Os últimos anos testemunham um movimento inédito na trajetória da Educação no Brasil: a tentativa de perfilamento das políticas educacionais, de forma a garantir o alinhamento dos currículos da Educação Básica e da Educação Superior (no que tange aos processos de formação de professores), dos processos de produção e avaliação de recursos didáticos (especialmente livros didáticos distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e os procedimentos de avaliação (tanto os de larga escala, voltados para a Educação Básica, quanto os que incidem sobre os cursos de graduação - licenciatura, especialmente). Por meio de tais políticas, ganha corpo um sistema nacional de educação: um conjunto de entes, políticas, instrumentos e agentes articulados, coerentemente, promovendo o que deve ser a Educação Básica3.
Destacamos três evidências desse movimento: a formulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a reorientação dos editais do PNLD e a promulgação de novas diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores. Vinculadas a partir da BNCC, elas assumem a reformulação e a implementação do currículo comum como a panaceia da Educação Básica. Uma vez implementados, desaparecerão o fracasso escolar e as desigualdades entre alunos das redes privadas e públicas.
No presente artigo, pretendemos analisar um dos aspectos da política educacional projetada - as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação Inicial de Professores para a Educação Básica, formuladas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) (BRASIL, 2019b) - problematizando o modo pelo qual ela encaminha a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), tendo como parâmetro as licenciaturas em História. Uma vez que as diretrizes propostas não anulam a política educacional de caráter afirmativo (BRASIL, 1996, 2003, 2004a, 2008, 2015), torna-se relevante dimensionar o modo pelo qual o desenho pensado para a formação inicial promove saberes docentes que capacitem o professor para o enfrentamento do racismo e de seus desdobramentos.
Trabalhamos, então, com os seguintes conjuntos de documentos: as diretrizes para a formação docente aprovadas pelo CNE desde o início do século - considerando as resoluções e os pareceres que as sustentam; a legislação educacional, com destaque para a de caráter afirmativo; e 47 percursos curriculares de cursos de formação de professores de história, oferecidos por instituições públicas4. Os percursos analisados neste texto foram levantados a partir de consulta ao Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior e-MEC (BRASIL, 2020).
Tais documentos foram analisados a partir do conceito de currículo (GOODSON, 1995; SILVA, 1999). Assim, todos são percebidos como expressões de tensões em torno do que e de como ensinar e de que tipo de professor se tem como horizonte. Da mesma forma, distinguimos currículo prescrito e currículo em ação, de modo que o que analisamos a seguir é a projeção de formação docente, a partir do que conforma a documentação analisada. O conceito de discurso foi acionado, considerando os diferentes textos como enunciados em um diálogo mais amplo, cujo contexto atribui sentido às posições assumidas (BAKHTIN, 1988). Para categorização dos dados, recorremos à análise de conteúdo (BARDIN, 2016).
O artigo está dividido em duas partes. Na primeira delas, situamos como se encaminham os cursos de licenciatura em História, considerando a sua estrutura e o lugar que, neles, ocupam as disciplinas voltadas para a Educação para as Relações Étnico-Raciais. Na segunda, problematizamos o impacto das diretrizes propostas para os cursos de formação de professores de História e como elas dimensionam os saberes necessários a uma educação antirracista.
Formação de professores de História e Educação para as Relações Étnico-Raciais
Os cursos de formação de professores de História participam da tradição dos cursos superiores de formação docente no Brasil. Pensados como desdobramentos dos cursos de bacharelado, constituíram-se tendo o saber historiográfico como eixo a partir do qual promoveu-se, antes de tudo, a formação do historiador centrada na pesquisa histórica, a qual não se confundia com as questões do ensino (CERRI, 2013). A constatação é antiga, e as evidências que a sustentam alimentam as críticas contemporâneas.
Boa parte das licenciaturas em História incidem nos mesmos problemas apontados décadas atrás. Elas partem da premissa de que o domínio do saber historiográfico é suficiente para o enfrentamento dos desafios e demandas da história escolar. Não por outra razão, as disciplinas historiográficas conformam a espinha dorsal dos cursos, dispensando pouco espaço para reflexões que relacionem o saber historiográfico e os saberes docentes (CAIMI, 2006; FERREIRA; FRANCO, 2008; CAVALCANTI, 2018). Assim pensadas, as licenciaturas em História relegam a segundo plano as discussões sobre dois fatores essenciais à efetivação da História como saber disciplinar relevante na Educação Básica: a especificidade do saber histórico escolar e o contexto da educação brasileira e do público atendido por ela.
Em reflexão anterior, apontamos o diminuto espaço que as discussões em torno da docência e da Educação para as Relações Étnico-Raciais ocupavam em dez cursos de formação de professores de História (COELHO, M.; COELHO, W., 2018). Nesta oportunidade, ampliamos o universo de instituições e apresentamos os dados parciais de uma pesquisa em andamento. Consideramos os percursos curriculares de 47 cursos de formação de professores de História com o objetivo de perceber como se estrutura a formação de professores e o lugar que nela ocupa a formação para o trato do racismo e seus desdobramentos. Antes, porém, de considerarmos os dados, tenhamos o conta o que encaminham as diretrizes construídas no âmbito das políticas afirmativas.
As Leis nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008) conformam um aparato legal que reorienta o currículo e a abordagem da História do Brasil no âmbito da Educação Brasileira. Menos que introduzir conteúdos relativos à História da África, da Cultura Afro-Brasileira e da História dos Povos Indígenas, elas postulam uma reformulação da forma pela qual a História do Brasil tem sido percebida. Engendrada a partir da movimentação da sociedade civil, em especial dos movimentos negros e indígenas, a legislação demanda uma crítica à perspectiva eurocêntrica e o reconhecimento da ação propositiva de africanos, indígenas e negros nos processos que conformam a trajetória histórica brasileira.
Conforme já apontamos em outros trabalhos, sua implementação implica na alteração de perspectivas que informam a narrativa histórica escolar e a historiografia brasileira, desde sua conformação no século XIX (COELHO, W.; COELHO, M., 2013). A produção historiográfica nacional constituiu-se desconsiderando parcelas significativas do povo brasileiro - negros, indígenas, pobres, mulheres - conformando o que se convencionou chamar de paradigma da exclusão (CHALHOUB; SILVA, 2009). Consolidou-se uma narrativa demarcada pela centralidade da europa (assumida como epicentro da história do mundo e gênesis da História do Brasil), calcada no protagonismo de grandes personagens - brancos, via de regra - em eventos nos quais as elites definiam os rumos da vida brasileira.
Ora, a crítica a essa orientação demanda mais que a inclusão de conteúdos. Ela exige a crítica ao eurocentrismo, a inclusão de outros personagens e a valorização dos processos nos quais estes últimos têm participação efetiva. No entanto, não é só para o passado que a legislação se volta. Comprometida com o combate ao racismo e a promoção de uma educação antirracista, a sua implementação requer, também, a reflexão sobre o racismo e seus desdobramentos, sobre como ele se institui no espaço escolar, como afeta crianças e adolescentes e sobre como combatê-lo. Pois, uma e outra demandas da legislação estão ausentes dos cursos de formação de professores de História.
Os dados coletados apontam que os cursos se organizam em torno de uma narrativa sequencial e linear que assume a trajetória europeia como o espaço que movimenta a História. Ela é assumida como o foco gerador dos processos que atingem e criam outros espaços - como África, Ásia e América. Considerem o seguinte. Os percursos analisados estão estruturados em semestres. A formação vem sendo oferecida em cerca de nove semestres. Vejamos, então, a distribuição das disciplinas e suas temáticas pelos semestres, conforme o gráfico a seguir:
O gráfico aponta os picos de incidência de disciplinas historiográficas (disciplinas cujas ementas abordam o conhecimento historiográfico), por meio de recortes espaciais e temporais. Como o modelo quadripartite é universal, no espectro de percursos analisados, identificamos as disciplinas que tratam da Antiguidade e das idades Média, Moderna e Contemporânea. Da mesma forma, as disciplinas relativas à História do Brasil e da América estão divididas por abordagens temporais - colonial, independente e republicana. Em muitos percursos curriculares, há disciplinas voltadas para o trato da temática regional, de modo que também a identificamos.
Pois, o gráfico evidencia os semestres com maior incidência de registros das disciplinas historiográficas, por meio de seus recortes espaciais e temporais, considerando o modelo quadripartite e a identificação das disciplinas voltadas para a História do Brasil, da América e Regional. Os picos apontam as recorrências na maior parte dos cursos. Conforme se pode observar, o trato da Antiguidade coincide com o início dos percursos curriculares - eventualmente, ele se prolonga pelo segundo semestre, quando o recorte é tratado em duas disciplinas. Via de regra, então, os(as) futuros(as) professores(as) iniciam o seu contato com o discurso historiográfico por meio do trato da Antiguidade. Em seguida, da Idade Média, abordada no segundo semestre da formação. A Idade Moderna é inserida no terceiro semestre, quando encontra as histórias da América e do Brasil. A Idade Contemporânea é introduzida no quinto semestre, concomitantemente à emancipação da América. A História Regional não conhece expressão senão no final dos percursos analisados.
A sequência cronológico linear não sugere a incorporação da crítica encaminhada pela legislação. O que se verifica é a incorporação de disciplinas ocupadas com a história da África e a história dos povos indígenas, sem relação com a narrativa consagrada pela tradição. Porém, conforme estudo anterior, elas mais tratam da Europa e de como ela se relacionou com os povos conquistados do que do modo como na África e na América os processos históricos conheceram outras dinâmicas não demarcadas desde o Velho Mundo (COELHO, M.; COELHO, W., 2018). Ademais, a comparação do volume de disciplinas destinadas ao espaço europeu com aquelas que têm a África ou os povos indígenas como objeto - ainda que seja como objetos do interesse europeu - é evidência do descompasso com a legislação voltada para o combate ao racismo, conforme aponta o gráfico a seguir.
Como se vê, o contraste entre os volumes de disciplinas é significativo. Porém, mais eloquente que a diferença de espaço que as temáticas relativas à legislação de caráter afirmativo conhecem é a abordagem: mesmo as disciplinas ocupadas com as temáticas previstas pela legislação têm na Europa o epicentro dos processos históricos abordados. Ademais, as discussões sobre o enfrentamento do racismo no ambiente escolar, expressas no trato das diretrizes para a ERER, são presentes apenas em 14 disciplinas, distribuídas por 47 percursos curriculares. Até o presente momento, arrolamos mais de 60 disciplinas ocupadas com o mundo medieval...
O enfrentamento do racismo e de seus desdobramentos não se faz, somente, com a reformulação das matrizes curriculares. A discussão sobre os processos de ensino e aprendizagem sobre abordagens didático-pedagógicas voltadas para abordagem de temas sensíveis - como o racismo - e sobre o modo como ele afeta crianças e adolescentes e sua relação com o mundo (e a Escola, especialmente) são fundamentais para que as demandas da sociedade civil sejam efetivadas. Vejamos, então, como as licenciaturas em estudo dispensam espaço para os saberes didático-pedagógicos.
Retomamos o pressuposto firmado por Flávia Caimi, segundo o qual para ensinar História é preciso dar conta de três dimensões - da história, dos processos de ensino e aprendizagem e do sujeito que aprende (CAIMI, 2009). A relevância da reflexão formulada por Caimi consiste na construção de uma síntese que abrange os saberes docentes, os quais não se vinculam por ordem de importância, mas sim de necessidade. O que se ensina, como se ensina e para quem se ensina são fatores cuja expressão depende dos demais - especialmente, do sujeito que aprende, do que ele pode, precisa ou deve aprender, de como se pode ensinar e promover aprendizagem, considerando as suas condições etárias e socioeconômicas, a sua bagagem cultural e acadêmica, o espaço no qual se insere etc.
A consideração de Flávia Caimi se coaduna, ainda, com as reflexões sobre a especificidade do saber histórico escolar (MONTEIRO, 2007) e com as discussões sobre a aprendizagem em História - independentemente da perspectiva de qual se parte (RIBEIRO; RIBEIRO JÚNIOR; VALÉRIO, 2016). A História ensinada na escola é resultado de uma construção específica, comprometida com os objetivos da Escola e permeada pela cultura escolar. Ela é fruto de uma operação que articula o conhecimento historiográfico, os saberes didático-pedagógicos, as demandas do currículo, a experiência do professor, entre outros fatores. As discussões em torno da aprendizagem em História vêm considerando os processos cognitivos que concorrem para a compreensão do saber histórico, tendo a epistemologia da disciplina ou as teorias da aprendizagem da criança e adolescente como horizonte.
A seguir, então, sopesamos o espaço destinado às três dimensões dos saberes docentes nos percursos de formação de professores de história. Como se trata de pesquisa em andamento, os dados não são conclusivos, eles apontam o estágio da análise neste momento. No entanto, eles confirmam dados consolidados em pesquisa anterior e em outros trabalhos sobre as licenciaturas, tendo por base recortes mais restritos.
O gráfico acima reúne as disciplinas de formação didático-pedagógica dos cursos em análise. Reunimo-las em categorias, de modo a dar conta do seu escopo: (a) Aprendizagem - processos de avaliação da aprendizagem; (b) Currículo - discussão das teorias do currículo; (c) Didática - estudos da Didática Geral; (d) Educação de Jovens e Adultos (EJA) - especificidade da modalidade; (e) Fundamentos - princípios da Educação, considerando perspectivas da filosofia, da sociologia e dos estudos educacionais; (f) Gestão - gestão educacional; (g) História da Educação - trajetória da Educação; (h) Interlocução - interface da História com a Educação; (i) Legislação - legislação educacional; (j) LIBRAS - fundamentos da Língua Brasileira de Sinais; (l) Metodologia do Ensino de História - encaminhamentos didáticos demandados pela História na Educação Básica; (m) Ofício - aspectos que afetam a profissão docente; (n) Pesquisa Educacional - questões teóricas e metodológicas da pesquisa em Educação; (o) Políticas Educacionais - projetos e políticas educacionais no Brasil; (p) Psicologia da Aprendizagem - teorias da aprendizagem; (q) TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação para fins educacionais.
O gráfico aponta que apenas as disciplinas voltadas para a metodologia do ensino de História e para as psicologias da aprendizagem são comuns a todo o universo em estudo. Ambas têm ao menos 47 incidências, número equivalente aos percursos curriculares levantados. Chama a atenção o fato de disciplinas que operem a interlocução entre os saberes docentes serem exceção - encontramos apenas nove incidências nos 47 percursos analisados. Ele aponta o modo pelo qual a formação do professor de História se dá na formação inicial ofertada.
A seguir, consideremos os saberes sobre o sujeito que aprende: alunos(as) da Educação Básica, crianças, adolescentes e adultos. Os percursos em estudo apontam duas disciplinas voltadas para o trato com o(a) estudante: o ensino da Linguagem Brasileira de Sinais e o trato com as teorias da aprendizagem. As disciplinas de LIBRAS e de Psicologia da Aprendizagem são soberanas - e exclusivas - no trato desta dimensão dos saberes docentes. O contexto socioeconômico dos(as) alunos(as), os estudos sobre adolescência e juventude - especialmente sobre cultura juvenil - e o modo como elas se relacionam com a Escola não fazem parte do repertório de preocupações dos cursos.
Na sequência, os saberes didático-pedagógicos. Via de regra, os cursos oferecem disciplinas sobre os fundamentos da Educação - filosofia e/ou sociologia da Educação - e sobre a estrutura da Escola e da organização do sistema educacional - gestão, legislação, políticas educacionais e etapas da Educação Básica. Questões basilares da atuação docente são abordadas de modo rarefeito, como as discussões sobre currículo e o ofício. Mesmo a história da educação não é ofertada em mais da metade dos cursos em estudo. Registre-se, ainda o parco espaço destinado à pesquisa educacional e o trato com a rede mundial de computadores - instância onipresente na vida hodierna e recurso recorrente no cotidiano de adolescentes e jovens.
No que se refere ao saber histórico, verifica-se que os percursos curriculares compreendem a ação do professor como uma operação de caráter instrumental. Significativo nesse sentido é a universalização de disciplinas sobre como se ensina História - didáticas específicas e metodologias de ensino da História. Ao lado da disciplina de Didática Geral, presente na maior parte dos percursos, as didáticas/metodologias específicas estão em todos eles. Em regra, trata-se de uma única disciplina voltada para os processos de transformação do saber historiográfico em saber escolar.
Os percursos curriculares em estudo permitem a consolidação de algumas conclusões. Em primeiro lugar, o pouco espaço destinado à narrativa histórica escolar nas licenciaturas em História. O modo pelo qual se instituiu uma tradição que excluiu africanos, indígenas e negros dos processos constituintes de nossa trajetória como país e como nação não conforma uma discussão estruturante em boa parte dos percursos analisados. Em segundo lugar, a análise sobre os saberes docentes que tais percursos encaminham sugere ser recorrente uma compreensão de que o trabalho do(a) professor(a) de História é traduzir o conhecimento historiográfico para crianças, adolescentes e adultos da educação básica. Em terceiro lugar, os percursos evidenciam não haver discussões sobre os(as) estudantes, considerando seu contexto socioeconômico e histórico. Em quarto lugar, a formação oferecida não dispensa a atenção necessária ao enfrentamento ao Racismo, quer consideremos a narrativa encaminhada pela sequência de disciplinas historiográficas e pelas abordagens presentes nas disciplinas voltadas para o trato de África, Cultura Afro-brasileira e dos Povos Indígenas, quer tenhamos em conta o lugar (ou a ausência dele) das discussões sobre o Racismo e o modo como ele se expressa na cultura escolar.
Das habilidades que desabilitam: a (in)diferença nas novas diretrizes
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER) estipulam que o trato das questões que afetam o Racismo e concorrem para uma Educação sensível à Diferença e à Diversidade compreende mais que o domínio de conteúdos. Conhecimento científico sobre as relações sociais, sobre os processos de construção das identidades e sobre os sistemas de reconhecimento recorrentes na sociedade brasileira (e seus desdobramentos) é necessário. Além dele, os(as) professores(as) devem encaminhar processos didático-pedagógicos que discutam as categorias étnico-raciais presentes em nossa sociedade, que problematizem e exponham o racismo, que critiquem as narrativas tradicionais sobre a nossa formação e que reconheçam os diferentes pertencimentos étnico-raciais. Tais questões demandam compromisso - com o combate ao racismo, com processos de aprendizagem que engendrem inclusão e com o reconhecimento da Diversidade como um fator positivo (BRASIL, 2004b).
A consideração sobre as competências gerais e específicas que os(as) docentes devem desenvolver nos percursos de formação inicial, segundo as novas diretrizes para a formação docente, desconsideram as diretrizes, formuladas pelo mesmo conselho, para o trato das relações étnico-raciais na Escola. Nenhuma delas reconhece o Racismo como um fator estruturante das relações construídas no ambiente escolar, e tampouco levam em conta seus desdobramentos na formação oferecida, seja na perpetuação de valores que reiteram as hierarquias baseadas na cor, seja no impacto que ele exerce na conformação da identidade de crianças e adolescentes.
Nesse sentido, as novas diretrizes desabilitam um dos princípios da Educação Básica, conforme ele está estabelecido em nossa Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN):
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988, grifo nosso).
A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores (BRASIL, 1996, grifo nosso).
O pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania exigem, por suposto, a apropriação de valores que ensejem os princípios de igualdade, do convívio e do respeito às diferenças. No que tange ao Racismo, a desconsideração de suas especificidades e de seu alcance concorrem para a sua reprodução e seu fortalecimento na cultura escolar.
A ERER participa da formação da pessoa, do preparo para o exercício da cidadania e afeta o mundo do trabalho. O racismo e seus desdobramentos afetam as identidades individuais, o acesso aos bens públicos e a inserção no mundo do trabalho (FERREIRA; CAMARGO, 2011; SILVÉRIO; TRINIDAD, 2012; MACHADO JÚNIOR; BAZANINI; MONTAVANI, 2018; ANUNCIAÇÃO; TRAD; FERREIRA, 2020). Logo, o trato do racismo demanda encaminhamentos didático-pedagógicos específicos, conforme propõem as DCNERER.
Ocorre que as habilidades a serem desenvolvidas pelos licenciandos, segundo as novas diretrizes para a formação docente, sugerem o contrário. Para tanto, as diretrizes adotam a concepção de competências, tal como ela é acionada pela BNCC (BRASIL, 2017). As diretrizes enfatizam a importância das competências socioemocionais na educação de crianças, adolescentes e adultos, posto que elas consistem em “capacidades individuais que se manifestam de modo consistente em padrões de pensamentos, sentimentos e comportamentos” (BRASIL, 2019a, p. 12). Para promovê-las, os futuros professores devem desenvolver outras competências, além das previstas pela BNCC.
As competências docentes, então, seriam aquelas previstas pela BNCC, para a Educação Básica, e outras, específicas do professorado. Estas últimas são reunidas em três dimensões: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional. O conhecimento profissional compreende “a aquisição de saberes que dão significado e sentido à prática profissional realizada em âmbito escolar” (BRASIL, 2019a, p. 16) - tais saberes são relacionados aos conteúdos curriculares e ao que deve ser feito com eles. A prática profissional, assim, é fator relevante nos processos de formação inicial. O conhecimento pedagógico - “conhecimento pedagógico do conteúdo, ou seja, a forma como esses são trabalhados em situação de aula” (BRASIL, 2019a, p. 16) - é, pois, valorizado. O engajamento profissional é entendido como um compromisso ético e moral consigo mesmo, com o aluno e com a comunidade escolar (BRASIL, 2019a, p. 17).
As diretrizes encaminham dez competências gerais da docência (BRASIL, 2019a, p. 17), as quais são acompanhadas por doze competências específicas, relacionadas às três dimensões supracitadas (BRASIL, 2019a, p. 17-18). As competências específicas são relacionadas a 62 habilidades, as quais serão retomadas na última parte deste artigo. Além das competências e habilidades, as diretrizes encaminham alguns fundamentos pedagógicos para os cursos de licenciatura: (a) aprofundamento da competência leitora e domínio da norma culta; (b) domínio de metodologias inovadoras alinhadas à BNCC; (c) vínculo entre ensino e pesquisa, com foco nos processos de ensino e aprendizagem; (d) uso de linguagens digitais para o desenvolvimento de competências relacionadas ao que prevê a BNCC; (e) avaliação permanente do processo formativo; (f) gestão do trabalho docente; (g) assunção da Escola como espaço de formação docente; (h) atenção à formação integral do docente, compreendendo competências, habilidades e valores; (i) capacidade de tomar decisões com base em dados (BRASIL, 2019a, p. 22).
Os cursos de formação de professores, então, devem desenvolver competências gerais, relacionadas a três dimensões - conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional. Cada uma dessas dimensões é acompanhada de competências específicas e de habilidades. As competências relacionadas ao conhecimento têm 21 habilidades vinculadas. As relativas à prática perfazem 22 habilidades. Aquelas concernentes ao engajamento compreendem 19 habilidades. Consideremo-las.
As habilidades relacionadas ao conhecimento profissional dizem respeito a quatro dimensões: os objetos de conhecimento; os estudantes e como eles aprendem; e os sistemas educacionais. Em relação à primeira dimensão, elas preveem a apreensão dos objetos de conhecimento, especialmente (mas, não só) daqueles previstos pela BNCC. Elas não avançam na reflexão sobre a epistemologia das disciplinas e sobre os embates teóricos que afetam a produção do saber histórico escolar. As habilidades, neste caso, voltam-se para a memorização dos conteúdos, e não o seu domínio conceitual. No que se refere à segunda, elas traduzem pressupostos a serem considerados na formulação de estratégias de ensino e o reconhecimento da situação socioeconômica dos alunos. Elas não encaminham reflexões sobre os processos cognitivos demandados pelos saberes disciplinares e, tampouco, sobre como as condições socioeconômicas e a bagagem cultural dos estudantes afetam os processos de ensino e aprendizagem. O mesmo ocorre com o domínio dos sistemas educacionais - eles precisam ser reconhecidos pelos(as) licenciandos(as).
As habilidades vinculadas à prática profissional são associadas a outras quatro dimensões: planejamento, gestão, avaliação e aplicação de processos de ensino e aprendizagem. Os(as) licenciandos(as) devem ser capazes de planejar atividades em acordo com o que prevê a BNCC e promover situações de aprendizagem. Novamente, não há considerações sobre os processos de construção do saber escolar e a reflexão sobre as matrizes teóricas que o informam. Encaminhamento análogo é dado à gestão de ambientes de aprendizagem - o(a) professor(a) deverá ser capaz de formulá-lo e geri-lo. Quanto à Avaliação, o(a) professor(a) deverá ser capaz de aplicar procedimentos de avaliação e de interpretar o desempenho dos estudantes, especialmente os obtidos nas avaliações em larga escala. Dá-se o mesmo na condução de práticas pedagógicas - o(a) futuro(a) professor(a) terá de ser capaz de aplicar práticas pedagógicas condizentes com o que estabelece a BNCC - as habilidades requeridas não encaminham reflexões. A prática profissional é percebida como o domínio da técnica.
As habilidades concernentes ao engajamento profissional são associadas a outras quatro dimensões: comprometimento com o desenvolvimento profissional e com a aprendizagem dos estudantes e a participação no projeto pedagógico da escola e no trato com as famílias e a comunidade. O desenvolvimento profissional se concretiza na responsabilidade do próprio professor com a sua formação, de modo a dar conta das demandas da Escola. Já o comprometimento com a aprendizagem se dá pelo reconhecimento de princípios estabelecidos pelas diretrizes, e não na sua discussão e reflexão. A participação no projeto pedagógico supõe colaboração - crítica, questionamento e reflexão são formulações não previstas. Por fim, o engajamento com as famílias e a comunidade exige o estabelecimento de canais de diálogo, com vistas ao compartilhamento de responsabilidades e a busca de apoios.
Em reflexão sobre o lugar das habilidades na formulação do pensamento físico, Ricardo Karam e Maurício Pietrocola (2009) refletem sobre a importância do conhecimento matemático no processo de ensino da Física, em que distinguem habilidades técnicas e estruturantes. Segundo os autores, a Física demanda umas e outras. As técnicas estariam “relacionada[s] ao domínio instrumental de algoritmos, regras, fórmulas, gráficos, equações, etc.” (KARAM; PIETROCOLA, 2009, p. 190) e as estruturantes se voltariam para o uso da matemática em domínios externos a ela - ou seja, a compreensão do conhecimento matemático de forma que se possa “pensar matematicamente os fenômenos do mundo físico, ou, de ler esse mesmo mundo por meio de uma linguagem matemática, ou ainda, de estruturar o mundo físico por meio da matemática” (KARAM; PIETROCOLA, 2009, p. 194).
A discussão nos parece produtiva. Ela permite considerar que tipos de habilidades as diretrizes para formação de professores encaminham. Segundo nossa análise, elas privilegiam o desenvolvimento de habilidades técnicas - voltadas para o uso instrumental dos conhecimentos didático-pedagógicos e dos saberes de referência, muito em acordo com o que supõe ser necessário para a economia do século XXI. As habilidades enfatizam o que os(as) licenciandos(as) devem saber fazer, e não o que devem conhecer para cumprir com os objetivos previstos para a Educação Nacional. Evidência disso é a total ausência de habilidades que se voltem para o trato das questões étnico-raciais.
Reconhecer diferenças, como sugerem as novas diretrizes, não é o mesmo que compreender os processos que engendram desigualdades. Esta última operação demanda reflexão e uma postura crítica diante das manifestações de desigualdade, em especial daquelas que se desdobram do Racismo. Sem o necessário investimento no domínio teórico sobre como o Racismo se manifesta, não é possível planejar processos didático-pedagógicos que promovam a sua crítica e a sua eliminação. O comprometimento profissional é essencial, mas é dever e responsabilidade do Estado garantir que os professores tenham acesso à formação continuada, especialmente quando ela concorre para a melhoria das condições de oferta da Educação Básica, afetando a formação de crianças, adolescentes e adultos inseridos na Educação Básica.
A ausência de reflexões e encaminhamentos efetivos para a ERER tem desdobramentos deletérios. Posto estarem relacionadas às discussões sobre Diferença e Diversidade, elas participam, conforme já apontamos, dos processos de construção da identidade - individual e coletiva. Elas afetam o modo pelo qual cada um e cada uma percebe a si mesmo, seu lugar no mundo, seus limites e suas possibilidades. A cultura escolar participa, ainda, dos processos de construção da identidade nacional, especialmente a partir do modo pelo qual a narrativa histórica escolar é abordada (COELHO, 2019). Assim, não incluir o que preveem as DCNERER tem implicações no modo pelo qual as identidades podem ser abordadas na Escola, especialmente na percepção dos atributos de cor, raça e etnia na construção de desigualdades.
Considerações finais
Neste artigo, analisamos um dos aspectos da política educacional projetada - as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação Inicial de Professores para a Educação Básica, formuladas pelo CNE (BRASIL, 2019b) - problematizando o modo pelo qual ela encaminha a ERER. Tendo os cursos de formação de professores de história como escopo de nossa preocupação, apontamos o lugar (ou a ausência dele) das DCNERER nas diretrizes propostas para os cursos de formação inicial.
A análise das competências e habilidades a serem apropriadas pelos(as) futuros(as) professores(as), sugere que a formação se confunde com a instrumentalização do(a) licenciado(a) no domínio de práticas, de fazeres que se voltam para a operacionalização da BNCC e para a melhoria de desempenho dos alunos e alunas da Educação Básica nos exames de avaliação em larga escala, conforme já tem sido apontado pela literatura especializada. No entanto, quando consideramos os cursos de licenciatura em História, percebe-se que o princípio adotado pelas diretrizes é, em linhas gerais, o mesmo de parte dos cursos em atividade.
Neles, a formação docente é percebida como a instrumentalização do historiador para o trato com a história escolar, assumida como a tradução do conhecimento historiográfico para fins didáticos. O espaço destinado aos saberes didático-pedagógicos e a apropriação que fazem do que encaminham os princípios da ERER apontam, sim, que as novas diretrizes têm enorme potencial para afetarem o lugar ocupado pelo conhecimento historiográfico. É significativo, neste sentido, o que encaminham as diretrizes no que tange à prática profissional, conforme citamos páginas atrás: “conhecimento pedagógico do conteúdo, ou seja, a forma como esses são trabalhados em situação de aula” (BRASIL, 2019a, p. 16). As disciplinas de natureza historiográfica, voltadas para o trato da epistemologia da história, das correntes historiográficas, dos modelos explicativos sobre períodos, temas, problemas etc., tendem a perder espaço para disciplinas que abordem como se deve ensinar isso ou aquilo, conforme estipula a BNCC.
As diretrizes anunciam um impacto ainda maior na formação do professor de História, considerando o modo pelo qual o percurso formativo encaminha conhecimentos sobre o saber a ser ensinado, sobre como ensinar e sobre o(a) aluno(a). Ao desvincular os saberes de referência dos saberes docentes, considerando estes últimos como o domínio de habilidades de ordem técnica, elas restringem as contribuições que o saber histórico encaminha: a consideração de diferentes perspectivas, a investigação, a análise de contexto e a formulação de questionamentos. Esses atributos do saber histórico têm o potencial de tornar a sala de aula um espaço de produção de conhecimento e de edificação de uma atitude de questionamento afeita à formação da pessoa, ao exercício da cidadania e à situação no mundo e, por extensão, no mercado de trabalho.
A efetivação das diretrizes propostas pode tornar ainda mais restrito o espaço da ERER nos cursos de formação de professores de História. Conforme apontamos, o espaço é limitado e não promove a alteração ou a crítica da perspectiva eurocêntrica. A ausência de remissões às DCNERER, todavia, pode suprimir discussões, a considerar o pouco espaço que África, Cultura Afro-Brasileira e Povos Indígenas ocupam na BNCC. Mas isso é outra história!