Considerações iniciais1
Maria Alice Faria (2010) aborda em sua obra que há três níveis de leitura: o que compreende o tato, o emocional e o racional. No universo da contação de história, podemos dizer que o segundo é aquele que abarca a imaginação, a fantasia e que faz da leitura algo que se representa ao leitor, levando-o a liberdades e aproximações com o texto, ou seja, ele consegue dominá-lo e se sentir mais dentro da história.
Neste sentido, contar história é também comunicar e compartilhar a palavra de forma a organizar o pensamento daquele que conta e daquele que ouve. A oralização faz das histórias uma possibilidade de imaginação e renovação (SISTO, 2001). De conversas e estímulos. De apreensão do que se faz interessante. E quando o público é a Educação Infantil, essa apreensão torna-se transformação. Transformação em leitores, em ouvintes, em seres sentintes.
Em seu artigo “‘Outros’” saberes, ‘outras’ críticas: reflexões sobre as políticas e as práticas de filosofia e decolonialidade na ‘outra’ América”, Catherine Walsh (2021, p. 57) afirma que: “Falar sobre a geopolítica do conhecimento e a posição geopolítica do pensamento crítico é reconhecer que, na maior parte do planeta, o que ainda predomina são modos de pensar eurocêntricos”. E, no Brasil, não é diferente. Embora o povo brasileiro seja formado pelas matrizes indígena e negra, além da europeia, predominam ainda hoje pensamentos coloniais, segundo os quais há uma naturalização e uma permanência do eurocentrismo e o consequente desprezo pelas populações colonizadas e escravizadas (WALSH, 2021).
O racismo é decorrência desses pensamentos ainda predominantes atualmente. Nesse sentido, atitudes racistas e discriminatórias são comuns na nossa sociedade. Posturas que marcam a história do Brasil e, mais profundamente, a história de vida de negros e afro-brasileiros que aqui vivem, inclusive dos estudantes, desde as primeiras experiências escolares.
Mesmo diante do (falso) discurso de um país democrático e sem preconceito, na sociedade brasileira, o homem branco continua sendo visto como belo, bom e modelo a ser seguido. Em contrapartida, o negro não se encaixa nesses atributos, recebendo, muitas vezes, a pecha de feio, mau e não confiável.
Kabengele Munanga (2009, p. 7) considera que “o racismo é um fato que confere à raça sua realidade política e social”, constitui-se em uma categoria de dominação e exclusão. Para o autor, “esse dircurso, sabe-se, passa necessariamente pela questão da cor da pele ou da cor do negro e pela cultura, por razões historicamente conhecidas“ (MUNANGA, 2009, p. 8). Essas marcas são históricas e ainda prometem muita luta e resistência dos negros e afro-brasileiros no Brasil. Além de diversos movimentos sociais e políticos de ações afirmativas, entendemos que o contexto educacional brasileiro pode ser um importante veículo de promoção da igualdade, desde a Educação Infantil até os níveis mais elevados de ensino, ao contribuir com a construção da identidade dos estudantes negros.
A Educação Infantil é o período da vida em que a criança tem a oportunidade de explorar toda a potencialidade de si, do mundo à sua volta e das relações que são estabelecidas na escola. É um período propício para o desenvolvimento das relações respeitosas com o outro, com a cultura, com o mundo que a cerca, desde que as experiências sejam pensadas, planejadas para contribuir de maneira positiva com a própria identidade, com a percepção de si e do outro no mundo.
Para Vygotski (2007), o desenvolvimento da criança começa no âmbito social para, mais tarde, culminar no individual. Sendo assim, as experiências de aprendizagem se instauram antes mesmo de sua chegada à creche ou à pré-escola, porque se iniciam no núcleo famíliar.
Neste cenário, o sistema educacional, a escola e, em especial, os professores, têm a responsabilidade de planejar práticas pedagógicas que eduquem as crianças negras e não negras para o convívio respeitoso, sobretudo, que valorizem a cultura negra, desenvolvam valores e atitudes positivas de identidade e pertencimento à cultura negra ou afro-brasileira.
A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) apresenta os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento da Educação Infantil em diversos campos de experiências2, tendo as interações e as brincadeiras como eixos estruturantes. Os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento estão organizados em três grupos por faixa etária: bebês (zero a 1 ano e 6 meses), crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses e 3 anos e 11 meses) e crianças pequenas (4 anos e 5 anos e 11 meses).
Um dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para crianças bem pequenas é estimular a percepção de que “as pessoas têm características físicas diferentes, respeitando essas diferenças”. Já, em relação à etapa seguinte, a das crianças pequenas, os objetivos são “demonstrar valorização das características do seu corpo e respeitar as características dos outros (crianças e adultos) com os quais convive”, além de “manifestar interesse e respeito por diferentes culturas e modos de vida” (BNCC, 2018). Observamos na proposta da BNCC a necessidade de se valorizar o corpo, as diferenças culturais e linguísticas nas diferentes experiências vivenciadas pelas crianças. De fato, o corpo assume um lugar de referência desde bem pequenas, porque é a partir dele que estabelecemos nossa relação com o mundo (LE BRETON, 2007).
O período da pré-escola é o momento do jogo simbólico (PIAGET, 1975), no qual a criança se identifica, imita, reproduz ações que vivencia no seu dia a dia. É também o momento em que ela terá contato com modelos, positivos ou negativos, na construção de sua identidade. Sentir orgulho ou identificar-se com a imagem positiva através de princesas e heróis negros, por exemplo, pode ser potencializador para uma formação mais rica.
É fundamental que os profissionais da Educação Infantil assumam o compromisso de um fazer pedagógico comprometido com a valorização do ser individual e dos outros. Investir em experiências que coloquem em xeque a predominância da cultura branca através de brinquedos, de brincadeiras e da literatura pode ser uma ação pedagógica importante para a formação do ser e de uma sociedade menos racista.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é discutir, de forma interdisciplinar - estabelecendo um diálogo, principalmente, entre educação e sociologia -, a questão da contação de história e da contribuição da literatura africana e afro-brasileira na formação da identidade da criança negra na pré-escola. Trata-se de um relato de experiência desenvolvido na Escola Municipal Wanda Gomes Soares, situada no segundo distrito do município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro, que atende crianças da pré-escola (4 e 5 anos) e ensino fundamental (1º ao 5º anos de escolaridade). A experiência relata a vivência de uma professora com com a contação de histórias e a literatura africana e afro-brasileira em uma turma de 20 alunos - a maioria negros -, da pré-escola (crianças de 5 anos), atendidos no turno da manhã, durante o ano de 2019.
O relato de experiência está ancorado, principalmente, nos pressupostos de Munanga (2009) como base para a discussão teórica em torno da construção da identidade negra. Para o autor, o conceito de identidade no Brasil refere-se a uma realidade complexa que envolve fatores distintos como: histórico, linguístico e psicológico. Neste artigo, não pretendemos esgotar as possibilidades de abordagem do tema, mas discutir alguns aspectos da literatura africana e afro-brasileira na construção da identidade da criança pequena.
Munanga: reflexões sobre identidade
A construção da identidade negra é um tema complexo que envolve fatores diferentes e que não está ligado essencialmente à cor da pele. Muganga (2009) destaca que a complexidade é tão intensa que não há como definir o que de fato seja a identidade negra ou no que ela consiste.
O autor apresenta duas abordagens para o conceito de identidade: a objetiva e a subjetiva. Segundo o autor, a identidade objetiva é apresentada através do que dizem os estudiosos a partir de características culturais, linguísticas, biológicas, entre outras. Desde o século XV, o conceito de raça sustenta o discurso científico que reproduz as desigualdades, as diferenças sociais, permite a manutenção das hierarquias, as exclusões e direciona quem tem ou não direito aos privilégios na sociedade.
A identidade subjetiva é aquela atribuída pelo próprio indivíduo ou pelo grupo de que faz parte, ou ainda, por grupos vizinhos. Munanga (2009) alerta que a identidade objetiva, muitas vezes, é confundida com a subjetiva na tentativa de se definir a identidade negra, porque os valores são construídos na dinâmica da sociedade que apresenta marcas históricas de exclusão racial. Ao longo da história, conflitos são identificados entre o que os estudiosos dizem sobre os negros e a maneira pela qual o próprio negro e os grupos vizinhos se identificam.
A partir do contexto de negritude e da complexidade que envolve entender a construção da identidade negra, o autor destaca três fatores essenciais: o fator histórico, o fator linguístico e o fator psicológico. Segundo ele, “a identidade cultural perfeita corresponderia à presença simultânea desses três componentes no grupo ou no indivíduo” (MUNANGA, 2009, p. 05). Munanga aponta que este contexto seria o ideal, entretanto, na realidade, os fatores citados colaboram para a predominância de alguns aspectos em detrimento de outros, como o linguístico, por exemplo.
De acordo com Munanga (2009), a construção da identidade articula fatores diferentes. O autor considera que o fator histórico “constitui o cimento cultural que une os elementos diversos de um povo através do sentimento de continuidade histórica vivido pelo conjunto de sua coletividade” (MUNANGA, 2009, p. 5). É pelo fator histórico que os indivíduos criam laços afetivos, compartilham memórias comuns e podem estabelecer uma unidade coesa. O afastamento ou a retirada do fator histórico fragiliza a coesão de um povo, porque exclui o indivíduo de suas referências sociais, culturais e históricas, como aconteceu com os negros colonizados que, ao perder sua referência, foram fragilizados, excluídos e até alienados. Para Munanga (2009), recuperar a consciencia histórica é oportunizar sentimentos comuns, fundamentais para unir, permitir a coesão de um povo para conhecer sua própria história e transmiti-la para as próximas gerações.
O fator linguístico está presente, de certa forma, nas religiões africanas, mas, em um contexto mais geral, a língua dos ancestrais não foi mantida. No entanto, Munanga (2009) amplia o conceito linguístico para outras categorias de linguagem como o estilo de cabelo e penteados, estilos musicais e artísticos.
O fator psicológico consiste na tentativa de buscar marcas psicológicas na identidade negra como, por exemplo, o seu temperamento em relação ao branco. Segundo o autor, tal comparação, se existir, deve considerar o contexto histórico a que os negros foram submetidos, de violência moral, histórica e física, e não relacionada com o aspecto biológico, porque a
identidade de um grupo funciona como uma ideologia na medida em que permite a seus membros se definir em contraposição aos membros de outros grupos para reforçar a solidariedade existente entre eles, visando a conservação do grupo como entidade distinta. (MUNANGA, 2009, p. 6)
Os fatores de referência para a manutenção da identidade foram negados aos negros desde a colonização no século XV e XVI, com a exploração do corpo, com a desvalorização e até a supressão de suas práticas culturais, da sua língua natural e de sua história. O corpo do negro foi violentamente agredido em todos os aspectos.
Nesse sentido, Le Breton pondera que o corpo é:
moldado pelo contexto social e cultural (...), o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, ceriminiais dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis de sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal. (LE BRETON, 2007, p. 7)
Por isso, quando o corpo negro é escravizado pelos europeus, suas relações identitárias são abaladas. Por consequência, ocorre a perda de referência comunitária, de seus ritos culturais, do sentimento de pertencimento e de solidariedade. As experiências que os mantinham vinculados com sua comunidade foram destruídas, porque, como afirma Le Breton,
o corpo é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Através do corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade. (LE BRETON, 2007, p 7)
Assim, quando o negro se vê retirado à força do lugar ao qual pertence, perde seus modelos de identificação. Perde ainda a possiblidade de compartilhar experiências semelhantes de infância, de lembranças e de ancestralidade. Como consequência, sua identidade se desestrutura, se estilhaça.
Essa dominação dos corpos avança para a dominação simbólica evidenciada pelo eurocentrismo nos séculos XVIII e XIX. Da dominação simbólica dos brancos sobre os negros, é criado o conceito de raça. De acordo com Munanga (2009), os principais intelectuais desse período sustentam que os elementos fundamentais para determinar os comportamentos dos sujeitos são o meio ambiente (evolucionistas) e o biológico (racista). Portanto, a classificação entre as raças é legitimada pelo aspecto biológico e justificada para determinar o relacionamento social e a exclusão. Nesse contexto, entre outras características da pessoa negra, a cor da pele é a principal marca como fator de racismo.
Se o conceito de identidade é complexo, porque envolve diferentes aspectos e fatores, o processo de recuperação da identidade negra não é menos complicado, já que
a recuperação dessa identidade começa pela aceitação dos atributos físicos e da sua negritude antes de atingir atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade (MUNANGA, 2009, p. 9)
A relevância atribuída à aceitação do corpo e dos atributos físicos no processo de identidade dos negros não significa que o aspecto biológico se sobreponha aos demais, como sociais, culturais e históricos. A relação estaria na compreensão e aceitação positiva do corpo e suas relações com o mundo nos aspectos cultural, histórico e social. Consiste na luta pela garantia do lugar positivo que o corpo do negro deve ocupar na sociedade, condição negada historicamente por comportamentos racistas e etnocêntricos.
Em outras palavras, é importante salientar que, mesmo sem levar em conta as diferenças biológicas que legitimam a falsa ideia de evolução e hierarquia entre as raças, o corpo está sempre associado à trama social. Portanto, são importantes a aceitação e a valorização do corpo e seus atributos primeiro para si, para ser aceito pelo outro desde a infância.
A construção da identidade na Educação Infantil
Os pressupostos do trabalho com a educação infantil envolvem aspectos individuais, além dos contextos social, cultural e histórico. A partir das interações com o outro e com o meio, a criança se constrói, se percebe no mundo, vai formando sua identidade pouco a pouco, em uma relação dialética entre o individual e o social. Amaral (2015, p. 5) salienta que “as situações experimentadas no início da vida, ou seja, na infância, sejam elas boas ou ruins, são as que mais intensamente marcam os sujeitos”.
Amaral (2015, p. 3) pondera ainda que, ao tratar da educação infantil no Brasil, nos deparamos com muitos desafios, entretanto, para além das condições básicas de estrutura, cabe refletir também sobre os saberes e fazeres da área, especialmente no tocante às novas emergências, com intuito de tornar a educação infantil, como estabelecem as DCNEIs, um local privilegiado de construção de identidades coletivas e de combate às desigualdades...
No processo de construção da identidade da criança, precisamos problematizar as seguintes questões: Como a criança se vê? Como as representações ao redor colaboram para a construção da identidade da criança negra? Elas são positivas ou negativas? De que forma a criança negra é representada no universo da literatura infantil? Tais questões precisam inquietar nossos pensamentos e ações, porque o livro de literatura infantil é uma representação do olhar do outro, que pode se refletir na construção da identidade da própria criança.
Para Peres, Marinheiro e Moura (2021, p. 8-9) os conceitos de identidade e cultura estão intimamente relacionados. Quando nos referimos à identidade, fatalmente nos remetemos ao conceito de cultura porque a cultura é o referencial para a construção da identidade. Entendemos também que a construção da identidade se dá nas relações sociais, em uma relação dialética entre o indivíduo e o grupo social.
Araújo e Morais (2014, p. 03) consideram que a identidade é sempre uma negociação entre uma auto-identidade - definida por si mesma e uma hetero-identidade - definida pelos “outros”. Por isso, os livros de literatura são fundamentais para a construção da imagem positiva ou negativa do outro (autor) sobre o ouvinte (leitor). Narrativas, por exemplo, que coloquem o negro em posição de destaque na sociedade poderão servir como modelos que crianças negras queiram alcançar e ainda mostrarão às crianças brancas que essas posições podem ser conquistadas por todos, independentemente da cor da pele.
De certa maneira, esta discussão permite recuperar a diferença que Munanga (2009) apresenta entre a identidade objetiva e idenidade subjetiva. Para as crianças pequenas, a identidade subjetiva compreende “como” o negro é retratado nos livros de literatura infantil. Por outro lado, a identidade subjetiva é aquela que a própria criança constrói de si a partir do meio em que vive. No processo de formação da identidade, é preciso ressaltar a importância da criança identificar o que dizem os livros sobre ela e o que ela pensa sobre si, num processo contínuo de significação positiva.
O problema existe quando a criança negra não se encontra representada nos livros de literatura ou quando a representação se dá com sentido negativo. Mariosa e Reis (2014, p. 3), ainda afirmam que “a criança negra, em geral, nega-se perante o outro por não perceber na historiografia oficial a história do seu povo e seus aspectos culturais, principalmente, pela invisibilidade de sua cultura no currículo escolar e nos materiais didáticos”.
Entre os três fatores sinalizados por Munanga (2009) para a construção da identidade, o autor considera que o fator histórico é o principal para caracterizar a personalidade cultural na ausência dos outros dois (linguístico e psicológico).
Conhecer a história do seu povo representada nos livros, apreciar lendas africanas, conhecer contextos culturais diversos nos quais se percebe como parte daquele contexto é valorizar o processo histórico que auxilia a tecer referências pessoais dentro de uma comunidade.
Ao abordarmos o trabalho pedagógico na educação infantil, percebemos que a rotina das crianças precisa ser repleta de significados positivos. A partir das experiências vivenciadas, cada criança vai construindo a sua identidade, articulando, negociando o que pensa sobre si, com vivências diversas como, por exemplo, no trato respeitoso, nos elogios, na valorização de sua imagem e de suas características físicas por parte dos profissionais e das outras crianças.
Além desses elementos importantes na formação da identidade, destacamos a representação da criança negra nos brinquedos, nas atividades lúdicas, nos jogos, nas interações diversas no espaço escolar, na hora da contação de histórias. Particularmente, o momento da contação precisa ser destacado, porque, na leitura literária, a presença ou ausência do negro ou como ele é retratado irão contribuir para a construção positiva ou negativa da criança negra, como temos afirmado ao longo do texto. O momento da contação de história é um espaço privilegiado de socialização e construção da identidade na educação infantil, pois, durante a leitura, há “transmissão de valores morais e culturais e na formulação de conceitos e no desenvolvimento cognitivo”(ARAÚJO, MORAIS, 2014, p. 6).
Partindo dos pressupostos de Munanga (2009) sobre identidade e do princípio da identidade como um processo em constante construção e que sofrerá influências do meio ao longo da história (HALL, 2005), temos na educação infantil o período da vida mais oportuno para as primeiras experiências positivas para a criança negra no que diz respeito aos aspectos individual, histórico, cultural e social. Período este no qual é preciso investir em vivências de qualidade, com experiências sólidas e de valorização da literatura africana e afro-brasileiras. O processo de socialização envolve também o resgate da história do outro e a transformação de sua própria história. Nesse caso, a presença da literatura afro-brasileira no espaço educativo formal pode favorecer a troca de experiencias, de afetos, de afirmação de valores que entrelacem as vivências das crianças negras e não negras.
Literatura africana e afrobrasileira na educação infantil
A necessidade de trabalhos com a literatura africana e afro-brasileira é urgente. O ciclo da reprodução do racismo e do preconceito na sociedade brasileira só poderá ser reduzido à medida que desmistificarmos as questões, pensamentos e práticas reprodutoras de tais atitudes. Logo, é preciso que diferentes experiências sejam vivenciadas, discutidas, pensadas no coletivo e ressignificadas na esfera individual das crianças.
Nós brasileiros, independente da classificação cor/raça, somos todos filhos de uma estrutura social racista, onde desde criança nos é inculcada uma série de crenças, valores e estereóripos negativos sobre o negro e sua cultura, que se não forem trabalhados e desconstruídos, desde a mais tenra idade, seguirá reproduzida por várias outras gerações seguintes. (ARAÚJO, MORAES, 2014, p. 07)
De fato, a cultura de massa no Brasil está repleta de exemplos que reforçam um estereótipo negativo do negro. Mariosa e Reis (2011, p. 44) afirmam que, somente entre o final da década 20 e iníco da década de 30, do século XX, que os personagens negros começaram a aparecer. No entanto, a imagem do negro estava vinculada à ideia de “subalterno, analfabeto e ignorante“. A imagem negativa do negro persistiu assim por longos anos na literatura. Atualmente, as obras literárias dessa temática buscam valorizar a imagem positiva do negro e de sua cultura por meio de situações do cotidiano infanto-juvenil.
Diferentes autores (BUENO, 2015; LIMA, SOUSA, ARAÚJO, 2016; entre outros) destacam que a lei 10.639/03,3 ainda que não aplicada plenamente, trouxe significativos avanços para a expansão da temática nos currículos, no investimento literário e nas práticas educativas. Para Lima, Sousa, Araújo (2016, p. 80), sob o ponto de vista da citada lei,
os gêneros apresentados trazem o universo africano em narrativas, pouco conhecido no ambiente escolar, mas tão presente nos falares, nas histórias e estórias contadas por nossos ancestrais, e até mesmo pela geração mais jovem brasileira. Elementos culturais, expressões que foram sendo recriadas, ganhando novos significados. .
A mudança na perspectiva de representação do negro, de sua história e cultura na literatura colaboram para uma transformação importante de como a criança negra se vê no texto literário e no contexto social e cultural também.
No ambito da educação básica, inclusive da educação infantil, houve um grande avanço na produção e distribuição de livros de literatura africana e afro-brasileiras para as escolas públicas, oriundos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) como incentivo à leitura. Com esses acervos, as escolas começaram a ter acesso às obras de temática africana. Assim, surge a oportunidade de leituras sem a predominância da literatura europeia nos espaços escolares, pois são obras com o viés literário da história da África e do negro e, principalmente, que desmistificam a existência do herói e princesa somente brancos, um vez que tais narrativas retratam o negro como protagonista.
Tais obras passam a ocupar um espaço que estava praticamente vazio na literatura brasileira. São relevantes porque “o uso da literatura produzida e disponibilizada para a construção de leitores e da identidade literária nacional e mestiça é capaz de identificar e desmistificar pré-conceitos e preconceitos” (LIMA, SOUSA, ARAÚJO, 2016, p. 81).
Se, por um lado, entendemos a importância do trabalho sistemático com a literatura africana e afro-braliseira, por outro, ressaltamos que a realidade ainda é de resistências e de certa falta de interesse tanto no sentido micro da sala de aula, como no sentido amplo de instituições como um todo organizado. Concordamos com Mariosa e Reis (2011, p. 46), quando advertem que “a literatura afro-brasileira precisa ser compreendida e valorizada em suas riquezas de abordagens e significados, mas com o devido cuidado para não reproduzir esteriótipos e valores etnocêntricos”.
Compreendemos que somente a presença do personagem negro não é suficiente para um trabalho de qualidade com as crianças. É preciso que haja um planejamento do fazer pedagógico que considere criticamente como o texto e suas ilustrações são trabalhados. Sobretudo, que a temática tenha presença marcante no dia a dia das ações na sala de aula e não somente no período da consciência negra (em novembro).
Além disso, cabe ressaltar que nem sempre os livros que retratam personagens negros, utlilizados em sala de aula, têm qualidade literária ou apresentam situações que podem suscitar um diálogo interessante a partir de sua leitura com os alunos. Tatiana Valentin Mina Bernardes (2018) desenvolveu pesquisa analisando as quatro edições do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)4. Segundo a autora, dos 360 livros que fazem parte do acervo, 61 abordam a temática da cultura africana e afro -brasileira. Destes, apenas 12 foram analisados de maneira positiva.
Para realizar a análise, a investigação levou em consideração alguns critérios como: o protagonismo do negro da narrativa, a forma como as imagens o retratavam, os papéis desempenhados pelas personagens secundárias, se questões de conflitos raciais eram ou não abordadas e se aspectos da cultura africana e/ou afro-brasileira estavam inseridos na história.
A partir desses critérios, verificou-se que, em boa parte dos livros, o branco se apresenta como principal referência. Nesse sentido, Bernardes (2018, p. 188) afirma:
(...) na maioria dos acervos do PNBE, o branco predomina como uma referência de normalidade, promovendo uma visâo hegemônica. Fortalece-se assim a ideia de que o negro é um sujeito inferior, por meio de sub-representações e descrições negativas das características e traços das personagens negras (....)
À mesma conclusão, chegaram Spengler e Debus (2019), ao analisarem 13 títulos das quatro edições do PNBE. As autoras se concentraram somente em livros com narrativa visual, sem qualquer tipo de expressão verbal. Segundo as pesquisadoras, os 13 títulos analisados trouxeram algumas questões para reflexão: “em nenhum dos títulos, a representação das personagens negras ocorre pela representação da escravização, tema ausente das narrativas imagéticas (...) analisadas”.
Com isso, as narrativas, em sua maioria, apresentam situações muito diversas da vida real. Não há conflito nem problematização. Entretanto, esses livros já se constituem em um avanço, pois podem fomentar novas práticas em sala de aula.
Relato de uma experiência em escola municipal de Duque de Caxias (Rio de Janeiro)
O presente relato retrata a prática que foi desenvolvida na Escola Municipal Wanda Gomes Soares, no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, durante o ano de 2019. A prática pedagógica inseriu a literatura africana e afro-brasileira na rotina de uma turma de Educação Infantil, composta por 20 crianças na faixa dos 5 anos, no primeiro turno, das 7h30 às 11h30.
A tessitura do texto parte da concepção de criança conforme a Base Nacional Curricular Comum (BRASIL, 2018), considerando-a como um ser ativo, produtor do seu conhecimento, que compreende os conteúdos a partir dos significados que dá a eles. Considera também a concepção de criança como um ser histórico e produtor de cultura (VIGOTSKY, 2007). Entende-se, portanto, que as crianças pequenas se desenvolvem a partir das interações, das relações que estabelecem com o meio, com os brinquedos, com as leituras e com as demais vivências significativas nas diferentes práticas do cotidiano escolar. Pauta-se também no conceito de criança presente nas Diretrizes Curriculares para Educação Infantil, como um
sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2010, p. 12).
A atuação do docente na educação infantil envolve a articulação de diferentes eixos que potencializam a construção de identidade pessoal e coletiva, além de valorizar, por consequência, as dimensões socioafetiva, psicomotora e cognitiva tão importantes na fomação das crianças.
Nesta atividade, a professora inseriu a literatura africana e afro-brasiliera na sua prática de contação de histórias a fim de possibilitar a identificação das crianças negras, presentes no espaço educativo da turma, e por entender que a criança constrói sua identidade a partir dos referenciais que a ela forem apresentados, como brinquedos, livros, personagens de desenhos animados e filmes.
É relevante o olhar atento para as representações positivas ou negativas desses referenciais, visto que a maior parte das obras popularmente conhecidas e divulgadas retrata princesas brancas à espera do príncipe encantado também de origem europeia.
Um problema que as escolas enfrentam é a escassez de livros com a temática em questão. No entanto, no início dos anos 2000, ações de expansão e distribuição de livros da literatura africana e afro-brasileira pelo Governo Federal permitiram a chegada de algumas obras às escolas públicas, através de programas de incentivo à leitura de obras africanas e afro -brasileiras do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e a Cor da Cultura, por exemplo.
O acervo utilizado foi da sala de leitura da escola. Apesar de não ser muito vasto, permitiu a composição de uma rotina variada de trabalho com histórias. No primeiro momento, a professora regente identificou, pelo título, todas as obras literárias relacionadas com a temática. A partir de critérios como o tema central, a leitura dos textos e as imagens, a professora selecionou os livros mais adequados para a educação infantil.
Na etapa seguinte, os livros foram separados em dois grupos. Para o primeiro, foram selecionadas quatro publicações. Os critérios para a escolha destas obras consideraram a proximidade da temática com os subtemas do projeto anual da escola (identidade, família, alimentação e consciência negra), ademais, foi avaliada a qualidade das imagens e dos textos lidos para despertar o interesse das crianças pequenas.
Os livros escolhidos para cada bimestre foram:
TEMAS DO PROJETO ANUAL DA ESCOLA | OBRA AFRICANA OU AFRO-BRASILEIRA |
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1º bimestre - Identidade | O cabelo de Lelê - Valéria Belém |
2º bimestre - Família | Betina - Nilma Lino Gomes |
3º bimestre - Alimentação | O que tem na panela Jamela? - Niki Daly |
4º bimestre - Consciência Negra | Bruna e a galinha D’Angola - Gercilga de Almeida |
Fonte: Dados colhidos pelas autoras
O material relacionado no quadro 1 atendeu aos objetivos de apresentar, ler, recontar, explorar detalhes da obra e as características culturais, históricas e psicológicas dos negros e afrodescendentes. As histórias contidas nesses livros foram lidas e, posteriormente, as crianças desenvolveram atividades lúdicas variadas, como por exemplo, autorretrato, grafismo, coordenação motora fina e ampla, oralidade, texto coletivo, entrevista com a família, entre outras. Duas semanas por bimestre foram dedicadas ao desenvolvimento destas atividades, relacionando-as ao contexto geral do subtema do projeto escolar, com uma culminância a cada bimestre.
Por meio das imagens, foi possível perceber que, para além do treinamento das atividades motoras, os alunos exerceram a criatividade, fixando e interpretando a seu modo o conteúdo das narrativas. Nesse sentido, Muniz e Martínez (2015apud Martinez, 2012, p. 1042) consideram que:
a criatividade é uma emergência e não algo que carregamos e que se evidencia nas distintas ações e contextos que experienciamos. Como uma emergência, a criatividade está associada à ação profundamente implicada do sujeito, momento em que há expressão de recursos subjetivos que se constituem ao longo da vida do aprendiz, em condições e contextos de ação subjetivados pela pessoa nos distintos sistemas sociorrelacionais, bem como mediante a produção de sentidos subjetivos que se constituem no devir da ação.
Assim, através das atividades manuais, os estudantes não somente expressaram o que entenderam da história, mas também relacionaram seu conteúdo com tudo o que vivenciaram. Como a experiência de vida dos pequenos é ainda curta, a atividade de se autorretratarem ou de retratarem o negro a partir do que ouviram pode ter importância fundamental para se autoperceberem de forma positiva - no caso dos estudantes negros - e/ou terem uma percepção do negro que fuja dos estereótipos presentes na sociedade e na mídia.
As fotografias5 abaixo foram tiradas durante as atividades desenvolvidas após a contação de história. Na figura 1, uma criança negra desenha seu autorretrato a partir da contação de histórias; na figura 2, outra criança faz uma trança utilizando lã; por fim, na figura 3, uma terceira criança arruma a trança para colar na figura de uma boneca feita por ela.
No segundo grupo, os livros foram escolhidos com a finalidade de proporcionar narrativas diversificadas ao longo do ano. Durante a contação de histórias, as crianças vivenciaram histórias com temas, abordagens e contextos distintos. As literaturas africana e afro-brasileira foram contempladas pelo menos uma vez na semana. O objetivo foi realizar uma leitura por prazer, para deleite, para apreciar o texto e as imagens, sem a necessidade de gerar produto a partir dela.
A hora da contação da história é um momento da rotina muito apreciado pelas crianças. Curiosidade, fantasia, emoção, suspense e novas descobertas são motivadores de conversas após a leitura. Tais obras foram distribuídas ao longo do ano entre as leituras dos clássicos e outras obras tradicionais da literatura infantil. São elas: As tranças de Bitou (Sylviane A. Diouf), Berimbau (Raquel Coelho), Batuque de cores (Caroline Desnoettes e Isabelle Hartmann), Era uma vez um reino de mentira (Ricardo Benevides), Chuva de manga (James Rumford), Canção dos povos africanos (Fernando Paixão), O rei preto de Ouro Preto (Sylvia Orthof), Memória das palavras (A cor da cultura), O menino marronzinho (Ziraldo), Crianças (Olhar a África e ver o Brasil; fotos de Pierre Verger), A vida em sociedade (Olhar a África e ver o Brasil; fotos de Pierre Verger), O mundo do trabalho (Olhar a África e ver o Brasil; fotos de Pierre Verger), Maracatu (Sonia Rosa), Jongo (Sonia Rosa), O herói de Damião em: a descoberta da capoeira (Iza Lotito) e O casamento da princesa (Celso Sisto).
O objetivo da ação pedagógica da professora foi planejar um espaço de contação de histórias afro-brasileiras em que as crianças pudessem acessar os contextos histórico, linguístico, social e cultural da comunidade negra. Como afirmamos anteriormente, a identidade não passa apenas pela cor da pele, mas está relacionada também com a cultura e com a história (MUNANGA, 2009).
O processo de socialização dos pequenos envolve também o resgate da história do outro e a transformação de sua própria história. Nesse sentido, a presença da literatura afro-brasileira no espaço educativo formal favorece trocas de experiencias, de afetos e de afirmação de valores que se entrelaçaram com as vivências das crianças negras e não negras.
Nas primeiras contações referentes às obras selecionadas pela professora, as crianças apresentaram expressões de surpresa: algumas não gostaram muito, outras pediram para voltar e contar mais uma vez algum trecho ou olhar novamente uma imagem. As narrativas de heróis, princesas e reis foram apreciadas com curiosidade, porque os contextos histórico e cultural apresentados não são os mesmos das histórias tradicionais conhecidas.
Algumas comparações entre as narrativas afro-brasileiras e europeias surgiram nos diálogos com as crianças. Como exemplo, podemos citar a fala de uma criança ao se surpreender com a imagem de uma princesa negra presente no livro O casamento da princesa, de Celso Sisto. Após ouvir a história, ela comentou: “Essa não é uma princesa de verdade, não tem vestido de princesa!”. Outra criança acrescentou: “eu não gostei dela, ela é feia”. Tais falas oportunizaram algumas reflexões acerca de identidade e da cultura africana com a turma como um todo.
A professora percebia que, antes desse processo de leitura, discussão e trabalho de criatividade, as crianças negras não se consideravam bonitas e associavam a palavra princesa a imagens de mulheres brancas. Ao trazer esta história para o debate, o objetivo foi mostrar que há outros tipos de princesas e que elas são igualmente belas.
Na obra em questão, o autor apresenta uma adaptação de um conto popular africano, pouco conhecido pelas crianças brasileiras. Nela, a princesa é disputada por seus pretendentes: o Fogo e a Chuva. É uma narrativa bem diferente dos contos europeus. Outra produção que causou espanto em um primeiro momento foi O rei preto de Ouro Preto, de Sylvia Orthof. O livro conta a história de dor e sofrimento dos negros, fala sobre opressão e preconceito e apresenta a imagem de um rei negro escravizado pelos brancos, uma exposição nova para as crianças.
À medida que as narrativas com personagens negros, histórias e contos afro-brasileiros tonaram-se frequentes nas seções de contação de histórias e nos outros projetos, a temática passou a ocupar um espaço de referência para as crianças, sobretudo para as crianças negras, refletindo-se na percepção de uma consciência de si e na formação de sua identidade.
Ao longo do trabalho, as crianças desenvolveram atividades de autoimagem, conversa e aproximação com a história da família e dos antepassados, dos alimentos, das roupas, uso de acessórios como turbantes, dos penteados, das tranças, dos estilos e instrumentos musicais, da dança, entre outros.
A partir de análise do portfolio, que incluiu, além de fotografias, vídeos e falas das crianças, foi possível compreender que trabalhar a identidade e a cultura negra a partir da literatura infantil promoveu a identificação e a valorização do negro e da cultura negra entre os próprios alunos. Considerarmos que tais práticas podem desempenhar um papel transformador na construção da identidade das crianças pequenas, fazendo com que elas, como afirmamos anteriormente, construam uma visão positiva do negro na sociedade.
Os resultados alcançados foram significativos tanto na relação de respeito entre as crianças, quanto na mudança de comportamento de algumas delas em relação a si próprias. Antes de iniciar a proposta pedagógica, a professora notou que bonecas negras eram sempre deixadas de lado na hora da brincadeira, que algumas crianças negras não se consideravam bonitas ou se autodeclaravam como brancas por diferentes razões.
No decorrer da proposta, com a aproximação e identificação de si e de seu povo nas histórias lidas, foi possível perceber a representação da identidade negra de maneira positiva no grafismo, no brincar, nos penteados, na forma de tratamento e na referência a si mesmos. Nesse sentido, foram trabalhados os três fatores fundamentais para se pensar a identididade, propostos por Munanga (2009), que envolvem fatores distintos como: históricos, linguísticos e psicológicos.
Na figura 4, nota-se que bonecas negras e brancas são colocadas lado a lado, ou seja, além de não serem mais excluídas - como acontecia antes da prática -, parecem despertar um interesse semelhante das crianças. A figura 5 traz o desenho de um autorretrato. Chama a atenção, na imagem, a roupa colorida do(a) boneco(a), demonstrando alegria. Já, na imagem 6, vemos dois personagens lado a lado, aparentemente felizes. Pode-se perceber que um tem o cabelo liso e o outro, encaracolado, mostrando um possível reflexo das discussões sobre a igual importância e beleza de negros e brancos na sociedade.
Acreditamos que experiências positivas nesta etapa da vida podem se refletir significativamente nas etapas futuras. Com isso, se, desde bem pequenas, forem apresentados às crianças exemplos que fujam do estereótipo, muitas vezes reforçado pela mídia (incluindo aí obras de ficção e imprensa), segundo o qual o negro ocupa posições subalternas na sociedade e/ou está associado à violência, estas poderão não somente melhorar a autoestima, como ter consciência da importância da igualdade ao acesso a direitos e oportunidades.
Considerações finais
Promover práticas com vivências diversificadas e atividades lúdicas em que o negro esteja presente, como protagonista e não somente coadjuvante, pode colaborar com a construção da identidade das crianças negras. Não é um trabalho fácil, visto que a literatura infantil mais acessível está restrita ao modelo europeu, com os personagens brancos como fonte de inspiração. No entanto, já é possível acessar obras que retratam temáticas da história, cultura e identidade negra nas bibliotecas escolares, embora o acervo seja ainda pequeno.
O ato de contar histórias é uma ferramenta de socialização que, não somente desperta o interesse da criança pela leitura, mas aprimora léxicos, reconstrói memórias e cria identidades e pertencimentos, a partir das linguagens e criatividade, a partir da imaginação.
Conhecer, planejar e inserir nas práticas de rodas de leitura a temática africana e afro -brasileira pode contribuir para a identificação das crianças negras nas obras literárias ao longo do ano letivo, desde que tenham como base uma perspectiva crítica de valorização do corpo, da história, da cultura e de toda a linguagem que reflete a formação de identidade da criança negra, fortalecendo sua autoimagem e autoestima.
Diante do atual cenário da educação, não basta ter acesso às diversificadas obras, é preciso repensar a formação crítica do docente para a inserção da literatura africana e afro-brasileira no cotidiano das crianças. É necessário ainda que os professores invistam em formação continuada e se conscientizem da relevância do trabalho com a temática em questão para o processo de construção da identidade positiva dos alunos desde as primeiras experiências escolares.