1 Introdução
Este texto, derivado de pesquisa mais ampla1, que analisa o quadro normativo e as condições político-institucionais relativos à gestão democrática do ensino público no âmbito dos Sistemas Municipais de Ensino (SME) no estado do Paraná, tem por objetivo demonstrar como os órgãos normativos estão organizados e quais as possibilidades e os limites para a efetivação da participação democrática na condução das políticas educacionais locais. Para tanto, expõe e analisa a composição de Conselhos Municipais de Educação (CME), tendo em vista sua abertura para a participação de diferentes representações das comunidades locais.
A discussão acerca da constituição de SME mostra-se relevante no contexto brasileiro, visto que, historicamente, houve uma centralização do poder governamental, de forma a desconsiderar a capacidade municipal para elaborar, conduzir e avaliar políticas de interesse local. Por isso, quando os municípios optam por constituir seus próprios SME, afirmam sua autonomia na condução das políticas educacionais sob sua responsabilidade, com vistas ao envolvimento da comunidade local nessa condução.
Nesse sentido, a opção por organizar sistema próprio de Ensino pode indicar capacidade organizativa interna dos governos municipais, devidamente articulada em prol de objetivos nacionais e abertura para que a comunidade se responsabilize pela condução das políticas locais. Nesse sentido, os SME, ao serem constituídos, representam avanços em relação ao princípio da gestão democrática do ensino público, que deve reger a administração político-administrativa do país.
A organização de SME é uma possibilidade legal que indica, potencialmente, para o desenvolvimento da autonomia dos municípios em gerir a educação local. No entanto, para além da previsão legal, a organização de SME está vinculada aos encaminhamentos políticos de cada estado da federação, ao compromisso dos gestores públicos municipais e, ainda, à compreensão coletiva sobre a emergência de envolvimento democrático nas escolhas educacionais, com vistas à melhoria da qualidade da educação, tanto no contexto municipal, quanto estadual e nacional.
Para tanto, o compromisso com os rumos educacionais insere-se na discussão sobre o exercício democrático, o qual possibilita a participação do sujeito e colabora na concretização da cidadania para além dos direitos e dos deveres individuais, em prol dos interesses coletivos. Entretanto, considera-se que, na atual forma de sociabilidade, o exercício da cidadania é tênue, visto que se baseia na universalidade dos direitos políticos, sem interferir nas relações que dão sustentação à exploração do homem pelo homem. Nesse sentido, o capitalismo “[...] torna possível uma forma de democracia em que a igualdade formal de direitos políticos tem efeito mínimo sobre as desigualdades ou sobre as relações de dominação e de exploração em outras esferas” (WOOD, 2006, p. 193), deixando intacta a lógica da exploração de uma classe sobre a outra. Portanto, a democracia, nos limites da sociedade capitalista, possibilita a coexistência da liberdade e igualdade jurídica, da exploração de classe e, consequentemente, da desigualdade social.
Entretanto, ao criarem-se mecanismos de participação coletiva, que privilegiem todos os segmentos da sociedade (em especial aqueles mais afeitos às decisões a serem tomadas), a organização de CME pode colaborar para o que Gramsci (2007) chama de “vontade coletiva” e contribuir para uma educação democrática, que tenha como objetivo atingir a todos, sem qualquer privilégio de classe.
E é preciso também definir a vontade coletiva e a vontade política em geral no sentido moderno, a vontade como consciência operosa da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo.
Uma das primeiras partes deveria precisamente ser dedicada à “vontade coletiva”, apresentando a questão do seguinte modo: quando é possível dizer que existem as condições para se criar e se desenvolver uma vontade coletiva nacional-popular2? (GRAMSCI, 2007, p. 17).
Assim, o CME, como órgão do Estado e composto por diferentes segmentos da sociedade civil pode (ou não) interferir nos interesses que orientam as políticas públicas, dependendo da correlação de forças existentes em seu interior e nas possibilidades democráticas asseguradas na legislação. Por isso, a análise da organização e do funcionamento desses órgãos pode indicar em que medida a educação está sendo orientada pelo princípio constitucional de gestão democrática, e como a luta pela hegemonia se faz presente nas proposições, nas discussões realizadas e nas decisões tomadas coletivamente. Assim:
Torna-se de fundamental importância pensar as relações democráticas que ocorrem no âmbito do Estado e das relações educacionais, a fim de evidenciar a formação dos indivíduos e os compromissos que se atribuem ao sistema educacional no sentido de dar os fundamentos teóricos e normativos necessários ao desempenho no mundo do trabalho e ao exercício da democracia. (SCHLESENER, 2011, p. 176-7).
Em face dessas questões, a análise dos dados apresentada caracteriza-se como exposição da investigação realizada, não tendo a pretensão de encerrar-se em si mesma, mas a de oferecer subsídios teóricos e práticos que colaborem na compreensão dos vários determinantes que compõem a realidade histórica. Isso indica a emergência de mecanismos que possibilitem, de forma imediata, a emancipação política dos sujeitos e que tenha como objetivo maior a emancipação humana, com vistas a uma sociedade justa para toda a humanidade.
O referencial teórico-metodológico que orienta a pesquisa e as análises apresentadas é o materialismo histórico e dialético, conforme proposto por Karl Marx, tendo as categorias contradição, totalidade e práxis como fios condutores para entender a gestão democrática no contexto da atual forma de sociabilidade. Ainda, segundo o mesmo referencial, o pensamento de Antonio Gramsci oferece importante contribuição para desvelar a luta pela hegemonia que ocorre no interior dos SME, visto que, segundo esse pensador, o exercício do poder resulta da articulação entre sociedade civil e sociedade política, e que a correlação de forças existentes nas relações de classe é apaziguada pela capacidade de domínio e direção de uma classe sobre a outra. Por isso, quando uma classe detém a hegemonia, consegue deter também o poder.
Isto significa que um grupo social, que tem sua própria concepção do mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, de modo descontínuo e ocasional — isto é, quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico —, toma emprestado a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que não é a sua, e a afirma verbalmente, e também acredita segui-la, já que a segue em “épocas normais”, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma, mas sim submissa e subordinada. (GRAMSCI, 2004, p. 97).
Essa reflexão auxilia-nos a entender como determinada classe assimila de forma pacífica (e sem crítica) determinada concepção de mundo, de maneira que a hegemonia dominante se fortaleça e se mantenha como única alternativa possível para a organização da vida. Nessa perspectiva, a hegemonia torna-se força coesiva dando unidade ao pensamento e conduzindo debates, escolhas e ações conforme interesses dominantes. Por isso, as relações no interior dos órgãos normativos dos Sistemas de Ensino são contraditórias e podem evidenciar que o princípio da gestão democrática assume diferentes interpretações, conforme interesses em disputa.
A efetivação da gestão democrática no contexto municipal, portanto, não pode ser analisada sem considerar que há uma luta para manter determinados interesses, explícitos ou não, na condução da sociedade. Entende-se que essa luta pela hegemonia se evidencia desde a organização dos CME e respectivas composições, conforme representação prevista em lei específica.
Com base nessas questões, para a coleta de dados, mapeou-se a legislação sobre a constituição de SME e CME nos websites dos órgãos executivo e legislativo dos 399 municípios paranaenses. O foco da análise centrou-se nos CME de municípios que já constituíram SME no estado do Paraná. Esse recorte justifica-se em razão de que, com a constituição de SME, é necessária a existência de órgão normativo representado pelo CME.
2 A autonomia municipal para a organização de seu Sistema de Ensino
O fim do regime militar em meados dos anos de 1980 fortaleceu a ideia de que, finalmente, seria implantada uma democracia no Brasil. Esse pensamento foi corroborado pela promulgação da Constituição Federal em 1988, a qual inovou ao equipar União, Estados e Municípios como entes federados em igualdade político-administrativa quando previu em seu art. 18 que: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” (SENADO FEDERAL, 1988, p. 21) e elevou os municípios a entes autônomos quanto estabeleceu, no inciso I do art. 30, que são competentes para “[...] legislar sobre os assuntos de interesse local” (SENADO FEDERAL, 1988, p. 31).
Lagares (2008) e Soares (2017) alertam que a autonomia dos municípios ocorre nos seguintes planos concomitantes: autonomia político-administrativa, autonomia jurídico-normativa/autolegislação e autonomia financeira/tributária. A autonomia político-administrativa dá-se pela organização do aparato governamental para o atendimento dos interesses locais, conforme previsto em Lei Orgânica, sem imposição hierárquica dos demais entes federados, desde que respeitados os preceitos constitucionais. A autonomia jurídico-normativa ocorre quando o município é capaz de editar leis próprias, conforme matérias de sua competência estabelecidas nas Constituições Federal e Estadual. A autonomia financeira/tributária é a capacidade de gerir adequadamente os recursos de sua competência, sejam relativos aos tributos municipais ou transferências do Estado ou da União.
Em relação à educação, o grau de autonomia, conferido aos entes federados, assume força coesiva nas políticas para o setor quando o art. 211 estabeleceu que: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino” (SENADO FEDERAL, 1988, p. 139). Esse dispositivo indica a necessidade de cooperação entre os entes federados para com a educação, visto que cada qual tem competências e responsabilidades específicas (e concomitantes) para o atendimento educacional no país. A esse respeito, Cury (2008) alerta que:
A atual Constituição deu continuidade à tradição advinda do Ato Adicional de 1834 e dispôs pela pluralização dos sistemas, inclusive pela incorporação dos sistemas de ensino municipais (art. 211).
Esses sistemas, coexistentes ao reconhecimento de estados, municípios, Distrito Federal e União como entes federativos, teriam uma articulação mútua organizada por meio de uma engenharia consociativa articulada por um regime de colaboração entre todos eles. Tal engenharia serviria como modo de se evitar a dispersão de esforços e como meio de se efetivar um regime federativo e cooperativo na educação escolar. (CURY, 2008, p. 1199).
Nessa perspectiva, os “[...] sistemas de ensino desde logo passaram a usufruir existência legal, ficando a organização e o seu modo de funcionamento sob a esfera da autonomia dos entes federativos, obedecendo ao princípio da colaboração recíproca” (CURY, 2008, p. 1201). Dessa forma, a partir da Constituição Federal de 1988, o que orienta as relações entre os entes federados deve ser o pacto federativo, não havendo razões para relações hierárquicas entre União, Estados e Municípios.
Ao discutir a questão, Camargo (2001), considera que,
[...] pela primeira vez na história do federalismo no mundo, deu status constitucional aos municípios, reconhecendo sua existência como ente federativo em igualdade de condições com os Estados. Rompeu-se assim, a tradição constitucionalista do federalismo dual, de inspiração americana, inaugurando o federalismo tripartite, definido pelo jurista Miguel Reale como federalismo trino. (CAMARGO, 2001, p. 313).
Essa forma de organização política necessita da adesão de Estados e Municípios, com vistas à superação do modelo oligárquico (que historicamente fundamentou as ações políticas no Brasil) e à efetivação da democracia local, de forma a enfrentar as resistências de grupos conservadores, presentes na realidade brasileira e que mostram todo o seu poder em contextos menores da federação (ABRUCIO, 2005).
Em que pese o avanço da organização político-administrativa do país, não há como deixar de considerar que ainda sobrevivem “[...] resquícios culturais e políticos antirrepublicanos no plano local” (ABRUCIO, 2005, p. 49) e que “[...] diversas municipalidades do país ainda são governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é fundamental para a combinação entre descentralização e democracia” (ABRUCIO, 2005, p. 49).
No entanto, não há como deixar de considerar que a Constituição Republicana de 1988 inaugurou o que Camargo (2001, p. 313) denomina de federalismo “municipalista e participativo”, visando melhorar as políticas locais, reduzir as desigualdades sociais e fortalecer a sociedade civil e consolidar a cidadania. Os dispositivos constitucionais indicam e fortalecem a visão descentralizadora da administração pública, distribuindo competências entre os entes federados (algumas privativas, conforme estabelecido nos artigos 21, 22, 25 e 30; e outras concorrentes, conforme previsto nos artigos 23 e 24). As competências concorrentes previstas no artigo 23 colocam os municípios em situação de igualdade institucional com os Estados e a União. Contudo, o exercício da igualdade institucional prevista precisa, nas realidades locais, ser respaldado no processo de autonomia para atuar no âmbito de sua competência. Infelizmente, a autonomia municipal ainda não é realidade na maioria dos municípios brasileiros.
Além da previsão do artigo 211 da Carta Magna, conforme mencionado, a legislação infraconstitucional dispõe, no parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que: “Os Municípios poderão optar, ainda, por se integrar ao sistema estadual de ensino ou compor com ele um sistema único de educação básica” (BRASIL, 1996, p. 27835). Segundo Sarmento (2005, p. 1354), “[...] a criação do sistema municipal de ensino é uma questão estreitamente relacionada ao pacto federativo no Brasil, indo além da política de municipalização, acentuada nos anos de 1990, firmando o município a sua autonomia”.
É importante destacar que a inclusão de dispositivos legais que reconhecem a autonomia dos municípios para a elaboração de políticas locais, redistribuindo recursos e competências entre os entes federados, é resultado da correlação de forças evidenciadas no período final da ditadura militar e no processo de redemocratização posterior. Nesse contexto, destacam-se: a mobilização de grupos sociais e indivíduos no processo constituinte brasileiro, evidenciando a mobilização popular em prol de uma nova organização política e jurídica para o país; a criação da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), em 1986; a criação da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME)3, em 1992; e o crescimento de associações, grupos e entidades dispostas a empreenderem ações de planejamento, execução, acompanhamento e avaliação das ações políticas. Tais fatos, e acontecimentos decorrentes, colaboraram para o debate a respeito da descentralização e da democratização da gestão pública, colaborando para que os municípios e os sujeitos locais recebessem responsabilidades que colaborassem no processo participativo local, com vistas à melhoria das condições de vida de toda a população. No contexto do processo constituinte do período, Sarmento (2005) ressalta:
Pode-se perceber um aumento da ação dos municípios para garantir recursos e espaços de participação na defesa dos interesses locais, sendo possível entender o reconhecimento do município como ente jurídico autônomo na Constituição de1988 como uma conquista. (SARMENTO, 2005, p. 1372).
As normas constitucionais e infraconstitucionais que contribuíram para a elevação dos municípios ao patamar de ente federado autônomo, capaz de criar, organizar e fazer funcionar um SME, possibilitaram, nas realidades locais, o planejamento e a realização de projeto próprio de desenvolvimento educacional. Assim, entende-se que a existência de SME pode indicar4 a vontade política e social em promover e ampliar a participação da sociedade na gestão da educação municipal.
Segundo a indicação legal no âmbito nacional, não resta dúvida de que o Município é autônomo para mobilizar esforços para a criação de sistema próprio de ensino, ultrapassando a simples previsão legal e tornando-a real. Para tanto, entende-se que se torna necessário respeitar alguns trâmites políticos e legais que possibilitem o reconhecimento social e jurídico sobre a existência de SME: a) criação do SME por meio de Lei Municipal específica: b) criação ou reorganização do CME, de modo que se torne o órgão normativo do SME; c) organização de aparato administrativo que possibilite a operacionalização do SME (previsão e destinação de recursos financeiros, estruturais e humanos); e, por fim, d) comunicação à Secretaria Estadual e ao Conselho Estadual de Educação sobre a aprovação das Leis específicas, visando oficializar sua desvinculação do SME (em razão de que, historicamente, os municípios e suas escolas compunham o Sistema Estadual de Ensino).
Tendo o processo democrático como mola propulsora para o avanço da educação municipal, a criação de SME precisa passar pelo crivo da sociedade, ou seja, a elaboração, a discussão e a aprovação de Lei Municipal precisam fomentar o debate a respeito dos limites e das possibilidades locais para implementar o desenvolvimento educacional da educação (pública e privada) do município. Nessa perspectiva, é bom lembrar que o SME é composto não apenas pelas “[...] instituições do ensino fundamental, médio e de educação infantil mantidas pelo poder público municipal”, mas também pelas “[...] instituições de educação infantil criadas e mantidas pela iniciativa privada” e pelos “órgãos municipais de educação”, conforme estabelecido pelos incisos I, II e III do artigo 18 da Lei n° 9.394/96 (BRASIL, 1996, p. 27835). Assim, desde o processo de elaboração até a aprovação da Lei Municipal, a participação precisa ser fomentada, visto que tal lei compromete e responsabiliza diferentes sujeitos e instituições. A responsabilização coletiva pelo funcionamento do SME pode conduzir a uma participação em prol de interesses comuns.
Além disso, o artigo 11 da Lei nº 9.394/96 imputa aos municípios a responsabilidade por “[...] baixar normas complementares para seu sistema de ensino” e “[...] autorizar, credenciar e supervisionar os estabelecimentos do seu sistema de ensino” (BRASIL, 1996, p. 27835), conforme incisos III e IV, respectivamente. Para baixar normas complementares, há necessidade de um órgão normativo, que se materialize no CME. Para tanto, esse órgão necessita ter funções que o autorizem a estabelecer normas, além de acompanhar e fiscalizar seu cumprimento no âmbito municipal. Por isso, o CME, organizado e dotado de autonomia, pautado em práticas democráticas que superem interesses de classe, é tão importante para o funcionamento do SME.
Assim, a constituição de SME deveria evidenciar a vontade coletiva dos cidadãos para o envolvimento no planejamento, no acompanhamento e na fiscalização das ações político-educacionais, tanto aquelas voltadas à oferta pública quanto privada. No entanto, é preciso ressaltar que a vivência da democracia no Brasil ainda é marcada por sua história político-social, visto que, em raros momentos, a população teve a oportunidade de experimentar práticas verdadeiramente democráticas, dado que os momentos participativos vividos sempre estiveram vinculados a interesses de determinados grupos que visavam à perpetuação de seu domínio.
No contexto paranaense, a criação de SME ainda é bastante tímida se comparada a outros estados da Região Sul, posto que, em 2007, o Rio Grande do Sul já contava com 37% dos municípios com Leis de SME editadas (WERLE; THUM; ANDRADE, 2010); Santa Catarina contava com 58% (SANTOS, 2012) e em pesquisa recente Nardi (2018) indica que o estado conta com 95% dos municípios com Sistemas de Ensino instituídos. No Paraná, a organização de SME iniciou no ano de 2001. Atualmente, apenas 4% dos municípios paranaenses já constituíram sistemas próprios de Ensino e os demais continuam vinculados ao Sistema Estadual, conforme demonstrado na Tabela 1 que segue.
Total de Municípios no Estado | Municípios com Sistema Municipal de Ensino | Municípios vinculados ao Sistema Estadual de Ensino |
---|---|---|
399 | 16 | 383 |
100% | 4% | 96% |
Fonte: Websites das Prefeituras e Câmaras Municipais dos 399 Municípios do Paraná.
Nota: Dados organizados pela autora (2016).
Essa realidade indica, por um lado, a força política do Governo Estadual (independentemente da pessoa ou partido político), que detém o controle sobre a organização do ensino no estado, sendo, consequentemente, hegemônico em relação aos encaminhamentos dados à política educacional como um todo; e, por outro lado, evidencia a fragilidade dos governos locais em constituir-se em gestor autônomo em relação à educação. Os municípios paranaenses que já aprovaram leis municipais para a criação de Sistema de Ensino próprio são demonstrados no Quadro 1, a seguir.
Ano | Município | Lei Municipal de criação do Sistema |
---|---|---|
2001 | Chopinzinho | Lei nº 02, de 20 de dezembro de 2001. |
2002 | Toledo | Lei n° 1.857, de 18 de dezembro de 2002. |
Londrina | Lei nº 9.012, de 23 de dezembro de 2002. | |
Ponta Grossa | Lei nº 7.081, de 30 de dezembro de 2002. | |
2004 | Ibiporã | Lei nº 1.891, de 30 de junho de 2004. |
São José dos Pinhais | Lei nº 632, de 29 de outubro de 2004. | |
Guarapuava | Lei nº 1.394, de 8 de outubro de 2004. | |
Araucária | Lei nº 1.528, de 2 de dezembro de 2004. | |
2006 | Curitiba | Lei nº 12.090, de 19 de dezembro de 2006. |
2007 | Paranaguá | Lei nº 69, de 10 de setembro de 2007. |
2008 | Sarandi | Lei nº 1.531, de 16 de junho de 2008. |
2009 | Pinhais | Lei nº 1.059, de 28 de dezembro de 2009. |
2010 | Cascavel | Lei nº 5.694, de 22 de dezembro de 2010. |
2013 | Iguatu | Lei nº 620, de 3 de abril de 2013. |
Palmeira | Lei nº 3.592, de 13 de dezembro de 2013. | |
2016 | Telêmaco Borba | Lei nº 2153, de 24 de outubro de 2016. |
Fonte: Websites das Prefeituras e Câmaras Municipais pesquisados.
Nota: Dados organizados pela autora (2016).
Após declararem sua autonomia por meio de Lei específica, a composição dos CME e as relações internas que permeiam a normatização da educação podem representar possibilidades ou limites para a efetivação do princípio da gestão democrática. As possibilidades podem ocorrer em razão da ampliação da participação de diferentes segmentos, em especial daqueles que necessitam da educação pública e são diretamente atingidos pelas decisões do órgão, enquanto que os limites podem ocorrer em razão do atrelamento aos interesses dominantes, sem que o princípio da gestão democrática se faça presente.
Sobre questão similar, e avançando para a ingerência política, em investigação a respeito do funcionamento, durante quatro décadas, do Conselho Estadual do Rio de Janeiro, Vasconcelos, Almeida e Peixoto (2017) apontam para uma linha descendente de atuação e representatividade do órgão, conforme interesses políticos de cada período da gestão estadual, fato que indica a falta de autonomia do CEE/RJ e descontinuidade de políticas para o setor normativo. Essa questão também pode ser observada em diferentes contextos municipais, não sendo muito diferente da realidade aqui exposta.
3 A composição dos Conselhos Municipais de Educação: relações com a gestão democrática
Em que pese à organização de SME evidenciar a vontade política dos gestores municipais em validar a autonomia para com a oferta da educação no contexto local, a questão é bastante complexa, visto que necessita de certo planejamento em curto, médio e longo prazo para o funcionamento eficiente dos órgãos normativo e executivo do sistema. Quando o Governo Municipal decide pela organização de seu próprio Sistema de Ensino, ele precisa atentar para algumas ações imprescindíveis para colocá-lo em funcionamento adequado, conforme já citado anteriormente. Além disso, o CME tem, como órgão normativo, latente a materialização da gestão democrática nos contextos locais, caracterizando-se como órgão contraditório que baliza diferentes interesses e compromissos sociais, políticos e econômicos, conforme sua organização e as relações que permeiam as decisões a serem tomadas em seu interior.
Para a discussão aqui proposta, demonstramos que, em relação aos municípios paranaenses que já constituíram sistema próprio de Ensino (16), 4 instituíram CME entre os anos de 1985 e 1997 (Curitiba, 1985; Ponta Grossa, 1985; São José dos Pinhais, 1993, Iguatu, 1997). Os demais somente o fizeram ao constituírem Sistemas Municipais de Ensino a partir de 2001 (Chopinzinho, em 2001; Toledo, em 2002; Londrina, em 2002; Ibiporã, Guarapuava e Araucária, em 2004; Paranaguá e Telêmaco Borba, em 2007; Sarandi, em 2008; Pinhais, em 2009; Cascavel, em 2010; e Palmeira, em 2013).
Sendo órgão representativo dos interesses do Estado em determinado momento histórico, o CME é composto por diferentes segmentos da sociedade civil e da sociedade política, congregando forças sociais e políticas que estarão em constante disputa em razão da visão de mundo, de sociedade e, consequentemente, de educação de seus membros e dos segmentos representados. Dependendo da visão de mundo e de sociedade que se almeja, serão as defesas de seus membros e, por conseguinte, das decisões tomadas coletivamente que poderão vincular-se à manutenção ou à transformação da realidade vivida.
A composição do CME pode representar a ampliação da participação e do debate a respeito de assuntos educacionais, visto que possibilita que diferentes posicionamentos sejam confrontados e que o exercício democrático deixe de ser previsto apenas formalmente para se tornar realidade. Quando isso acontece, o CME torna-se progressista e a gestão democrática torna-se real. Entretanto, a democracia almejada e discursada pode tornar-se um engodo, caso esses órgãos colegiados de representação social e política sejam compostos por indicação viciada de membros, a qual amplia burocraticamente a participação, sem considerar a essência da democracia, podendo ser considerada como gestão democrática formal. Quando a composição ocorre dessa maneira, o CME pode tornar-se apenas executor, legitimador das ações governamentais, funcionando de forma burocrática e reacionária5.
Tendo como pressuposto que a gestão democrática de caráter progressista é aquela que tem possibilidade de colaborar na formação coletiva dos conselheiros e interferir de maneira significativa na condução das políticas de educação nos municípios, seja por meio de propostas, normas ou acompanhamento das ações governamentais, entende-se que é imprescindível a ampliação da participação de diferentes segmentos da sociedade, principalmente daqueles segmentos que serão atingidos pelas deliberações colegiadas, ou seja, daqueles que trabalham e aprendem na escola pública. Esse posicionamento sobre a participação das classes populares em órgãos colegiados corrobora a defesa de Gramsci (2004, p. 103) que “[...] a filosofia da práxis não busca manter os ‘simples’ na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior”. Por isso, para a análise, tomamos como referência a composição desses órgãos normativos, por meio dos segmentos representados, conforme apresentado na Tabela 2, a seguir.
Municípios | Araucária | Cascavel | Curitiba | Guarapuava* | Ibiporã | Palmeira | Paranaguá | Pinhais | Ponta Grossa | Sarandi | Toledo | Londrina | Telêmaco Borba | S. J. dos Pinhais | Chopinzinho | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Número de Conselheiros por Segmentos representados | Indicação do Prefeito ou SME | 3 | 3 | 7 | - | 6 | 6 | 6 | 2 | 4 | 4 | 3 | 5 | 2 | 4 | 4 |
Prof./Servidor Municipal | 4 | 3 | 2 | 2 | - | 5 | - | 4 | 2 | 4 | 3 | 4 | 1 | 3 | 2 | |
Ensino Particular | 1 | 1 | 2 | 1 | - | 1 | 1 | 2 | 3 | 2 | 2 | 4 | 2 | 1 | 1 | |
Pais e/ou comunidade | 2 | 1 | 1 | 2 | - | 2 | 1 | 1 | 2 | 2 | 1 | 1 | 1 | - | 1 | |
Outros Conselhos | 1 | 1 | - | - | - | 1 | - | 1 | 3 | 1 | 1 | - | 1 | - | 1 | |
Aluno | 1 | - | - | 1 | - | 2 | - | - | - | - | - | - | - | - | - | |
Ensino Superior | - | 2 | 1 | 2 | - | - | 1 | - | 3 | 1 | 1 | 1 | 2 | - | 1 | |
NRE | - | 1 | 1 | 1 | - | - | 1 | - | 1 | 1 | - | 1 | 1 | - | 1 | |
Poder Legislativo | - | - | 1 | 2 | - | - | 1 | - | - | - | - | 1 | - | - | 1 | |
Educação Especial | - | - | - | - | - | - | - | 1 | - | - | - | - | - | 1 | ||
Pastoral | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | - | 1 | ||
Assoc. Com. / FIEP | - | - | - | - | - | - | - | 1 | - | - | - | - | 1 | |||
Outros | - | - | - | 6 | 1 | - | 2 | 1 | 1 | 1 | 2 | 3 | 1 | - | ||
Total de Conselheiros titulares | 12 | 12 | 15 | 11 | 12 | 19 | 11 | 12 | 21 | 16 | 12 | 19 | 13 | 9 | 15 | |
Forma de composição da Presidência | Eleição pelos pares | Ind. do Pref. | Sec. Educ. |
Fonte: Leis que tratam da organização dos Conselhos Municipais de Educação nos respectivos municípios.
Nota: Dados organizados pela autora (2016).
* Indicação por lista tríplice para posterior indicação do Prefeito.
O que se evidencia nos dados levantados é que, em todos os municípios, a indicação de membros que representem o Governo Municipal se faz presente, seja pelo Prefeito ou Secretário de Educação (note-se que, no município de Guarapuava, todos os representantes são indicados em lista tríplice para posterior nomeação pelo Prefeito Municipal, indicando, dessa forma, a prevalência dos interesses político-partidários na composição do órgão). Ressalta-se, ainda, que, com exceção ao município de Araucária, em todos os demais a representação do Governo Municipal é a maior em relação a todos os demais segmentos. Essa composição pode indicar a interferência do poder público local nas discussões e nas decisões, dificultando a efetivação da gestão democrática no âmbito dos órgãos colegiados.
Sobre a possível ingerência dos gestores públicos municipais no funcionamento dos CME, destaca-se ainda que, em dois municípios, a presidência fica sob a responsabilidade do Poder Público Municipal (em São José dos Pinhais, a presidência é indicada pelo Prefeito, e, em Chopinzinho, é exercida pelo Secretário Municipal de Educação), sem a possibilidade de escolha entre os pares, fato que pode interferir na autonomia e nas ações democráticas do CME. Ainda é possível observar que a representação de movimentos sociais é praticamente nula, podendo estar inserida no segmento “Pais e Comunidade”, mas sem a garantia de que estejam efetivamente representados. A possibilidade de participação de segmentos que, historicamente, estiveram à margem das decisões políticas desperta a
[...] consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. Portanto, também a unidade de teoria e prática não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico, que tem a sua fase elementar e primitiva no sentimento de “distinção”, de “separação”, de independência quase instintiva, e progride até a aquisição real e completa de uma concepção do mundo coerente e unitária. (GRAMSCI, 2004, p. 103-4).
Desse modo, a composição do CME, em uma perspectiva de gestão democrática progressista, contribui significativamente para a compreensão da realidade, por meio de um processo que forma para o exercício democrático e transforma a coletividade, munindo-a de argumentos para a defesa dos interesses coletivos.
4 Considerações Finais
A organização de SME no Paraná, apesar de tímida, indica possibilidades de efetivação da gestão democrática nas políticas educacionais locais, visto que possibilita a participação e o debate de diferentes segmentos nas escolhas para a melhoria da educação municipal. A gestão democrática não se institui por lei ou por determinação governamental, mas é desenvolvida na experiência prática, sendo necessário o desenvolvimento de consciência coletiva.
Uma consciência coletiva, ou seja, um organismo vivo só se forma depois que a multiplicidade se unifica através do atrito dos indivíduos: e não se pode dizer que o “silêncio” não seja multiplicidade. Uma orquestra que ensaia, cada instrumento por sua conta, dá a impressão da mais horrível cacofonia; porém, estes ensaios são a condição para que a orquestra viva como um só “instrumento” (GRAMSCI, 2007, p. 333).
Por isso, a organização de SME e CME, deliberativos e propositivos pode colaborar para o desenvolvimento coletivo com vistas a práticas democráticas que vão além da representatividade formal prevista na democracia liberal, indicando possibilidades de interferir nos rumos das políticas e das realidades locais.
Nessa perspectiva, a gestão democrática no interior dos SME precisa ser entendida para além da determinação legal, de forma a evidenciar tanto suas possibilidades quanto seus limites no âmbito da gestão educacional. Destarte, a questão não se fecha em análises parciais, mas demonstra a emergência de aprofundar a discussão a respeito, visando apreender o máximo das determinações da realidade.