Considerações iniciais
O presente trabalho objetiva discorrer sobre a vida e as relações de Domenico1 Caon com a obra A Divina Comédia, poema épico escrito por Dante Alighieri. Domenico foi um imigrante italiano nascido em 1876, na província de Pádua, Itália; veio ao Brasil com os pais e irmãos quando tinha 12 anos. Depois de se casar, estabeleceu domicílio em Nova Treviso, região do atual município de Nova Roma do Sul, na época segundo distrito de Antônio Prado, pertencente à Região Colonial Italiana (RCI), no nordeste do estado do Rio Grande do Sul. Este estudo justifica-se no papel singular que Domenico Caon assumiu na sociedade em que esteve inserido, e na sua trajetória de vida, marcada por práticas de leitura, em especial relacionadas à obra em questão, que merecem um aprofundamento de interesse da História Cultural e da História da Educação.
A discussão aqui proposta encontra embasamento, portanto, em autores de ambas as áreas. É uma operação genealógica (BARROS, 2007), com base na concepção de operação historiográfica de Michel de Certeau, que parte da utilização das fontes para a compreensão de um fenômeno, neste caso envolvendo os laços familiares e a vida do investigado (BARROS, 2007). De sua biografia podem ser evidenciadas variáveis, como a caracterização socioeconômica, o desempenho profissional, de grupo e comunidade que são relevantes para a compreensão dos processos de alfabetização (MAGALHÃES, 1994).
As buscas feitas correspondem ao período que vai desde o nascimento de Domenico Caon até o seu falecimento, respectivamente os anos 1876 a 1949, e foram feitas em arquivos civis de nascimentos, matrimônios e óbitos, consultando a imprensa regional conservada na Hemeroteca Digital Brasileira, e em acervos de Estado e de imigração.
Ao pensar em um imigrante-leitor, características evidentes de Domenico Caon, introduz-se a ideia de práticas de leitura, apresentada por Batista e Galvão (2002), cuja aplicação permite entender não apenas o significado do ato da leitura naquele contexto, mas focalizá-lo a partir de uma dimensão interdisciplinar, com significações plurais, em especial no que diz respeito às relações entre texto e sujeito. Assim, pode-se entender, ao menos em parte, como Domenico realizou apropriações da obra e cultivou, ao longo da vida, o amor pelo poema de Dante. Essa perspectiva também se apoia na micro-história2, por uma discussão que muda a perspectiva de análise (LEVI, 2017) ao reduzir a escala de observação.
O trabalho foi dividido em quatro partes, incluído este início, em que foram explicados a temática, os recortes, as escolhas, as bases teóricas utilizadas e o foco que este trabalho dá ao objeto de estudo. Em seguida, apresenta-se a biografia de Domenico do seu nascimento até o momento da imigração da família ao Brasil; mais adiante, passam-se a discutir suas práticas de leitura e o amor que nutria por A Divina Comédia; e, por último, são realizadas as considerações finais, buscando sintetizar o objetivo do trabalho, as buscas e os resultados alcançados.
Quem era Domenico Caon?3
Domenico Caon nasceu às 22 horas e 15 minutos do dia 25 de outubro de 1876 na casa de número 53 na Via San Marco, município de Camposampiero, província de Pádua (CAMPOSAMPIERO, 1876), e foi o terceiro filho de Giuseppe Caon e Giovanna Bressan4 Zaniolo. No seu registro de nascimento, consta que o pai não o levou para comprovar seu nascimento em virtude da longa distância, mas que, apesar disso, os fatos foram verificados para registro do ato. Além disso, é interessante notar que Giuseppe Caon alegou não saber assinar5.
Pensando um pouco sobre a vida de Domenico para compreender as culturas de leitura e escrita que estavam inseridas em seu núcleo familiar, o fato de o seu pai ter-se declarado seguidamente como analfabeto6 no nascimento dos filhos nas décadas 1870 e 1880 indica que, até pelo menos os seus 40 anos, ele provavelmente também não sabia ler.
Pelos registros da família7, é possível estabelecer que Giuseppe, Giovanna e os seis filhos moraram na mesma casa até imigrarem ao Brasil, todavia é interessante notar que Giuseppe era natural de Busiago, localidade de Campo San Martino e Giovanna Bressan, de Fratte, frazione de Santa Giustina in Colle. Apesar de serem localidades próximas, um dos motivos que pode ter levado Giuseppe e Giovanna a se mudarem para Camposampiero8 é o deslocamento para o trabalho, principalmente porque a região é plana e com diversas propriedades e atividades agrícolas. Pelos registros de nascimentos dos filhos, Giuseppe trabalhava como villico, ou seja, empregado de uma propriedade rural, o que também se configura uma particularidade para pensar os processos de leitura e escrita e de educação das crianças.
A primeira questão que pode ser colocada a partir disso é de que forma Domenico passa a ter contato com a leitura, já que esta é uma atividade que “se ensina e se aprende” (BATISTA; GALVÃO, 2002). Um estudo produzido por Silva (2007, p. 205) afirma que a família não é “herdeira de um “capital cultural [...] instituído e legitimado em sociedades letradas”. Cabe, então, perguntar: “por meio de que práticas de letramento Domenico pode ter desenvolvido a inicialização nas habilidades de escrita e participado ativamente das culturas do escrito? E, em seguida, em que momento começa e se intensifica a relação de Domenico com a obra A Divina Comédia?
Certamente, ambas as questões não podem ser respondidas completamente, mas servem para guiar a reflexão sobre os processos. Há que se considerar, nesse sentido, o indivíduo no espaço de socialização, para compreender a sua formação inicial, já que existem relações entre as práticas de leitura e escrita e os processos de escolarização (SILVA, 2007). Sabe-se que Domenico deixou a Itália com 12 anos, tendo, portanto, iniciado o seu período escolar em Camposampiero. Teria ele tido contato, acesso e sido incentivado à leitura ainda em tenra idade? Um dado importante a ser considerado é que, ao contrário de grande parte de outros municípios, Camposampiero já tinha escola de nível superior9 e linhas ferroviárias sendo criadas na década de 1870 (ATTI, 1874); o distrito completo contava com 21 e 28 escolas públicas inferiores, respectivamente femininas e masculinas, com uma média de 2.800 alunos que as frequentavam (ATTI, 1874). É, portanto, possível que Domenico tenha frequentado uma delas, mesmo morando no interior da localidade.
Nesse sentido, seria natural pensar que seus irmãos também o fizessem, todavia os indícios não apontam à mesma condição. Antônio10, irmão quatro anos mais velho que Domenico, declaradamente11 não sabia assinar antes do início do século XX, quando já estava no Brasil. O mesmo aconteceu com Pietro, filho primogênito, e Maria, sua irmã mais nova (ANTÔNIO PRADO, 1908). Vale perguntar, assim, se Domenico seria o “escolhido” entre as crianças para frequentar a escola, considerando diversos papeis que poderiam ser designados aos filhos dentro das famílias naquele período.
É interessante notar que, além do amor que Domenico desenvolveria pela obra A Divina Comédia, os processos de letramento passam, a partir do século XX, a ser desenvolvidos por outros membros da casa que até então não sabiam assinar, demostrando que, além da escolarização, outros fatores permitiram a introdução12 da família em práticas de leitura e escrita.
Retomando brevemente o número de escolas e estudantes (49 e 2.800 respectivamente), vale frisar o quanto são importantes para o final do século XIX. Camposampiero pertence a província de Pádua, que é sede de uma das mais antigas universidades europeias. A Universidade de Pádua (UNIPD) tem sua fundação em 1222, isto é, quando Domenico Caon iniciou sua escolarização, estava próxima dos 660 anos de história. A instituição nasce como um grupo dissidente da Universidade de Bologna, o que é relevante uma vez que ela não surge por concessão do imperador ou do papa. Isso representou liberdade de aprender e ensinar, de pensar e escrever sem muita interferência dos poderes constituídos de então.
Ressalta-se o fato de a Universidade estar na província onde Domenico Caon iniciou a escolarização, o que talvez o tenha incentivado, pela presença de conhecimentos e saberes circulantes, por meio professores e professoras ali formados. Essas são hipóteses a serem consideradas no seu percurso enquanto leitor de A Divina Comédia.
A imigração e os indícios de leituras na trajetória de vida de Domenico no Brasil
Sabe-se hoje “que o movimento emigratório tem suas raízes fundadas no processo de implantação do capitalismo na Europa. Sob esta ótica, superpopulação, pauperismo, desemprego, baixos salários e miséria passam a ser encarados como parte do fenômeno, cuja essência encontra-se na análise da expansão mundial das relações capitalistas de produção” (IOTTI, 2001, p. 27). Pesquisas indicam, nesse sentido, que ao menos 1/3 da população italiana emigrou no mesmo período que Domenico Caon e família.
Um registro diplomático13 feito por Edoardo Pantano (1904, p. 18, tradução nossa) explica que “[...] em 1901, o número de italianos residentes no exterior era de cerca de três milhões e meio [...], mas provavelmente este número é inferior a realidade, tendo sido retirado a partir de cálculos aproximados ou de censos oficiais”. A partir do ano de 1875, na encosta superior do nordeste da província de São Pedro do Rio Grande do Sul14, inicia o estabelecimento de imigrantes com a criação de colônias que hoje compõem mais de 50 municípios da Serra Gaúcha, a RCI.
Em entrevista a um jornal regional, Domenico declarou que a data de emigração da família foi 14 de janeiro de 1889, e que teriam desembarcado em Porto Alegre no último dia de Carnaval; depois, até São Sebastião do Caí, a viagem foi realizada em um vapor menor, e de carreta ou15 a pé, se dirigiram ao Campo dos Bugres e após um mês para a Linha Barra, próximo ao rio das Antas, onde Giuseppe comprou a colônia de número 2 (O PIONEIRO, 1949a). De fato, com base nos registros, a família partiu de Gênova com o vapor Chateau Yquem no dia e mês mencionados, porém em 1888, permanecendo apenas um dia na hospedaria dos imigrantes da Ilha das Flores, e partindo com destino a Porto Alegre no dia 5 de fevereiro (ARQUIVO NACIONAL, 1888). Esta última data confere com o relato fornecido por Domenico ao explicar que chegou no Carnaval, naquele ano comemorado em 14 de fevereiro.
É interessante questionar como Domenico vivenciou e memorizou essa etapa de sua trajetória, e de que modo as leituras que talvez já fizesse estariam também relacionadas a sua forma de ver o mundo. Nesse sentido, qual seria a sua opinião sobre a imigração, sendo ele próprio alguém que deixou a terra natal? Domenico responde a isso de certa maneira, mencionando trechos de um poema, em uma espécie de crônica escrita ao mesmo jornal ao qual deu entrevista naquele ano. Esse jogo com a literatura mostra o paralelo entre ele e o texto, uma vez que se refere diretamente à sua própria experiência:
[...] Como dizia o poeta: <E quando reduti, ai patri lari, giocondi e liberi sarete un di, e, lá trai l giubilo dei vostri cari, non siate imemori di chi mori... Italia e Brasil de Coração e Alma - Justamente, no dia 20 deste mês, completo mais um aniversário da chegada de imigrante, ao Campo dei Bulgheri, tempo do Império em 1899 (sic), transportando nós gurís, em cestos, peso controlado, em cargueiro, e a saudosa mamãe puxava o animal, caminhando a pó, com os caros papai e irmãos, todos na Eternidade. Lembro-me bem os trabalhos, os sacrifícios, que estes nossos, sempre vivos antecessores enfrentaram, continuando viagem, até Nova Pádua, num sertão fechado, existindo bichos, até ferozes que a todos assustavam, mas a fé em Deus e os perseverantes trabalhos dos genitores, triunfaram, embora sofrendo resignadamente, sempre pasamos (sic) bem, e para agradecer a todos, continuamos com a nossa alegria, cantando calorosamente Graça a Deus, viva o Brasil! [...] Atenciosamente, Domingos, Tereza e família Caon. (O PIONEIRO, 1949b, p. 1).
Pelo excerto, é possível ver alguns dos significados e representações que Domenico atribuía a esse período de sua vida, mostrando uma realidade social marcada pela fé dos imigrantes, pela dedicação ao trabalho, pela busca de laços identitários em comum com os demais, e por bravura e heroísmo, características também presentes nos discursos de outros imigrantes italianos da região.
Domenico casou com Teresa Fabris, e também conta essa parte de sua biografia em entrevista: “Meu nome é Domingos Caon. Sou casado com d. Tereza Fabbris Caon. Ambos naturais de Pádua, Itália. Viemos conhecer-nos aqui. E nos casamos em Nova Trento, hoje Flores da Cunha, em 22 de Fevereiro de 1897. [...] Nasceram 19 filhos, dos quais 14 estão vivos. Os netos não sei o número certo, mas vão além de 70.” (O PIONEIRO, 1949a, p. 8). Um tempo depois do matrimônio, o casal mudou-se para Nova Roma, onde se estabeleceu nos lotes n. 42 e 44, concedidos em 12 e 19 de março de 1904 da Linha Blessmann, em Nova Treviso16 (ARQUIVO, 19--).
De seu envolvimento com a comunidade é possível encontrar relatos em jornais referindo-se a ele como “cidadão dos mais benquistos daquela região” (O PIONEIRO, 1949b, p. 1). Ao longo da trajetória de vida na localidade de Nova Treviso, Domenico desenvolveu diversas atividades: possuía uma casa comercial, montou uma olaria e uma fábrica de cerâmica e louças, foi artesão de couro, vitivinicultor, importava o bicho da seda, exportava madeira, foi pecuarista, tropeiro, carreteiro. Juntou-se também ao Partido Republicano17 e posteriormente passou duas vezes a subintendente de Nova Roma (COSTA, 2007).
Domenico e Teresa tiveram os seguintes filhos18: Jocondo, Olinda, Cristiano, Armindo, Urbano Eliseu, Elvira, Emma Sofia, Dante Leon, Alexandrino, Jordão Bruno, Catulino Principe, Sara Joana, Veronica Amelia, Geraldina Vitoria (NOVA ROMA, 1949). Barbosa (1980) expõe uma fotografia da família de Domenico, que pode ser conferida a seguir:
Na fotografia, datada aproximadamente de 1940, é possível ver, além de parte da família, Domenico sentado à frente, com nas mãos “sua inseparável ‘Divina Comédia’”, como disse Barbosa (1980. p. 281). De fato, há indícios claros de que Domenico fazia-se seguidamente acompanhar pelo poema dantesco, materialmente, como na foto, e também através de seus discursos. A propósito, diz o jornal que o visitou: “devemos frisar que ele sabe Dante de cor, e é um verdadeiro apaixonado pelas coisas da literatura” (O PIONEIRO, 1949a, p. 8).
Essa relação de Domenico com a literatura, e a predileção que teve pelo texto de Dante Alighieri, encontra mais motivos do que é possível desvelar a partir dos registros. É valido, porém, considerar as características da obra como uma forma de analisar o corpus (BATISTA E GALVÃO, 2002) e, então, pensá-lo em associação à biografia de Domenico.
A Divina Comédia foi escrita entre 1304 e 1321, por Dante Alighieri, e “narra a sua própria viagem pelos três reinos da eternidade: Inferno, Purgatório e Paraíso. Realiza essa viagem por graça de sua falecida amada Beatriz, que o convoca a percorrer o reino do além-túmulo para que Dante possa salvar-se da sua perdição, reencontrando seu caminho verdadeiro” (VILLELA, 2010, p. 10). Por ser uma obra complexa e que retrata as experiências humanas (VILLELA, 2010), fica difícil apontar uma ou outra particularidade apenas que levem à sua estima por Domenico ou por qualquer outro leitor. Entretanto, é possível afirmar com certeza que houve produção de sentido a partir dessa apropriação, e que sua forma de ver o mundo foi influenciada por ele estar imerso no conteúdo, e refletiu na sua própria trajetória e talvez na dos demais indivíduos do convívio de Domenico.
Sobre essa expansão do texto, e o alcance que assume a partir de Domenico e no contexto em que ele se insere, menciona-se uma afirmação do memorialista local Franklin Cunha. Criança à época dos fatos, Franklin relembra que
“nas noites vazias e frias de Antônio Prado, quando Domingos Caon assumiu a prefeitura daquela cidade, ele subia num banco da praça deserta e lia alguns trechos de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, para quatro ou cinco guris que pouco ou nada entendiam, porém alguns trechos ele nos traduzia e outros nos dizia que não leria porque eram cenas muito fortes para crianças... Caon foi um gênio criativo” (CHAVES, 2021, p. 32).
Pensando sobre esse relato, os trechos censurados da narração de Domenico poderiam ser as referências ao inferno ou excertos libidinosos presentes na obra. Omitir é, neste caso, uma forma de ler; é a escolha do que é aceitável a determinado interlocutor. Será, então, que na própria tradução, não havia uma adaptação de Domenico para os demais? É provável que sim. E a apropriação da obra por ele, na temática, nos dramas da existência, nas manifestações entre o bem e o mal aos que a recebiam em “voz alta”, como crianças, mas não só, mostra a complexidade e a potência dessa relação, e faz entrever processos que ali ocorriam.
Pode-se considerar que sua intensa relação com a literatura, hipoteticamente distante das culturas do grupo a que Domenico pertencia, bem como a permanência de indícios de suas leituras nos dias atuais, devam-se ao fato de Domenico ter sido uma figura pública. Do contrário, pode-se também pensar que o seu caso tenha sido apenas uma exceção, ou ainda que ambos os fatores tenham tido um papel importante nesses fenômenos. Isso, de qualquer maneira, não explica como Domenico se tornou um leitor, mas indícios nesse sentido podem ser buscados em diferentes espaços.
Analisando novamente o seu núcleo familiar, seu pai, que na Itália se declarava analfabeto, passou no Brasil a assinar os documentos dos filhos19, assim como o faz seu irmão Antônio entre 1898 e 1903. Silva (2007) fala da família como o principal espaço de aquisição de práticas de leitura e escrita, e portanto, talvez Domenico tenha desenvolvido suas habilidades com a ajuda de seus pais e irmãos. Não é improvável, porém, que tenha sido ele a influenciar os demais componentes da família, em virtude do amor que nutria pela leitura.
No que se refere à escrita, abaixo é possível conferir a assinatura de Domenico no registro de nascimento de um de seus filhos:
Quando analisada com base nas problematizações e escalas de assinaturas de Magalhães (1994, p. 317-319), a assinatura mostra uma caligrafia situada entre o nível 4 e 5 em que todas as letras estão corretamente desenhadas, em um nível quase que individualizado e conduzido de traço e ritmo. Em 1898, Domenico mostrou uma assinatura com marcas de escolarização em virtude da caligrafia. Para além de uma assinatura rudimentar, ela indica, mais de uma década depois do fim do seu período de instrução formal, que possivelmente ele utilizava a escrita no dia a dia e que essa escrita permaneceu ao longo das décadas seguintes.
No que tange à apropriação e retomando a sua biografia, um dos seus filhos se chamava Dante Leone, possivelmente em homenagem ao escritor florentino e à sua obra. O mesmo pode-se dizer da escolha do nome de uma filha, que acabou falecendo pequena, e se chamava Beatriz, em uma provável alusão à amada de Dante. E o que falar de Jordão Bruno, talvez pensando em Giordano Bruno? O quanto Domenico mergulhou na literatura para que a trouxesse à sua trajetória de vida e de seus filhos?
Dos indícios de sua vida cotidiana em virtude do amor que tinha pela obra, não é de se estranhar que ele construiu um monumento de granito de aproximadamente 3 metros de altura em homenagem a Dante Alighieri (FOLHA DE HOJE, 1994), localizado em Nova Treviso. Ele “ainda existe, embora danificado por uma bomba, jogada por mãos criminosas”, conforme relata Costa (2007, p. 36), que afirma ainda que “No pedestal da estátua lê-se este verso do próprio poeta: ‘Onorate l’Altissimo poeta’”. Isso mostra o que a obra simbolizava para Domenico, que, além de tudo, quis inclusive mudar o nome da localidade de Nova Treviso para Dante Alighieri (COSTA, 2007).
Aos que tiveram contato com ele, Domenico “não realizava visita ou reunião ou recebia interessados, sem que, em meio à conversa, abrisse um belo exemplar da Divina Comédia e o lesse” (FOLHA DE HOJE, 1994, p. 1). Por ele, demais se apropriavam, tinham contato com literatura, desenvolviam ou não as suas próprias práticas de leitura e escrita. Como exemplo disso, muitos dos seus filhos acabaram exercendo a profissão de professores (COSTA, 2007).
Domenico requereu a naturalização brasileira entre 1939 e 1940 quando possuía 14 anos de serviço público municipal (SIAN, 1940) e faleceu em Nova Roma em 27 de dezembro de 1949 de causas naturais e sem assistência médica com 76 anos. O jornal da região noticiou seu falecimento explicando que “Com muito pezar [sic] a população de Antonio Prado, tomou conhecimento da morte do ancião Domingos Caon, um dos pioneiros, velho pioneiro, que com em [sic] seu suor e esforço, contribuiu para o enriquecimento do município e da nossa pátria. [...]” (O PIONEIRO, 1949c).
Investigar o percurso de vida de Domenico associado aos traços das leituras, em especial às referências que fez à obra de Dante é fonte de muitos questionamentos, alguns dos quais não podem ser totalmente respondidos, mas que ainda assim apontam caminhos. Batista e Galvão afirmam, nesse sentido, que
A distribuição de um produto cultural não revela tudo; pelo contrário, sua apropriação, sua utilização e seu consumo são tão importantes para a realização de uma história da leitura quanto sua circulação, em vários casos, aliás, muito mais fluída do que se pensa, as relações entre objetos de leitura e grupos sociais são muito mais complexas. (BATISTA; GALVÃO, 2002, p. 19).
A vida de Domenico Caon instiga a se aprofundar nas particularidades de sua trajetória, no amor que tinha por A Divina Comédia e no núcleo familiar que esteve envolvido nos processos de aquisição de escrita. A utilização e a apropriação que Domenico realizou permite entender a complexidade desses processos para ele e das relações que ele estabeleceu com esse e outros textos lidos. São caminhos que contam uma história individual e local, mas também fazem parte uma história da educação, da cultura e da leitura, nos limites do espaço e tempo investigados e para além deles.
Considerações Finais
Domenico Caon evidenciou rastros de culturas de leitura na comunidade em que estava inserido. Eles são especialmente reconhecidos nos sujeitos da sua família, que parecem ter passado por um processo de letramento não limitado à instrução formal. Sua esposa20, por exemplo, talvez desenvolvesse práticas de leitura justamente por estar em contato com Domenico. Não é improvável que Antônio, seu irmão, escutando Domenico falar sobre A Divina Comédia, tenha passado a se interessar pelos livros e, então, aprendido a assinar e depois a ler. Seu pai Giuseppe, que aos 50 anos já não mais alega desconhecer ler e escrever, pode ter passado por um processo semelhante. Antônio e Giuseppe, aliás, estiveram inseridos no mundo letrado mesmo quando declaradamente não sabiam ler ou escrever, e isso mostra que a definição de ser ou não ser alfabetizado não se restringe a processos técnicos.
Os indícios da vida e das práticas de leitura de Domenico mostram as sociabilidades que, muitas vezes, giram em torno da oralidade e possibilitam a inserção de novos indivíduos nessas mesmas práticas. A Divina Comédia parece ter sido apenas uma das obras que o marcou e chegou a esta análise, já que seus familiares informaram que ele possuía uma grande biblioteca. Domenico marcou a sua trajetória pelo seu gosto pela leitura, que acompanha as transformações econômicas, os movimentos de industrialização e o desenvolvimento da escolarização vividos por ele na juventude, e que foi provavelmente incentivado, enquanto hábito, por outros leitores com quem ele esteve em contato, em um movimento que se repete a partir de Domenico aos demais, como seu pai e irmão.
Este trabalho objetivou discutir Domenico Caon ao buscar compreender o amor que ele, como imigrante italiano estabelecido no Brasil, desenvolveu por A Divina Comédia, obra de Dante Alighieri. Com pesquisa genealógica, foi possível evidenciar elementos da sua biografia, as relações com sua família e com a comunidade em que se inseria, buscando entender como as práticas de leitura desenvolvidas por ele estiveram ligadas à sua trajetória de vida.
O percurso de Domenico foi marcado por traços das leituras (e escritas) desenvolvidas por ele. Das mais diversas formas, foi possível ver indícios de que essas práticas estiveram presentes no seu cotidiano, desde a escolha dos nomes dos filhos, passando pelos relatos de pessoas, pelas crônicas de jornais, até a construção do monumento em homenagem a Dante Alighieri. A vida de Domenico faz pensar a tantos outros “Domenicos” cujas ações referentes à educação foram apagadas pelo tempo.
Da investigação, evidencia-se que, apesar da mobilização de apenas um indivíduo e seu núcleo familiar, no contexto da imigração italiana no Brasil, algumas práticas de leitura e de escrita podem ter sido desenvolvidas fora do ambiente escolar e do período de escolarização. Isso serve de alerta para que pesquisadores examinem indícios informais de escolarização e se utilizem da micro-história, a exemplo deste trabalho, de modo a corroborar com pesquisas nas diversas perspectivas possíveis vinculadas ao tema.