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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.71 Salvador July/Sept 2023  Epub Apr 22, 2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n71.p39-58 

Educação e aprendizagem da docência

COMUNIDADE INVESTIGATIVA E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DE PROFESSORES

COMUNIDAD INVESTIGADORA Y DESARROLLO PROFESIONAL DE LOS DOCENTES

Maria da Graça Nicoletti Mizukami1 

Doutorado em Ciências Humanas (PUC/RJ) Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo-SP. E-mail: gramizuka@gmail.com


http://orcid.org/0000-0002-4258-1056

Marcia Tostes Costa da Silva2 

Doutorado em Educação, Arte e História da Cultura (UPM). Professora da Escola Municipal de Educação Infantil - EMEI. João Fernandes-Barueri-SP. E-mail: tostes.silva@gmail.com


http://orcid.org/0000-0003-1120-049X

Maria de Fátima Ramos de Andrade3 

Doutorado em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo-SP. E-mail: mfrda@uol.com.br


http://orcid.org/0000-0003-4945-8752

1Universidade Presbiteriana Mackenzie

2Escola Municipal de Educação Infantil

3Universidade Presbiteriana Mackenzie


RESUMO

O objetivo deste Educação e aprendizagem da docência é analisar como professores de Educação Infantil de uma comunidade investigativa da rede pública traduzem a Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil (BNCC) em práticas pedagógicas. Trata-se de uma pesquisa descritivo-analítica de natureza qualitativa. Como instrumentos de pesquisa, foram utilizados: entrevista com roteiro semiestruturado, observação e análise de documentos. Participaram do estudo duas professoras e uma diretora da rede pública municipal de Educação Infantil de Barueri - SP. Por comunidade investigativa, entende-se contextos nos quais professores constroem conhecimentos sobre as próprias práticas, dialogando com teorias. Os dados evidenciam a importância dos processos de construção da base de conhecimento para o ensino com especial destaque para o protagonismo de cada participante na construção de conhecimento pedagógico de conteúdo que materializa a BNCC. A pesquisa indica a importância da formação continuada no local de trabalho.

Palavras-chave: comunidade investigativa; aprendizagem docente; desenvolvimento profissional de professores

RESUMEN

El objetivo de este artículo es analizar cómo los maestros de educación infantil de una comunidad pública de investigación traducen la Base Curricular Nacional Común de Educación de la Primera Infancia (BNCC) en prácticas pedagógicas. Se trata de una investigación descriptiva-analítica de carácter cualitativo. Como instrumentos de investigación se utilizaron: entrevista con guión semiestructurado, observación y análisis de documentos. Dos docentes y un director de la red pública municipal de Educación Infantil de Barueri - SP participaron del estudio. Una comunidad de investigación significa contextos en los que los maestros construyen conocimiento sobre sus propias prácticas, dialogando con teorías. Los datos muestran la importancia de los procesos de construcción de la base de conocimiento para la enseñanza con especial énfasis en el papel de cada participante en la construcción del conocimiento pedagógico de contenidos que materializa el BNCC. La investigación indica la importancia de la educación continua en el lugar de trabajo.

Palabras clave: comunidad investigadora; aprendizaje del profesorado; desarrollo profesional de los docentes

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze how Early Childhood Education teachers from an investigative community in the public school system translate the National Common Curricular Base for Early Childhood Education (BNCC, Portuguese abbreviation) into pedagogical practices. It is a descriptive-analytical qualitative research. The research instruments used were: semi-structured interview, observation, and document analysis. The study involved two teachers and one principal from the municipal public network of Early Childhood Education in Barueri - SP. An investigative community is understood as contexts in which teachers construct knowledge about their own practices, engaging in dialogue with theories. The data highlight the importance of knowledge-building processes for teaching, with special emphasis on the role of each participant in the construction of pedagogical content knowledge that materializes the BNCC. The research indicates the significance of ongoing professional development at the workplace.

Keywords: investigative community; teacher learning; professional development of teachers

Introdução1

O objetivo deste Educação e aprendizagem da docência é analisar como professores de Educação Infantil de uma comunidade investigativa da rede pública traduzem a Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil (BNCC) em práticas pedagógicas. A pesquisa foi realizada em uma escola pública de Educação Infantil, localizada no município de Barueri, na zona oeste da região metropolitana de São Paulo, durante o período de 2018 a 2020. Analisamos aqui o trabalho pedagógico de duas professoras e de uma diretora.

Para discussão e análise, focamos no modelo de formação proposto pela diretora da escola, que se caracteriza pelo desenvolvimento profissional dos professores, concretizado durante os Horários de Trabalho Pedagógico Coletivo. (HTPCs) e vinculado ao chão da escola. Assim, serão apresentados recortes de um projeto desenvolvido pelas professoras, com o intuito de analisar o ressoar dos estudos realizados nos HTPCs, e como essas professoras traduziram os campos de experiências e os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento da BNCC em práticas pedagógicas atingíveis às suas crianças.

Assim, intenta-se dar centralidade as práticas docentes de autoria, nas quais o professor é compreendido como pessoa competente, autônoma e criativa. Ressalta-se que professores com larga experiência na educação, pesquisadores e apoiados em sua formação contínua podem encontrar formas de trabalho que propiciem a aprendizagem e o desenvolvimento de suas crianças a despeito do programa educacional, seja ele local ou nacional.

Trilhando o Caminho Metodológico

Esta pesquisa se configura como um estudo descritivo-analítico de natureza qualitativa. Os instrumentos utilizados neste estudo foram as entrevistas, realizadas com as companheiras de pesquisa (FORMOSINHO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2019)2, as observações feitas nos encontros de HTPCs e os portfólios tanto das professoras quanto da diretora. Segundo estes autores, no campo da docência são as boas escolhas teóricas que iluminam a reflexão e a prática, a seleção de colegas comprometidas com o trabalho para dialogar a fim de melhorar a performance docente e, principalmente, a opção em tomar as crianças como companheiras essenciais para a orientação da prática docente.

A diretora, além do curso de Magistério, tem licenciatura em Letras e Pedagogia. Atuou três anos no Ensino Médio ministrando aulas de Língua Portuguesa e quatorze anos na Educação Infantil como professora de pré-escola, na rede municipal de Barueri. Nos últimos quinze anos, exerceu a função de diretora na Educação Infantil. Para garantir o anonimato das professoras participantes, identificamos as mesmas como “X” e “Y”.

As professoras X e Y atuam na mesma escola de Educação Infantil e lecionam no período da manhã com uma sala fixa, com jornada de trabalho integral (com carga horária complementada no período da tarde), com crianças na faixa etária de cinco anos (pré-escolar II).

A professora X tem vinte e sete anos de experiência da docência, sempre atuou na Educação Infantil da Rede Pública de Ensino, em salas de pré-escola. Com formação secundária em Magistério e Graduação em Pedagogia.

A professora Y possui vinte e sete anos de atuação na docência, todos na Educação Infantil, na Rede Pública de Ensino e com crianças em idade pré-escolar. Ela possui formação secundária em Magistério e é graduada em Ciências Sociais.

A escola de Educação Infantil que investigamos possui mil e duzentas crianças, com vinte e uma salas, tanto no período matutino quanto no período vespertino, compondo um total de quarenta e duas salas com uma média de até trinta e quatro crianças em cada uma delas. São quarenta e duas professoras, todas concursadas pela Secretaria Municipal de Barueri.

A escola apresenta uma atmosfera de bem -estar e acolhimento refletida em seus espaços que demonstram respeito e valorização às crianças e às suas produções. Um destes espaços são os quintais, além de serem locais prediletos de todas as crianças são cenários inspiradores e detentores de recursos para o desencadear de projetos das salas. A explicação está no fato de os quintais serem áreas verdes com muitas plantas, árvores, gramas, chãos de terra com troncos, madeiras, folhas e outros elementos que quando encontrados pelas crianças, tornam-se verdadeiros tesouros, que são recolhidos e rendem grandes e valiosíssimas criações e brincadeiras.

Fundamentação Teórica: Definindo Conceitos

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento obrigatório que estipula as aprendizagens que todos os estudantes em território brasileiro devem adquirir ao longo da Educação Básica. Esta determinação visa garantir seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, de acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2017).

Entendemos, defendemos e teorizamos que a formação do professor deva ocorrer no chão da escola, porque confiamos em uma formação que beneficie não só o docente, mas também com o foco principal na criança e na realização de mudanças importantes na escola para a concretização de processos educativos. Esse modelo de formação se insere no conceito de desenvolvimento profissional dos professores, corroborado com os pensamentos dos autores a seguir.

Marcelo García (2009, p. 10):

[...] um processo, que pode ser individual ou colectivo, mas que se deve contextualizar no local de trabalho do docente - a escola - e que contribui para o desenvolvimento das suas competências profissionais através de experiências de diferente índole, tanto formais como informais.

Oliveira-Formosinho (2009, p. 226):

[...] um processo contínuo de melhoria das práticas docentes, centrado no professor, ou num grupo de professores em interacção, incluindo momentos formais e não formais, com a preocupação de promover mudanças educativas em benefício dos alunos, das famílias e das comunidades.

Para ambos os autores, o desenvolvimento profissional é um processo que ocorre ao longo da vida, considera-se a dimensão individual e coletiva, nesse, insere-se o professor como uma pessoa singular, constituída por suas histórias de vida, crenças, interações sociais, emoções, conhecimentos e tantos outros tecidos que compõem o profissional da docência.

A escola é o espaço privilegiado para a ocorrência do desenvolvimento profissional dos professores porque pode possibilitar a construção de uma “cultura de colaboração” (MARCELO GARCÍA, 1999, p. 141) entre os professores, rompendo com a cultura comum do individualismo docente. Esta cultura de colaboração entre os professores pode ocorrer na escola em diferentes espaços e momentos, tais como: em conversas na sala dos professores, nos intervalos ou Horário de Trabalho Individual (HTI), nas parcerias deliberadas pelos colegas para assistir e analisar as aulas uns dos outros etc. Esta colaboração (instituída ou espontânea), também pode ocorrer em momentos de formações oficiais ocorridos na escola - o Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC).

As variadas trocas entre os pares e o trabalho coletivo cumprem, ainda, com a função essencial de fortalecimento da profissão por meio de uma construção de uma consciência crítica e reflexiva de classe e do engajamento em lutas que visem o aprimoramento, reconhecimento e melhores condições de trabalho aos professores, em todos os âmbitos do ofício. Estes elementos são necessários para compor o desenvolvimento dos professores, que deve acontecer no cotidiano escolar, como afirmam Lima e Gomes (2002, p. 181):

os professores necessitam comprovar que as situações concretas que enfrentam em seu cotidiano não estão longe daquelas situações vividas pelos seus parceiros de trabalho. As condições objetivas de vida e de trabalho, as competências e/ou incompetências de sua formação construídas e reconstruídas no exercício do ofício docente, fazem parte de uma teia social e humana. É preciso compreender essa teia, ressignificando esse contexto, juntando os esforços de uma categoria, sem, no entanto, perder o horizonte da luta e nem o real concreto em que estamos inseridos.

Nesse contexto, Grigoli et al. (2010), referendados pelos estudos de Hargreaves e Fullan (2000), agregam valor à formação no ambiente escolar, ao propor que a escola é uma organização “aprendente” (GRIGOLI et al., 2010, p. 240), quer dizer, à medida que os professores desenvolvem, a escola também se desenvolve.

Bolívar (1997) concorda com o princípio da escola ser local de aprendizado, pois ela aprende a partir da sua memória e da sua história enquanto instituição e, relação ao professor, o contexto e as relações de trabalho proporcionam elementos de aprendizagem. Segundo o autor, a escola adquire o status de aprendente quando o processo de melhoramento torna-se uma meta permanecente da instituição.

Na defesa da escola como solo fértil ao desenvolvimento profissional dos professores, Oliveira-Formosinho (2009, p. 268) afirmam que:

a formação centrada na escola é, assim, numa lógica de educação permanente, considerada como uma acção educativa global, como uma formação participada e articulada com as situações e/ou nas situações de trabalho, fundindo formação inicial e contínua no mesmo processo de educação ao longo da vida.

Compreender o professor como pessoa completa e endereçar o seu desenvolvimento profissional para o chão da escola, coadunam com a ideia de considerar as escolas como comunidades investigativas. As comunidades investigativas se constituem em locais nos quais os professores desenvolvem postura investigativa, permanecem engajados a ela, são conhecedores da comunidade a qual exercem à docência e estão dispostos a discutir e a mudar a sua prática para melhorar a atuação e a educação das crianças.

O principal elemento que se caracteriza uma comunidade como investigativa é o que Cochran-Smith e Lytle (2015, p. 249) denominam de “inquiry as stance”, postura investigativa, referindo-se à posição que os professores adotam nesse local frente ao conhecimento e a à sua própria prática. Em comunidades investigativas, os docentes se inserem em uma pesquisa comum, como sendo um sentido para suas vidas e uma atitude coletiva, em resposta a novas demandas educacionais. Assim, para essas autoras “a ideia de postura investigativa enfatiza que a aprendizagem do professor para o próximo século precisa ser entendida não como um processo de realização individual, mas como um projeto coletivo de longo prazo inserido na agenda democrática” (COCHRAN -SMITH; LYTLE, 2015, p. 296, tradução nossa).

Cochran-Smith e Lytle (2015) definem a postura investigativa como uma perspectiva intelectual, uma forma de dar sentido, de relacionar o trabalho diário de cada professor, ao trabalho de outros, assim como os contextos sociais, históricos, culturais e políticos mais amplos. Tal fato pressupõe o entrelaçamento do conhecimento de diferentes teorias e de propostas educacionais, resultando em uma compreensão mais aprofundada e mais abrangente do fenômeno educacional, do processo de ensino e de aprendizagem, de modo que o professor seja capaz de desenvolver habilidades para descrever objetiva e subjetivamente práticas pedagógicas em seus múltiplos determinantes e variáveis.

O Professor com postura investigativa está constantemente envolvido com o movimento teoria-prática e prática-teoria. Nesse sentindo, as comunidades investigativas se constituem em importantes locus nos quais os professores possuem vozes e estas são ouvidas “em voz alta e articuladamente” (GOODSON, 2013, p. 67).

Segundo Cochran-Smith (2016), o que determina se uma comunidade é investigativa ou não, são as perguntas que seus próprios membros realizam a si próprios e não as que lhe são impostas; neste local, existe a presença constante do questionar pressupostos, hipóteses e práticas usuais ou universais, persegue-se a postura da sistematização e de cogitar outras possibilidades de escolhas (COCHRAN-SMITH, 2016 apudFIORENTINI; CRECCI, 2016).

No entanto, para a ocorrência de uma formação centrada na escola urge a necessidade da existência de uma “liderança instrucional” (MARCELO GARCÍA, 1999, p. 141) entre os professores na escola, que os motive, os direcione e os oriente para as mudanças e as renovações necessárias em suas práticas em sala de aula e nas práticas escolares. No caso do estudo em questão, essa liderança é assumida pela diretora da escola.

A liderança instrucional da diretora identifica-se com o novo perfil de gestor proposto por Lück (2000, p. 16):

um gestor da dinâmica social, um mobilizador e orquestrador de atores, um articulador da diversidade para dar-lhe unidade e consistência, na construção do ambiente educacional e promoção segura da formação de seus alunos. Para tanto, em seu trabalho presta atenção a cada evento, circunstância e ato, como parte de um conjunto de eventos, circunstâncias e atos, considerando-os globalmente, de modo interativo e dinâmico.

Este novo perfil de gestão está em harmonia com o gestor inovador proposto por Amorim (2017), que o concebe como um líder que defende a educação e a escola como lugar estratégico para a construção de saberes diversificados, científicos e socialmente confirmados e necessários para o desenvolvimento humano. Acredita no trabalho de sua equipe, mantém-se motivado, gera canais de integração entre escola, sociedade e poder público e atua na formação contínua dos quadros de pessoal da escola, ampliando os espaços formativos do professor.

Ele concebe o professor como “uma fonte criadora de conhecimento e habilidades necessárias para a instrução [...]” (COHEN; BALL, 1999, p. 6 apudDARLING-HAMMOND, 2019, p. 2). Isto contrasta com a visão de que o professor é apenas um repositório de fatos e ideias, pois, além disso, este perfil de gestor enxerga o professor como um questionador de suas próprias imagens de infância; um incentivador da aprendizagem de cada criança e um aprendiz junto com ela; e um crítico constante de sua prática, que a confronta com a teoria e cria ambientes e situações desafiadoras para suas crianças (MOSS, 2011).

Pensar no professor nessas vertentes, remete-o a um profissional competente, conforme indicado por Darling-Hammond e Bransford (Prefácio, xxiii, 2019) ao apoiar-se em Lee Shulman “Aqueles que podem, fazem, e aqueles que entendem, ensinam”.

Para tanto, para tornar-se um professor bem-sucedido e bom, é fundamental ser detentor de conhecimento de como transformar o conteúdo considerando as finalidades do ensino, as metodologias a serem utilizadas, os tempos dedicados a cada temática, os materiais e os espaços utilizados para favorecer a aquisição de conhecimento e a construção de aprendizagens das crianças, estes componentes. Segundo Shulman (2014), esses componentes devem ser fornecidos no alicerce da formação docente, apoiados na base de conhecimento para o ensino.

A base de conhecimento para o ensino, segundo Shulman (2014, p. 200) é “um agregado codificado e codificável de conhecimento, habilidades, compreensão e tecnologias, de ética e disposição de responsabilidade coletiva e também um meio de representá-lo e comunicá-lo”.

Ao ser considerado pelos estudiosos, como imperioso a existência de uma base de conhecimento para o ensino, Shulman (2014, p. 206) e sua equipe, dentre outros autores, postularam que essa base de conhecimento para o ensino deveria ser composta pelos seguintes elementos:

[...] conhecimento do conteúdo; conhecimento pedagógico geral; conhecimento do currículo; conhecimento pedagógico do conteúdo; conhecimento dos alunos e de suas características; conhecimento de contextos educacionais; conhecimento dos fins, propósitos e valores da educação e de sua base histórica e filosófica.

Destes conhecimentos, para Shulman (2014, p. 207) o conhecimento pedagógico do conteúdo (PCK) ganha primazia na base de conhecimento para o ensino porque:

identifica os distintos corpos de conhecimento necessários para ensinar. Ele representa a combinação de conteúdo e pedagogia no entendimento de como tópicos específicos, problemas ou questões são organizados, representados e adaptados para os diversos interesses e aptidões dos alunos, e apresentados no processo educacional em sala de aula.

Trata-se de um tipo de conhecimento sobre como ensinar algo que é construído por cada um cada um dos professores em suas trajetórias profissionais, considerando diferentes componentes curriculares, áreas de conhecimento, níveis e modalidades de ensino. Neste mesmo raciocínio, Berry, Depaepe e Driel (2016) apontam que o conhecimento pedagógico do conteúdo é percebido como um conhecimento profissional, construído pelo professor, é flexível e expansível a partir de suas experiências na formação inicial e em serviço. Ele está intimamente ligado ao contexto em que é aplicado e, portanto, não pode ser avaliado de modo normativo ou comparativo.

Na visão de Shulman (1987), o PCK refere-se ao modo como se elabora e apresenta o conteúdo para que seja compreendido pela criança, utilizando-se de analogias, ilustrações, exemplos, explanações e demonstrações. Inclui-se nele o entendimento do professor do que facilita e dificulta a aprendizagem das crianças em determinado tema, bem como suas concepções errôneas e como estas poderão afetar suas aprendizagens (ALMEIDA et al., 2019). Para a ocorrência deste entendimento e consequentemente a ação docente, o PCK mobiliza, dentro da base de conhecimento para o ensino, uma série de ações denominadas “processes of pedagogical reasoning and action” (SHULMAN, 1987, p. 12) ou o processo de raciocínio e ação pedagógica. Esse processo de raciocínio e ação pedagógica refere-se a uma série de acontecimentos iniciados na prática pedagógica, cuja finalidade é dar condições para que o professor desenvolva conhecimentos pertinentes sobre como ensinar temas diferentes para crianças em contextos distintos (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011).

Shulman (1987) apresenta o processo de raciocínio e ação pedagógica como um ciclo constituído por seis elementos: “compreensão, transformação, instrução, avaliação, reflexão, novas compreensões” (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016, p. 389). A compreensão está ligada à forma como o professor entende a matéria que ensina, um entendimento especializado (SHULMAN, 1987). A transformação é a maneira como o professor processa as ideias que ele compreende, para que possam ser ensinadas. A instrução envolve todas as características visíveis de ensino na aula (SHULMAN, 1987). Já a avaliação é o processo que ocorre durante e após a instrução, tanto por meio de verificações contínuas e informais de entendimento, existência de dúvidas ou erros dos alunos, quanto através de métodos mais sistemáticos e formais de avaliação (MIZUKAMI, 2004, p. 43). Importante salientar que na avaliação dentro do processo de raciocínio e ação pedagógica o foco não é o aluno, mas sim o desempenho do professor quanto aos objetivos estabelecidos para o ensino (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011). A reflexão é o processo que envolve a revisão e a análise crítica do desempenho na prática docente.

O objetivo é que, ao reconstruir e reencenar essa prática, seja possível capturar os eventos ocorridos, as emoções geradas e os aprendizados obtidos. A nova compreensão é conforme Marcon, Graça e Nascimento (2011, p. 267):

o momento em que o professor se dá conta de que, a partir de uma descentralização inicial gerada por dilemas ou situações-problema, conseguiu reestruturar sua base de conhecimento, seja reconstruindo os que a integravam ou construindo novos a partir daqueles

Tal tipo de conhecimento, para esses autores, depende das informações do contexto de ensino e aprendizagem que têm origem em diferentes momentos de reflexão. A reflexão-na -ação, cujo caráter é de diagnóstico, ocorre durante o ensino, na mente do professor, fruto de um subconsciente profundamente refinado de um conhecimento tácito que é deflagrado por uma situação na ação presente (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016; SCHÖN,1997). Assim, essa utiliza os conhecimentos da base para examinar minuciosamente o contexto, separar as informações por categorias, selecionar as mais importantes que possam causar problemas ou dificuldades e definir prioridades.

Marcon, Graça e Nascimento (2011), ancorados nos estudos de Gimeno Sacristán (1995) e Grossman et al. (1989), apontam que ao obter essas informações, o conhecimento pedagógico do conteúdo seleciona a situação-problema mais importante e convoca da base de conhecimento todos os conhecimentos depositados que se relacionam com a situação de ensino e aprendizagem que demanda a questão. Neste momento, o conhecimento pedagógico do conteúdo provoca uma desestabilização na base de conhecimentos ao buscar encontrar possibilidades para a resolução da situação. Assim, a cada novo conhecimento que é construído, o conhecimento pedagógico do conteúdo o envia para a base de conhecimento, justificando a assertiva de Shulman (1987) que a “base de conhecimento não é fixa e imutável” (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016, p. 388).

A seguir, apresentamos o último e não menos importante conceito deste Educação e aprendizagem da docência, que faz parte do nosso referencial teórico, o de Mapas Conceituais, conforme proposto por Grillo e Lima (2008, p.145),

são representações gráficas de conjuntos de conceitos organizados sob a forma de diagramas, que indicam relação entre esses conceitos. Embora aparentemente simples e até mesmo confundidos com esquemas ou organogramas, os mapas têm como especificidade tornar evidentes os significados atribuídos a conceitos e esclarecer as relações existentes entre os mesmos, em determinada área de conhecimento, de um curso, de uma disciplina, de um Educação e aprendizagem da docência, de uma palestra, entre outras.

Os mapas conceituais desempenharam um papel importante na construção da comunidade investigativa formada pela diretora e pelas professoras analisadas neste trabalho.

A comunidade investigativa e as práticas pedagógicas das professoras

Idealmente, os HTPCs foram criados com a finalidade de promover estudos, troca de experiências profissionais e o compartilhar de práticas docentes e como local de acolhimento para escuta do professor, configurando-se em espaço de desenvolvimento profissional dos professores como proposto por Oliveira-Formosinho (1999) e Marcelo García (2009).

As temáticas trabalhadas no HTPC, na EMEI que acompanhamos, sob a orientação da diretora, abrangiam uma vertente de ambiente ecológico defendida por Bronfenbrenner (1996, p. 5), “[...] como uma série de estruturas encaixadas, uma dentro da outra, como um conjunto de bonecas russas [...] se estende muito além da situação imediata afetando diretamente a pessoa em desenvolvimento [...]”. Isso contemplou questões tanto em nível micro quanto em nível macro, causando um impacto direto na vida e nos fazeres dos docentes dessa comunidade.

A postura da diretora ofereceu indicadores de compromisso ético, estético e político com as professoras, com as famílias e, principalmente com as crianças, possibilitando tanto a consideração das crenças já existentes entre o grupo quanto a agregação de novas, com base no estudo e no diálogo.

Os encontros de HTPCs na perspectiva da diretora da escola:

[...] é um momento de reflexão e transformação. Eu acredito no profissional pesquisador. O que passa na minha cabeça, quando eu penso essas formações é nessa concepção de infância e escola da infância. Os conteúdos que eu trago para esses HTPCs eles vão se descrevendo no percurso do ano, não tenho nada fechado [...] A escola tem que ser um espaço leve e a Educação como uma possibilidade de transformação. Temos que pensar essa escola como esse espaço de comunidade onde todos são corresponsáveis pelas crianças que estão lá. Quando eu penso nesses momentos de formação eu penso nisso.

Sobre a potencialidade dos conteúdos formativos para auxiliar as professoras em suas propostas pedagógicas e modelos de avalições, a diretora explica:

O conteúdo do HTPC vai sendo delineado, vai chegar um momento do ano talvez, em que não saiba mais o que falar, mas quem vai dando o tom são as próprias angústias das professoras, são as ações que se têm no dia a dia. Estamos falando de narrativas de Mini-Histórias3 para ajudar a potência das crianças e vai ser muito legal os familiares receberem uma história bonita do seu filho sem julgamento, comparação, sem ficar apontando dificuldades, isto ajudará quando as professoras forem realizar as avaliações semestrais.

Fonte: Diretora, 2019.

Figura 1 Mapa conceitual “Delineando Caminhos para o Trabalho com Projetos” 

Uma das estratégias formativas utilizadas pela diretora foi o uso de Mapas Conceituais, o qual tinha como objetivo facilitar a compreensão e fortalecer o conhecimento das bases fundamentais da escola da infância. Esses mapas foram construídos durante momentos de HTPCs em conjunto com as professoras ou criados pela diretora e apresentados ao grupo ao final de um ciclo de estudos. Abaixo, está o mapa conceitual intitulado “Delineando caminhos para o trabalho com projetos”.

Partindo da concepção de escola como espaço da infância, a diretora debruçou-se ao estudo pessoal e coordenou alguns HTPCs com a temática - Projeto na Educação Infantil. Estes HTPCs foram divididos em duas etapas: HTPC (29/04/2019) - Estudos sobre projetos na Educação Infantil e HTPC (20/05/2019) - Por que trabalhar com projetos na Educação Infantil?

Entende-se por escola da infância um espaço rico e estimulante, onde a criança tem liberdade para “desacostumar” (LOPES, 2018, p. 129) os ambientes pensados para elas pelos adultos, levando em consideração suas necessitades. Na escola da infância, a criança encontra as condições necessárias para a sua aprendizagem e desenvolvimento, pois é baseada no respeito à criança como ser integral, única, histórica, constituída de uma história de vida que é considerada no momento da seleção dos conhecimentos a serem ofertados. A criança é vista como protagonista de suas ações, possui competência desde o seu nascimento, é considerada como ser social, construindo seu aprendizado em interação com seus pares, os adultos e o ambiente ao seu redor. (BRASIL, 2009; CORSARO, 2002).

Retomando aos encontros de HTPCs, cabe salientar que o estudo da temática “projetos”, não se esgotou em apenas dois momentos, mas tornou-se alvo de vários encontros ocorridos na sala da diretora, caminhadas pela escola e em visitas de acompanhamentos às salas das professoras para dirimir as dúvidas, buscar sugestões e oferecer orientações.

Com a intenção de construir o pensamento que os projetos devem nascer do interesse e necessidade das crianças, ter uma significação para elas e estar encharcado de intencionalidade pedagógica, na qual se ouve a voz das crianças e acompanha em suas ações. Os projetos devem, portanto, evidenciar consistência e pontas de conexão com o interesse imediato da criança, com novos conhecimentos e com os já construídos historicamente - os científicos, os sociais e os culturais - que são essenciais para a vida da criança como cidadãs.

Seguindo esta postura, a diretora trouxe para reflexão e análise o texto “O projeto Avião”, embasado no livro de Helm e Beneke (2005), intitulado “O poder dos projetos - novas estratégias e soluções para a Educação Infantil”. O trecho selecionado do livro continha o relato de uma professora que notara o interesse de suas crianças por aviões, representado em conversas entre elas na sala, nas brincadeiras nos intervalos, nas observações no céu durante a passagem de um avião e a percepção de rastros de fumaças que marcavam as nuvens.

Com base nessas indicações, a professora enxergou uma excelente oportunidade para trabalhar os interesses, necessidades das crianças e expandi-los com os conhecimentos científicos, sociais e culturais. Primeiramente, ela verificou se o assunto era pujante para o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças e se poderia criar uma rede hipotética. Dentro desta rede, a professora se inspirou na técnica Brainstorming ou tempestade cerebral, tomando como referência um dos pontos primordiais dessa estratégia, o de lançar um assunto ao grupo e acolher suas ideias, com o intuito de coletar soluções para um problema, buscar inovações e construir novos conhecimentos. A partir das ideias das crianças e com sua intencionalidade pedagógica, a professora criou uma teia de possíveis conhecimentos a serem abordados e também a oportunidade de construção de aprendizagens das crianças.

Vale ressaltar que esse tipo de percepção é característico de professores que possuem uma base de conhecimento sólida e estão abertas para novas aprendizagens (SHULMAN, 2014), com domínio do conteúdo a ser trabalhado, o que envolveu aprofundamento da temática e ampliação da referida base.

A próxima etapa deste HTPC foi a apresentação de um mapa conceitual (HELM; BENEKE, 2005) da utilização de projetos na Educação Infantil4. Conforme proposto por Helm e Beneke (2005), a intenção da diretora era fornecer um guia como referência para ajudar as professoras a construir projetos seguindo esse modelo. Essa fase envolveu a leitura reflexiva do texto, a análise cuidadosa deste mapa conceitual e o desafio posto pelo questionamento da diretora: “Os projetos que desenvolvemos aqui na escola e que ainda serão desenvolvidos têm apresentado potência para construir conhecimento com as crianças?” Pautadas por esta indagação, as professoras realizaram uma avaliação pessoal sobre a eficácia do projeto que pensavam desenvolver com suas crianças e do que estava em andamento. Algumas professoras perceberam que seus temas não eram tão robustos, porque tinham poucas ramificações, não permitindo que avançassem com a temática. Enquanto isso, outros projetos, de outras docentes, ofereciam uma abrangência maior. Embora esta formação tenha se consolidado apenas em um pontapé inicial para o estudo sobre projetos, ela gerou uma desestabilização nas certezas de algumas verdades cristalizadas do grupo e impulsionou-o a investigar mais sobre o assunto.

Destacamos que na formação o perfil da diretora, enquanto uma profissional competente, comprometida com a educação e altamente habilidosa para ensinar, equivale ao do gestor inovador, que compreende a escola como o local com capacidade para o desenvolvimento de muitos saberes, um orquestrador de atores, um articulador da diversidade para dar-lhe unidade e consistência. É capaz ainda, de manter-se motivado e contagia sua equipe, percebe e assume a responsabilidade da formação dos seus professores e de toda o seu grupo e forma-se com ele. Ainda, mantém a credibilidade e a confiança no potencial de todos na escola, incentivando-os a crescer mais e mais (AMORIM, 2017; LÜCK, 2000).

Salientamos que essa configuração de estudo em HTPC, gestada e consolidada no chão da escola, perseguindo o desenvolvimento profissional dos professores (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009; MARCELO, 2009), permitiu ao grupo trazer ao centro do diálogo, teorias já consolidadas, bem como práticas docentes e a voz do professor, todos como elementos propulsores das mudanças na qualidade do trabalho dos professores. Isso contribuiu para uma educação efetiva, garantindo a aprendizagem e o desenvolvimento não só das professoras, mas também das crianças, e inserindo-se na construção de uma escola como uma comunidade de sentido, valores, saberes e trocas, em que a investigação é valorizada. (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2015; COCHRAN-SMITH apudFIORENTINI; CRECCI, 2016).

Em continuidade à instrumentalização das professoras na melhora do trabalho com projetos, o HTPC do dia 20 de maio de 2019, contou com a proposta de leitura e reflexão do texto de Cortez (2013), formadora do Instituto Avisa Lá, extraído da revista Nova Escola - “O que um bom projeto para a Educação Infantil precisa ter”? Segundo Cortez (2013), os projetos podem auxiliar as escolas a assumirem e a ampliarem as suas responsabilidades na promoção de novos conhecimentos com significado e profundidade. Para que isso aconteça, a autora sinalizou alguns pontos que o professor deve se atentar: a escolha do tema do projeto em parceria com as crianças; possuir foco para saber sistematizar e ampliar os conhecimentos das crianças; envolver as crianças com participação no percurso do projeto; atentar-se para despertar a curiosidade dos pequenos; valorizar o planejamento, sem a perda da flexibilidade.

Após a discussão e as análises realizadas pelas professoras e pela diretora, em relação ao texto acima, o próximo passo do HTPC foi a realização de um momento de compartilhar um projeto desenvolvido no ano de 2019 pela professora X, denominado “Formigas”, com a 2ª fase da Pré-escola, com 27 crianças na faixa etária de cinco anos. Neste projeto, foi evidenciado a possibilidade das ramificações propostas por Helm e Beneke (2005) com suas teias de conhecimentos.

A ideia desse momento de partilha de experiências, a partir de um projeto de uma docente da própria escola, era oferecer às parceiras um auxílio sobre o desenvolvimento e a própria escrita do projeto, o que a diretora apontou como sendo um grande problema para alguns professores.

Ao adotar a conduta de extrair do próprio repertório das professoras da escola os exemplos para as formações, ressaltou-se a valorização do trabalho das docentes, o que resultava no encorajamento à equipe para apostar em suas ideias que, segundo Oliveira-Formosinho (2009), atende à necessidade que os professores possuem de serem honrados e apoiados para sustentarem suas crianças. Esse procedimento também possibilitava a valorização e a necessidade em se manter a cultura de comunidade, considerando suas histórias próprias, discurso em comum, criação e sustentação de concepções e pedagogias próprias, memória do grupo (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2015; BOLIVAR, 1997).

Os exemplos, geralmente, eram ilustrações da própria prática escolar, colhidas das boas práticas e até mesmo dos erros do grupo. Os erros não sofriam julgamento e nem mesmo identificados pelo autor. No entanto, eram tratamento como elementos tidos como poderosos para análises e reflexões, para a melhora da aprendizagem docente, das crianças e para fortalecer a postura da escola, enquanto organização aprendente (BOLIVAR, 1997; GRIGOLI et al., 2010).

O projeto da professora X referendou as premissas de um trabalho cujo nascedouro foi a sua própria sala, a curiosidade e o interesse das crianças foram os motes para as decisões da docente e a sua intencionalidade pedagógica deram o tom. Mostrou, assim, a leveza e o compromisso dela em responder as perguntas das crianças.

Nas palavras da professora X, assim iniciou o projeto formigueiro:

[...] um acontecimento está entusiasmando as crianças. Uma grande árvore próxima à sala é o objeto de observação. Na verdade, o interesse não está na árvore, mas no que acontece nessa árvore. Um grupo de formigas trabalham incansavelmente coletando folhas e levando para o formigueiro que fica embaixo da árvore. Sempre que saem da sala as crianças dirigem-se até a árvore para ver o trabalho das formigas. Olhares atentos, quase paralisados. Torcem pelas formigas pequenas que parecem fazer um esforço enorme para carregar o pedaço de folha e chegar até o formigueiro. Quando elas chegam, as crianças comemoram. Ir ao banheiro virou um pretexto para dar uma espiadinha nas formigas. Eu não poderia ignorar esse interesse das crianças, então iniciamos uma pesquisa sobre as formigas. Assumi o compromisso de trazer para a próxima semana um vídeo sobre a organização das formigas. Com isso o tema “as formigas” entrou no planejamento dos próximos encontros.

Destaca-se que o conhecimento pedagógico do conteúdo (PCK) evidenciado pela professora teve papel predominante na elaboração dos seus planos de trabalho, na identificação dos conhecimentos necessários para a aprendizagem, tanto para reforçá-los quanto ampliá-los, e na combinação de estratégias que promoveu uma construção de conhecimentos em parceria com as crianças, tomando como parâmetro os seus interesses, motivações e necessidades (SHULMAN, 2014; MIZUKAMI, 2004).

Quadro 1 Projeto Formigas 

HABILIDADES PROPOSTAS
» Conhecer a rotina de um formigueiro e sua organização social.
» Interessar-se por atividades de pesquisa para conhecer questões sobre o mundo físico.
» Conversar sobre o trabalho das formigas que observaram nos últimos dias, conduzindo o diálogo com os seguintes questionamentos:
Como elas cortam as folhas?
Para onde elas levam as folhas coletadas?
O que fazem com as folhas coletadas?
» Exibir um vídeo que mostra a organização das formigas.

Fonte: Portfólio da professora X, 2019.

Abaixo apresentamos um dos quadros de projeto “Formigas” desenvolvido pela professora X:

O PCK com a tarefa de selecionar e convocar os elementos da base de conhecimento para resolver uma situação problemática, percebida pela reflexão-na-ação da docente, convocou o primeiro elemento do processo de raciocínio e ação pedagógica: a compreensão (SHULMAN, 1987).

Com a compreensão ativada, a professora percebeu a potência do interesse das crianças pelo formigueiro e a partir do domínio sobre o tema, a professora buscou estratégias para explorá-lo, configurando-se no elemento transformação (SHULMAN, 1987).

Por meio de desenhos de observação do trajeto das formigas até o formigueiro, do cortar folhas e carrega-las, as crianças demonstravam suas habilidades espaciais, a compreensão da posição do corpo das formigas, as partes do corpo das formigas e direções; a confecção de mapas pelas crianças para marcar o percurso das formigas aos formigueiros, contendo medições, escritas de nomes dos lugares (mediados pela intervenção do professor como escriba), contagem; pesquisas em grupo para testar hipóteses, dialogar e refletir sobre suas teorias e descobertas em suas investigações; lidar com diferentes materiais para buscar respostas para suas indagações como a utilização de microscópios e lupas.

Pela observação diária do trabalho das formigas as crianças construíram outras aprendizagens como as expressas abaixo:

As formigas vão para o formigueiro que fica embaixo da terra. [...] Às vezes tem um formigueiro que parece uma torre, mas aquele da árvore não é (Criança X). [...] As formigas só comem aquelas folhas no inverno” (Criança X). Elas moram todas juntas, porque elas são amigas (Criança X). [...] Tem uma rainha lá no formigueiro. Ela fica sentada no trono (Criança X) (Fonte do Portfólio da Diretora, 2019).

Essas estratégias que potencializaram a construção de aprendizagens nas crianças, estavam imbuídas de situações de ensino, outro elemento essencial do raciocínio e ação pedagógica (SHULMAN, 1987; MIZUKAMI, 2004; ALMEIDA et al., 2019).

As falas das crianças eram materiais e indicadores importantes, tanto para a realização da avaliação (SHULMAN, 1987), quanto para o avançar ou retomar o conhecimento a ser aprendido. Essa postura não é nata na docência, é aprendida e desenvolvida, requer uma base de conhecimento sólida, aberta e ampla (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016). E reforça a afirmação que “aqueles que podem, fazem, e aqueles que entendem, ensinam” (DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2019, Prefácio, xxiii).

Percebemos que a professora realizava constantemente a avaliação, tanto dos conhecimentos adquiridos pelas crianças, quanto da sua proposta pedagógica. Muitas vezes, a avaliação surgiu de observações, mas também de boas perguntas, que impulsionaram os pequenos à busca de respostas e mostravam ao docente o grau de conhecimento do grupo sobre o tema:

As formigas não estão lá hoje porque está frio (Criança X). Por que elas não trabalham no frio? (Professora) Porque o frio as leva (Criança X). O vento as leva junto com as plantas que elas estão carregando (Criança X). Tem um monte de folhas dentro do formigueiro (Criança X).

A avaliação constante da performance do seu trabalho e do aprendizado do grupo oferecia à professora a possibilidade de orientar e reorientar a rota de suas propostas e o nível das intervenções como expressa em sua fala:

O vídeo que exibi sobre as formigas, foi importante para que elas ampliassem seus conhecimentos sobre a vidas e organização dentro de um formigueiro. Saber, por exemplo, o que as formigas fazem com as folhas que coletam e levam para o formigueiro e qual o papel da rainha.

A nova compreensão sobre a temática das formigas era compartilhada pela professora e pelas crianças, à medida em que a professora fazia boas perguntas que suscitavam por parte das crianças a criação e testagem de hipóteses; levantamento e solução de problemas; diálogos entre a turma e a professora. Deste modo, os conhecimentos antigos recebiam novas informações, fazendo com que a base de conhecimento antiga se desestrutura-se e se reorganiza-se, surgindo uma nova compreensão do tema em estudo (MIZUKAMI, 2004; ALMEIDA et al., 2019).

A reflexão, neste projeto, surgiu paralela a avaliação, enquanto a professora diagnosticava e separava a situação, também pensava sobre ela, organizando e reorganizando a sua prática por meio dos planos de trabalho (MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011; SHÖN, 1997).

Notamos que, sem a necessidade de explicitar a presença dos Campos de Experiências no escopo do plano de trabalho (O eu, o outro e o nós; corpo, Gesto e movimentos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação e Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações), eles atuaram simultaneamente, demonstrando um trabalho harmônico e integrado, no qual a criança foi tomada como ser integral e protagonista em suas ações.

Em tais práticas surgiram a interação entre as crianças, a professora, os materiais, o espaço e o conhecimento; a construção de percepções; Figura 2 - Projeto - O que tem dentro das coisas a identificação e a constituição das crianças como seres individuais, sociais e culturais e com voz, enquanto participavam ativamente de exposição de pensamentos, de realizações de produções criativas, do acesso aos números e a escrita. Todas essas ações desenvolvidas pela professora eram permeadas pela consciência que as crianças estavam inseridas em espaços e tempos de diferentes dimensões, num mundo constituído de fenômenos naturais e socioculturais e que elas necessitavam apreender esses conhecimentos (BRASIL, 2017).

Fonte: Portfólio de HTPCs da diretora, 2019 - O que tem dentro. Autoras: professoras e diretora, 2019.

Figura 2 Projeto - O que tem dentro das coisas 

Encerrada a apresentação do projeto “Formigas”, pela professora X, as professoras foram encorajadas a repensar um projeto em andamento ou que seria executado sob as ideias de Helm e Beneke (2005) de rede potencial de assuntos de um projeto para trabalhar com as crianças.

Deste momento surgiu o projeto “O que tem dentro das coisas”, que neste exercício foi construído pelas professoras participantes e direção e tornou-se o projeto de sala da professora Y.

Devido as palavras em amarelo não estarem legíveis à leitura, elas foram transcritas abaixo.

  1. Abaixo de plantio de semente - germinação;

  2. Acima de como podemos consumir - receitas;

  3. Abaixo de tipos de sementes - na seta à direita - grãos comestíveis (café, feijão...), na seta à esquerda - características das sementes.

Os HTPCs da comunidade investigativa como andaimes para o trabalho da professora Y - projeto “O que tem dentro das coisas”

A professora Y, com sua sala da 2ª fase E da Pré-escola contendo 30 crianças na idade de cinco anos, partindo da ideia inicial do projeto “O que tem dentro das coisas”, gestado no HTPC do dia 20 de maio de 2019, intitulado - Por que trabalhar com projetos na Educação Infantil? E sequencialmente, guiada pela percepção do interesse e curiosidade de sua turma, quando em brincadeiras e falas demonstravam o desejo por saber o que tinha dentro das coisas sempre que encontravam frutos, flores ou outros elementos da natureza ao andarilhar pelos quintais e parques da escola, abriam-nos e perguntavam o que tinha dentro ou como seria a estrutura interior.

Assim, a professora explica o nascer do projeto na sala:

Diante desta observação e escuta, trouxe para o grupo de crianças a proposta de realização de pesquisa e investigação sobre o que tem dentro de alguns frutos, sementes, flores e outros elementos naturais que as crianças costumam encontrar em nossos espaços externos, já que temos o privilégio de fazer parte de uma escola cercada por muitas plantas, pássaros e pequenos animais como borboletas, besouros, formigas, abelhas, lagartas entre outros, elementos que aguçam a curiosidade e a imaginação das crianças (Professora Y, extraído do seu portfólio, 2019).

Isso pressupõe como proposto por Darling-Hammond et al. (2019), que a professora, nesse momento, necessitava organizar a sua prática, a partir de decisões conscientes sobre a escolha de conteúdos e estratégias de aprendizagens, considerando como, quando e o que ensinar, frente ao que desejava alcançar com a aprendizagem de suas crianças.

Realizada esta constatação, a professora movida por sua base de conhecimento para o ensino, considerada como forte, não fixa e ampla (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016) e pela reflexão-na-ação (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016; SHÖN, 1997; MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011), iniciou o processo de mobilização do PCK, referindo-se ao modo a torná-lo acessível às crianças de forma útil e compreensível o assunto a ser desenvolvido, considerando suas necessidades, interesses e a intencionalidade pedagógica (BRANSFORD et al., 2019; SHULMAN, 2014, 2015; MIZUKAMI, 2004).

Para resolver essa questão, o PCK fruto de uma observação atenta e movida para ações e da reflexão-na-ação, separou as informações e disponibilizou-as para a tomada de decisões e desencadeou o processo de raciocínio e ação pedagógica da professora, que contou inicialmente com a sua compreensão para avaliar se o assunto era forte o suficiente e se poderia gerar redes de saberes (DEWEY, 1976; MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011; ALMEIDA et al., 2019; HELM; BENEKE, 2005).

Desta forma, a docente percebeu que diante do interesse e curiosidade das crianças por conhecer o que tinha dentro das coisas e sua estrutura, seria possível sustentar e ampliar suas experiências e teorias com novos conhecimentos. Surgiu assim, o rol de Aprendizagens a construir com as crianças: averiguar o que tem dentro das coisas; explorar e conhecer os diferentes elementos naturais; conhecer diferentes frutos e suas sementes; aprender sobre a dispersão das sementes na natureza; catalogar sementes e frutos da nossa flora; fazer pesquisas sobre elementos encontrados pelas crianças.

Nesse momento, um outro subprocesso do processo do raciocínio e ação pedagógica foi ativado, a instrução, que capacitou a professora Y a enxergar a possibilidade da construção dos seguintes conhecimentos: investigar o que tem dentro das coisas; pesquisar diferentes elementos naturais, conhecer para identificar os frutos e suas sementes; aprender sobre a dispersão das sementes na natureza; catalogar sementes e frutos da nossa flora e saber realizar pesquisas para o encontro de respostas.

Com a indagação de como transformar esses conhecimentos acessíveis às crianças, a transformação entrou em cena propondo situações exequíveis como: trazer e coletar elementos da natureza com o grupo de crianças, exemplo: castanhas, bagas, vagens, frutas e outras; montar um cesto com os elementos coletados e apresentar para as crianças; conversar com o grupo sobre as sementes coletadas e perguntar-lhes: De que tipos de plantas elas vieram? Em que tipos de plantas vão se transformar? As sementes foram encontradas no chão? Montar uma fonte com diferentes tipos de sementes na sala para a pesquisa e observação das crianças sobre como é uma semente por dentro.

Para aprender sobre os conhecimentos de dispersão das sementes na natureza e conhecer a semente do dente-de-leão, a transformação, operou com as seguintes estratégias: trazer flores e sementes de dente-de-leão para que as crianças soubessem onde estaria a semente; realizar um passeio com as crianças pelos espaços externos da escola para localizar nos gramados a planta dente-de-leão; espalhar junto com as crianças as sementes de dente-deleão nos gramados da escola; fazer desenhos de observação do dente-de-leão; montar um painel com registros das pesquisas e descobertas feitas pelas crianças; observar a flor de dente-de-leão na lupa.

Para sugerir novas propostas, avançar ou retomar conteúdos, a professora valeu-se de dois elementos do raciocínio e ação pedagógica, que mais uma vez, caminharam juntos - a avaliação e a reflexão (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016), eis alguns recortes:

Trouxe para o grupo algumas vagens de tamarindo e perguntei para as crianças se elas sabiam o que era; Vocês acham que tem alguma coisa dentro desta casca? A curiosidade das meninas aumenta e então decido perguntar: Vocês acham que tem alguma coisa dentro desta casca? (Professora); Diante da curiosidade das crianças em saber o que tem dentro das vagens, propus que fizessem uma caminhada pelo espaço externo da escola para coletar elementos da natureza [...]. (Professora Y, fala extraída do Portfólio, 2019).

Compreendemos que a avaliação da professora ocorria durante a instrução, com boas perguntas, ao mesmo tempo em que as crianças investigavam na busca por respostas, informavam-na sobre a compreensão que possuíam sobre o tema e a necessidade de ampliação ou retomada dele (MIZUKAMI, 2004).

Identificamos que a reflexão-na-ação e a reflexão sobre reflexão-na-ação (LOUGHRAN; KEAST; COOPER, 2016; SHÖN, 1997; MARCON; GRAÇA; NASCIMENTO, 2011) foram instrumentos essenciais para que a docente analisasse cada situação, diagnosticasse, revivesse as emoções e reorganizasse ou colocasse novas propostas.

A nova compreensão, segundo Mizukami (2004), Almeida et al. (2019), Marcon, Graça e Nascimento (2011), marcou-se pela desestruturação e nova estruturação de conhecimentos sobre o tema em discussão, surgiu do fato de as crianças se tornarem capazes de desenvolver comportamento de pesquisadores, ao investigar o que existia dentro dos elementos; em apoiarem-se em suas teorias, observação e testagem de resultados para a certificação; de desenhos, criação de esquemas gráficos e escrita conforme suas capacidades (auxiliadas pela professora). Nesse processo de desvelar um tema, professora e sua turma obtiveram uma nova compreensão sobre o assunto tratado.

Construir uma prática pedagógica nessa vertente, tornou-se real, porque a professora estava amparada pelo desenvolvimento profissional docente, centrado no chão da escola, tomando-a como pessoa singular, autora de sua prática pedagógica (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009; MARCELO, 2009; COHEN; BALL, 1999, p. 6 apud DARLING-HAMMOND), ademais porque estava circunscrita em uma comunidade investigativa, na qual instigava-a e valorizava-a para que teorizasse investigando suas próprias práticas, que conectassem os conhecimentos locais das crianças com os extramuros da escola e que partilhasse da construção de uma cultura de comunidade, com discursos em comum e histórias próprias (FIORENTINI; CRECCI, 2016; COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2015).

Vale ressaltar, que os suportes das formações em HTPC na escola, dotados de estudos e dos mapas conceituais (GRILLO; LIMA, 2008) ofertados por uma gestora competente, comprometida com o seu grupo de professoras e inovadora (LÜCK, 2000; AMORIM, 2017), acrescidos do perfil de pesquisadora da docente e sua intencionalidade pedagógica, foram essenciais para o aflorar de práticas autorais que fossem capazes de materializar a BNCC, indo para além dos conhecimentos prescritos nos Campos de Experiências (O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação e Espaços, tempos, quantidades e transformações ) e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento do documento, criando assim, planos de trabalhos significativos e conectados com os interesses dos pequenos.

Abaixo apresentamos como se configuraram os vínculos entre o projeto de trabalho da professora e a BNCC de Educação Infantil.

Nota-se que trazer frutas e frutos não comuns ao cotidiano das crianças para que pudessem descobrir suas características (mamão, cacau e caju) possibilitou que estas atuassem de modo articulado nos cinco Campos de Experiência arrolados abaixo:

  • O eu, o outro e o nós: à medida em que entraram em contato e experimentaram frutas de outros contextos e tiveram a oportunidade de cuidar da saúde pela ampliação do repertório de alimentos saudáveis.

  • Corpo, gestos e movimentos: contemplou-se com a utilização dos sentidos, os pequenos visualizaram os frutos e as frutas, tocaram, colheram alguns (esticando, abaixando, pulando), sentiram o cheiro, aventuraram-se a prová-los e corporificaram os conceitos antes de nomeá-los (FOCHI, 2021).

  • Traços, sons, cores e formas: apreciação dos frutos e frutas, suas formas, cores, texturas, gestos para segurá-los e capturar as sementes no interior da fruta;

  • Escuta, fala, pensamento e imaginação: por meio do compartilhar da experiência entre as crianças, do ouvir a professora acrescentando informações sobre as experiências das crianças, do acesso a construção da língua escrita pelo painel criado na sala com as informações do projeto.

  • Espaços, tempos, quantidades e transformações: o grupo agregara conhecimentos sobre as plantas: germinação, crescimento, floração e produção de frutos, enquanto lidaram com fenômenos da natureza sol, chuva...

Ao organizar rodas de apreciação para que as crianças pudessem compartilhar suas pesquisas com os amigos, os Campos de Experiências foram acessados simultaneamente do seguinte modo:

  • O Eu, o outro e o nós: as crianças enquanto explanaram e construíram suas percepções e questionaram, diferenciaram-se das demais e identificaram-se como seres sociais.

  • Corpo, gestos e movimentos: por meio de gestos, movimentos, estabelecendo relações com seus pares, comunicaram emoções.

  • Traços, sons, cores e formas: quando as crianças tiveram a oportunidade de vivenciar dois elementos muito importantes da cultura repleto de simbolismo e ritual que é o sentar-se em roda para ouvir, falar e apreciar o pensamento do outro.

  • Escuta, fala, pensamento e imaginação: ao exercitar o saber ouvir a fala do outro e interpretá-la, compartilhar com raciocínio lógico, expor teorias, hipóteses, descrição de pesquisa com clareza de ideias.

  • Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações: ao apresentar suas pesquisas as crianças precisaram contextualizar em que espaço ocorreram, em que tempo, lidaram com o conhecimento do mundo físico - as plantas e as transformações pelas quais elas passavam, o tamanho das frutas e frutos, quantidade de sementes ou ausência delas.

Algumas considerações finais

Neste Educação e aprendizagem da docência, enveredamos pela busca da compreensão de como professoras da Educação Infantil de uma comunidade investigativa tornaram-se capazes de traduzir a Base Nacional Comum Curricular de Educação Infantil em práticas pedagógicas.

Entendemos que o primeiro ponto favorável à construção de práticas alcançáveis às crianças e que possibilitaram a tradução de um documento mandatório de caráter nacional como a BNCC foi o fato de a escola ser uma comunidade investigativa, porque, neste local as professoras possuíam uma postura investigativa, demonstrando um comportamento de busca constante por conhecimento, sentiam-se responsáveis pelo seu próprio desenvolvimento profissional e de sua sala, estavam em alerta constante por descobrir o quanto as crianças sabiam sobre determinado assunto e o que necessitavam para ampliá-lo.

A comunidade investigativa potencializou as professoras à construção de memória local, de compromisso com a comunidade escolar, a existência de conexão entre teoria e prática e prática e teoria, o desenvolver de criticidade para perguntar e responder seus questionamentos, a resistência do aceite de currículos prontos, fechados e desconectados e a relação entre conhecimento local e universal. No entanto, detinham a capacidade da construção de práticas ligadas ao contexto das crianças que possibilitava relacioná-las com os conhecimentos históricos, culturais e artísticos construídos e valorados pela humanidade.

Notamos, que o segundo ponto que consolidou a tradução da BNCC num trabalho profícuo às professoras e propiciou aprendizagens das crianças foi a questão da diretora ter sido uma gestora competente, pesquisadora e comprometida com suas professoras. Tal fato evidenciou-se pelo modelo de formação pautada no desenvolvimento profissional das professoras, realizada na escola. Ao defender esse tipo de formação, a diretora criou e sustentou estudos cujo primado estava assentado no respeito as docentes como pessoas singulares, completas, constituídas de uma história de vida e envolvidas num processo de formação em construção ao longo de toda a vida e, à medida em que as professoras vinham a desenvolver-se, todo o ambiente escolar se beneficiava deste crescimento.

Constatamos, como terceiro elemento, que as professoras eram boas profissionais, com um longo tempo de experiência e detentoras de uma base de conhecimento para o ensino robusta e flexível e, assim, estavam capacitadas para o desempenho de projetos nascidos do interesse das crianças. Guiadas por suas intencionalidades docente, ampliavam e enriqueciam as aprendizagens da sala. Por conseguinte, a base de conhecimento para o ensino outorgou a elas a perícia de tratar de um mesmo assunto de modos diversificados, considerando os diferentes tempos, estilos e ritmos de aprendizagens das crianças, referendando-se pelas histórias de vida dos pequenos e por seus conhecimentos prévios.

Portanto, para nós este estudo confirmou a máxima de Shulman que disse que “aqueles que podem, fazem, e aqueles que entendem, ensinam” (DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2019, Prefácio, xxiii).

1A pesquisa foi submetida à plataforma Brasil, seguindo todos os procedimentos de sigilo, preenchimento e postagem de documentos exigidos pela plataforma, além do cuidado no trato com os participantes da pesquisa. O CAAE do projeto é CAAE é 18126919.4.0000.0084.

2Palestra proferida em roda de conversa por Júlia Oliveira - Formosinho e João Formosinho ambos da Universidade Católica Portuguesa, no VIII Congresso Paulista de Educação Infantil e IV Simpósio Internacional de Educação Infantil: Educação como prática de liberdade! Na FE-USP, Faculdade de Educação - São Paulo (USP), em abril de 2019.

3Mini histórias são experiências observadas e narradas brevemente por um adulto atento que se ocupa da criança. Este relato curto é seguido por imagens sequenciadas que revelam autonomia, comunicação e as ações de bebês e crianças pequenas (FOCHI, 2015).

4Este Mapa Conceitual é apresentado detalhadamente em SILVA, M. T. da. Professores de Educação Infantil de uma comunidade investigativa traduzindo a Base Nacional Comum Curricular em práticas pedagógicas. Tese (Doutorado Educação, Arte e História da Cultura). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2021.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 16 de Janeiro de 2023; Aceito: 28 de Junho de 2023

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