Introdução
Este trabalho trata sobre a política de Educação Integral no estado do Amazonas, implantada como alternativa para a garantia do direito à educação enquanto processo de desenvolvimento humano.
As políticas públicas, compreendidas como o Estado em ação, são formuladas tendo como base a memória da sociedade e, por isso, apresentam relação direta com as representações sociais presentes em cada contexto histórico.
De acordo com Azevedo (1997, p. 5-6), as políticas públicas “são construções formadas pelos valores, símbolos, normas, enfim, pelas representações sociais que integram o universo cultural e simbólico de uma determinada realidade”. Dessa forma, elas são planejadas e implementadas de acordo com a concepção de Estado prevista na Constituição Federal.
No Estado Democrático de Direito, as políticas públicas têm um caráter universal visando ao bem-estar da população, entendida, segundo Duarte (2004), como sujeitos de direitos. Tendo como base de sustentação a democracia, há na elaboração das políticas públicas maior preocupação com a participação da sociedade civil nas decisões. Princípios e valores democráticos são fundamentos para a elaboração das políticas públicas - especificamente, das políticas sociais.
Em oposição ao Estado Democrático, no Estado Neoliberal, as políticas públicas têm como referência o livre mercado e restringese a função do Estado à adoção de medidas de redução dos serviços públicos com menores investimentos nas políticas sociais como saúde, previdência e educação (HARVEY, 2014).
No que tange às políticas de educação, Azevedo (1997, p. 15) afirma que a ação da ideologia neoliberal é distinta da adotada quanto às demais políticas sociais: “A educação, na condição de um dos setores pioneiros na intervenção estatal, é uma das funções permitidas ao ‘Estado Guardião’. [...] a abordagem neoliberal não questiona a responsabilidade do governo em garantir o acesso de todos ao nível básico de ensino”. Nesse sentido, as políticas educacionais devem ser implementadas para atender as necessidades da população, relativas à garantia do direito à educação conforme determinações constitucionais.
No que concerne a política de Educação em Tempo Integral, Ganzeli (2017) defende que é uma concepção que se propõe a formar o sujeito de direito, atendendo-o na sua integralidade. O autor defende que a Educação Integral está respaldada legalmente no art. 205 da Constituição Federal de 1988, a partir de três objetivos: “o pleno desenvolvimento da pessoa”, “preparo para o exercício da cidadania” e a “qualificação para o trabalho”.
O primeiro objetivo, “o pleno desenvolvimento da pessoa”, determina a educação do estudante em todas as suas dimensões: intelectual, física, moral, ética e política. Segundo Ganzeli (2017, p. 582), a “ideia de ‘pleno desenvolvimento da pessoa’ remete-nos a aspectos sociais, econômicos e políticos que devem garantir o bem-estar de todos os cidadãos brasileiros”. Temos, portanto, uma educação integral que pode ou não ser ofertada em Tempo Integral.
O segundo objetivo, “preparo para o exercício da cidadania”, remete-nos à formação para a democracia no espaço educacional, no qual o estudante, a partir do entendimento dos seus direitos e deveres, terá condições de maior participação nas tomadas de decisões e de reivindicar os outros direitos.
O terceiro objetivo é a “qualificação para o trabalho”, sendo este último entendido numa concepção ontológica, como ação humana sobre a natureza, transformando-a para a garantia de sua subsistência.
Para Manacorda (2007), a educação integral deve transcender uma educação unilateral e possibilitar um processo de educação omnilateral, que promova a humanização do sujeito em todas suas dimensões formativas.
Desde 1950, quando foi criado por Anísio Teixeira, na Bahia, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, várias políticas e programas de educação em tempo integral foram implementados no Brasil objetivando contribuir para o desenvolvimento humano dos estudantes.
No caso do estado do Amazonas, o Projeto de Educação em Tempo Integral teve início em 2002, quando a rede estadual de educação transformou duas escolas de Ensino Médio que atendiam em horário parcial para tempo integral. Tais escolas apresentavam alto índice de evasão e repetência, e o poder público apostou na ampliação de tempo escolar como uma alternativa para solução do problema (UNICEF, 2013).
A partir dessa experiência, esse modelo de educação passou a fazer parte da agenda de governo do estado do Amazonas, sendo pauta de propostas governamentais, conferências e planos estaduais.
Em 2007, a Conferência de Educação do Estado do Amazonas estabeleceu como eixo 02 a “Democratização da Gestão Educacional”, que tinha como meta 35: “Implantar gradativamente num prazo de 10 (dez) anos o Tempo Integral em todas as Escolas da Rede Estadual e Municipal de Educação, em todos os níveis de ensino” (AMAZONAS, 2007, p. 15).
Seguindo as orientações do PNE 2001-2011, o estado do Amazonas elaborou seu Plano Estadual de Educação PEE-AM, aprovado pela Lei n.º 3.268, de 7 de julho de 2008. Entre as metas do plano estava a “Implementação gradativa do tempo integral na Escola, objetivando a melhoria do processo de aprendizagem dos estudantes e, por conseguinte, dos indicadores educacionais do Estado” (AMAZONAS, 2008a, p. 25).
O presente trabalho foi construído a partir da pesquisa realizada para o doutoramento em educação da Faculdade de Educação da Unicamp, defendido em 2019 no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Infantil (GPEDIN), vinculado ao CNPq da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), por meio do projeto de pesquisa “Educação Infantil: políticas e práticas” e pesquisas em andamento por meio do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Humanidades da Universidade Federal do Amazonas (PPGECH), com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e FAPEAM - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
Como instrumentos de coleta de dados utilizamos a pesquisa documental nos dois projetos do Programa de Educação Integral do estado do Amazonas. Assim, o texto está organizado em duas seções teóricas: inicialmente trataremos sobre o primeiro projeto, criado em 2008 e, no segundo momento, apresentaremos o projeto reelaborado em 2011.
Os Centros de Educação em Tempo Integral como efetivação do Projeto de Educação em Tempo Integral
Os Centros de Educação em Tempo Integral - CETI são a materialização do Programa de Educação em Tempo Integral criado pelo governo do estado do Amazonas. A proposta tem como objetivo possibilitar, por meio do ensino em tempo integral, o desenvolvimento humano dos estudantes amazonenses.
Em 20 de outubro de 2008, o Conselho Estadual de Educação publicou a Resolução n. 112/2008 (CEE/AM, 2008) aprovando o Projeto das Escolas de Tempo Integral por 02 anos (art. 1º), período em que as unidades escolares (Quadro 1) deveriam cumprir as recomendações do Conselho Estadual de Educação (CEE).
Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Elisiário (2017).
O Quadro 1 apresenta 8 (oito) escolas estaduais que funcionavam em tempo integral no período de 2002 a 2008. Em 2002 foram convertidas para o tempo integral 2 (duas) escolas que atendiam ao Ensino Médio. No ano de 2006, 1 (uma) escola que atendia do 6º ao 9º ano. Os dados mostram ainda que em 2007 e 2008, 4 (quatro) escolas atenderam do 1º ao 5º ano e 1 (uma) do 6º ao 9º ano, totalizando 8 (oito) escolas1.
Essas escolas, que já funcionavam com jornada ampliada desde 2002, apenas foram adaptadas para o atendimento em Tempo Integral pois, de acordo com Ferreira (2012), desde esse período não foram construídas escolas específicas para esse fim.
A Resolução n° 112/2008 faz duas recomendações à Secretaria de Estado de Educação (SEDUC):
Recomendar à SEDUC que contrate uma equipe multidisciplinar (Psicólogo, Assistente Social e Psicopedagogo) por coordenadoria para atuarem como apoio às escolas de tempo Integral (art. 3º);
Recomendar, ainda, que seja realizado concurso público para contratação dos professores previstos no projeto das escolas de tempo integral para atuarem nas escolas da Rede Estadual de Ensino que se enquadrem nesse regime (CEE/ AM, 2008, art. 4º, grifo nosso).
Essas duas recomendações do CEE/AM à Secretaria de Estado de Educação, exigindo a presença de outros profissionais que pudessem contribuir para melhorias no processo pedagógico, foram bastante pertinentes num contexto marcado pelas normatizações que garantem a inclusão educacional em cumprimento à Constituição Federal quanto à função do Estado de “Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 2020, Art. 3°, Inciso IV).
Soma-se às normatizações um tempo marcado por conflitos, individualismo e contradições, em que a formação docente nem sempre permitiu perceber o isolamento, o ostracismo, o desequilíbrio dos estudantes, entre outros fatores que contribuem significativamente para o fracasso escolar. Percebe-se, nesse contexto, uma dependência afetiva do estudante em relação ao professor, o qual vê, muitas vezes, nesse profissional sua única referência de adulto estável com quem pode contar. O professor, diante da incorporação de novas funções ao seu trabalho docente, nem sempre se acha apto, ou não quer assumir essas outras funções por não considerá-las parte de sua profissão. Cavaliere (2002, p. 249) afirma que:
Essa incorporação desorganizada, imposta pelas circunstâncias, de novos elementos à rotina da vida escolar, que de complementares ou secundários passaram a imprescindíveis, sem um correspondente projeto cultural-pedagógico, tem levado à descaracterização, isto é, à crescente perda de identidade da escola fundamental brasileira (CAVALIERE, 2002, p. 249).
É nesse sentido que a proposta pedagógica do Projeto de Educação em Tempo Integral do estado do Amazonas ressaltou a necessidade da presença de uma equipe multidisciplinar no contexto escolar. Silva (2016) afirma que a presença de uma equipe multidisciplinar no ambiente educacional é imprescindível, haja vista a ânsia de oferecer respostas educativas que promovam a formação integral do estudante a partir das necessidades individuais de aprendizagem. Essa equipe visa a contribuir com práticas educativas que superem as barreiras existentes no processo escolar; barreiras que impedem a formação das múltiplas dimensões humanas e contribuem para o afastamento do estudante da escola. A presença dessa equipe no contexto escolar possibilita ao professor atuar mais efetivamente em sua função pedagógica, deixando de exercer as várias funções que lhe foram impostas, contribuindo, assim, para a efetivação de um ensino de qualidade.
Outra determinação dada pelo CEE/AM foi a realização de concurso público para o trabalho docente nas escolas de tempo integral, haja vista que, no estado do Amazonas, ainda há um alto número de docentes cujo contrato de trabalho é temporário, terceirizado ou pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), desrespeitando as legislações vigentes quanto ao ingresso de profissionais no magistério e promovendo a precarização do trabalho docente.
Compreendemos como precarização do trabalho docente essas diferentes formas de contrato profissional, uma vez que promovem a insegurança do professor, que não vê possibilidades de crescimento profissional, uma vez que não tem direito a um plano de cargos, carreira e remuneração condizente com sua atuação profissional, bem teme como sua demissão sumária, que pode ocorrer de forma inesperada.
Oliveira (2004) afirma que a precarização do trabalho docente é um problema crônico no Brasil, a partir das reformas educacionais da última década do século XX. Essas reformas apostaram na universalização do ensino como estratégia para a equidade social. Contudo, a universalização do acesso à Educação Básica foi elaborada sem considerar os vários aspectos e atores que permeavam os sistemas de ensino - dentre eles, o trabalho docente.
O Projeto das Escolas de Tempo Integral aprovado pelo CEE/AM justificou-se tendo como parâmetro os resultados insatisfatórios das avaliações externas que medem a aprendizagem dos estudantes. De acordo com a justificativa do projeto, mesmo com as várias políticas de combate à reprovação, ao abandono escolar e à distorção idade-ano, ainda não tinha sido alcançada, em nível de estado, a “educação de qualidade” almejada. Foi nessa direção que a Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino percebeu a necessidade de adotar outras possibilidades pedagógicas para a organização do ensino, principalmente em relação ao tempo e espaço de aprendizagem.
O referido Projeto estabeleceu como objetivo geral:
Oferecer aos educandos uma formação em tempo integral capaz de construir competências e habilidades de acordo com áreas de conhecimento e saberes necessários à vida. Desenvolvendo, assim, a ascensão social dos estudantes de baixa renda. Promover a permanência do educando, o convívio humano, o aproveitamento escolar, o bem-estar das crianças, dos adolescentes e jovens (AMAZONAS, 2008b, p. 38).
Apostaram na ampliação do tempo escolar como estratégia, não somente em relação à quantidade de horas, mas principalmente visando a melhorias no processo educativo. Projetava-se um tempo escolar que envolveria tempo curricular, relação educador-educandocomunidade, bem como a construção e socialização do conhecimento. O Projeto das escolas de tempo integral estava assentado no tripé de desenvolvimento das habilidades cognitivas, social e emocional. Deveria ultrapassar o currículo tradicional de transmissão de conteúdo e focar na inter-relação entre as disciplinas e a realidade do estudante.
De acordo com as diretrizes do projeto:
Na Escola de Tempo Integral será desenvolvido o currículo básico, compreendendo os componentes curriculares da Base Comum Nacional e da Parte Diversificada, além das atividades escolares que ampliarão, por meio de projetos e oficinas, as possibilidades de aprendizagem dos alunos, com o enriquecimento do currículo básico, a partir da exploração de temas transversais e com a vivência de situações que favoreçam o aprimoramento pessoal, social, esportivo e cultural do estudante (AMAZONAS, 2008b, p. 41).
O estudo do Projeto nos fez perceber um discurso para a formação integral do estudante a partir da efetivação de escolas de tempo integral. É nesse sentido que Paro et al. (1988, p. 55) afirmam que os projetos de escolas em tempo integral, mais do que a preocupação em cumprir a função instrucional da unidade escolar, de transmissão do saber historicamente acumulado, devem preocupar-se com uma formação educativa total do estudante, pois devem “proporcionar ao educando uma experiência educativa total, que não se limite a ilustrar a mente, mas que organize seu tempo, seu espaço, que discipline seu corpo, que transforme sua personalidade por inteiro”.
A escola, como reprodutora dos saberes historicamente acumulados, mas também produtora de novos conhecimentos (CANDIDO, 1987), deve ser organizada de modo que possa atender às diferentes dimensões formativas do sujeito, contribuindo para seu desenvolvimento humano. Para isso, todas as atividades precisam ser educativas: o tempo, o brincar, as refeições, o lazer, e tudo que acontece no interior da escola deve estar assentado no Projeto Político Pedagógico, como ação educativa que contribua para a formação integral.
Para cumprimento dessas premissas, o projeto organizou o tempo escolar com uma jornada diária de 8h e 40h semanais, obedecendo ao seguinte horário de funcionamento:
Turno Matutino: 07h às 11h30, com 15 minutos de intervalo - dedicado ao trabalho com as disciplinas do currículo básico. Nesse turno deveriam ser realizadas as atividades pertinentes às disciplinas do núcleo comum do currículo.
Turno Vespertino: 13h30 às 17h com a oferta de oficinas curriculares e atividades complementares. No horário vespertino seriam desenvolvidos os temas transversais por meio de oficinas e projetos pedagógicos, sendo imprescindível o projeto de “Reforço Escolar”.
Quanto ao acesso a essas escolas, o Projeto das Escolas de Tempo Integral determinou que deveria se dar por meio de processo seletivo, obedecendo aos seguintes critérios: para a 4ª série e 8ª série, o ingresso era por meio do rendimento escolar apurado até o 3º bimestre; para os estudantes do 1º e 2º ciclo2, os critérios para ingresso envolviam a situação socioeconômica dos candidatos.
Colares e Souza (2015, p. 259) afirmam que:
Ao analisarmos os critérios de renda familiar, participação em programas sociais e formulário socioeconômico como requisitos para o ingresso na escola de tempo integral, constata-se a concretização dos pressupostos assumidos pelo Brasil na Declaração de Jomtien, de potencializar a educação como local estratégico para redução da pobreza e crescimento econômico dos países pobres.
Essa forma de seleção evidenciou o caráter focalizado e excludente dessa política. Identificamos nesse Projeto uma visão negativa a respeito da infância e adolescência em vulnerabilidade social, a qual deveria ser superada por meio da educação. Isso nos mostra a adesão desse Projeto às políticas neoliberais efetivadas na década de 1990, que viam na educação a panaceia para todas as mazelas sociais.
Cavaliere (2014, p. 1207) argumenta que a Educação em Tempo Integral deve ser entendida como um direito universal:
Dispositivo válido para alguns alunos e não para outros, que é reforçada pela oferta seletiva do regime no interior das escolas. Nesse caso, ela se configura como educação compensatória, focada nos mais necessitados a fim de, por meio da intensificação da ação escolar, fazer valer a igualdade de oportunidades educacionais.
O Projeto determinou ainda que, a fim de garantir a permanência do estudante no ambiente escolar a partir da ampliação da jornada escolar, as instituições escolares deveriam realizar diferentes atividades por meio de oficinas complementares e atividades curriculares desportivas, apontadas no Quadro 2:
OFICINAS | ATIVIDADES COMPLEMENTARES | ATIVIDADES CURRICULARES E DESPORTIVAS |
---|---|---|
Fonte: Elaborado pelas autoras com base na Resolução 112/2008 - CEE/AM 2008.
De acordo com o texto do Projeto, a rede estadual do Amazonas tentou superar o tradicionalismo pedagógico, propondo atividades diferenciadas em cada turno escolar. No turno matutino deveriam ser ministradas as disciplinas regulares, sob a responsabilidade dos professores de cada disciplina. No turno vespertino seriam realizadas as atividades lúdicas e oficinas pedagógicas, sob a responsabilidade de outros agentes sociais, como voluntários, estagiários e/ou monitores.
Colares e Souza (2015, p. 260) argumentam que “a presença destes agentes sociais na organização da escola é benéfica, desde que não se torne um fator de precarização do trabalho docente e constitua alternativa para substituir a contratação de profissionais de áreas específicas”.
Compreendemos que a realização de diferentes atividades no contexto escolar, desde que sejam planejadas e integradas ao Projeto Político Pedagógico da escola, apresenta-se como uma estratégia educativa que pode contribuir para modificar comportamentos e garantir um aprendizado de qualidade. Possibilita ao educando um agir diferenciado, diversificado, criativo e crítico a partir de sua realidade.
De acordo com Cavaliere (2014), as escolas de tempo integral, seguindo as orientações do Projeto, além da instrução escolar, devem ser as construtoras do saber e da justiça social, promovendo a formação integral do sujeito nos aspectos éticos, moral e participação política, possibilitando a construção da cidadania; deve, ainda, atuar na difusão cultural para as crianças e na formação para o trabalho dos adolescentes.
O Projeto também estabeleceu os perfis e competências dos trabalhadores que deveriam atuar nas escolas de tempo integral, tanto na parte pedagógica quanto administrativa. As escolas deveriam compor seus quadros com as seguintes funções: Gestor; Administração Escolar; Pedagogo; Psicólogo ou Psicopedagogo; Coordenação Pedagógica; Coordenação de área; Técnico de laboratório de informática; Técnico de laboratório de ciências; Bibliotecário; Videoeducador; Secretário escolar e Professor.
O projeto “visava à extensão da jornada escolar para contribuir, na prática, um ganho na qualidade, bem-estar dos estudantes e o desenvolvimento pleno do cidadão, partindo de competências e habilidades, objetivando a interação do educando na sociedade, colaborando para a reconstrução de um mundo socialmente justo e promovendo a ascensão social dos estudantes de baixa renda” (AMAZONAS, 2008b, p. 38, grifo nosso).
De acordo com Colares e Souza (2015), o Projeto de Educação em Tempo Integral, ao adotar competências e habilidades para o desenvolvimento pleno do cidadão, retomou as diretrizes adotadas na Conferência Mundial de Educação para Todos (1990), realizada em Jomtien, com orientações das agências multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM):
Aqui são retomadas as competências e habilidades (versatilidade, comunicação, motivação, habilidades como cálculo, clareza na exposição, entre outras) requeridas pelo sistema produtivo, conforme publicado no documento ‘Transformación Productiva com Equidad’ da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (COLARES; SOUZA, 2015, p. 260).
Para o FMI e o BM, a educação deve se adequar cada vez mais à era do mercado de modo que possa formar profissionais capazes de adaptarem-se às contradições desse sistema e portanto, ao adotar essas diretrizes, o Projeto em questão se propôs a efetivação de um processo educacional cada vez mais instrumental e menos politécnico3.
Com a Resolução n. 112/2008, a rede de educação do estado do Amazonas caminhava para a ampliação das Escolas de Tempo Integral por meio de um projeto arquitetônico padronizado para a construção dos Centros de Educação de Tempo Integral - CETIs, sendo o primeiro inaugurado em 2010, com estrutura física e pedagógica planejadas para o funcionamento condizente ao proposto no projeto pedagógico das escolas de tempo integral.
O sítio da SEDUC4 publicou no dia 08 de fevereiro de 2010 uma matéria sobre a inauguração do CETI cujo título era: “Governo do Amazonas inaugura primeiro Centro Educacional de Tempo Integral (CETI)”, conforme Figura 1:
Na próxima segunda-feira, dia 8 de fevereiro, será inaugurado, em Manaus, o primeiro Centro Educacional de Tempo Integral Marcantonio Vilaça II (Ceti). Localizado na Avenida Max Teixeira, no bairro Cidade Nova 1 (Zona Norte de Manaus), o empreendimento é o primeiro de um total de 15 que serão inaugurados ainda este ano pelo Governo do Estado em atendimento à população da capital e do interior. (AMAZONAS, 2010).
Cada CETI foi construído e equipado com 24 salas de aula climatizadas, laboratórios de informática, laboratório de ciências, biblioteca, piscina semiolímpica, campo de futebol, quadra poliesportiva, refeitório e demais recursos para atender, na modalidade de Tempo Integral, a uma média de mil alunos por unidade.
De acordo com Colares e Souza (2015, p. 258):
Os Cetis são considerados centros de excelência por agregarem ambientes adequados e seguros aos alunos, oferecendo atividades em espaços como piscina semiolímpica, academia, sala de dança, sala de música, ginásio coberto, entre outros. [...] Os Cetis apresentam uma característica padrão de espaços e organização do trabalho pedagógico a fim de possibilitar o desenvolvimento de atividades intelectuais, físicas e artísticas. A estrutura física comporta um projeto arquitetônico que envolve três pavimentos distribuídos em 96 dependências e com acessibilidade para portadores de necessidades especiais.
Maciel et al. (2016, p. 183) corroboram afirmando que “Os CETIs têm uma estrutura padronizada, visando atender tanto ao Ensino Médio, como ao Fundamental. Os CETIs hoje são o modelo de estrutura educacional, em termos de educação de tempo integral, no estado do Amazonas”.
Não negamos que os CETIs contribuíram para a efetivação do Projeto de Educação em Tempo Integral; contudo, precisamos entender qual é o projeto societário presente nessa proposta, a qual sociedade se propunha a atender e qual concepção de sujeito propôs-se a formar. De acordo com Ferreira (2012, p. 66), os projetos dos CETIs:
Ajudaram a dar visibilidade ao projeto das escolas de tempo integral, tornando-o bandeira de campanha, produzindo efeitos favoráveis ao grupo político que se utilizou de uma retórica de convencimento por votos em áreas consideradas de “maior” vulnerabilidade social.
A autora ressalta o processo político partidário ainda presente na educação do estado do Amazonas: a principal relevância das políticas educacionais não é atender às necessidades da população, mas servir como moeda de troca no processo eleitoral. Percebemos que a implantação do Sistema de Educação de Tempo Integral no estado do Amazonas iniciou-se como uma política de governo, visando interesses políticos partidários, e não como política de Estado, de caráter universal.
Maciel et al. (2016, p. 93) afirmam que o Projeto de Educação em Tempo Integral na rede estadual do Amazonas “tem proporcionado condições mais adequadas de estudo, mas, ainda, apresenta falhas, que se constituem em verdadeiros desafios à implementação da educação integral”, principalmente devido ao viés mercadológico adotado.
A seguir apresentamos o projeto reelaborado em 2011 para as escolas em Tempo Integral do Estado do Amazonas.
Um “novo” Projeto de Educação em Tempo Integral na rede estadual de educação no estado do Amazonas em 2011: mudanças ou continuísmo?
Em 2011, saindo do cargo de vice-governador para o cargo majoritário, o governador Omar José Abdel Aziz, do Partido da Mobilização Nacional (PMN), deu continuidade à Política de Educação em Tempo Integral implantada no estado. Assim, o projeto elaborado em 2008 foi reorganizado e em 15 de março de 2011 o Conselho Estadual de Educação publicou a Resolução n. 17/2011, aprovando um “novo”5 Projeto de Educação em Tempo Integral cujo título era: “Proposta Pedagógica das Escolas da Rede Estadual de Ensino de Educação em Tempo Integral”. Essa resolução determina o seguinte:
Art. 1º - Aprovar a operacionalização do Projeto de Educação de Tempo Integral, elaborado pela Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino - SEDUC/AM, para todas as escolas da Rede pública, na forma do projeto, retroativo ao início do Ano Letivo de 2010.
Art. 2º - Autorizar o funcionamento do Ensino Fundamental e Médio ofertado em Tempo Integral nas escolas [...] por um período de 05 (cinco) anos, de acordo com o início do funcionamento de cada escola. (CEE/AM, 2011).
Novas escolas foram gradativamente adaptadas para o funcionamento em Tempo Integral conforme autorização regulamentada por essa Resolução e apresentada no Quadro 3.
ANO DE INÍCIO DE FUNCIONAMENTO | ESCOLA | NÍVEL DE ENSINO ATENDIDO |
---|---|---|
2009 | Escola Estadual Machado de Assis | 1º ao 5º ano |
Escola Estadual Helena Araújo | 1º ao 5º ano | |
Escola Estadual Santa Terezinha | 1º ao 5º ano | |
Escola Estadual Prof. Leonor Santiago Mourão | 6º ao 9º ano | |
Escola Estadual Altair Severino Nunes | 6º ao 9º ano | |
Escola Estadual de Tempo Integral Elisa Bessa Freire | 6º ao 9º ano | |
Instituto de Educação do Amazonas | Ensino Médio | |
2010 | Escola Estadual Garcitylzo Lago e Silva | 1º ao 5º ano |
Escola Estadual Rafael Henrique Pinheiro dos Santos | 1º ao 5º ano | |
Escola Estadual Isaac Benzecry | 6º ao 9º ano | |
Escola Estadual Marques de Santa Cruz | 6º ao 9º ano | |
Escola Estadual Irmã Gabriele Coegles | 6º ao 9º ano Ensino Médio | |
Escola Estadual João dos Santos Braga | 6º ao 9º ano Ensino Médio | |
Escola Estadual T.I. Marcantonio Vilaça II | 6º ao 9º ano Ensino Médio | |
2011 | Escola Estadual de Tempo Integral Zilda Arns. | 6º ao 9º ano Ensino Médio |
Escola Estadual de Tempo Integral Cinthia Régis Gomes do Livramento | 6º ao 9º ano |
Fonte: Elaborado pelas autoras com base na Resolução n. 17/2011-CEE/AM.
O Quadro 3 apresenta 16 (dezesseis) escolas atendidas em tempo integral. No ano de 2009, houve 7 (sete) escolas autorizadas, das quais 3 (três) atendiam estudantes do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, outras 3 (três) do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e uma escola de Ensino Médio. Em 2010 foram mais 7 (sete) escolas: 2 (duas) escolas do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, 2 (duas) escolas do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e 3 (três) que atendiam do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Já em 2011 foram apenas 2 (duas) escolas: 1 (uma) do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e 1 (uma) com atendimento do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e o Ensino Médio.
A proposta justificava a necessidade da ampliação da jornada escolar tendo em vista, principalmente, a não universalização do Ensino Fundamental e o resultado insatisfatório nas avaliações externas da educação local. Assim justificou-se a implantação do Projeto de Educação em Tempo Integral:
O avanço da cobertura quase universal do ensino público da Educação Básica do Brasil, segundo dados do Plano Nacional de Educação que demanda atualmente 97% das crianças entre sete a catorze anos na sala de aula, ainda não tem sido satisfatório à aprendizagem. As avaliações que medem a aprendizagem não têm sido relevantes. Os resultados da avaliação do desempenho escolar realizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, com o Sistema de Avaliação da Educação Básica - Prova Brasil e SAEB e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, que aplicou o Programa da Avaliação Internacional dos Estudantes - PISA, demonstram que, apesar do avanço da matrícula, os estudantes da Educação Básica não alcançaram em qualquer das unidades federativas, médias satisfatórias nas avaliações de leitura e matemática (AMAZONAS, 2011, p. 66).
Observamos que a justificativa para a implantação do Novo Projeto de Educação em Tempo Integral na rede estadual do estado do Amazonas deu-se em torno dos resultados insatisfatórios nas avaliações externas e não nos termos de um direito constitucionalmente garantido pelo Estado como um direito público subjetivo (DUARTE, 2004).
Como direito público subjetivo, a educação integral, que atende o sujeito na sua integralidade, deve contribuir para sua formação enquanto sujeito de direito, buscando a “materialização do direito público da educação para toda a população” (GANZELI, 2017), com vistas à formação de uma sociedade democrática.
De acordo com o documento do Projeto, mesmo com a implantação das políticas educacionais efetivadas, tais como as políticas de valorização docente, melhorias na infraestrutura das escolas, programas e projetos de combate a reprovação e evasão escolar, fez-se necessária a reorganização do ensino, principalmente quanto ao espaço e tempo escolares.
O Projeto de 2011 apresentou os objetivos, as formas de ingresso e a organização curricular das escolas de tempo integral. Teve como objetivo geral: “Implementar e garantir, nas Escolas Estaduais de Educação em Tempo Integral da rede pública do estado do Amazonas, a melhoria do processo ensino aprendizagem elevando a 100% o índice de aprovação e erradicando a evasão escolar” (AMAZONAS, 2011, p. 11). Dentre os objetivos específicos destacamos:
Proporcionar aos estudantes uma experiência educativa que não se limite à instrução escolar, mas que o leve a organizar seu tempo e possibilite o fortalecimento da estrutura cognitiva, contribuindo para a formação de sua personalidade;
Criar na escola de tempo integral espaços de socialização, onde os estudantes possam vivenciar atitudes de cidadania, de valores éticos e morais;
Desenvolver as competências dos estudantes, considerando as divergências múltiplas de seus conhecimentos prévios e aprendizagem (AMAZONAS, 2011, p. 11).
Tomando como ponto de partida o objetivo geral da proposta que visou unicamente à “elevação a 100% do índice de aprovação bem como a erradicação da evasão escolar” (AMAZONAS, 2011, p. 11), ficou evidente que o Projeto de Educação em Tempo Integral no estado do Amazonas foi efetivado para atender as exigências das avaliações externas e elevar o IDEB do estado de acordo com as orientações do Banco Mundial.
Tais orientações, publicadas no documento Prioridades y Estrategias para la Educación, de 1996, construído a partir das conclusões da Conferência Mundial de Educação para Todos (1990), realizada em Jomtien, na Tailândia, determinavam que: “Las prioridades educacionales deben establecerse teniendo en cuenta los resultados, utilizando análisis económicos, estableciendo normas y midiendo los resultados a través de la evaluación del aprendizaje” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 10).
O projeto de 2011 continuou com a mesma vertente ideológica do projeto de 2008, atendendo às exigências impostas pelos organismos multilaterais de preparar o estudante para o mercado de trabalho, sem a preocupação de oportunizar e promover sua formação cidadã; foi aprovado como política de governo, e não como política social capaz de possibilitar a formação das múltiplas potencialidades educativas dos estudantes, contribuindo para sua autonomia e para a efetivação de uma sociedade democrática.
Quanto à organização do funcionamento escolar, não houve alteração em relação à proposta de 2008. Também foi contemplado o Componente Curricular de Metodologia de Estudo, que deveria ser desenvolvido na forma de orientação pedagógica.
O Reforço Escolar foi colocado como imprescindível, devendo ser contemplado na elaboração de planos, uma vez que tal atividade contribuiria para o alcance do objetivo do projeto - a “elevação a 100% no índice de aprovação dos estudantes” - pela possibilidade de trabalhar as temáticas desenvolvidas em sala de aula, a partir de diferentes metodologias, apontando melhores resultados no processo de ensino e aprendizagem.
Observamos que o “novo” projeto teve poucas mudanças em relação ao plano anterior, contudo, vislumbra, ainda que teoricamente, uma Educação em Tempo Integral que possibilitasse a formação dos estudantes em suas múltiplas dimensões formativas. Nessa concepção, os espaços educativos não se limitam à sala de aula: a ampliação do tempo escolar permite que este seja materializado em outros espaços educativos, favorecendo novas aprendizagens e vislumbrando, assim, a efetivação de uma educação integral em tempo integral.
Considerações Finais
A partir dos estudos sobre a educação em tempo integral, defendemos a efetivação de políticas públicas de Educação em Tempo Integral que ultrapassem o simples processo de extensão da jornada escolar e os conteúdos hierarquizados e fragmentados, os quais contribuem para a manutenção e reprodução da sociedade desigual. Defendemos uma Educação Integral e em Tempo Integral que proporcione a formação do sujeito em todas as suas dimensões formativas para o seu desenvolvimento humano.
É importante que as políticas de Educação em Tempo Integral deixem de ser apresentadas como solução necessária para a população menos favorecida economicamente, atendendo de forma focalizada essa população. Nesse sentido, a Escola de Tempo Integral apresenta-se como alternativa, explícita ou implícita, para resolver o problema de segurança da população, uma vez que tira da rua o “menor abandonado”.
Inferimos que o referido projeto efetivouse como uma política focalizada por atender, prioritariamente, aos estudantes em vulnerabilidade social; é excludente por não permitir o acesso a todos que a ela têm direito, mas apenas aos “melhores alunos”, quantitativamente identificados no histórico escolar. É, ainda, unilateral e verticalizada porque foi elaborada somente pela equipe da Seduc, sem contar com a participação de outros agentes da educação, como os gestores escolares, professores e comunidade.
Compreendemos que as diretrizes estabelecidas na Conferência de Jomtien estabeleceram a educação como estratégia fundamental para o crescimento econômico da sociedade, a partir de redução da pobreza e inclusão social. O compromisso assumido pelo Brasil nessa conferência, de assegurar educação básica de qualidade às crianças, jovens e adultos, especificamente aos em vulnerabilidade social, tem se concretizado nas diversas políticas implementadas nos entes federados, como é o caso do estado do Amazonas.
Observamos que embora o estado do Amazonas tenha efetivado uma política social como essa da educação em tempo integral, a dinâmica mercadológica imposta pelas agências multilaterais continua prevalecendo, o que dificulta a efetivação de um processo educacional que tenha como foco principal o desenvolvimento humano dos estudantes em suas múltiplas dimensões formativas.