Introdução1
O presente texto objetiva desenvolver uma interlocução entre a epistemologia intercultural decolonial e a educação escolar indígena, a partir da práxis de resistência e de identidade de duas professoras indígenas que atuam em centros de educação escolar diferenciada existentes no contexto urbano na cidade de Manaus-AM.
O interesse em discutir a problemática posta surgiu durante a disciplina Formação e Práxis do Educador Frente aos Desafios Amazônicos, no curso de Doutorado, do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). A experiência de estudos e reflexões nos impeliram a conhecer os centros de educação diferenciada, localizados na periferia de Manaus, onde as professoras indígenas constroem suas pedagogias próprias, a partir de suas cosmovisões e ancestralidades, ressignificando-as no contexto citadino em que vivem.
Nessa direção, a experiência de investigação buscou elucidar algumas questões que nos inquietaram, a saber: Como se desenvolvem as pedagogias diferenciadas decoloniais dos povos Tikuna e Kokama que vivem na cidade de Manaus-AM? Como se constrói a identidade docente indígena na articulação entre os saberes ancestrais e os saberes ocidentalizados? Em que medida a visão de mundo indígena se interpela com a cultura ocidental urbana predominante?
Visando responder às questões inerentes ao processo investigativo, tomamos como esteio metodológico a pesquisa teórica e de campo (MARCONI; LAKATOS, 2003). Também foram realizadas observações dos trabalhos das professoras - a partir de suas didáticas e produção de materiais pedagógicos na língua indígena - e entrevistas semiestruturadas, a fim de compreender as representações, sentidos e significados subjetivos acerca do trabalho pedagógico realizado.
Dessa forma, os dados/informações foram analisados qualitativamente a fim de interpretar certos fenômenos e atribuir-lhes significados. As características básicas desta abordagem, na perspectiva de Lüdke (2003) são: ambiente natural como fonte de dados, dados descritivos, preocupação com o processo, perspectiva do sujeito, processo indutivo e o pesquisador como principal instrumento.
Ademais, por tratar-se de construções pedagógicas de professoras indígenas em contexto urbano - Tikuna e Kokama - impregnadas de sentidos culturais, sociais e, sobretudo, políticos, a análise se ancorou na perspectiva do pensamento decolonial. Essa perspectiva possibilita ao pesquisador descrever, compreender os sentidos e significados expressados pelos sujeitos a partir de suas vozes e lugar de fala, de seus modus vivendi, seus valores culturais, ancestrais e de existência na relação com outros povos e com a natureza. De acordo com Mignolo (2020), o pensamento decolonial se apresenta enquanto concepção epistemológica de resistência e transgressão aos moldes ocidentais impostos pela modernidade/colonialidade, que silenciam as vozes, invisibilizam as identidades e subalternizar os processos educativos dos povos não ocidentais.
Nessa direção, esse autor propõe uma quebra no paradigma da modernidade/colonialidade em seus moldes ocidentais de ser, viver e existir. Compreende os aspectos políticos, geopolíticos, sociopolíticos para explicar os desdobramentos da modernidade e sua sistematização epistêmica obscura de sujeição, exploração e genocídio dos povos indígenas ocorrida no Brasil e na América Latina a partir do século XVI.
As reflexões aqui desenvolvidas neste diálogo decolonial pelo viés da interculturalidade crítica, identidade docente indígena e demais questões inerentes à educação escolar indígena são articuladas a partir dos teóricos decoloniais, autores e pesquisadores decoloniais latino-americanos como Walsh (2009, 2013, 2019); Maldonado-Torres (2007); Quijano (2007); Castro-Gómez e Grosfoguel (2007); Mignolo (2020) e Grosfoguel (2010), dentre outros.
Propõe-se inicialmente uma conversa sobre a epistemologia decolonial e sua relação com a práxis de professores indígenas, pelo caminho da interculturalidade crítica. Em seguida, faz-se uma abordagem da educação escolar indígena no município de Manaus, a partir da revisita aos marcos legais, às questões do indígena urbano, bem como a descrição e análise das práticas decoloniais em construção, efetivadas pelas professoras indígenas Tikuna e Kokama. Logo após, busca-se elucidar os aspectos que envolvem a construção da identidade docente indígena na inter-relação de saberes e construção de pedagogias indígenas decoloniais em contexto citadino, predominantemente colonizado. E, por fim, construímos nossas reflexões finais a partir do processo de discussão e diálogo com os autores, e com as diferentes realidades de pedagogias indígenas decoloniais aqui focalizadas.
1 Interculturalidade crítica e a epistemologia decolonial: concepções para a (re)existência de professores indígenas
O termo interculturalidade crítica foi pensado primeiramente pela pesquisadora, linguista e pedagoga Catherine Walsh (2019), pioneira no pensamento intercultural crítico como um caminho a ser pensado, tensionado e configurado como um subsídio consubstancial entre o pensamento decolonial e das pedagogias decoloniais, a partir dos povos historicamente violentados e subalternizados. Enfatizamos que essa autora é uma pensadora da perspectiva decolonial produzida na América-latina.
Corroboramos neste artigo a perspectiva do pensamento decolonial enquanto processo de ideação das pedagógicas decoloniais entre o pensar e o fazer decolonial. Para esta tecitura, cabe inferir que a epistemologia intercultural decolonial é a união da interculturalidade crítica, do pensamento decolonial e das pedagogias decoloniais como frentes latino-americanas que consolidam um novo pensamento que questiona o lado oculto da modernidade e os desdobramentos da matriz colonial de poder (MIGNOLO, 2020).
A interculturalidade crítica e o pensamento decolonial são formulações insurgentes e interseccionais, sendo constitutivas entre si, alinhadas em suas perspectivas filosóficas e epistemológicas, elaboradas a partir do lócus dos povos colonizados. Essas concepções integram teoria e prática, pressupostos abstratos e concretos, desvelam o conhecimento que emerge na concepção humana, referente às diversidades, às pluralidades culturais com relação ao significado da cultura como fator essencial na axiologia das relações sociais (WALSH, 2013).
Conforme essa autora, as propostas da interculturalidade crítica e do pensamento decolonial têm por configuração o dinamismo analítico cuja intenção é a elaboração/ reelaboração da sociedade e do mundo em favor da vida, e das inúmeras pluralidades de existir e pensar o mundo, para além dos parâmetros determinados pela modernidade ocidental. Deste modo, essas propostas articulam seus conceitos fixadas em epistemologias e metodologias que desenvolvam ações que consolidam a luta das minorias para o reconhecimento das alteridades, reciprocidade, autonomias, diálogo; especialmente, que tal dinamismo possa dar voz à causa das minorias, ou seja, que este processo possa dar voz aos subalternos; aqui especialmente evidenciamos os povos indígenas.
À vista disso, a interculturalidade crítica se estabelece como uma propositura anticolonial que evidencia as agressões, expropriações e explorações impostas pelas colonialidades contra os povos indígenas latino-americanos, desde a invasão da América Latina até nos dias atuais; tal pensamento revisita de forma insurgente o processo do epistemicídio e genocídio colonial conduzidos pela modernidade ocidental, desenvolvendo, assim, articulações políticas e pedagógicas a fim de consolidar uma reflexão coletiva para novas experiências sob a ótica de um mundo diverso e plural.
Desse modo, Walsh (2013), em sua reflexão, aponta três dimensões intrínsecas à interculturalidade crítica, que serão aclaradas ao longo das reflexões empreendidas neste escrito: 1) Dimensão epistêmica, ou epistemologia, pelos fundamentos da epistemologia do pensamento decolonial e suas referências delineativas; 2) Dimensão política, através dos encaminhamentos insurgentes de reconfiguração do mundo, pela coletividade, alteridade; 3) Dimensão dos processos pedagógicos correlacionados com as pedagogias decoloniais. De acordo com a dimensão epistemológica, a interculturalidade crítica incorpora-se integralmente com as ideias proferidas pelo pensamento decolonial, posto que esta emerge de um pressuposto teórico e prático que visa romper com a colonialidade do poder e saber e do ser, dado que estas são ressignificações estruturais do colonialismo.
Por isso, nos compete considerar, de acordo com Walsh (2009), que a interculturalidade crítica enquanto epistemologia decolonial é produzida pela teoria, pela política, pela ação pedagógica e suas metodologias, nos discursos, nas práxis, em favor dos movimentos e dos coletivos indígenas, através e a partir do protagonista indígena e da ação pedagógica deste.
Conduzindo um diálogo para a abertura do intercruzamento de culturas com as interlocuções assimétricas destas, para além das conjunturas coloniais, de forma que possa garantir a voz, a identidade e a reafirmação das configurações tradicionais dos povos indígenas e suas diversidades, para uma tomada de decisão, reivindicação, autonomia e gerência e legitimação das demandas dos povos tradicionais (BANIWA, 2012).
Nessa direção, é um novo paradigma epistemológico que está inserido na percepção do saber tradicional, do bem viver indígena e na construção de caminhos que fissurem e rompam com as dicotomias criadas pela modernidade ocidental. Com isso, a interculturalidade crítica vislumbrada tece um profundo sentido com a epistemologia decolonial, no fortalecimento das resistências, perante as inúmeras lutas travadas, particularmente confrontando os parâmetros das políticas públicas, da gestão pública para causa indígena como um todo, conforme as demandas dos povos indígenas com o propósito de justiça social em todos os pilares: educação, saúde e terra, especialmente na consolidação do bem viver de todos os povos indígenas do Brasil e da América-Latina.
A interculturalidade crítica e a epistemologia decolonial são movimentos para pensar a reelaboração da educação escolar indígena, bem como a formação de professores indígenas pela perspectiva do saber ancestral da ciência indígena, da alteridade, da pluralidade, da legitimidade, e da cosmovisão como um ato político de resistência e (re) existência cultural e social dos povos indígenas (WALSH, 2013).
Com efeito, no que diz respeito à praxiologia decolonial, podemos inferir que esta é a confluência da interculturalidade crítica e do pensamento decolonial, formando uma tecitura morfológica acerca da filosofia, da teoria, da ação e de metodologias como práxis em prol da justiça e da coletividade, uma ideação nova que une a teoria e a prática, além da ação coletiva enquanto política contra as ideias dominantes e em favor das minorias, das pessoas que foram postas pela condição colonial em situação de subalternidade. Esta praxiologia fica evidente nas palavras de Walsh (2013, p. 66-67):
[...] el esfuerzo ha sido de construir, posicionar y procrear pedagogías que apuntan el pensar ‘desde’ y ‘con’, alentando procesos y prácticas ‘praxísticas’ de teorización - del pensar hacer - e interculturalización que radicalmente desafían las pretensiones teórico-conceptuales y metodológicas-académicas, incluyendo sus supuestos de objetividad, neutralidad, distanciamiento y rigor. Pedagogías que se esfuerzan por abrir grietas y provocar aprendizajes, desaprendizajes y reaprendizajes desprendimientos y nuevos enganchamientos; pedagogías que pretenden plantar semillas no dogmas o doctrinas, aclarar y en-redar caminos, y hacer andar horizontes de teorizar, pensar, hacer, ser, estar, sentir, mirar y escuchar - de modo individual y colectivo - hacia lo decolonial.
Como um instrumento posto, a interculturalidade corrobora com o pensamento decolonial de tal modo a propor em suas discussões uma prerrogativa analítica de cunho crítico, de modo que delibera questionamentos e modificações dos padrões dominantes estabelecidos pela modernidade, além da desconstituição dos paradigmas que sustentam a intenção dos seus interesses.
Portanto, a dimensão política da interculturalidade e do pensamento decolonial tem como foco o fortalecimento da cultura, da identidade e da coletividade dos povos indígenas, articulando ações políticas, ideias, posicionamentos epistêmicos e teóricos, atitudes praxiológicas em razão da desocultação das riquezas culturais e do protagonismo indígena, com o intuito de romper com as injustiças sociais/culturais/políticas firmadas pela matriz colonial de poder e suas ressignificações estruturais estabelecidas ainda nos dias de hoje (MIGNOLO, 2020).
Sendo assim, cabe-nos enfatizar que a insurgência é ação política para a resistência e sobrevivência destes povos, principalmente por uma questão ancestral e cultural, uma vez que os povos indígenas são ancestralmente os guardiões da floresta e dos biomas que ainda resistem. Mesmo aqueles inseridos em contextos urbanos possuem modus vivendi em conformidade com as características da sua cultura materna, todavia essas características acabam sendo ressignificadas pelo contexto urbano.
A terceira dimensão está imbricada nos processos pedagógicos correlacionados com as pedagogias decoloniais como atitudes que visam romper com a colonialidade presente. Uma vez que a interculturalidade crítica vem sendo pensada para desenvolver ações cuja finalidade é a articulação dos processos educativos voltados para as afirmações identitárias dos povos indígenas, e suas tradições culturais,
[...] la pedagogía y lo pedagógico aquí no están pensados en el sentido instrumentalista de la enseñanza y transmisión del saber, tampoco están limitadas al campo de la educación o los espacios escolarizados. [...], la pedagogía se entiende como metodología imprescindible dentro de y para las luchas sociales, políticas, ontológicas y epistémicas de liberación. (WALSH, 2013, p. 29).
Por fim, a interculturalidade se mostra como parâmetro também pedagógico de transgressão e subversão dos povos indígenas diante dos aspectos coloniais, estabelecendo-se como prática social de reformulação do pensamento social, produzindo condições de existência, justiça social, formas próprias de educar, para além das contradições impostas pela colonialidade.
2 Marcos legais e contextos da educação escolar indígena no município de Manaus
A Constituição Federal de 1988 é um marco histórico de conquistas legais significativas para os povos indígenas, visto que a Carta Magna outorga a estes o direito a uma legitimação e suporte jurídico legal para o desenvolvimento de políticas públicas direcionadas às suas demandas cíveis enquanto povos originários, destacando-se o direito à educação escolar própria, definido no Art. 215, § 1º e no Art. 231, §1º a 7º (BRASIL, 1988).
Esses marcos legais são importantes conquistas em meio ao processo colonial de violação que os indígenas sofreram durante séculos, porém compreendemos que tais marcos são contraditórios, porque as suas configurações não assentiram o protagonismo, a autonomia e a voz dos povos indígenas de forma integral e prática. Estes povos até hoje, em certa medida, são perseguidos e violentados em seus direitos, principalmente em poder permanecer em territórios (LUCIANO, 2006).
Entretanto, para a educação, houve garantias estabelecidas, dentre elas a escolarização, tendo como um de seus pilares a interculturalidade, mencionada no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (BRASIL, 1998). Caracterizada, também, como comunitária, bilíngue/multilíngue, específica e diferenciada, a apropriação da educação escolar tornou-se ferramenta estratégica de compreensão da sociedade circundante, bem como de luta e reivindicação por direitos sociais.
Ancorado nos fundamentos legais - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/96, artigos 78 e 79 (BRASIL, 1996); Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), de 1998 (BRASIL, 1998); Parecer nº 14, de 1999, que dispõe sobre os currículos das escolas indígenas (BRASIL, 1999a); Resolução nº 3, de 1999, que versa sobre a qualificação dos professores indígenas (BRASIL, 1999b); e Resolução nº 05/2012 (BRASIL, 2012) -, o governo municipal de Manaus iniciou a construção de políticas públicas a partir de levantamentos de demandas das comunidades indígenas interessadas em atendimento educacional diferenciado, e da criação do Núcleo de Educação Escolar Indígena, no ano de 2005.
O município de Manaus tenta equalizar, mediante cobrança e luta dos povos indígenas ali residentes, essas demandas educacionais à medida que aumenta sua população indígena na zona urbana, como visualizamos na Tabela 1.
LOCALIZAÇÃO DO DOMICÍLIO | População indígenas por situação do domicílio | ||
---|---|---|---|
Total | Urbana | Rural | |
TERRAS INDÍGENAS | 517.383 | 25.963 | 491.420 |
FORA DE TERRAS INDÍGENAS | 379.534 | 298.871 | 80.663 |
TOTAL | 896.917 | 324.834 | 572.083 |
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010).
O último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 2010, evidencia a presença de 315.180 indígenas nas zonas urbanas brasileiras. Na cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, ainda em 2010, foram registrados cerca de 3.837 deles, divididos em várias etnias diversas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Ressalta-se que esse número é crescente por conta dos deslocamentos dos indígenas para a capital amazonense, motivados, principalmente, pela busca de melhores condições de subsistência, saúde e educação escolar. Nessa realidade encontram-se os povos Kokama, do bairro Grande Vitória, e os Tikuna, do bairro Cidade de Deus.
Manaus, sendo a capital do Amazonas, experimentou um processo intenso de migração dos povos indígenas para seu espaço urbano nos últimos anos. No ano de 2010, o Censo Demográfico Brasileiro registrou a presença de apenas 3.837 indígenas na cidade (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Passada uma década, a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME),2 em 2020, afirma, por ocasião de prestação de assistência aos povos indígenas durante a Pandemia de Covid 19, que existem aproximadamente 35 mil indígenas na capital amazonense, de 45 diferentes povos, que estão organizados em 54 comunidades, ocupações e assentamentos, falantes de pelo menos 15 línguas indígenas (COLLET, 2020).
Ao se estabelecerem na cidade, em busca de melhores condições de subsistência, de saúde e educação escolar, esses povos indígenas vivenciam o que Almeida (2008) conceitua de “territorialidades específicas”, pois constroem contextos peculiares de vida no espaço urbano, ressignificando a partir de suas referências ancestrais. Todavia, a presença indígena na cidade, embora de forma crescente, torna-se “invisível” aos olhos da sociedade e do Estado.
Isso nos leva a ressaltar os mecanismos que permitem aos indígenas manterem os laços sistemáticos com a aldeia e a afirmação de sua identidade étnica na cidade. Podemos fazer referência à concentração de famílias de uma dada etnia ou de várias etnias em um mesmo local de moradia ou bairro, sob a nomenclatura de “comunidade”, bem como a formação das associações indígenas étnicas, multiétnicas e de gênero que têm por objetivos propiciar a prática de rituais, produzir o artesanato, praticar os hábitos alimentares, ensinar a língua materna ou agrupar as etnias na luta em torno das políticas diferenciadas.
Nesse sentido, a vinda para residir na cidade não constitui em quebra de laços culturais com a comunidade/aldeia de origem, uma vez que os deslocamentos cidade-aldeia-cidade são frequentes, seja para manutenção de necessidades das relações parentais ou mesmo relações comerciais que envolvem busca de matérias-primas na aldeia de origem. Além dos esforços de adaptação e resiliência ao espaço citadino, da construção de territorialidades específicas, pautadas em modos de vida peculiares de resistência ao processo colonizador - principalmente por meio da educação -, ainda persistem a hostilidade, intolerância e racismos a serem enfrentados cotidianamente nas relações com os não indígenas. Isso revela a hostilidade do urbano em relação aos povos originários, porque
Historicamente a cidade sempre foi um espaço vedado aos indígenas, sendo apenas local de visitas rápidas para compras ou tratamento de saúde. Com o decorrer do tempo a cidade tornou-se um espaço que pode ser apropriado por essa população através de, pelo menos, dois processos: um é a cidade que cresce e encosta na área indígena, tornando-se um bairro da periferia, ou é a cidade que foi fundada a partir de uma aldeia; [...] o outro, é o processo de migração, que adensara a população urbana em função da industrialização e urbanização, que forma os elementos mais valorizados para se alcançar a meta desenvolvimentista [...] (RANGEL; GALANTE; CARDOSO, 2013, p. 114).
Dessa forma, a inserção dos indígenas no contexto urbano é marcada por inúmeras dificuldades. Isto acaba por silenciá-los de suas identidades nos espaços sociais e, especialmente, nas escolas formais, conforme evidenciam os estudos de Araújo (2015) em Manaus. Nos dias atuais, as ações do Movimento Indígena visam mudar esta realidade, desocultando as identidades culturais e apostando na relação intercultural, utilizando-se da educação escolar indígena, a partir da interculturalidade crítica enquanto ferramenta de decolonização. Logo, para Klintowitz, Correia e Aguiar (2020), pensar o indígena em contexto urbano exige atuar contra estereótipos. E a escola é construída para assegurar que a “cidade também [deva] ser um local de afirmação dos direitos indígenas” (KLINTOWITZ; CORREIA; AGUIAR, 2020).
Em 2005, o empenho dos povos indígenas residentes no município de Manaus na luta pela oferta de educação diferenciada deu início a efetivas conquistas nesse âmbito. Amparadas pelo artigo 14 da Resolução nº 11, de 2001 (AMAZONAS, 2001), do Conselho Estadual de Educação, que garante a escolarização específica aos indígenas desaldeados, doze comunidades solicitaram o atendimento educacional diferenciado, nas quais doze professores indígenas foram escolhidos para lecionar e foram contratados pelo governo municipal, por meio da Secretaria Municipal de Educação.
Alguns dos professores já exerciam práticas docentes nos chamados Espaços Culturais de suas comunidades, locais onde ocorrem as atividades da cultura tradicional. Atualmente os espaços educativos são denominados Centros Municipais de Educação Escolar Indígena (CMEEI), funcionando como escola diferenciada intercultural indígena. O município de Manaus atende 26 comunidades, das quais 4 escolas indígenas e 22 CMEEI, envolvendo 36 professores indígenas, conforme o Quadro 1.
CMEEI | POVO/ETNIA | LÍNGUA | LOCALIZAÇÃO |
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Wotchimaücü | Tikuna | Tikuna | Bairro - Cidade de Deus 01 |
Wanhut’i/ | Sateré-Mawé | Sateré- Mawé | Bairro - Dumont/ Redenção 01 |
Buû-Miri/ | Plurietnico | Tukano | Rua 06 nº 156 - Conjunto Villar Câmara 01(sede da AMARN) |
Tsetsu Kamutum Kokama | Kokama | Kokama | Bairro -Grande Vitória 01 |
Tupãna Yupirunga/ | Karapãna | Nheengatú | Bairro-Tarumã |
Wakenai Anumarehit/ | Pluriétnico | Nheengatú | Comunidade Parque das Tribos -Tarumã. |
Amarini Arutã Arini Apurinã | Apurinã | Apurinã | Bairro-Mauazinho |
Nusoken II - Tarumã | Sateré-Mawé | Sateré-Mawé | Bairro Tarumã |
Wainhamary Apurinã | Apurinã | Apurinã | Bairro - Nova Cidade/Conjunto Cidadão 12. |
Yatsɨ ɨkɨra ‘Lua Verde’ | Kokama | Kokama | Bairro - Cidade de Deus, nº 116 |
Nusoken | Sateré-Mawé | Sateré-Mawé | Conjunto Santo - Dumont/ Redenção 01 |
Karuara | Kokama | Kokama | Bairro-João Paulo |
Nossa Senhora de Fátima | Pluriétnico | Nheengatú | Comunidade Nações Indígenas - Tarumã |
Atauanã Kuarachi Kokama | Kokama | Kokama | Estrada do Brasileirinho, Ramal: km 08 |
Bayaroá | Tukano | Tukano | Bairro São João- BR 174 |
Branquinho | Tukano | Tukano | Igarapé do Branquinho-Tarumã |
Gavião | Sateré-Mawé | Sateré-Mawé | Tarumã-Açú - Igarapé do Tiú |
Kuiá | Sateré/Tikuna | Sateré/Tikuna | Aldeia Inhaã-Bé, Igarapé do Tiú 02, RioTarumã Açu |
Weku Durpuá | Tukano | Tukano | Comunidade Barreirinha /Rio Cuieiras |
Kurasí Weara | Baré | Nheengatú | Comunidade Yamuatiri Anama/Rio Cuieiras |
Tupana Ruca | Pluriétnico | Nheengatú | Comunidade do Livramento |
Poranga Yasuru | Baré | Nheengatú | Rio Cuieiras |
Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo com base nos dados da pesquisa.
Os Centros são assessorados pedagogicamente pela Gerência de Educação Escolar Indígena (GEEI), antigo Núcleo de Educação Escolar Indígena. As fontes de orientação para a realização do trabalho pedagógico intercultural dos professores advêm das Diretrizes Municipais da Educação Escolar Indígena de Manaus, que objetivam:
Assegurar a implementação dos princípios da Educação Escolar Indígena nas Escolas Indígenas e nos Centros Municipais de Educação Escolar Indígena; 2) Assegurar que os projetos educativos das Escolas Indígenas e dos Centros Municipais de Educação Escolar Indígena sejam fundamentados nos princípios da especificidade, do bilinguismo/multilinguismo, da diversidade cultural, da reflexão dialógica, da diferença, da organização comunitária e da interculturalidade; 3) Afirmar, por meio de base jurídica, administrativa e pedagógica, que o modelo de organização e gestão das escolas indígenas e dos Centros Municipais de Educação Escolar Indígena leve em consideração as práticas socioculturais e econômicas, suas respectivas comunidades, os processos próprios de ensino e de aprendizagem; 4) Garantir às comunidades indígenas do município de Manaus meios para a efetivação da educação diferenciada, com qualidade social e pertinência pedagógica, cultural, linguística, ambiental e territorial, respeitando as lógicas, os saberes e as perspectivas dos povos indígenas. (MANAUS, 2017, p. 16).
Nessa perspectiva, visando responder ao propósito das Diretrizes, os professores efetivam suas ações educativas e fortalecem suas práticas culturais em suas realidades específicas, por meio das escolas indígenas municipais localizadas nos rios Negro e Cuieiras; e pelos Centros Municipais de Educação Escolar Indígena (CMEEI), localizados no espaço urbano da cidade de Manaus e em algumas áreas rurais/ribeirinhas do município.
É importante salientar que os professores indígenas, em sua maioria, não possuem formação superior (alguns estão em processo de formação ou reivindicando-a, contudo, contam com a oferta de formação pedagógica continuada da Secretaria: a formação em serviço), e são capacitados para esta tarefa de acordo com legislação específica que os assegura neste sentido.
As Diretrizes da Educação Escolar Indígena de Manaus apontam um diálogo de pedagogias na efetivação das práticas de educação diferenciadas nos CMEEI: a Pedagogia Tradicional Indígena articula-se à Pedagogia de Projetos e aspectos da Pedagogia da Alternância, ressignificando em relação à realidade indígena, mediante a utilização de cadernos pedagógicos de pesquisa, planejamento e acompanhamento e registro do aluno. Assim, “Essa proposta pode possibilitar registros mais sistemáticos dos saberes indígenas, subsidiar a produção de materiais pedagógicos diferenciados, a valorização das culturas indígenas e as práticas de avaliação da aprendizagem, dentre outros” (MANAUS, 2017, p. 47).
Com base na elaboração do projeto pedagógico, o planejamento de ações foi se construindo, no sentido de possibilitar uma visão integrada do trabalho intercultural pelo professor, além da sistematização do mapa de ações com planejamento mensal ou semanal. Nesse processo, é evidente a importância do acompanhamento e orientação do assessor pedagógico ofertado pelo Município, o que não o exime das contradições nesta dinâmica.
Objetivos específicos | CENTRO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDIGENA WOTCHIMAÜCÜ | |||||
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Projeto: Conhecendo e valorizando a cultura Tikuna por meio de grafismos dos Clãs Objetivo Geral: Conhecer e valorizar os conhecimentos da cultura indígena Tikuna por meio de grafismos dos Clãs | ||||||
Ações | ||||||
Fev. | Mar. | Ab. | Mai. | Jun. | Jul. | |
Conhecer os Clãs Tikuna, seus grafismos e seus significados |
Conhecendo o Clã TEMA (Buriti) |
Conhecendo o Clã E’CA’Â (Jenipapo) |
Conhecendo o Clã BARÜ (Pássaro) |
Conhecendo o Clã NAIYÜ’ÜS (Formiga) |
Conhecendo o Clã AI (Onça) | Conhecendo o Clã OTA (Galinha) |
Participar de oficina de desenho de grafismos para aprender seus significados | Aprendendo a fazer o grafismo do Clã TEMA e de diversas árvores Treinando linhas retas e curvas no papel e no chão |
Aprendendo a fazer o grafismo do Clã E’CA’Â diversas árvores Treinando desenhos de grafismos no papel |
Aprendendo a fazer o grafismo do Clã BARÜ e de diversos pássaros fazendo desenho e pintura de grafismo no papel |
Aprendendo a fazer o grafismo do Clã NAIYÜ’ÜS E de diversos animais pequenos |
Aprendendo a fazer o grafismo do Clã AI e de animais grandes | Aprendendo a fazer o grafismo do Clã OTA e de diversos animais Fazendo Pintura de grafismos em tecido. |
Praticar a leitura, escrita e oralidade na língua Tikuna |
Ouvindo e fazendo registro de diálogos com os mais velhos da comunidade sobre os clãs, seus grafismos e sua importância para o povo Tikuna |
Conversando o sobre o significado dos grafismos e suas relações com os clãs do povo Tikuna | Construindo os jogos e brincadeiras com grafismos Tikuna | Realizando atividade escrita de leitura e interpretação de textos | Participando de brincadeiras sobre os grafismos | Participando de Jogo de perguntas e respostas |
Conhecer os materiais e sua preparação para serem usados no desenho dos grafismos Tikuna. | Aprendendo a fazer a tinta de jenipapo e seu uso na pintura de grafismos corporais. | Aprendendo a fazer a tinta de jenipapo e seu uso na pintura de grafismos corporais | Aprendendo a fazer a tinta de carvão e seus usos na pintura de grafismos no corpo e rosto. | Aprendendo a fazer a tinta de carvão e seus usos na pintura de grafismos no corpo e rosto | Aprendendo a usar o lápis preto para fazer grafismos no rosto. | Aprendendo a usar o lápis preto para fazer grafismos no rosto. |
Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo com base nos dados da pesquisa.
Na realização de uma prática pedagógica diferenciada, concomitante à construção da ideia de especificidade e diferenciação, com assessoria da GEEI, os professores indígenas utilizam-se dessa oportunidade e produzem materiais didáticos, paradidáticos, jogos, cartazes, portfólios, dentre outros, nas línguas em que atuam, a partir de pesquisas com anciãos e sábios da comunidade, e ressignificam materiais já existentes em algumas línguas indígenas assentados na interculturalidade.
Assim, a equipe pedagógica municipal e os professores indígenas residentes nesta cidade passam cotidianamente, segundo Baniwa (2012), a conviver com o dilema de atender preferencialmente as demandas de resgate, manutenção e valorização dos conhecimentos, das culturas e das tradições, sem perder de vista o acesso aos conhecimentos, às técnicas e aos valores da sociedade envolvente.
São nesses centros que a comunidade indígena - na representatividade da escolarização específica diferenciada e de seus professores - reivindica, pensa, vive, problematiza nas práxis a discussão da diferença concreta em termos pedagógicos. Em outras palavras, efetivam, segundo Silva (2014, p. 100), uma política pedagógica curricular da identidade e da diferença, na qual se permita “não simplesmente reconhecer e celebrar a diferença e a identidade, mas questioná-las”. Exigem escola com identidade(s) própria(s):
[...] identidade para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar. (HALL, 2014, p. 111-112).
A identidade aqui defendida, enquanto diferenciação e ponte, visa aplacar o processo de invisibilidade a que esses indígenas estão submetidos no contexto social da capital manauense. Nesta perspectiva,
Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’ e ‘eles’. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem, e ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder. ‘Nós’ e ‘eles’ não são, neste caso, simples distinções gramaticais, mas evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente marcadas por relações de poder. (SILVA, 2014, p. 82).
Por isso, os professores indígenas constroem uma ação identitária cujo pilar são as Diretrizes de Educação Escolar Indígena que dão aspecto próprio ao fazer pedagógico desses docentes na cidade em destaque. São pedagogias próprias de resistência às imposições socioculturais da colonialidade marcadamente predominante nas relações citadinas. É nesse processo de construção de sua própria identidade, de pedagogias decoloniais que estão as professoras indígenas Kokama e Tikuna.
3 A educação diferenciada do povo Tikuna no bairro Cidade de Deus
O povo Tikuna da Comunidade Wotchimaücü3 iniciou suas práticas educativas diferenciadas em 2002, por ocasião de um projeto de extensão universitário que abordou a revitalização de línguas indígenas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Foram escolhidos dois indígenas da comunidade para serem professores, cuja atuação envolveu ensinar os costumes, as tradições, a língua oral e escrita Tikuna para as novas gerações.
A escolha desses educadores se deu pela via da confiabilidade, força identitária (uma vez que além do aval da coletividade, teve a aceitação final da liderança principal, que, às vezes, é o cacique), conhecimento da língua e da cultura Tikuna, desde que fosse um interlocutor-tradutor em reuniões que exigissem diálogo com os não indígenas, e assim continua.
Chamamos atenção que nesse período não havia espaço específico para esse ensino, a escola funcionava por meio de rodízio nas casas da comunidade, como uma espécie de educação itinerante, o que nos dá o panorama da importância desse processo de resistência e empreendimento decolonial para os Tikuna. A construção do Centro Cultural almejado por meio de doação voluntária da Irlanda a partir de “alianças sociais, econômicas e políticas, as quais demarcaram um novo tempo” (SOUZA, 2014, p. 12). Para a professora da comunidade, o ensino sobre a cultura Tikuna possibilita a efetivação do ensino diferenciado que sistematiza sua cultura e dá possibilidades outras, onde este povo deixa vívida
A importância do povo Tikuna para as crianças [é fundamental] [...] elas [as crianças] estão perdendo a nossa cultura, tem que ensinar elas, tem de resgatar a nossa cultura com as crianças falando para ela não perder, para ela ir conhecendo como é grafismo, como é música, como a gente vive na aldeia, porque aqui na cidade é diferente. (PROFESSORA TIKUNA, entrevista, 2020).
Esta fala corrobora a importância do viver Tikuna na escola, como também entender que sua cultura pensada, projetada e esquematizada através do ensino e aprendizagem requer seu potencial político cultural, em que “esse diálogo de conhecimentos, saberes e culturas, precisa ocupar lugar no currículo e, para tal, faz-se necessário sua decolonização” (MUBARAC SOBRINHO; SOUZA; BETTIOL, 2021, p. 11). Assim, no território da cidade, com muito esforço a educação escolar indígena específica e diferenciada vai sendo ressignificada, ou seja,
[...] aquela compreendida a partir da escola, tendo como fundamento referência os pressupostos metodológicos e os princípios geradores de transmissão, produção e reprodução de conhecimentos dos distintos universos socioculturais específicos de cada povo. Uma educação que garanta o fortalecimento de identidades étnicas e a continuidade dos sistemas de saberes próprios da comunidade indígena e a desejável complementaridade de conhecimentos científicos e tecnológicos, de acordo com a vontade e a decisão de cada povo. (BANIWA, 2012, p. 71).
Essa referência e compreensão começa, inclusive, a partir da denominação do espaço educacional, a priori, nominado de Espaço Cultural Yoi, em homenagem à divindade do povo Tikuna, que embebido de suas cosmologias e ancestralidades, traz algo que significa proteção para tudo que envolve a educação escolar Tikuna diferenciada. Esse espaço cultural é a sede da Associação Comunidade Wotchimaücü, que na época da pesquisa era composta de duzentas e dezessete famílias, totalizando trezentas e cinquenta pessoas associadas, residentes na comunidade e em outros bairros da cidade. Destina-se às atividades da comunidade, como reuniões, assembleias, confecções de artesanatos, confraternizações, ensino da língua e cultura, recepção de turistas, visitas de saúde, dentre outras.
Em 2017 a nomenclatura mudou para Centro Municipal de Educação Escolar Indígena Wotchimaücü, cujo nome homenageia o Clã Awai, em respeito ao primeiro indígena morador da comunidade. Essa comunidade “constrói o seu espaço e assume um protagonismo étnico a partir de ações desenvolvidas em consonância com as dinâmicas culturais e identitárias” (SILVA, 2013, p. 125).
Adentrando no quesito ensino-aprendizagem, ressaltamos que os conteúdos ensinados pela professora Tikuna são provenientes da cultura ancestral, trabalhados de forma interdisciplinar, intercultural e bilíngue na dinâmica da pedagogia de projetos. Deste modo, o tema do projeto é escolhido em assembleia comunitária. A professora tem 37 anos de idade, e é licenciada em Pedagogia. Contudo, aprendeu a docência intercultural mais por suas experiências e práxis que por formação pedagógica, por ter sido escolarizada aos moldes da escola formal.
Na visão de Ghedin (2008, p. 135), a práxis é concebida enquanto ação-reflexão-ação que visa romper com o paradigma tradicional e construir um novo paradigma que possibilite a emancipação e autonomização, tanto do educador quanto de seus educandos. Na concepção da professora, trabalhar sua cultura é valioso demais para as crianças Tikuna que nascem na cidade:
É importante trabalhar a língua, a cultura. Quem já nasceu aqui não conhece, tem que trabalhar mostrando, explicando, ensinando sobre a cultura, principalmente os clãs. É importante o grafismo, porque até eu como professora, antes eu nem sabia desenhar, eu nem sabia desenhar no corpo, no rosto assim e as crianças também, elas não sabiam. Por isso que é importante na prática junto com elas pegar os materiais que a gente usa pra fazer os grafismos. (PROFESSORA TIKUNA, entrevista, 2020).
Ela demonstra os saberes necessários à sua cultura, ou seja, construídos e reconstruídos, elaborados e reelaborados, a partir do que sabe e do que lhe foi ensinado e que passa adiante no centro cultural; são, portanto, saberes necessários “em confronto com suas experiências práticas, cotidianamente vivenciadas nos contextos escolares” (PIMENTA, 1999, p. 29), que no passado fugiu de suas realidades indígenas e que os Tikuna querem projetar na atualidade como possibilidade de uma educação outra.
Outro ponto é a ação intercultural por meio de oficinas, dramatizações, músicas, danças, jogos tradicionais ou não, focando o desenvolvimento das habilidades de leitura, escrita, interpretação e oralidade na língua Tikuna, bem como a apropriação da língua portuguesa.
Para além, mostra-se nesse cenário um projeto intercultural de transformação social e educativa (WALSH, 2007) visando à decolonialidade. Esta que quer dar as cartas e fazer emergir os conhecimentos Tikuna abafados pela sociedade não indígena, estigmatizados pela colonialidade do saber (CASTRO-GOMES, 2007) que está arraigada na vida cotidiana deles. Daí o processo da interculturalidade ser de suma importância, especialmente quando se alinha cultura e educação escolarizada entre povos que saem de suas aldeias e passam a morar nas cidades.
O impacto dessa conjuntura também se apresenta na percepção de um trabalho intercultural no contexto do povo Tikuna, forjado entre a interculturalidade funcional e passos maiores para a prática da interculturalidade crítica, apontada por Candau (2008, 2010) e Walsh (2013, 2019). Paulatinamente, as professoras indígenas empreendem com maior clareza práxis alicerçadas nos anseios do povo que quer fortalecer sua cultura, que atravessa a ponte da visão eurocêntrica que por séculos subjugou (embora ainda o faça) as subjetividades da vida Tikuna, e avança rumo à efetivação de uma educação escolar construída com suas inteligências e visão de mundo. A escola deles é “usada” para isso, reflete seu modus vivendi.
O povo Tikuna tem grande articulação que visa valorizar, reinventar e fortalecer sua cultura no processo da educação escolar diferenciada, tendo a pesquisa enquanto ferramenta essencial. Com a ajuda desse instrumento pode-se perceber a efetivação da aprendizagem Tikuna através das músicas, da leitura e escrita, de grafismos, do respeito aos Clãs, dentre outros aspectos. Neste trabalho “diferenciado” a pesquisa tem papel crucial, assim retratada:
A pesquisa é importante, como a gente não sabe muito a cultura indígena Tikuna, é porque é a anciã que tem mais formação, ela que sabe contar história, ela que fala sobre a nossa cultura. E a gente como é nova, tem que perguntar dela, e ela tem que explicar como é que é, depois da gente estar sabendo é que a gente depois leva pra sala de aula falando para as crianças. Além da anciã, a gente pesquisa usa mais livro, apostila, cartilha e os anciãos. A dificuldade é, como é grafismo, a gente tem que pesquisar também qual o significado daquilo que se desenhou. Por isso tem que pesquisar pra saber qual o grafismo e significado do buriti, do jabuti. Não pode tirar da cabeça. (PROFESSORA TIKUNA, entrevista, 2020).
Dessa forma, a pesquisa tem papel fundamental na ação pedagógica da professora indígena. Atribui a ela um encargo de pesquisadora, sistematizadora e mediadora dos conhecimentos tradicionais de seu povo, bem como de interlocutora com os saberes da sociedade envolvente, estabelecendo o diálogo intercultural. Demo (1997, p. 16) afirma que “a pesquisa é o processo que deve aparecer em todo o trajeto educativo”.
Essa pesquisa, inferida pela professora Tikuna, está voltada à autoidentificação tradicional, à valoração da cultura e de suas manifestações. Neste sentido, analisa-se pelo lócus decolonial que tal movimento é uma praxiologia decolonial, mesmo que a concepção não seja compreendida como tal pela referida professora, em razão desta não ter tido acesso aos processos cognitivos e formativos da perspectiva decolonial.
Portanto, analisamos e corroboramos essa ação como uma fissura frente à conjuntura colonial, evocando o protagonismo cultural e ancestral desse povo, através do reconhecimento e fortalecimento das suas características culturais. Logo, podemos entender que este é processo de etnogênese, ou seja, um retorno, uma reafirmação e o fortalecimento da cultura tradicional, e das suas características próprias, “[...] conceito que tem sido repensado é o de resistência [...] por meio de uma reutilização própria de tais itens, conduzirem suas lutas e reivindicações” (CARVALHO, 2006), mesmo em contexto adverso, urbano.
Nessa tarefa os anciãos e sábios são incluídos nesse espaço de aprendizagem, no qual estudam crianças, jovens e adultos, convictos da importância dessa escola para a manutenção de sua identidade indígena. Assim, percebe-se que o caminho investigativo e formativo apresenta a possibilidade de “interculturalidade” na relação entre pesquisador (a) e pesquisado(a) (DULCI; MALHEIROS, 2021, p. 185), entre a pesquisa e a escola.
Visualiza-se, portanto, um movimento de etnogênese da professora indígena e seu povo, que consiste no movimento de retorno aos parâmetros epistêmicos culturais de seus ancestrais para a promoção da cultura Tikuna no presente. Nisto se processa a ressignificação de sua identidade indígena, nesse contexto de territorialidade específica do ambiente citadino.
4 Educação diferenciada do povo Kokama no bairro Grande Vitória
A escola diferenciada intercultural do povo Kokama tem por nome Centro Municipal de Educação Escolar Indígena Tse Tsu Kamutum Kokama, que significa “Estrela da Manhã” na língua materna. Está localizada no bairro Grande Vitória, na periferia da cidade de Manaus. É constituído por famílias imigrantes, indígenas (em sua maioria Kokama) e não indígenas, do interior e de outros estados.
A comunidade Kokama ali presente, cuja designação de sua forma organizativa é Associação Kokama Grande Vitória, é formada por 25 famílias indígenas. A escola diferenciada funciona numa pequena sala atrás da residência do cacique da comunidade. Nesse centro estão matriculadas trinta e cinco crianças. A professora Kokama destaca a importância dessa escola diferenciada para sua comunidade:
É importante porque as crianças hoje em dia só têm conhecimento da língua portuguesa na qual elas foram alfabetizadas e que os pais falam, e a língua materna é a língua dos nossos ancestrais, estava esquecida e hoje nós conseguimos revitalizar, fortalecer, e espero que se fortaleça mais ainda, tanto na oralidade e na escrita. É importante elas aprenderem a relacionar a língua portuguesa e a nossa língua Kokama. (PROFESSORA KOKAMA, entrevista, 2020).
A docente não tem formação superior, possui o ensino médio, com aperfeiçoamento na Ação Saberes Indígenas na Escola, curso ofertado pelo governo federal em parceria com estados e municípios, através da Universidade Federal do Amazonas, que objetivou formar professores indígenas com ênfase nas questões de letramento e numeramento.
Observamos que a professora Kokama realiza um processo de ensino interdisciplinar, bilíngue e intercultural, aspectos intrínsecos à educação escolar indígena (BRASIL, 1998). Deste modo, concretiza um movimento pedagógico de praxiologia decolonial, por empreender aspectos da interculturalidade crítica e epistemologia decolonial, de forma a colaborar com o fortalecimento da cultura tradicional indígena, através de um processo pedagógico mais autônomo e emancipatório que visa frear os aspectos coloniais latentes na educação.
Ela realiza muitas atividades pedagógicas de forma diferenciada, como oficinas de conhecimentos tradicionais, dramatizações, narração das histórias Kokama, advinhas, desenhos, pinturas, confecção de materiais específicos na língua, ditados, brincadeiras tradicionais ou não, jogos pedagógicos e músicas, dentre outras. Estes processos são primordiais, cada um tem sua importância
A música é muito importante pra gente desenvolver o trabalho com as crianças, porque elas aprendem muito rápido a cantar, já falam os nomes, os numerais na língua materna. Aprender através da música, das brincadeiras, da dramatização, de pinturas, criações artísticas faz as crianças se sentirem mais à vontade no aprendizado delas, sentem interesse pra aprender coisas diferentes, quando eu faço advinhas também. (PROFESSORA KOKAMA, entrevista, 2020).
Por tratar-se de um processo crítico de recondução da língua materna, foi detectado que há poucos falantes fluentes da língua Kokama na cidade de Manaus. Estes, geralmente, são os mais velhos da comunidade, os chamados anciãos. Para Mignolo (2020), uma das armas mais poderosas para a construção de comunidades imaginadas homogêneas foi a crença numa língua nacional, ligada a uma literatura nacional, que contribuísse, no domínio da língua, para a cultura nacional. Os Kokama sofreram e sofrem tal imposição colonial.
A própria professora é aprendiz da língua desde que iniciou a docência, contando com o apoio do cacique e dos anciãos da comunidade nesse desafio. As novas gerações nascidas na cidade acabam por serem alfabetizadas na língua predominante nas relações citadinas: a língua portuguesa. Assim, a língua Kokama é ensinada como segunda língua - a chamada L2.
Ensinar a língua e cultura de seu povo na cidade constitui-se em desafio diário na tarefa de ser educadora Kokama.
Isso nos faz considerar como é preciso repensar essas noções naturalizadas e cristalizadas sobre língua, sobretudo na Linguística - tendo em mente o papel exercido por ela na reprodução e disseminação de ideologias de linguagem -, haja vista a necessidade de problematizar o cerne das questões que envolvem a invenção das línguas, suas contribuições para a colonialidade/modernidade e os impactos reais que trazem para a vida dos sujeitos marginalizados desde a colonização até os dias atuais, pela subalternização de seus corpos, conhecimentos, línguas e culturas, como é o caso dos indígenas no Brasil. E, mais importante, buscar elementos que se aproximem das experiências interculturais contemporâneas dos indivíduos indígenas, negando, assim, a negação de sua contemporaneidade. (OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2017, p. 25).
Viver na cidade opera transformações na cultura desse povo. Viver, dialogar, conversar e se comunicar na cidade operam transformações no que tange aos aspectos linguísticos de indígenas que optaram por sua história de vida e anseios ao êxodo para a cidade de Manaus. Na perspectiva de Laraia (2001), a cultura é dinâmica e experimenta transformações internas e externas, de acordo com os significados construídos e internalizados pelos grupos sociais, a partir da simbolização. Tais mudanças ocorrem interna e externamente, resultam da dinâmica do sistema cultural e do contato interétnico, ou seja, de um sistema cultural com outro.
Nesse processo de resgate da cultura, a professora indígena tem papel preponderante, pois é sua responsabilidade sistematizar ou escolarizar os conhecimentos tradicionais de seu povo, de sua cultura, de forma que possam ser aprendidos nesse contexto educativo. Logo, a cultura Kokama é instrumento de humanização, é processo de simbolização, construção de sentidos, significados, construção e expressão dos conhecimentos humanos.
A professora tem como fonte de pesquisa livros, apostilas, aplicativos de dicionário do povo Kokama do Alto Solimões, a internet e os anciãos indígenas enquanto “bibliotecas vivas” no processo de ensino da língua oral, dos cantos, das histórias, dos ensinamentos acerca de toda a organização social e cultural de seus ancestrais. Seu ato pedagógico diferenciado requer muita pesquisa. Ela afirma: “Faço muita pesquisa, uso muito o tradutor Kokama, um aplicativo que tenho no meu celular, o dicionário Kokama também, e algumas coisas que não tem no dicionário, eu consulto o ancião da comunidade.” (PROFESSORA KOKAMA, entrevista, 2020).
Nessa direção, ela afirma que para ensinar há necessidade de pesquisar e refletir sobre a realidade na construção do conhecimento de sua cultura. O exercício da docência suscita indagar a realidade, refletir suas problemáticas sociais, realizar a práxis (reflexão-ação-reflexão). O que se ensina e se pesquisa são temáticas provenientes da história de vida, dos objetivos escolares, da formação, da cultura, dentre outros aspectos do contexto social e cultural de vida desses sujeitos, como parte de sua luta e resistência, um saber que se configura coletivamente, de forma colaborativa.
Para os indígenas que ousam estar na cidade, resistir é não abrir mão daquilo que é específico e essencial, demonstrar na ação pedagógica investigativa como mobilizam pensamentos e corpos para insurgir contra as opressões, demonstrando também, em nível intelectual, prerrogativa para o debate em torno de sua cultura e da necessidade de investimento de um pensamento crítico e transformador, que é um dos parâmetros das escolas indígenas, pela práxis docente como ponte alternativa.
5 Identidade docente indígena e pedagogia decolonial: construindo práticas pedagógicas autônomas e emancipadoras no contexto urbano
O encargo de ser professora indígena traz uma nova identidade para dentro do grupo, a identidade docente. Ser docente indígena de escolas diferenciadas na cidade pressupõe um compromisso não somente profissional, mas, sobretudo, compromisso étnico e ético com seu povo, uma vez que são interlocutoras entre os conhecimentos indígenas e os da sociedade envolvente.
Além disso, seu papel visa promover a perpetuação das línguas, das tradições orais, dos saberes e artes indígenas no meio urbano, promovendo vivências e aprendizagens em todos os espaços da aldeia ou da comunidade. Por isso, as docentes indígenas demonstram ter autoafirmação de sua identidade indígena e convicção da importância de sua atuação na educação de seu povo:
Nunca tive vergonha de ser Tikuna, sempre eu tenho orgulho da minha língua, da minha fala também, porque não tem como eu vou me esconder porque sou indígena. Já fui muito discriminada por ser indígena na escola onde eu estava estudando no regular que eu tinha vergonha, principalmente a gente não fala português, e na faculdade não muito porque como já tenho tempo aqui, não tenho muita dificuldade. Sendo professora eu aprendi muito com as crianças também, antes eu era insegura, tinha vergonha, mas depois que a gente ganha experiência é muito bom. (PROFESSORA TIKUNA, entrevista, 2020).
Depois que me tornei professora eu ganhei conhecimento, isso é muito bom porque quando eu comecei tive muita dificuldade. Fiquei sozinha, mas fui aprendendo aos poucos, aprendi com as crianças. Hoje eu estou mais desenvolvida na escrita e na oralidade. Quando comecei a cantar no grupo musical me desenvolvi bastante, perdi a vergonha de cantar, de falar. Hoje eu ensino isso para os meus alunos pra não ter vergonha. (PROFESSORA KOKAMA, entrevista, 2020).
Dessa forma, a responsabilidade e o compromisso das educadoras no âmbito de sua atuação são cruciais na construção de uma educação diferenciada de qualidade social e que possibilite a emancipação de seus sujeitos. Realizam uma prática reflexiva que transforma o modo de pensar o mundo, por parte de si e de seus alunos, no processo de conhecimentos da cultura e de construção de identidades em seus contextos específicos, pois a identidade é produção cultural na medida em que a cultura “molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar; entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade” (WOODWARD, 2000, p. 18-19).
Nesse sentido, as docentes indígenas elaboram práticas educativas interculturais que visam fortalecer a cultura e a língua materna por meio de atividades de cantos, danças, rituais, brincadeiras tradicionais, desenhos, pinturas corporais, grafismos, dentre outras, pautadas nos princípios da interculturalidade, do bilinguismo/multilinguismo, da diferença e do comunitarismo (BRASIL, 1998).
Os centros ou escolas diferenciadas indígenas são espaços de luta, resistência, autonomia na construção do conhecimento, bem como de formação sociocultural e política dos indígenas, a fim de prepará-los para lidar com os conflitos, preconceitos e imposições da sociedade majoritária. Nesse processo de aprendizagem dos sistemas culturais de seu grupo, operacionalizada pela educação diferenciada - a partir da interculturalidade crítica -, as crianças indígenas constroem suas identidades ancoradas nos símbolos, significados e sentidos que lhes são ensinados. Esse acesso aos conhecimentos de sua cultura muitas vezes “são silenciados e negados no currículo” das escolas formais em que estudam no contraturno (SANTOMÉ, 1995).
Segundo as professoras, no início de seus trabalhos docentes na comunidade elas enfrentaram muitas dificuldades, como a timidez, a falta de conhecimento pedagógico para o ensino, a falta de materiais, dificuldades na produção de materiais didáticos na língua materna, a falta de merenda escolar regular, a necessidade de conhecer mais sua cultura. Nesta última, o processo de pesquisa e interação junto aos anciãos possibilitou muito esclarecimento quanto às tradições socioculturais de seu povo, fortalecendo, inclusive, sua própria identidade étnica enquanto professora indígena.
Nesse cenário carregado de problemas e desafios, as professoras indígenas aprenderam a ser docentes mais a partir de suas próprias experiências e práxis, mesmo participando de formações em serviço e orientação com seus assessores. Isso nos remete ao pensamento acerca da prática educativa, ao pontuar que o professor aprende sua profissão por vários caminhos, tanto com as teorias quanto com a própria experiência.
Dessa forma, as escolas e os centros culturais são desafiados a corresponder ao que enseja a educação escolar indígena, ou seja, um processo pedagógico de experiências próprias de construção de conhecimentos, alicerçados nos processos de construção de políticas, e de reconhecimento da identidade indígena, bem como de decolonização de sua educação.
Dentro de uma perspectiva decolonial, pensar a identidade docente, discute as estruturas das políticas, epistemológicas e culturais, da formação para professores indígenas. Na cidade de Manaus são ofertados cursos para a formação inicial de professores indígenas por três instituições públicas: a primeira é a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC-AM), curso denominado Pirayawara, desenvolvido a nível médio; o segundo é ofertado pela Universidade Estadual do Amazonas, cursos interculturais a nível de licenciatura; o terceiro é propiciado pela Universidade Federal do Amazonas, que também disponibiliza cursos de licenciatura interculturais específicos para professores indígenas.
Entretanto, ainda não há consenso que esses cursos são articulados na medida das necessidades formativas dos professores cursistas; há resistência para o diálogo permanente e intercultural entre as instituições e os povos indígenas, principalmente para a interlocução entre os saberes tradicionais indígenas, as demandas da educação escolar indígena e a formação continuada, especialmente na perspectiva das formações em serviço. Dessa forma, urge a organização de debates e reflexões mais profundos acerca destas formações nas próprias estruturas organizativas, uma vez que as necessidades formativas ainda são um dos pontos essenciais em questão, tendo em vista a diversidade de povos indígenas presentes no estado do Amazonas: cerca de 65 diferentes povos indígenas, segundo o Plano Estadual de Educação do Estado do Amazonas (AMAZONAS, 2015).
Compreender a identidade de professores indígenas, diante do aspecto formativo em que se constroem e se reconstroem como profissionais, implica, segundo Gomes e Barbosa (2013), entender que este processo foi se constituindo, não levando em conta sua condição específica e diferenciada, pelo contrário, às vezes, escamoteada e negligenciada no decurso histórico, e “no entremeio de uma pedagogia elitista junto a um contexto permeado por diversas reformas que pretendiam atender a situações peculiares de uma determinada conjuntura social e política” (GOMES; BARBOSA, 2013, p. 8961). Segundo esses autores,
Conceber a Formação de professores indígenas e compreender os aspectos históricos da profissão docente implica conhecer a institucionalização do ensino para os docentes indígenas, seus conhecimentos, linguagens, formas de raciocínio, tipos de experiência, percebendo as técnicas normativas vinculadas às relações de poder que se alojam nas consciências e que definem tipos de sujeitos [...] (GOMES; BARBOSA, 2013, p. 8962).
Nesse contexto encontram-se os professores Tikuna e Kokama que, às vezes, levam um tempo significativo e muita discussão política em torno de sua profissionalidade docente na cidade para entender, com sua racionalidade, que
A identidade de uma minoria étnica, por exemplo, não se define apenas pelas características, sentimentos, lutas e conquistas que unem os membros do grupo. A identidade só irá constituir-se plenamente no interior de um contexto. Essa inserção decorre de certos princípios universais que a minoria quer e precisa compartilhar com o resto da comunidade, tais como o direito a uma boa educação, a uma alimentação adequada, a uma vida decente, a um trabalho dignamente remunerado, a uma participação efetiva nas decisões políticas. (MOREIRA; CUNHA, 2008).
Suas diferenças, seus modos de perceberem o mundo, a resiliência no lidar com os não indígenas e as formas pedagógicas e didáticas de atuarem e pensarem a escolarização indígena são suas identidades, são facetas da interseccionalidade em que estão imbricadas. Assim, não se separa o ser professora do ser indígena. Não se separa o ser educadora do ser liderança, tudo em consonância com suas lideranças tradicionais, com suas linguagens, com suas formas de se organizar para garantir seu bem viver na cidade.
Considerações finais
Sobre o contexto presente, consideramos que desdobramentos ideológicos de cunho opressivo e dominante, forjados pela modernidade/colonialidade, deixaram profundas marcas e inúmeras violências perante os povos tradicionais da América Latina e, especialmente, do Brasil. O processo colonial concretizou formulações de ideias e estereótipos sobre os povos indígenas que se reafirmaram ao longo dos anos e se ressignificam pela colonialidade, dentre elas, a colonialidade do ser, saber, poder, e da natureza. Seu projeto de violências foi estruturalmente reformulado pelas colonialidades e seus engessamentos.
Os povos indígenas, ao contrariarem o projeto da modernidade ocidental em inúmeros momentos, resistiram e resistem a esse processo porque possuíam e possuem valores, produções de cultura, ciência, existência e modos de vida ancorados na ancestralidade. Apesar desse processo colossal de padrão de poder estabelecido pelo colonialismo/colonialidade, esses povos travaram/travam inúmeras batalhas, e não se deram por vencidos; ainda nos dias de hoje resistem buscando lutar por seus direitos e, sobretudo, buscam o reconhecimento pelo Estado e pela sociedade, por suas terras, saúde, educação e especificamente para autonomia e emancipação social subsidiadas pelo fortalecimento dos parâmetros culturais da identidade ancestral.
Nesse sentido, reiteramos a relevância do diálogo entre o pensamento decolonial e a educação escolar indígena, especialmente no campo da formação e práxis de seus professores. É possível pensar e consolidar novos plurais a partir do viés da interculturalidade crítica em suas dimensões epistemológicas, políticas e de processos pedagógicos decoloniais pautados na autonomia e emancipação.
Apesar de muitas limitações e contradições sociais na educação diferenciada empreendida pelas professoras Tikuna e Kokama, do engatinhar da construção de pedagogias decoloniais, há um processo de resistência intenso, de construção e fortalecimento da identidade docente dessas educadoras nesse processo rico em experiências, conhecimentos e saberes, que busca construir uma escola verdadeiramente indígena numa perspectiva intercultural crítica e decolonial.
A produção de práxis para desenvolver a educação escolar indígena é complexa e desafiadora, porém riquíssima na construção de conhecimentos, em configurações próprias de disseminação de memórias para valoração da diversidade de línguas, dos saberes e das culturas indígenas do contexto amazônico, que foram dizimadas no processo histórico da colonização. Às professoras indígenas não faltam desafios na implementação de uma educação escolar indígena de qualidade social para suas comunidades, para seu povo indígena. Para isto ocorrer é fato que as políticas públicas sejam efetivamente reais, que saiam do papel: políticas de formação de professores indígenas, de regulamentação dos centros indígenas, de oferta de merenda escolar, da concessão de materiais pedagógicos, da criação de concurso público para professores indígenas, dentre outras providências.
Portanto, apesar de todos os desafios, é evidente um processo de construção de uma prática pedagógica na perspectiva da interculturalidade crítica, do desvencilhar das amarras da colonialidade do saber, configurando uma pedagogia decolonial na perspectiva da emancipação social de seus sujeitos, visando a sua libertação epistemológica, política e social do sistema opressor colonizador de sujeitos e identidades. Impreterivelmente, deve-se contribuir na construção e fortalecimento da identidade docente dessas educadoras e de seu povo, em seu processo rico em experiências, conhecimentos e saberes, na busca de se construir uma escola verdadeiramente indígena no contexto citadino.