Introdução
No Brasil, o uso do celular pelo aluno na Educação Básica é um assunto polêmico: quando não é proibido, é restrito2. No entanto, no Ensino Superior a proibição, quando ocorre, é prerrogativa do professor, ele faz opção por permitir ou não o uso do celular na aula, essa sua opção pode compor ou não o plano de ensino da disciplina. Nem sempre o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) dispõe de elementos que amparem ou orientem o professor sobre sua decisão.
Além disso, no que diz respeito à formação propiciada pela licenciatura, a realidade do campo de atuação do egresso impele a superar um paradigma que exclui ou relega a um lugar marginal, conhecimentos que possibilitariam ensinar por meios digitais, saber o que fazer diante de situações que envolvem o celular na aula e compreender o que a mobilidade representa e o quanto pode contribuir em processos de ensino e aprendizagem. Sem incorrer em apologia ou determinismo, (MANFRÉ, 2009) urge reconhecer que em sociedade e na educação as tecnologias tanto carregam limitações, quanto possibilidades. Afirmam Sonego e Behar (2019, p. 523) que há um “[...] leque de possibilidades para a realização de atividades com os smartphones e tablets, potencializando o desenvolvimento da m-learning. Contudo, para que isso aconteça, torna-se pertinente que, nos cursos de formação de professores, ocorram situações inovadoras.”
Os esforços para promover uma formação que inclua esses conhecimentos e propicie a apropriação crítica das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) têm se mostrado incipientes e os avanços pouco significativos. Gatti et al. (2019, p. 51) reconhecem que, apesar das renovadas propostas e das orientações dos documentos oficiais, “[...] das esperanças com as novas tecnologias, tivemos continuidade, na concretude da educação básica e da formação de professores, da prevalência de uma ‘alma antiga em um mundo novo’”.
As TDIC se distinguem das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) pela presença do digital. Das tecnologias digitais, destacamos os celulares, conceituados por Lopes e Pimenta (2017, p. 59-60) como “[...] computadores portáteis interligados na internet, com inúmeros recursos internos, capazes de filmar, tirar fotos, produzir montagens, gravar o áudio que o usuário desejar, além de oferecer uma grande variedade de acesso aos aplicativos”.
Por reunir em um único aparelho todos esses recursos, o celular com acesso à Internet móvel tornou-se comum na vida de crianças e jovens. Em ambientes sociais diversos, “O celular segue ocupando o tempo do sujeito” (MARTINS, 2018, p. 155) e modificando hábitos. No âmbito da educação, “[...] o aluno já não é mais o mesmo e não atua como antes. Ele não lê mais em material impresso e prefere ler nas telas. [...] Prefere os tutoriais online ou os vídeos no YouTube para entender como as coisas funcionam.” (VALENTE, 2018, p. 17).
Diante desse cenário, a cada dia, mais professores são confrontados com tecnologias que entram na sala de aula pelas mãos dos alunos, exortados a ver os celulares e outras tecnologias móveis “[...] como um canal educativo alternativo, onde os alunos podem agora adquirir conhecimento em qualquer lugar” (VAGARINHO, 2018, p. 273). A suspensão das aulas presenciais, em decorrência das medidas para conter a pandemia de Covid-19, período no qual se vivenciou, como nunca, a educação por meios digitais, acentuou a reflexão sobre as possibilidades e os limites de aprendizagem pelo celular e outras tecnologias em todos os níveis da educação brasileira (FETTERMANN; TAMARIZ, 2021).
Das discussões sobre tecnologias móveis na educação, destaca-se o termo “mobile learning” (m-learning), cujo significado varia de um estudo para outro, mantendo-se comuns os atributos: flexibilidade de tempo e local de aprendizagem; aprendizagem em rede; possibilidade de comunicação assíncrona e síncrona, entre outros, conforme constatou Vagarinho (2018). Fundamentadas em Silva (2013, p. 129), pressupomos que m-learning é mais que a possibilidade de acessar o ambiente virtual e se comunicar de qualquer lugar a qualquer momento, “[...] envolve também, interação, colaboração, aulas on-line, pesquisas, publicações etc., distribuídas nas redes, nos ambientes educacionais em formatos e mídias diversos”. O uso de um dispositivo móvel em uma atividade isolada na aula pode não se caracterizar como m-learning (SONEGO; BEHAR, 2019).
Esses e outros pressupostos deram margem a uma pesquisa de pós-doutoramento, que teve como objetivo geral, investigar o uso de celular nas aulas de cursos superiores, na perspectiva de como o professor universitário vê e lida com esse fenômeno3, o que pensa sobre aula com tecnologias e que conhecimento tem sobre m-learning. Os objetivos específicos consistiram em: averiguar como os formadores de professores veem o uso de celular pelo aluno em sala de aula e como lidam com esse fenômeno, quando se manifesta; categorizar o posicionamento assumido pelo professor diante de situações com uso do celular pelo aluno na aula universitária; evidenciar o tratamento conferido ao fenômeno “uso de celular pelo aluno na aula” em cursos superiores na modalidade licenciatura.
Ainda tratando dos objetivos específicos, a pesquisa buscou: identificar o papel atribuído pelo professor universitário à tecnologia digital na aula e discutir a relação entre esse papel e o posicionamento acerca do uso de celular pelo aluno em sala de aula; perscrutar se o professor que leciona em curso de licenciatura relaciona a sua prática pedagógica e o seu posicionamento relativo ao celular nas suas aulas à futura prática pedagógica do aluno que está formando para lecionar na Educação Básica. Ademais, pretendemos verificar se o posicionamento do professor formador em face do uso do celular pelo aluno na aula se estende a demais tecnologias e que significado(s) atribui ao m-learning.
Percurso metodológico
Desenvolvemos um estudo de cunho qualitativo4, sendo os dados coletados por questionário on-line, aplicado a 115 professores de seis cursos de licenciatura5 de uma universidade pública estadual, localizada em Presidente Prudente, Estado de São Paulo. Fundamentadas em Moreira e Caleffe (2008), elaboramos um questionário, contendo 29 perguntas fechadas, acompanhadas de perguntas complementares abertas, e uma pergunta aberta, utilizando o Google Forms para a aplicação6. O convite para participação foi renovado três vezes, por e-mail. Obtivemos 51 questionários respondidos que, excluindo as duplicidades, chegamos a um total de 48 respondentes. Nem todos os participantes se identificaram.
Na análise, os participantes são nomeados Professor 1 (P1), Professor 2 (P2) e, assim, por diante. Agrupamos os dados em três eixos7, o primeiro focaliza o celular na aula e seus desdobramentos e tem como referencial teórico Silva (2013), Fagundes (2008) e outros; o segundo investiga a docência universitária em tempos de tecnologias digitais e móveis, amparado em Pimenta e Anastasiou (2010), Sandholtz, Ringstaff e Dwyer (1997), entre outros; o terceiro prioriza a formação para o uso das TDIC propiciada aos estudantes nas licenciaturas, fundamentado em Gandin e Gandin (2003) e outros. Considerando os objetivos específicos, anteriormente explicitados, por eixo de análise, o primeiro eixo busca contemplar o primeiro, o terceiro e o sexto objetivos específicos; o segundo eixo atende aos segundo e quarto objetivos específicos; o terceiro eixo é voltado ao quinto objetivo específico.
A coleta dos dados ocorreu em 2019, no ano seguinte, o mundo vivenciou a pandemia, ocasionada pelo novo Coronavírus, e o consequente isolamento social. Nesse período, no Brasil, as aulas presenciais foram suspensas e a educação ocorreu por meios digitais, exceto nos casos em que esses não estavam acessíveis, como mostram os resultados da pesquisa Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) Educação 2020 (NICBR, 2021a). Em caráter emergencial, professores e alunos acostumados ao ensino presencial imergiram nas TDIC, o acesso à Internet foi maximizado e o uso de WhatsApp, YouTube, Google Meet e Zoom tornou-se frequente, segundo o Painel TIC Covid-19 (NICBR, 2021b). Nesse processo, notebook e celular, em especial, smartphone, passaram a ser ferramentas de trabalho e de estudo, prevalecendo entre os alunos o dispositivo móvel, conforme aponta o relatório supracitado.
No que diz respeito ao celular, o que se viu foi que ele passou de dispensável a indispensável, de acessório à essencial, tornando-se a principal ferramenta de estudos aos estudantes, em todos os níveis. A educação ocorreu “em casa”, por meio dos equipamentos disponíveis no ambiente familiar e doméstico. Para muitos, esse equipamento foi o celular com acesso à Wi-Fi móvel. Sem aprofundar o assunto, este cenário coloca em evidência o celular como instrumento cujo papel foi ressignificado durante o ensino não presencial.
O celular na aula e seus desdobramentos
Perguntamos ao professor, se os alunos usam celular durante as aulas que ele ministra na graduação, se em suas aulas o uso do celular pelo aluno é liberado ou proibido, se esse uso o incomoda, se já passou por algum conflito em sala de aula envolvendo o uso do celular pelo aluno, se alguma vez o uso do celular fez parte de uma atividade didática em suas aulas e se, do seu ponto de vista, o uso do celular na aula pelo aluno é um problema. O Gráfico 1 contém uma síntese das respostas obtidas.
De fato, diferentemente da Educação Básica, a Educação Superior não normatiza o uso do celular pelo aluno em sala de aula ou de qualquer outra tecnologia móvel, dando margem a possíveis conjecturas, a saber: este assunto não é merecedor de atenção nesse nível de ensino; o celular atrapalha (pode atrapalhar) a aula somente no Ensino Fundamental e no Ensino Médio; o celular é algo a ser tratado, estritamente, no âmbito pedagógico, não havendo questões éticas e/ou legais implicadas no uso da tecnologia móvel com acesso à Internet em sala de aula.
Constatamos que 40 (83,3%) dos 48 professores teriam utilizado o celular em ao menos uma atividade didática. No entanto, desses professores, nove (22,5%) não descreveram a atividade. Os 31 restantes foram vagos em sua descrição, restringindo-a ao nome de uma metodologia ou tecnologia ou local ou, ainda, indicando uma ou mais atividades genéricas.
Constatamos, ainda, que para 27 dos 48 professores o uso do celular na aula incomoda quando ocorre nas situações apontadas na Tabela 1.
Ocorrências (N) | |
---|---|
Não relacionado à aula | 21 |
Atrapalha a aula | 05 |
Dispersa o aluno | 03 |
Uso prolongado | 03 |
Não autorizado pelo professor | 01 |
Filmar ou fotografar a aula | 01 |
Total | 34 |
Fonte: Questionário aplicado em 2019.
N = Número de ocorrências (há respondentes que indicaram mais de uma situação).
Esse resultado pode ter relação com a falta de percepção sobre como a mobilidade afeta o espaço-tempo da aula. Conforme esclarece Silva (2013, p. 126),
Nas cidades contemporâneas, novos fluxos estão existindo, permitindo assim uma redefinição do uso do espaço e criando possíveis “lugares digitais”. [...] Com a popularização do uso de dispositivos móveis, que atualmente possibilitam conexão constante com a internet, não faz mais sentido dissertar sobre a desconexão entre espaço físico e digital: um novo conceito emerge, denominado “espaço híbrido”.
Partindo dessa perspectiva, o uso não planejado do celular na aula pelo aluno poderia ser interpretado como indício da necessidade de distinguir a aula universitária antes e depois de instaurada a mobilidade.
Dados os seus atributos, a mobilidade propiciada pelas tecnologias digitais favorece modos de agir e pensar distintos, compondo uma cultura que se diferencia da existente em outras épocas. A cultura da mobilidade, assim conceituada por Lemos (2009) e também abordada por Lucena (2016), “não é uma novidade e não nasce com os dispositivos portáteis digitais e as redes sem fio da sociedade da informação” (LEMOS, 2009, p. 30), no entanto, para Lemos (2009, p. 29), “Com a atual fase dos computadores ubíquos, portáteis e móveis, estamos em meio a uma ‘mobilidade ampliada’ que potencializa as dimensões física e informacional”, moldando práticas sociais que “invadem” a sala de aula. Nas palavras de Martins (2018, p. 93), “É um nunca se desligar, nunca se desconectar dos espaços virtuais, é estar constantemente além do espaço físico em que seu corpo se encontra”.
Para 31 (64,58%) dos 48 professores o uso do celular pelo aluno na aula é um problema quando ocorre conforme verificado na Tabela 2.
Ocorrências (N) | |
---|---|
Distrai ou atrapalha | 19 |
Respondeu sem apontar quando seria um problema | 18 |
Sem relação com a aula | 13 |
Muito tempo utilizando o celular | 03 |
Denota falta de interesse pela aula | 02 |
Em branco | 01 |
Total | 56 |
FONTE: Questionário aplicado em 2019.
N = Número de ocorrências (há respondentes que indicaram mais de uma situação).
O apontado nas tabelas 1 e 2 sugere que o que causa incômodo, tende a tornar-se um problema ou pode ser visto como um problema, o qual cabe ao professor resolver, na ausência de normas ou orientações. Em outras palavras, aos olhos desses professores, o celular, em si mesmo, não, necessariamente, é um incômodo ou um problema. Quando o professor responde “depende”, ao ser indagado acerca desse assunto, apontando o lado bom e o lado ruim do uso, esse posicionamento pode ser visto como uma tentativa de enxergar o celular como parte do processo de ensino e aprendizagem, o que representaria um avanço diante da realidade emoldurada por Policarpo e Bergmann (2021, p. 11):
Com a evolução das tecnologias digitais, a sociedade se adaptou e se apropriou delas, incorporando-as em muitas atividades cotidianas, principalmente o smartphone, que se converteu na extensão de nossas mãos. Por outro lado, quando entramos no ambiente escolar, essa questão e essa mudança parecem ser esquecidas, e as tecnologias digitais são muitas vezes rechaçadas e tachadas como de uso exclusivo para o lazer, que não podem ser incorporadas no processo pedagógico dentro da escola.
Ao questionamento sobre o que pensa que o aluno está fazendo quando o vê utilizando o celular na aula, as respostas “alguma atividade não relacionada à aula” e “demonstrando falta de interesse pela aula” totalizam 24, que equivalem a 50% do total de participantes. Também indagamos o que o professor faz em tais circunstâncias e as respostas que sinalizam intervenção (o professor convida o aluno para compartilhar com todos o que tanto atrai a sua atenção; repreende-o; pede que se retire da sala; cobra que cumpra o que está previsto no plano de ensino da disciplina; diz para desligar; interrompe a aula até que ele percebe que está trabalhando; interrompe a aula e discute o assunto) somam 23 (47,9%). Aqueles que deixam que o aluno continue utilizando o celular correspondem a 15 (31,25%). Apuramos, assim, que o uso do celular pelo aluno na aula é tratado de modos distintos pelo professor, assentados em diferentes concepções de ensino e aprendizagem, levando-se em conta os dizeres de Fagundes (2008) sobre práticas pedagógicas que informam concepções sobre o uso de tecnologias digitais em contextos educacionais.
O celular não é mais uma tecnologia em sala de aula ou uma distração, não se trata do aparelho e suas funções ou da Internet acessada pelo mesmo, mas da mobilidade enquanto traço cultural, a presença dos dispositivos móveis torna a sala de aula um “espaço híbrido” (SILVA, 2013, p. 127) diferente daquele que constituía a aula presencial de outras épocas.
O papel atribuído ao celular na aula por esses professores pode ser interpretado a partir da ausência dos termos mobile learning, m-learning ou aprendizagem móvel em suas respostas, indicando que esse conceito não compõe a sua base de conhecimentos para a docência (SHULMAN, 1986). Isso explicaria a não percepção da mobilidade na aula e de como ela pode fazer a diferença nas situações que envolvam seu uso. No entanto, adquirir esse conhecimento não é algo simples, nem rápido, se considerados os pressupostos de Fagundes (2008) sobre as concepções subjacentes às práticas com tecnologias digitais, bem como o perfil e as atribuições do professor universitário descritos por Pimenta e Anastasiou (2010).
A docência universitária em tempos de tecnologias digitais e móveis
Estudos apontam as fragilidades do professor para o exercício da docência em cursos superiores (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010), uma delas é a sua formação, a outra é o rol de atividades que desempenha na universidade, o qual inclui ensino, pesquisa, extensão e gestão, concomitantemente. Considerando essas particularidades, e, supondo que o ensino com TDIC é ainda mais desafiador a um professor egresso de cursos cuja ênfase não é a docência, que atua em instituições nas quais, de longa data, faltam políticas de valorização de práticas de ensino inovadoras (CANDAU, 1987), questionamos os participantes sobre o envolvimento do curso nas questões pertinentes ao uso do celular em sala de aula.
As perguntas observadas no Gráfico 2 foram formuladas a partir da hipótese de que nos cursos superiores os professores estão sozinhos na tarefa de decidir o que fazer em situações de sala de aula que envolvem o uso de tecnologias como o celular pelo aluno, as quais podem ter desdobramentos indesejáveis, do ponto de vista ético e normativo.
Como mostram os resultados da pesquisa, dos 48 respondentes, 25 (52,1%) entendem que a coordenação do curso não deve se ocupar de questões relacionadas ao uso do celular pelo aluno em sala de aula (Gráfico 2), enquanto 23 (47,9%) compreendem o contrário.
A autonomia do professor em sala de aula e o entendimento de quais são as suas atribuições justificam o posicionamento de 84% dos professores que responderam que o uso do celular na aula não é assunto da coordenação do curso.
Das ações atribuídas à coordenação prevalecem: promover discussões, orientar tanto professores quanto alunos e conscientizar. Assim, do ponto de vista de 23 (47,8%) participantes, essas ações caberiam à coordenação do curso nas questões pertinentes ao uso do celular em sala de aula, as quais incluem as colocadas por Zuin e Zuin (2018, p. 419):
[...] se cada aluno puder acessar as redes sociais durante as aulas, ele será por si só capaz de se concentrar e, assim, controlar o vício da compulsão à conexão? De que modo o professor seria considerado uma figura de autoridade pelos alunos, se cada um deles interrompesse a aula para atender e responder a uma chamada dos pais por meio de seus celulares?
A Tabela 3 apresenta o que informaram os 25 (52,1%) professores que responderam que o projeto pedagógico do curso no qual lecionam trata do uso de tecnologias em sala de aula pelo professor ou pelo aluno (Gráfico 2).
Ocorrências | |
---|---|
Por meio da(s) disciplina(s) do curso | 12 |
Relacionadas às DCN/pressupostos teóricos/Aborda as TDIC e seu uso em sala de aula em linhas gerais | 04 |
Créditos para utilização das TDIC | 01 |
Resposta contendo desvio de foco/vaga | 08 |
Total | 25 |
FONTE: Questionário aplicado em 2019.
Observando a tabela acima, num primeiro momento, chama a atenção o total de oito respostas contendo desvio de foco ou vagas, que somadas às dez que indicaram “não sei responder”, correspondem a 37,5% do total de participantes. Alheio a elementos que compõem o PPC, o professor se torna expropriado dos fins aos quais se destina o trabalho em sala de aula. Este quadro tende a contribuir para reforçar o entendimento de que o celular na aula presencial é uma ameaça e não um aliado. Se, conforme afirmam Sandholtz, Ringstaff e Dwyer (1997), a adesão do professor é fundamental para a integração de tecnologias a processos de ensino e aprendizagem, como aderir ao que desconhece?
Num segundo momento, chama a atenção o número de respostas que se referem às disciplinas do curso, sendo 12 de 25, (correspondentes a 48%), fornecidas à pergunta que indagou sobre como o uso das TDIC em sala de aula comparece no PPC. Entretanto, nem todos identificam a disciplina.
Em síntese, dos 25 professores que afirmaram que o PPC trata do uso das TDIC em sala de aula, 12 se referiram a disciplinas, mas desse total, 07 (58,3%) não identificaram a disciplina. No geral, dos 12 professores, somente um (8,3%) identificou a disciplina a qual se referiu.
A realidade descrita por esses professores de cursos de licenciatura distintos parece convergir e compor um quadro que não é novo, não há novidade no que apontam, exceto pelo fato de que as tecnologias móveis estão transformando o espaço da sala de aula em um espaço híbrido (SILVA, 2013), e, se ontem, as questões giravam em torno do domínio de tecnologias para o trabalho pedagógico em sala de aula, hoje dizem respeito às noções de tempo e espaço que o professor tem e que sustentam a sua concepção de aula e os seu trabalho no ensino. Os efeitos do tratamento conferido às tecnologias móveis na aula universitária podem se estender à Educação Básica, campo de atuação do egresso do curso de licenciatura.
Formação e ensino com TDIC
Tendo em vista os resultados de pesquisas sobre a formação para o uso das TDIC em cursos de licenciatura (LOPES; FÜRKOTTER, 2016; 2020), investigamos a referida formação nos cursos nos quais lecionavam os participantes de nosso estudo. Ao fazê-lo, consideramos a influência, sobre o estudante, do trabalho pedagógico com TDIC na aula universitária, conforme apontada por Gandin e Gandin (2003).
Aos professores formadores perguntamos: do seu ponto de vista, o curso de licenciatura prepara o futuro professor para lidar com questões relacionadas ao celular na sala de aula da Educação Básica? O curso de licenciatura em que você leciona tem disciplinas obrigatórias sobre tecnologias na educação? O curso de licenciatura em que você leciona tem disciplinas optativas sobre tecnologias na educação? Você vê relação entre a sua prática pedagógica (o seu trabalho em sala de aula) e a futura prática pedagógica do aluno do curso de licenciatura, supondo que ele venha a exercer a profissão, no que diz respeito à presença e ao uso de tecnologias na aula? As respostas obtidas compõem o Gráfico 3.
Voltando o olhar para o estudante de cursos que formam professores e considerando as práticas pedagógicas as quais está submetido na universidade, bem como à influência delas sobre a constituição de seus quadros referenciais para a docência, tendo em vista o Gráfico 3, verificamos que, aos olhos de 42 (87,5%) professores formadores, os cursos de licenciatura não preparam o futuro professor para lidar com questões que envolvem o celular em sala de aula.
Segundo os participantes, disciplinas obrigatórias e optativas voltadas à formação para o uso das TDIC compõem o currículo dos cursos de licenciatura (Gráfico 3). Disciplinas obrigatórias existem no curso para 22 (45,8%) professores e não existem para 26 (54,2%). Quanto às optativas, existem para 12 (25%) professores e não existem para 36 (75%). Dos participantes que apontaram optativas, quatro as identificaram e oito disseram desconhecer, não lembrar ou não saber.
Não sendo isoladas, frases pouco consistentes relacionadas à identificação das disciplinas, tais como “Não me lembro o nome exato da disciplina agora” (P38), “Existe uma disciplina que pretende abordar o assunto” (P28) e “Disciplina relacionada às tecnologias assistivas” (P48), sugerem distanciamento entre o respondente e o objeto da pergunta. Sendo a aplicação do questionário on-line e assíncrona, o PPC e a matriz curricular poderiam ser consultados pelo participante, caso desejasse.
Os professores também responderam à pergunta “Você dá aula com tecnologias?”. Dos 48 participantes, 41 (85,4%) assinalaram “sim” e sete (14,6%) “não”.
Ao todo, 39 professores indicaram a tecnologia e a situação de uso, apontando o verificado na Tabela 4, com a ressalva de que um mesmo professor apontou mais de uma tecnologia.
Total por categoria | |
---|---|
PowerPoint/Data show/projetor multimídia/slides | 19 |
Celular/smartphone/tablet | 15 |
Jogos virtuais/gamificação/simulações virtuais/animações/softwares diversos/calculadora | 14 |
Computador/notebook | 11 |
Internet (acesso, pesquisa, criação de página)/banco de dados/blog | 11 |
Filmes/documentários/vídeos | 10 |
Aplicativos não identificados | 07 |
YouTube (acesso, manutenção de canal)/Google Classroom/plataformas diversas/videoconferência | 06 |
Google Maps/GPS/satélites | 03 |
Lousa digital | 01 |
FONTE: Questionário aplicado em 2019.
Das tecnologias apontadas, PowerPoint, Datashow, projetor multimídia e slides têm o maior número de ocorrências, o que sugere serem as mais utilizadas entre os professores pesquisados. Respostas como a de P26 reforçam a ideia de que, ainda hoje, a aula expositiva é a base do trabalho pedagógico no Ensino Superior: “Uso PowerPoint, faço pesquisas pela internet durante a aula expositiva, mostro vídeos da internet”. Tais enunciados deixam a impressão de que, até pode haver novidade no ensino, mas a aula expositiva continua ali, compondo o cenário, tanto quanto o PowerPoint e/ou o Datashow. Este resultado pode ser compreendido à luz de Marcelo (1998), que aponta a dificuldade de mudar concepções construídas ao longo dos anos de escolaridade e sedimentadas na formação profissional. Neste caso, o que esses professores universitários estão evidenciando é a educação como a conhecem.
Considerações finais
Durante a pandemia de Covid-19, deflagrada em março de 2020, a suspensão das aulas presenciais mobilizou as universidades públicas brasileiras e escancarou o quanto estamos despreparados para realizar a educação em qualquer outro formato que não seja o presencial. Tecnologias até então evitadas e marginalizadas, tornaram-se o único meio possível para a educação. O ensino remoto emergencial eclodiu num cenário educacional refratário às TDIC, marcado por empecilhos históricos à sua implementação. Esse cenário tornou mais tenso o trabalho pedagógico em ambientes virtuais e on-line.
Estudos como os de Chaib (2002) e Pacheco, M. L. S (2019) afirmam que os professores são resistentes ao uso de tecnologias no ensino. Resistência, nesse caso, significa não aderir. Entretanto, a pandemia mostrou que a educação por meio de tecnologias pode deixar de ser uma escolha. As vivências desse período, no qual, segundo Gatti (2020, p. 39), “O uso de recursos virtuais entrou em foco e suas qualidades e seus problemas estão sendo experimentados”, sugerem avaliar se na educação brasileira o que se tem são “professores do presencial” ou professores, qualquer que seja a modalidade de ensino.
Especula-se se no pós-pandemia a relação do professor com as tecnologias será a mesma, aquela que existia antes de iniciadas as aulas não presenciais. Do ponto de vista de Gatti (2020, p. 37-38), haverá “[...] a integração no trabalho pedagógico dentro dos espaços escolares daquilo que as diferentes mídias podem oferecer à educação, com mediações motivadoras dos professores, criando nova distribuição dos tempos para as aprendizagens e utilizando espaços variados”. O desafio, segundo a autora, está em pensar a qualidade da educação sob novos valores, nesse sentido, Gatti (2020, p. 38) lembra que “[...] sem o evento da pandemia já se percebia o quanto o trabalho escolar vinha perdendo significado para adolescentes e jovens”. A possibilidade de mudança na/da educação no pós-pandemia é vislumbrada pela autora nos seguintes termos: “Não se trata de criar modelos novos para a educação escolar, de modo abstrato, artificialmente. Trata-se de criar condições coletivas para construir e assumir novas formas de pensar e de agir no que se refere às funções e ao trabalho escolar” (GATTI, 2020, p. 38).
Educar por meio de tecnologias no Brasil não é simples, melhor dizendo, educar no Brasil não é simples, a começar pelo acesso à Internet, que não é o mesmo para todo brasileiro, e a aquisição de equipamentos de custo elevado. Talvez por isso, o que se viu durante a pandemia foi improviso (LOPES; COIMBRA, 2022).
Diante desse cenário, apresentamos neste artigo resultados de uma pesquisa, na qual buscamos responder à seguinte questão: como o professor universitário, que leciona em curso de licenciatura, portanto, formador, vê e lida com o uso do celular pelo aluno na aula, o que pensa sobre aula com tecnologias e que conhecimento tem sobre m-learning?
Por meio da aplicação on-line de questionário a professores, de cursos de licenciatura de uma universidade pública paulista, constatamos que o uso do celular pelo aluno na aula é realidade em cursos de formação de professores e 16,7% do total de professores universitários participantes do estudo não se incomodam com este uso. Entre aqueles que se incomodam, sobressaem-se as seguintes situações: quando o celular não é parte da aula e quando atrapalha a aula aos olhos do professor. Sobre o celular como parte da aula, 83,3% dos professores informaram ter integrado o celular a, pelo menos, uma atividade didática, porém nem todos a descreveram, quando solicitados, talvez, porque, retomando Sonego e Behar (2019, p. 516), “[...] o fato de utilizar um dispositivo móvel para desempenhar uma atividade isolada em aula pode não se caracterizar como m-learning”.
Verificamos que os professores assumem posturas diversas quando o aluno utiliza o celular durante a aula, todas têm em comum a intervenção com finalidade de “trazer o aluno de volta para a aula”, como se nela ele não estivesse buscando eliminar o ineliminável traço que compõe os ambientes sociais, atualmente, a saber, o espaço híbrido (SILVA, 2013). Além disso, do ponto de vista cultural e das práticas sociais atuais, “[...] o indivíduo móvel é um nômade” (SILVA, 2013, p. 125), sendo este um traço dos estudantes dos cursos de licenciatura.
Hoje o celular vai para a aula presencial pelas mãos do aluno, portanto, não está lá como um meio didático, diferentemente do que ocorre em uma aula remota, em que o celular se torna ferramenta que viabiliza a participação. Salvo exceções, os professores não se mostram propensos a proibir o uso do celular pelo aluno na aula universitária, mas a restringir ou a coibir o uso que não tem relação com a aula, interpelando o aluno, numa tentativa de conscientização. Resta reconhecer que na aula os alunos tendem a manter o que fazem fora dela e praticar o que Primo et al. (2017) chamam de conversações fluidas, traço social e cultural que permanece, ainda que o aparelho seja desligado.
Sugerem os resultados que em sala de aula o dispositivo móvel incomoda tanto quanto qualquer outro objeto ou evento não previsto no planejamento. O celular não é considerado elemento que marca e demarca a cultura de determinada época. Do ponto de vista pedagógico, o papel atribuído ao celular na aula parece ser o mesmo imputado a qualquer outra tecnologia: pode ser incorporado à aula, desde que não altere sua essência. De um lado, os professores entendem que a aula expositiva torna o aluno mais propenso ao uso do celular, de outro, PowerPoint e Datashow se destacam na descrição de suas aulas com TDIC. Alguns professores lamentam a falta de formação para o uso das tecnologias, outros a falta da própria tecnologia, indicando que a precariedade que afeta a Educação Básica também atinge a Educação Superior.
Entre os professores não há consenso sobre o envolvimento da coordenação de curso no encaminhamento de questões pertinentes ao uso de celular em sala de aula, parte deles, (52,1%) entende ser sua a decisão, outorgada por sua autonomia. O restante (42,9%) aponta a promoção de discussões, orientação, conscientização, auxílio no estabelecimento de normas e regras, como ações passíveis de serem implementadas pela coordenação de curso.
Aos olhos dos professores formadores, os cursos de licenciatura nos quais lecionam não formam para o uso de tecnologias digitais e móveis na Educação Básica, apesar de uma ou outra disciplina obrigatória ou optativa voltada ao tema compor o currículo de cada curso. Lendo o que escreveram sobre a aula universitária, indagamos: do ponto de vista epistemológico, terá passado a época dos alunos enfileirados em sala, copiando no caderno anotações da lousa? Para quem?
Se, antes, os alunos se entretinham copiando, mecanicamente, conteúdos da lousa, enquanto conversavam, hoje, o meio é o celular ou smartphone. Em qualquer época, os alunos buscam manter-se ativos na aula, ainda que as suas ações sejam interpretadas como divergentes do planejado. Do ponto de vista de alguns professores, o celular atrapalha a aula, no entanto, não deveria a aula ser planejada para um “aluno tecnológico” (TEZANI, 2017; PACHECO, C. A. 2019)? Para educar os “nascidos na era digital”, assim identificados por Palfrey (2011), será preciso uma nova geração de professores, como vislumbrada em Maryville University (2020), que supere a “geração pré-hipertexto” mencionada por Barreto (2002)?
Essas questões, aqui apenas explicitadas, exortam à reflexão. Talvez não se trate dos professores, estritamente, mas de um conjunto de fatores que, combinados, tornam a educação cada dia mais precarizada e o ensino impermeável a mudanças. É preciso incentivo para inovar e não se pode esquecer que, há décadas, nas universidades públicas brasileiras, o ensino na graduação é relegado a segundo plano, a política institucional contribui para a manutenção deste quadro, por exemplo, pelos indicadores de avaliação docente em cada instituição, os quais, muitas vezes, priorizam atividades de pesquisa, que devem ser valorizadas, porém, não em detrimento do ensino na graduação.
Esse pano de fundo é determinante para as atividades de ensino, para as escolhas dos professores e, portanto, para o tratamento conferido ao celular na aula. Não se trata apenas de discutir se o seu uso é permitido ou não, tampouco o seu potencial para a aprendizagem, mas de compreendê-lo como elemento cultural de determinada época, que altera o espaço-tempo da aula. Se toda prática pedagógica é também social, será possível dissociar o ensino da vida fora da sala de aula? Essa discussão não é nova, já era travada por John Dewey, na década de 1930, e por outros que a ele se seguiram; nova é a mobilidade propiciada pelos meios digitais, presente na vida daqueles a quem se busca educar e também dos educadores. Fora da sala de aula o cenário muda, (re)organizando-se em torno dos meios tecnológicos e midiáticos emergentes, dando margem, por exemplo, ao surgimento do que hoje se conhece por cidadania digital. Partindo-se do pressuposto de que as instituições de ensino não são isoladas da sociedade, mas parte indissociável dela, e, como tal, refletem-na em seu interior, como a educação tem acompanhado tais mudanças sociais?
Sem pretender responder a essas questões, o exposto aponta a necessidade de ter professores universitários em condições de repensar a aula no contexto da mobilidade digital, que percebam que a educação é mutante, como mutante é a sociedade. No que tange ao celular, cabe analisar se na educação essa é uma questão meramente pedagógica. Partindo da premissa freiriana de que todo ato pedagógico é, também, político, o tratamento dispensado ao celular pode ser visto como indício das concepções de sociedade, educação, ensino e aprendizagem. Indo além, talvez, o celular na aula cause desconforto porque a sua presença e uso forçam a reconhecer o que sempre foi possível negar com outras tecnologias: a iminente necessidade de mudança. Pois, se, antes, na educação, a tecnologia era evitável e podia ser mantida fora da sala de aula, hoje não mais. Embora seja possível desligar o aparelho, não se pode anular os seus efeitos, pois a questão nunca foi o dispositivo ou a Wi-Fi, apesar do inconveniente que possam causar, mas o sujeito, que, como afirma Silva (2013), já não é mais o mesmo em tempos de mídias digitais e redes sociais.
Retomando o título deste artigo, os resultados apresentados sugerem que, no atual cenário educacional brasileiro, o celular na aula representa desafio aos professores e possibilidade aos alunos. Do ponto de vista pedagógico, a possibilidade se transforma em desafio para cursos de licenciatura “impermeáveis” a traços constitutivos da sociedade atual, tanto na prática pedagógica, quanto no currículo, como se o digital e a mobilidade existissem apenas fora da educação formal, ou, existindo, não a afetassem. Esse desafio se estende aos futuros professores, que, sozinhos, terão que decidir o que fazer com dispositivos móveis na sala de aula da Educação Básica e se relacionar com alunos que nem sempre compreendem.