicas de trabalho por sexo, bem como divisões do trabalho atreladas a paradigmas de gênero colonialistas e patriarcais. Esses fatores são tensionados em alguma medida pelo aumento da escolaridade, pelo fator geracional e pela transição campo-cidade, potencializados quando colocados em conjunto com a formação sociopolítica de gênero conquistada, adquirida e negociada por ambos, homens e mulheres.
Mediante tal análise, em síntese, compreendemos que a demanda pela redefinição das divisões sexuais do trabalho em sentido mais igualitário constitui categoria relevante do processo de decolonização das relações de gênero no campo, bem como das experiências agroecológicas. Nesse bojo, a luta do feminismo camponês e popular, que internaliza a reivindicação da divisão sexual do trabalho igualitária, e se vincula à defesa da construção de uma agricultura camponesa ecológica, ligada à luta pela terra, com democracia, justiça e igualdade de gênero em sentido decolonial, torna-se fundamental.
Considerações finais
A construção de experiências agroecológicas pelas mulheres Sem Terra emerge por meio da valorização monetária e simbólica de produções diversificadas, agenciadas por mulheres em quintais produtivos, hortas e pomares. Essas ações possibilitam ampliação da autonomia, agência e subjetividade ativa feminina.
Em campo, identificamos que essas experiências não têm sido acompanhadas pela construção de divisões sexuais do trabalho mais igualitárias e significativas. Essas relações sociais passam a ser questionadas em alguma medida por mulheres com formação sociopolítica de gênero, combinada com o fator geracional, de escolarização e de transitoriedade campo-cidade.
Identificamos, em campo, que a menor idade, a maior transitoriedade campo-cidade e a maior escolaridade tendem a aumentar a autonomia, a capacidade de agência e subjetividade ativa dessas mulheres, o que facilita processos de transformações de gênero. No entanto, notamos que, por si só, isoladas ou combinadas entre si, essas três categorias não conseguem gerar transformações significativas na divisão sexual do trabalho. Isso é favorecido na medida em que se combina uma ou mais dessas três categorias (idade, escolaridade e transitoriedade campo-cidade) com a formação sociopolítica de gênero. Essa formação de gênero contribui com que essas mulheres identifiquem as desigualdades de gênero vivenciadas na divisão sexual do trabalho, ampliem sua subjetividade ativa e sua capacidade de agência no enfrentamento de desigualdades de gênero na divisão sexual do trabalho, e passem a construir relações de trabalho mais igualitárias, ampliando suas capacidades de decolonizar-se como gênero.
Além disso, identificamos que a reprodução social de hierarquias valorativas binárias e patriarcais que qualificam trabalhos executáveis por mulheres e homens do campo reforçam desigualdades de gênero na divisão sexual do trabalho e geram sobrecargas de trabalho feminino, constituindo-se como um impasse na construção da agroecologia. A reprodução social de divisões sexuais do trabalho desiguais gera ampliação das jornadas de trabalho das mulheres, bem como desgastes de seus corpos, o que acaba por impactar diretamente a qualidade da participação coletiva das mulheres em espaços de organização sociopolítica. Essa situação gera uma tendência de deslocamento da participação do âmbito sociopolítico para o âmbito produtivo e da comercialização agroecológica.
Mediante tal cenário, reivindicações históricas de movimentos feministas relativas à necessidade da divisão mais igualitária do trabalho entre os sexos permanecem atuais, tendo em vista a construção de processos decolonizadores de gênero no campo e dentro de experiências agroecológicas. Nesse bojo, a luta do feminismo camponês e popular internaliza essa reivindicação da divisão do trabalho de forma igualitária, e se vincula à defesa da construção de uma agricultura camponesa ecológica, ligada à luta pela terra, com democracia, justiça e igualdade de gênero.