Em 2018, foram apresentados os primeiros resultados da pesquisa APEGI (KUPFER; BERNARDINO; PESARO, 2018), que já haviam mostrado um bom índice de precisão ou confiabilidade do instrumento, além de apontarem que ele caminhava em direção ao esperado para sua validação. Ao final da pesquisa, concluída em julho de 2019, a expectativa de validação confirmou-se e o APEGI pode ser considerado um instrumento validado por meio de testes de validade convergente entre avaliadores e da consistência interna do instrumento.
O instrumento Acompanhamento Psicanalítico de Crianças em Escolas, Grupos e Instituições (APEGI) propõe uma sistematização da leitura do processo de constituição subjetiva da criança, articulado ao seu desenvolvimento.2 Essa sistematização revelou-se adequada a seus fins tendo em vista os resultados estatísticos obtidos.
As noções de observação e de avaliação não fazem parte do método psicanalítico, e são substituídas pelas noções de transferência e de acompanhamento. Nos tratamentos e pesquisas conduzidos com base na psicanálise, não há conclusões diagnósticas, mas uma direção que procure levar um sujeito a dizer-se no singular de sua posição desejante e inconsciente. A ideia de estatística não cabe, e assim as pesquisas psicanalíticas se baseiam sobretudo no estudo do caso singular.
No entanto, não são poucos os pesquisadores psicanalistas que vêm se dedicando à construção de instrumentos baseados na teoria e na prática psicanalíticas, quer para uso em pesquisas, quer para uso na clínica e em escolas. Exemplos dessas pesquisas são: as pesquisas que utilizam o protocolo Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), criado pelo GNP3 (CARDOSO et al., 2012; CRESTANI et al., 2011; JAQUETTI; MARIOTTO, 2012; KUPFER et al., 2009; LERNER; KUPFER, 2008; MORAIS, 2013; MOZZAQUATRO; POLLI; ARPINI, 2011; REIS, 2011; TOCCHIO, 2013); a pesquisa IRDI nas creches4 (KUPFER; BERNARDINO; MARIOTTO, 2014; MARIOTTO, 2009); a pesquisa Préaut na França (ASSOCIATION PRÉAUT, 2010; LAZNIK, 2013); a pesquisa Préaut no Brasil; as pesquisas que utilizam a Avaliação Psicanalítica aos 3 anos (AP3) (MERLETTI; PESARO, 2010). São instrumentos que se baseiam em indicadores fenomênicos, observáveis e quantificáveis.
A partir de 2017, um novo grupo de pesquisadores5 foi a campo para validar, como instrumento, uma nova apresentação do roteiro psicanalítico que serviu de base para a validação do instrumento IRDI. O antigo roteiro foi chamado de Avaliação Psicanalítica aos 3 anos (AP3), e agora, revisto e ampliado, transformou-se no Acompanhamento Psicanalítico de Crianças em Escolas, Grupos e Instituições (APEGI).6 O presente artigo apresenta as bases teóricas do instrumento, bem como os resultados finais da pesquisa de validação do APEGI.
O instrumento APEGI
Construído com base na teoria psicanalítica, o APEGI é um instrumento que busca situar o movimento da constituição do sujeito7 na criança a partir de 4 anos, acompanhando seu desenrolar. Seu objetivo não é o de proceder a uma avaliação diagnóstica da criança, e sim fazer uma leitura, a partir dos diferentes fenômenos que são observados pelo psicanalista, do processo de constituição subjetiva, articulado ao desenvolvimento da criança.
À AP3 foram acrescentadas perguntas para dirigir ao professor e uma observação da criança em seu grupo de pares. Algumas perguntas do roteiro foram retiradas e outras acrescentadas, de modo a cercar melhor o que se deseja acompanhar.
A Tabela de Sintomas Clínicos - que havia sido construída a partir dos sintomas encontrados na amostra da pesquisa IRDI original, segundo a metodologia post hoc - também foi modificada e adaptada ao novo roteiro, uma vez que, nas pesquisas subsequentes realizadas, novos sintomas significativos se apresentaram, e foram acrescentados, enquanto alguns sintomas foram considerados por demais inespecíficos e foram retirados (KUPFER et al., 2015).
O APEGI quer saber se a criança está enfrentando problemas de desenvolvimento ou se está vivendo entraves estruturais em sua constituição psíquica. A palavra risco foi eliminada, para marcar distância em relação à noção médica de “risco de contrair uma doença”.
Há ainda a ideia de “roteiro de leitura” que o instrumento permite, propondo que o desenvolvimento de uma criança e sua constituição como sujeito só adquire sentido a posteriori e a partir de vários elementos que devem compor o raciocínio clínico do(s) profissional(ais) que a acompanha(m), obedecendo assim a uma lógica propriamente psicanalítica.
No APEGI, prossegue-se utilizando três eixos da AP3 - o brincar e a fantasia; o corpo e sua imagem; manifestação diante das normas e posição frente à lei (KUPFER et al., 2009) -, acrescidos de dois novos eixos: presença/reconhecimento de sujeito e função do semelhante. Um quarto eixo da AP3, a fala e a posição na linguagem, foi absorvido pelo novo eixo presença/reconhecimento de sujeito no APEGI.
O instrumento foi reconstruído e ampliado durante o ano de 2017. À antiga AP3, foi ainda acrescentada uma nova medida de acompanhamento das entrevistas: os indicadores de acompanhamento, construídos para cada eixo teórico do APEGI, seguindo a vocação de acompanhamento do desenvolvimento psíquico da criança do APEGI. Estes indicadores visam, a exemplo dos IRDIs, fornecer referências ao profissional que acompanha a criança, do que se espera encontrar em cada eixo, se a constituição da criança está em curso.
Dentre os 31 indicadores de acompanhamento, 11 foram definidos como Indicadores de Acompanhamento Conclusivos (IACs). Isto significa que, se ausentes, indicam que a criança apresenta claramente entraves estruturais para sua constituição subjetiva.
A estrutura do APEGI é a de um roteiro orientador para a condução de quatro consultas ou entrevistas: uma com os pais e a criança; uma com a criança individualmente; outra com a professora da criança e a quarta com a criança em grupo. O conjunto dessas quatro consultas/entrevistas conduz, por sua vez, aos indicadores por eixos teóricos e a um desfecho clínico.
Bases teóricas do APEGI
O APEGI está organizado em torno de eixos teóricos que balizam tanto as quatro consultas e observações como a marcação dos indicadores de acompanhamento. A seguir, expõem-se esses eixos, bem como a maneira como orientam o olhar do pesquisador que estiver utilizando o roteiro.
O brincar e a fantasia
O brincar pode ser visto de três ângulos: como ferramenta para a construção de um sujeito, como expressão da fantasia inconsciente da criança e como ferramenta de elaboração de angústias e conflitos.
O brincar da criança é uma forma de expressar, de modo livremente associativo, sua fantasia inconsciente. Além disso, o brincar é a maneira privilegiada de elaboração de que a criança dispõe para enfrentar o desafio de habitar um mundo de linguagem, de cuja organização ela ainda não tem domínio. É através do brincar que a criança põe em jogo sua relação com o próprio corpo, com os objetos, com os outros e com os ideais de que é depositária. O brincar baseia-se no manuseio de objetos e situações fictícias que expressam o mundo interno da criança (JERUSALINSKY, 2008).
É esperado no brincar, portanto, a partir dos 3 anos, roteiros com uso da imaginação, armação de cenas com objetos e situações, com variedade de temas e evolução de histórias, denotando criatividade, narratividade e flexibilidade psíquica, demonstrativas da capacidade imaginária e simbólica da criança, bem como de sua capacidade de diferenciar a fantasia da realidade.
No caso de ausência completa do uso da imaginação, o brincar da criança pode aparecer colado à mecânica dos objetos, e não desdobrar, em suas construções, uma narrativa. O brincar pode ainda aparecer sem referência ao faz-de-conta, aos limites e aos interditos. As significações podem ser aleatórias, fragmentares, mas a criança mostra uma intensa relação com o outro, contrariamente ao que ocorre nos casos de ausência de produções imaginárias.
Finalmente, os desenhos e jogos de uma criança podem ser tomados como significações a serviço de uma história, de uma narrativa ou de uma informação, e então aparecem os limites, os interditos e o caráter figurado dos personagens. Nesse caso, o brincar poderá ser uma forma de simbolização de suas dificuldades, conflitos, falhas e preocupações.
O corpo e sua imagem
A imagem corporal é uma construção que aparece como resultado das ações maternas sobre o corpo da criança, transformando-o em um sistema de significações. Esse sistema permite que a criança se apreenda em uma imagem psíquica, unificada, a partir da qual ela poderá se reconhecer. A imagem do corpo contém também os traços da diferenciação sexual. A discrepância na atividade, no movimento, na diferenciação estético-sexual, nas expressões de autorreconhecimento, e a manifestação de inibições, são demonstrativas da presença de sintomas clínicos, bem como das dificuldades na organização das funções corporais e na constituição de hábitos (JERUSALINSKY, 2008).
Vale lembrar que a imagem corporal é diferente do esquema corporal. Como afirma Dolto (1992, p. 10), “o esquema corporal é uma realidade de fato, sendo de certa forma nosso viver carnal no contato com o mundo físico”, depende do organismo em seus aspectos neurológicos, musculares, fisiológicos, circulatórios e sinestésicos. Já a imagem corporal “é peculiar a cada um: está ligada ao sujeito e à sua história” (DOLTO, 1992, p. 14), “é memória inconsciente de todo o vivido relacional” (DOLTO, 1992, p. 15). Assim, podemos encontrar crianças, por exemplo, instaladas em um quadro autístico, em que há a presença de esquema corporal, embora a criança não tenha constituído uma imagem corporal, já que a montagem do estágio do espelho não ocorre. Segundo Kupfer (2002, p. 224), há um eu real no autismo “que se liga a uma ideia de sistema nervoso, de homeostase das tensões internas”, mesmo não havendo entrada no campo relacional, “há este funcionamento que dirige - a partir da ideia de homeostase - essa deambulação da criança no mundo dos objetos” (KUPFER, 2002, p. 224). Por exemplo, uma criança não faz um desenho em que possa se representar, mas, diante de um adulto que se propõe a desenhar seu rosto, é capaz de apontar as partes correspondentes corretamente: seus olhos, seu nariz, sua boa, suas orelhas. Trata-se de uma demonstração de presença de esquema corporal, mas não de imagem corporal constituída.
Uma imagem corporal constituída permite uma organização psicomotora, pois a criança pode se movimentar no espaço e no tempo e a apropriação de seu corpo tem como consequência a aquisição de diversas habilidades corporais, como a motricidade, a alimentação, o sono.
Assim, dificuldades nesse eixo podem se apresentar, por exemplo, em alterações do sono, como falta de ritmo de sono e vigília, intercorrências diversas no dormir da criança como acordar-se no meio da noite e não conseguir voltar a dormir, necessidade de dormir junto aos pais, necessidade de ter a presença do adulto durante o sono.
As dificuldades alimentares também podem surgir, como a alimentação seletiva: muito mais do que revelar a qualidade nutricional da alimentação da criança, o interesse é verificar a flexibilidade da criança com relação aos diferentes tipos de alimentos, em termos de cores, consistência, formato. Nas crianças com encaminhamento autístico, por exemplo, pode-se encontrar uma rigidez em relação à ingestão de uma só classe de alimentos, ou alimentos de uma única cor ou consistência, demonstrando a extrema dificuldade da criança com relação ao mundo externo, à questão da diferença, pontos sinalizadores de dificuldades na constituição psíquica de sua imagem corporal.
As dificuldades relacionadas à movimentação corporal: hiperatividade, impulsividade, passividade, falta de destreza nos movimentos, por sua vez, demonstram o uso da movimentação para expressão psíquica. Uma criança com a constituição psíquica em curso apresenta uma harmonia psicomotora, isto é, consegue conciliar sua intenção, seu desejo, com o movimento corporal que permitirá uma ação eficaz.
O comportamento de birra, por exemplo, é um uso da expressão motora para buscar reconhecimento, a criança o utiliza para chamar a atenção do adulto sobre si, seja porque deseja fazer valer sua vontade, em detrimento da frustração de respeitar uma limitação, uma regra, seja porque quer ser vista, ouvida, e não o consegue de uma maneira mais simbólica. Trata-se de um comportamento bem diferente da desorganização da criança, a qual revela extrema dificuldade em relação às regras, limites, ao funcionamento de determinado ambiente, demonstrando uma imagem corporal extremamente frágil ou não constituída. Se na birra a criança está, enquanto se movimenta, muito atenta ao efeito de seu comportamento sobre o adulto e sobre o ambiente (ela não se joga em qualquer lugar, nem tem este comportamento sem a presença de um público), na desorganização a criança não percebe o outro, não se cuida em relação às consequências físicas de se jogar no chão, descontrola-se completamente.
Manifestação diante das normas e posição frente à lei
A observância de limites, a restrição dos próprios impulsos em concordância com a situação, a permeabilidade do sujeito à marcação de tempos e atividades, sua capacidade de organização no espaço, respondem de um modo geral à interiorização da interdição paterna, que as diversas formas da lei podem adotar. Por isso, também de modo geral, podemos assinalar que a falta ou intermitência de tais atitudes costuma ser demonstrativa da presença de sintomas clínicos, assim como formas de recusa, questionamento ou indiferença/ignorância em relação às normas (JERUSALINSKY, 2008).
A relação com as normas e com a lei é uma importante indicação da inscrição ou da dificuldade de inscrição da criança na cultura e na organização social. Essa Lei é originalmente a lei de proibição do incesto para os antropólogos; para os psicanalistas, não se relaciona apenas com a interdição da mãe pelo pai, mas é entendida como uma lei que interdita, “castra” e faz mais que isso: organiza a relação do sujeito com os outros pelo fato de que esta é uma lei simbólica, isto é, põe palavra ordenadora no lugar do impulso, incita o corpo a se submeter a outra ordem (simbólica) que não a do puro funcionamento automático biológico.
A Lei do Pai é um conjunto de chaves de significação ou eixos ordenadores capazes de orientar o trânsito da criança por essa rede de linguagem e de significações dadas pela cultura e pelo desejo dos outros.
Assim, se uma criança obedecer às regras, isso indica não apenas que foi bem-educada. Se observa os limites, sabe restringir seus próprios impulsos, há indícios de que a Lei do Pai ou função paterna está estabelecida.
Espera-se que a criança demonstre uma certa tensão no processo de aprendizagem do funcionamento familiar e social. A escola é um dos campos férteis para esta tensão se expressar.
Não se espera de uma criança uma submissão total às regras, sem questionamento, pois não denotaria uma apropriação destas de modo subjetivo. Por exemplo, muitas crianças que são tidas como “muito obedientes” apenas respondem automaticamente a comandos do outro, revelando uma aprendizagem de tipo mecânica, respostas esperadas e sem nenhuma contestação. Isso demanda uma especial atenção no campo escolar porque muito mais do que seguir instruções é importante saber se ela se apropriou das regras.
Da mesma forma, uma desobediência excessiva denota que algo não vai bem na sua inserção cultural.
Uma indicação importante de função paterna é a capacidade da criança de esperar, ou seja, conter seus impulsos, suas vontades, para postergar alguma satisfação prevista. Uma criança que consegue esperar demonstra sua inserção na comunidade e um conhecimento de que viver em sociedade requer ceder em relação a demandas imediatas. Há crianças que não conseguem conter suas expectativas em relação a um acontecimento, que não sabem esperar para receber um presente, uma guloseima, que por vezes revelam estar constantemente em uma posição de demanda ao outro; bem como há muitos pais que não conseguem transmitir esta habilidade, não se implicando nesta função educativa.
A partir do que foi recolhido no trabalho de aplicação da AP3, bem como da experiência acumulada durante as pesquisas que sucederam à pesquisa IRDI, dois novos eixos foram acrescentados ao instrumento original.
Presença/reconhecimento de sujeito
Neste eixo pretende-se verificar na criança a partir dos 3 anos se os quatro eixos da função materna,8 que deverão ter agido nos dois primeiros anos de vida, realmente operaram no início do seu processo de constituição subjetiva. Assim, busca-se observar se a Suposição de Sujeito (SS) realizada pelos agentes do Outro para a criança tiveram como efeito o surgimento de um sujeito falante e desejante; se a demanda realmente se estabeleceu (ED) e a criança distanciou-se do campo exclusivo da necessidade para entrar no campo relacional e de linguagem, situando-se como falante e interessada nos efeitos que produz nos representantes do Outro e nos semelhantes; se a alternância presença/ausência (PA) fundou um campo de representação simbólica em que é possível para a criança se representar como separada do Outro; se a função paterna introduzida pelos agentes do Outro trouxe subsídios para a identificação de seu lugar familiar e preparou-a para circular em um universo composto por regras e leis.
Assim, trata-se de verificar, do lado da criança, se há presença de sujeito: se a criança fala em nome próprio, manifestando suas opiniões e seu entendimento do que a cerca, se ela se identifica com seu nome, se ocupa um lugar singular na família ou na escola, se perante seus semelhantes se diferencia, mesmo fazendo parte do grupo; se dá lugar à fala dos adultos e respeita os turnos dialógicos. Por exemplo, a criança atende quando é chamada pelo nome, quando faz um desenho de si mesma ou de sua família, quando na brincadeira inclui-se em situações, se está num grupo é reconhecida pelos colegas e os reconhece, na escola quando entende e envolve-se com a atividade proposta, quando se manifesta a respeito do que os pais falam sobre ela, ou responde pessoalmente a uma pergunta da professora. Procura-se verificar se a criança tem um dizer próprio.
Uma criança profere um dizer quando expressa uma opinião própria sobre algum assunto, faz uma interpretação pessoal de um texto, emociona-se com algum acontecimento.
Uma criança nessa posição enunciativa procura se fazer entender pelo outro, expressa-se de modo fluente, utiliza-se da linguagem de modo pleno para expressar suas preferências, suas dificuldades, seus anseios.
Não há presença de sujeito quando a criança apresenta uma fala repetitiva e ecolálica, repetindo mecanicamente os sons que escuta ao seu redor, utilizando jargões ou jingles para falar, ou não utilizando a fala para expressar suas opiniões ou vontades; quando não atende quando é chamada pelo nome, não reconhecendo que o nome a representa; quando apresenta uma fala apenas utilitária, para expressar suas necessidades. Tropeços também são observados quando a criança não participa do grupo na escola ou na instituição de modo ativo; quando não opina ou não consegue interpretar de modo personalizado as situações que se apresentam a ela. Pode ainda apresentar uma fala incompreensível, que precisa de um adulto próximo para traduzir, sendo de extrema importância diferenciar a busca da interlocução da criança - que sinaliza, ainda assim, a presença de um dizer -, da indiferença da criança quanto à reação do outro a sua fala.
Do lado dos pais, ou professores, procura-se verificar se há reconhecimento de sujeito: se na sua relação com a criança há um reconhecimento de que se trata de um sujeito que ocupa um lugar próprio, com características singulares, que fala em nome próprio e manifesta reações pessoais aos acontecimentos que a cercam, dando-lhes uma significação. Se, como resultado deste reconhecimento, a criança é respeitada em seus turnos de fala e em suas manifestações próprias. Se estes adultos reconhecem no que a criança demanda algo além do atendimento de uma necessidade, se oferecem a ela um espaço vazio convocatório para que ela ocupe um lugar. Finalmente, se autorizam-se a transmitir a ela regras e leis para situar o que esperam dela no espaço social. Não há reconhecimento de sujeito quando os pais ou professores não atribuem um lugar para a criança; quando não reconhecem a presença da criança, por exemplo, falando dela na sua frente, mas sem incluí-la no diálogo; quando não se dirigem a ela para pedir sua opinião; quando não consideram que ela pode pensar ou agir diferentemente do que esperam; quando não dão espaço em sua fala para a sua manifestação.
A função do semelhante
Esse eixo impôs-se aos praticantes de grupos terapêuticos com crianças. Verificou-se que, atualmente, muitas crianças apresentam uma constituição subjetiva em curso e uma boa relação com adultos, mas encontram grande dificuldade de estar com seus pares: ou recusam esses laços, ou os desejam, mas não são bem-sucedidas no contato com as outras crianças. Os laços entre pares precisam, assim, ser mais bem conhecidos e avaliados, de modo a orientar o trabalho que incide mais precisamente sobre as relações comprometidas entre crianças.
A importância da função do semelhante na constituição do sujeito foi apontada por Lacan (2003) no texto “A família”. Para ele, as crianças entre 6 meses e dois anos deixam transparecer um interesse dirigido ao semelhante no qual é possível localizar o reconhecimento de um rival e, portanto, de um outro como objeto. Entre eles haverá, segundo esse autor, duas relações afetivas que se confundem - amor e identificação -, cuja oposição deverá ser estabelecida em estágios posteriores.
Para Lacan (1966), há uma estreita relação entre a fraternidade e a gênese do eu (ego): o semelhante é essencial para definir uma imagem própria, para definir um valor narcísico para esta imagem e para ter acesso a um conhecimento sobre si.
É esse semelhante em sua pequena diferença que permite ao sujeito saber mais sobre si mesmo, pelo que ele mostra de estranho familiar: o irmão, o colega, este que está em uma relação no mesmo plano, convoca o sujeito a encontrar sua posição, enquanto diferente da dele, para aí sim compor uma fraternidade com ele - não ameaçadora do narcisismo. Assim, a união torna-se possível pela diferença, pela alteridade que aí comparece e permite a cada qual ocupar um lugar próprio.
A fraternidade - base da socialização - depende da parentalidade: são os pais que dão acesso, através de seu trabalho de orientação e de significação, à possibilidade de uma relação com o irmão. Trabalho depois sustentado em continuidade pelos professores, ao administrar as relações - sempre difíceis - entre os coleguinhas de classe, para frear a agressividade entre os pequenos colegas sem inibir a autoexpressão, para poder realmente fazer do ciúme a gênese do sentimento social, como o propõe Lacan (1966).
A localização desse laço e suas características será então o alvo das perguntas orientadas por esse eixo. Se a criança se mostra extremamente dependente de um semelhante para encontrar sua consistência, ou se, pelo contrário, tem extrema dificuldade de conviver com os pares, ou se não consegue compartilhar brincadeiras com seus pares, estes sintomas são indicativos de falhas na função do semelhante.
A pesquisa APEGI: procedimentos
Após a formação dos 20 profissionais aplicadores para o uso do APEGI, e após a realização de um estudo piloto com 6 crianças (duas em escolas, duas em instituições de tratamento e duas em grupos terapêuticos) para ajustes do instrumento, foi iniciada uma primeira etapa de aplicação do APEGI com um grupo de 60 crianças entre 4 e 6 anos, colhidas aleatoriamente nas Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs) Jardim Lapenna e Vila Nova União,9 situadas em São Miguel Paulista.
Cada aplicação foi realizada por uma dupla de pesquisadores, cujas aplicações foram confrontadas para depois ser gerada uma terceira síntese, consensual.
As primeiras aplicações foram submetidas a um estudo estatístico para verificar a precisão (ou confiabilidade) do instrumento. Esses resultados encontram-se descritos em Kupfer, Bernardino e Pesaro (2018).
No período de abril a junho de 2019, novos 37 APEGIs foram aplicados, desta vez na EMEI Dona Leopoldina, em São Paulo.10
Para essa etapa da pesquisa, um segundo tipo de validação foi proposto pelo estatístico assessor da pesquisa:11 a validação com utilização de padrão-ouro.
Solicitou-se, para quatro psicanalistas de crianças já consagradas no campo12 - tomando-se aqui a metodologia do estudo de caso psicanalítico realizado por experts como padrão-ouro, na ausência de instrumento comparável ao APEGI no Brasil -, a realização de consultas psicanalíticas clássicas com as crianças e seus pais, avaliados pelo APEGI na EMEI Dona Leopoldina. Nos meses de abril, maio e junho, as psicanalistas contatadas procederam ao exame de 27 dessas crianças, cuja conclusão diagnóstica foi traduzida nos termos dos desfechos clínicos do instrumento APEGI.
A seguir, relatam-se os resultados dessa última etapa da pesquisa.
Pesquisa APEGI: resultados
Abaixo são apresentados os dados referentes à confiabilidade, ou precisão. Assim, três testes estatísticos foram empregados: o índice Kappa, o teste de Correlação Intraclasse (ICC) e o Alfa de Cronbach. Os dois primeiros avaliam confiabilidade através da concordância entre os avaliadores. Quanto maior a concordância, mais preciso é o instrumento. Já quando comparamos com o padrão-ouro, a concordância entre os entrevistadores (consenso) e o padrão-ouro pode ser considerada uma medida de validade convergente (ou concordante). O terceiro teste estatístico (Alfa de Cronbach) mede a validade através da consistência interna do instrumento, ou seja, o quanto os índices do APEGI estão consistentes entre si.
A Tabela 1 mostra os índices de concordância (Índice Kappa) entre o entrevistador e o observador e a confiabilidade entre eles (Índice de Correlação Intraclasse) para os indicadores do APEGI. Podemos observar que o índice de concordância entre o entrevistador e o observador pode ser considerado satisfatório para a grande maioria dos indicadores do APEGI, exceto para o indicador “A criança aceita a intermediação de adultos em caso de rivalização”, cujo escore é indicativo de baixa concordância entre o entrevistador e o observador.
Legenda: Kappa: Menor que zero= Insignificante; entre 0 e 0,2= Fraca; entre 0,21 e 0,4= Razoável; entre 0,41 e 0,6= Moderada; entre 0,61 e 0,8= Forte e entre 0,81 e 1= Quase perfeita. ICC: Menor que 0,5= Pobre; entre 0,5 e 0,75= Moderada; entre 0,75 e 0,9= Boa e maior que 0,9= Excelente.
Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo com base em dados da pesquisa.
Já para o Índice de Correlação Intraclasse (ICC), podemos observar que apenas três indicadores (B II, D IV e D V) exibiram escores de confiabilidade abaixo do recomendado.
Tais resultados sugerem que os indicadores do APEGI estão em sua maioria adequados em termos da concordância e confiabilidade entre os aplicadores. A Tabela 2 mostra os índices de concordância (Índice Kappa) entre o entrevistador e o observador e a confiabilidade entre eles (Índice de Correlação Intraclasse) para os desfechos clínicos do APEGI. Tanto a concordância quanto a confiabilidade entre o entrevistador e o observador se mostraram adequadas para todos os desfechos da escala.
Legenda: Kappa: Menor que zero= Insignificante; entre 0 e 0,2= Fraca; entre 0,21 e 0,4= Razoável; entre 0,41 e 0,6= Moderada; entre 0,61 e 0,8= Forte e entre 0,81 e 1= Quase perfeita. ICC: Menor que 0,5= Pobre; entre 0,5 e 0,75= Moderada; entre 0,75 e 0,9= Boa e maior que 0,9= Excelente.
Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo com base em dados da pesquisa.
Na Tabela 3 podemos ver os índices de concordância (Índice Kappa) entre a avaliação de consenso e o padrão-ouro e a confiabilidade entre eles (Índice de Correlação Intraclasse) para os desfechos clínicos do APEGI. Aqui podemos observar que, para o desfecho de problemas de desenvolvimento, tanto a concordância quanto a confiabilidade entre o consenso e o padrão-ouro foram insignificantes. Já para os demais desfechos, os índices de concordância e de confiabilidade podem ser considerados satisfatórios.
Legenda: Kappa: Menor que zero= Insignificante; entre 0 e 0,2= Fraca; entre 0,21 e 0,4= Razoável; entre 0,41 e 0,6= Moderada; entre 0,61 e 0,8= Forte e entre 0,81 e 1= Quase perfeita. ICC: Menor que 0,5= Pobre; entre 0,5 e 0,75= Moderada; entre 0,75 e 0,9= Boa e maior que 0,9= Excelente.
Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo com base em dados da pesquisa.
A seguir, são apresentados na Tabela 4 os dados provenientes da análise da consistência interna medida pelo coeficiente de alfa de Cronbach. Estes foram calculados para cada eixo do APEGI, considerando a avaliação do entrevistador, do observador e o consenso entre eles. Os resultados indicaram que os coeficientes da consistência interna dos eixos da APEGI foram maiores para o observador do que para o entrevistador. Considerando apenas os escores do consenso entre entrevistador e observador, todos os coeficientes de alfa de Cronbach foram considerados aceitáveis (maiores que 0,71), sendo que os eixos de O Brincar e a Fantasia e Função do Semelhante demonstraram índices excelentes. Quando consideramos o APEGI como um todo, o coeficiente de alfa de Cronbach indicou excelente índice de consistência interna (maior que 0,91).
Desse modo, podemos considerar que a maioria dos eixos do APEGI possui bons escores de confiabilidade e que o APEGI como um todo demonstrou excelente índice de confiabilidade medida pela consistência interna.
Discussão
A partir dos resultados estatísticos, verificamos que se trata de um instrumento de trabalho que apresenta resultados significativos de validade e confiabilidade.
Na comparação do APEGI com uma forma de avaliação já consolidada na área, ou seja, na comparação com o método de estudo de caso considerado aqui como padrão-ouro, observou-se que este instrumento tem uma forte capacidade de detectar entraves estruturais (Kappa=0,619 e ICC=0,619) e moderada para sintomas clínicos conclusivos (Kappa=0,407 e ICC=0,418). Para a detecção de problemas de desenvolvimento, seus resultados não atingiram o esperado nessa comparação (Kappa=-0,021 e ICC=-0,022). Portanto, o uso do padrão-ouro na presente pesquisa demonstrou um valor relativo, porém não determinante, uma vez que as medidas de confiabilidade foram suficientes para validar o instrumento: do ponto de vista de confiabilidade, os resultados se mantêm entre Bom e Excelente (Alfa de Cronbach predominantemente entre 0,8 e 0,9).
Os resultados mostram, portanto, que a aplicação em uma dupla de profissionais melhora a confiabilidade dos resultados. Disto se extrai uma recomendação para a sua aplicação: sempre que possível, é desejável que haja uma discussão dos resultados, de modo a fazer ajustes ou complementações, principalmente se a aplicação tiver sido realizada em uma instituição na qual trabalhem equipes de profissionais.
É esperado, ainda, que não haja uma concordância de 100%. É preciso, antes de mais nada, discutir o que significa uma medida de precisão entre dois clínicos em uma pesquisa de orientação psicanalítica. Estamos diante de um cenário em que a confiabilidade total não é possível, mas ao mesmo tempo é necessário que não seja baixa, uma vez que estamos adotando um critério estatístico.
A confiabilidade total não é possível porque não se pode esperar que dois psicanalistas avaliem de modo estritamente semelhante uma mesma criança. É preciso dar espaço ao equívoco, à interpretação, ao imprevisto e ao improviso, como dizia Mannoni (1978). Entretanto, em uma pesquisa de validação de um instrumento, ele precisa funcionar como um guia orientador, uma referência para a noção de desenvolvimento psíquico de uma criança, e essa noção geral não pode diferir entre pesquisadores a ponto de levar a orientações de trabalho muito diferentes.
Quando foram examinados alguns resultados preliminares, na primeira etapa da pesquisa, observou-se que alguns indicadores exibiram um índice de precisão considerado entre inaceitável e questionável, o que levou o grupo de pesquisadores a propor uma reformulação do instrumento, em especial de seus indicadores de acompanhamento. Depois de feita essa reformulação, os indicadores com baixa precisão, na segunda etapa da pesquisa, aumentaram seu score. Outros, porém, prosseguiram tendo baixa precisão, como o indicador “A criança aceita a intermediação de adultos em caso de rivalização”. É possível que essa baixa precisão tenha advindo de uma quantidade de marcações “não observado”, devido ao ambiente escolar em que as crianças foram avaliadas.
Finalmente, temos que nos debruçar sobre os resultados obtidos na comparação com o padrão-ouro. Nessa comparação, houve coincidência entre as avaliações em relação aos entraves estruturais: os avaliadores concordaram de modo significativo quando se tratava de apontar problemas graves na constituição subjetiva das crianças avaliadas. Entretanto, o apontamento de problemas de desenvolvimento não foi significativamente concordante. Aqui, é preciso avaliar a hipótese de que não há concordância entre os psicanalistas com relação ao que devamos nomear como problemas de desenvolvimento, uma espécie de zona de sombra da teoria. Por ocasião da pesquisa IRDI, realizada de 2000 a 2008, buscou-se uma definição de problemas de desenvolvimento que fosse coerente com as bases teóricas da pesquisa, dada a sua fronteira com os problemas que são típicos da infância e não deveriam então receber o rótulo de “problemas”.
O manual APEGI13 adotou uma resposta, ainda que provisória, para a definição do que sejam “problemas de desenvolvimento”:
Embora se saiba que a infância é marcada por ‘crises do desenvolvimento’, que denotam justamente os diferentes e necessários movimentos identificatórios da criança, sabe-se que há sintomas que incidem no desenvolvimento e que devem ser considerados clinicamente. As formações do sujeito - sua entrada no campo pulsional, os impasses que se apresentam nesta trajetória - incidem sobre a maturação, o crescimento e o desenvolvimento da criança, de modo que as manifestações expressam as diferentes conquistas da criança ou sua dificuldade nestas conquistas. Consideramos, portanto, ‘problemas do desenvolvimento’, sintomas que marcam o entrecruzamento entre processos estruturais e evolutivos e que denotam um sofrimento psíquico na criança sem que, contudo, esteja em questão sua subjetividade. Muito ao contrário, é sua subjetividade que está em jogo, é em defesa de seu desejo e de seu dizer que a criança sintomatiza - servindo-se de suas funções corporais ou de seu comportamento para sinalizar ao entorno que não está conseguindo seguir em frente em suas identificações, ou seja: ela se utiliza de defesas psíquicas ao seu alcance para sustentar sua subjetividade.
A definição de “entraves estruturais para a constituição subjetiva” nomeia, por sua vez, uma paralisação ou extremas dificuldades no processo de construção da subjetividade, com a apresentação de sintomas que buscam proteger a criança do aniquilamento e de uma existência aquém do simbólico.
Para concluir
O instrumento APEGI propõe uma sistematização do conhecimento psicanalítico adquirido em mais de cem anos de prática clínica com crianças, fazendo do estudo de caso - método psicanalítico por excelência - um possível instrumento de uso em pesquisas científicas.
Validar o APEGI é, ainda, chamar a atenção dos profissionais que trabalham na rede pública para a consideração da subjetividade, contribuindo para a promoção de saúde mental de crianças na primeira infância. A inclusão de profissionais orientados pela psicanálise e formados para o uso do APEGI em número suficiente na rede pública poderá ter valor inestimável, o que pode fazer dele um instrumento a ser usado no âmbito da saúde pública e na educação infantil.
Finalmente, validar o APEGI é torná-lo elegível para uso em pesquisas de orientação quantitativa, que exigem instrumentos validados por métodos estatísticos, permitindo assim um diálogo da psicanálise com a Ciência hoje praticada no mundo contemporâneo.