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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.71 Salvador July/Sept 2023  Epub Apr 22, 2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n71.p287-307 

Educação e aprendizagem da docência

DA INSERÇÃO PROFISSIONAL À PERSEVERANÇA DOCENTE: TRAJETÓRIAS DE DOCENTES DO DISTRITO FEDERAL

FROM PROFESSIONAL INSERTION TO TEACHER’S PERSEVERANCE: TRAJECTORIES OF TEACHERS FROM THE FEDERAL DISTRICT

DE LA INSERCIÓN PROFESIONAL A LA PERSEVERANCIA DOCENTE: TRAYECTORIAS DE DOCENTES DEL DISTRITO FEDERAL

Denise Gisele Britto Damasco1 

Doutora em Educação, Professora do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução do Instituto de Letras da Universidade de Brasilia, Brasília, DF, Brasil. E-mail para contato: denise.damasco@unb.br


http://orcid.org/0000-0002-0250-0776

Laurizete Ferragut Passos2 

Doutora em Educação, Professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia da Educação e do Mestrado Profissional Formação de Formadores (FORMEP) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail para contato: laurizetefer@gmail.com


http://orcid.org/0000-0001-7702-0825

1Universidade de Brasília

2Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


RESUMO

O presente Educação e aprendizagem da docência discute a trajetória profissional de docentes do Distrito Federal em um estudo longitudinal, visando compreender suas aprendizagens docentes e profissionais. Há dois contextos de pesquisa, sendo o primeiro realizado entre 2010 e 2014 (pesquisa doutoral) e o segundo cerca de dez anos depois (pesquisa de pós-doutoramento). A inserção profissional e a perseverança na carreira docente constituem o quadro teórico, destacando a contribuição da pesquisadora Joséphine Mukamurera e de pesquisadores francófonos sobre essa temática, aproximando o Método Documentário ao método Análise de Prosa na compreensão de trajetórias de profissionais do DF. A análise e a interpretação evidenciam a falta de um modelo de inserção profissional, sugerindo que a perseverança não depende apenas do sentimento de êxito no início da carreira ou da formação continuada que se realiza ao longo da carreira: inúmeros fatores complexificam a profissão docente, dentre os quais as condições de trabalho e outras circunstâncias subjetivas inerentes a ela.

Palavras-chave: Inserção Profissional; Desenvolvimento Profissional; Perseverança na Docência; Estudo Longitudinal

ABSTRACT

The article discusses the professional trajectory of teachers from the Federal District in a longitudinal study aiming to understand their teaching and professional learning. There are two research contexts, the first being conducted between 2010 and 2014 (doctoral research) and the second about ten years later (postdoctoral research). Professional insertion and perseverance in the teaching career constitute the theoretical framework, highlighting the contribution of researcher Joséphine Mukamurera and researchers from the francophone context on this theme. We sought the methodological approximations between the Documentary Method and the Prose Analysis method in the understanding of trajectories of professionals from the Federal District, considering that the two methods of analysis were used to understand the trajectories of teachers. The analyses and interpretations show that there is no model of professional insertion, that perseverance does not depend only on continuing education that is carried out throughout the career, on the feeling of success at the beginning of the career, and there are numerous factors that complexify the teaching profession, among which the working conditions and other subjective conditions inherent to it.

Keywords Professional Insertion; Professional Development; Perseverance in Teaching; Longitudinal Study

RESUMEN

El artículo discute la trayectoria profesional de los docentes del Distrito Federal en un estudio longitudinal con el objetivo de comprender su enseñanza y aprendizaje profesional. Hay dos contextos de investigación, el primero realizado entre 2010 y 2014 (investigación doctoral) y el segundo contexto unos diez años después (investigación postdoctoral). La inserción profesional y la perseverancia en la carrera docente constituyen el marco teórico, destacando la contribución de la investigadora Joséphine Mukamurera y de investigadores del contexto francófono sobre este tema. Se buscaron las aproximaciones metodológicas entre el Método Documental y el método de Análisis de Prosa en la comprensión de trayectorias de profesionales del Distrito Federal, considerando que los dos métodos de análisis fueron utilizados para comprender las trayectorias de los docentes. Los análisis e interpretaciones muestran que no existe un modelo de inserción profesional, que la perseverancia no depende solo de la educación continua que se lleva a cabo a lo largo de la carrera, del sentimiento de éxito al comienzo de la carrera, y hay numerosos factores que complejizan la profesión docente, entre los cuales las condiciones de trabajo y otras condiciones subjetivas inherentes a ella.

Palabras clave: inserción profesional; desarrollo profesional; perseverancia en la enseñanza; estudio longitudinal

Introdução

Este Educação e aprendizagem da docência apresenta a trajetória profissional de docentes no Distrito Federal em um estudo longitudinal, visando compreender suas aprendizagens docentes e profissionais. No ano de 2010, jovens docentes foram entrevistados em grupo de discussão (WELLER, 2006), por ocasião de uma pesquisa de doutorado realizada entre 2010 e 2014. Em 2022, esses docentes foram sujeitos de nova investigação, por meio de entrevista narrativa (BOHNSACK, 2020), durante pesquisa de pós-doutoramento. O desenvolvimento profissional dos docentes, iniciado nos anos 2010, foi analisado e interpretado mais de década depois: a partir de suas falas, desvelamos suas percepções sobre as fases de inserção e de desenvolvimento profissional. Assim, objetivamos compreender suas aprendizagens docentes e os fatores que favorecem ou dificultam a perseverança na docência, considerando o amadurecimento ao longo dos anos e desenvolveram-se profissionalmente a partir de decisões tomadas em relação as suas carreiras profissionais.

Explicitaremos dois contextos de pesquisa1 nesse estudo longitudinal. O primeiro se refere a uma pesquisa doutoral realizada no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, com foco nas questões relacionadas à juventude e às relações geracionais, comparando distintas gerações de docentes, ou seja, docentes pioneiros e aposentados e docentes jovens e iniciantes no Distrito Federal. Naquela pesquisa, focalizamos a educação básica pública no contexto do ensino de línguas no Distrito Federal (DF) em espaços públicos, tendo em vista que há um acordo de cooperação técnica para o ensino de línguas, assinado com uma escola privada conveniada de francês em 1966, e uma experiência singular de oferta do componente curricular língua estrangeira moderna em centros públicos de línguas (CILs) desde os anos 1970. Por ser a sede das representações diplomáticas do país, no DF há convênios e financiamento de projetos de ensino de francês, alemão e japonês - para além do inglês e espanhol - como componentes curriculares para a rede pública de ensino desde os anos 1960 (DAMASCO, 2014).

A coleta de dados para essa investigação ocorreu por meio de entrevistas narrativas e grupos de discussão. Para a análise dos dados, utilizou-se o Método Documentário (BOHNSACK, WELLER, 2010; BOHNSACK, 2020), que visa à reconstrução das falas dos participantes, a partir de uma análise pormenorizada, com auxílio sobretudo da Análise da Conversação (GARFINKEL, 2006; MARCUSCHI, 2006).

Ressaltamos que os resultados obtidos durante essa investigação doutoral relacionados à percepção de docência de distintas gerações no DF apontaram para duas orientações de docência: a geração de docentes pioneiras e aposentadas no Distrito Federal iniciou suas carreiras profissionais nos anos entre 1970/1980, as quais asseveraram ter uma orientação de docência para uma vida toda. Reconhecem suas trajetórias pessoais e profissionais de maneira linear, tendo permanecido em uma única instituição escolar de seu início à aposentadoria. A orientação de docência foi diferente para os jovens docentes entrevistados, que afirmaram que a carreira docente, naquele momento, se apresentava como passagem para outra carreira profissional - uma fase -, pois buscavam melhores salários, por exemplo. Os jovens e iniciantes docentes percebiam-se bem-sucedidos devido ao êxito em concurso e ao fato de serem servidores da carreira do magistério público na rede pública do DF; no entanto, verificou-se que, para alguns desses jovens, a precariedade das condições de trabalho e os baixos salários causavam dúvida quanto à continuação neste espaço profissional.

O segundo contexto refere-se a uma pesquisa de pós-doutoramento realizada entre os anos de 2020 e 2022, no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia da Educação da PUC, em que buscamos compreender a trajetória de cinco docentes entrevistados em 2010 em um dos grupos de discussão realizados à época. Mais de uma década depois, analisamos os percursos e as aprendizagens profissionais desses docentes do DF. As falas dos cinco participantes de um grupo de discussão (GD) realizado em 2010 foram colhidas por meio de entrevista narrativa (EN); no âmbito deste Educação e aprendizagem da docência, destacamos os percursos de dois profissionais, cujas falas foram analisadas e interpretadas por meio da Análise de Prosa (ANDRÉ, 1983), a fim de ponderar sobre a inserção profissional e perseverança ou não na docência.

Este Educação e aprendizagem da docência está organizado em seis partes, considerando a introdução e algumas conclusões. Na segunda parte deste Educação e aprendizagem da docência, trazemos a inserção profissional e a perseverança na carreira docente como quadro teórico, destacando a contribuição da pesquisadora Joséphine Mukamurera e de pesquisadores do contexto francófono quebequense sobre essa temática; na terceira parte, explicitamos os aportes teórico-metodológicos de duas investigações (2010/2014 e 2020/2022), de maneira a aproximar dois métodos de análise de dados da pesquisa qualitativa: o Método Documentário (WELLER, 2005; BOHNSACK, 2020) e o Método Análise de Prosa (ANDRÉ, 1983), respectivamente. Na quarta parte, discutimos os dados e resultados das pesquisas, visando compreender as aprendizagens ao longo do desenvolvimento profissional de dois docentes do DF, partindo da fase de inserção profissional à perseverança ou não na docência.

Compreendendo a inserção profissional e perseverança na carreira docente

Iniciamos nosso estudo por meio de uma busca no Banco de Dados de Teses e Dissertações da Capes (BDTD) pelos termos “inserção profissional” e “perseverança na docência”. Primeiramente, obtivemos 886 resultados, ordenados em 80 instituições de ensino superior (IES), quando não especificamos o termo “inserção profissional docente”. Observamos que as IES em que essa temática tem sido mais investigada são a USP, com 56 pesquisas, a UnB, com 42, e a PUC de São Paulo, com 41 trabalhos. O primeiro estudo citado no campo educacional sobre essa temática data de 1999, abordando a formação continuada de professores e suas relações com a prática docente. Sem pretender adentrar em trabalhos de outra área do conhecimento, que não são objetos dessa reflexão, compreendemos que, por si só, o termo “inserção profissional” tem sido estudado em determinadas IES no país de maneira mais focalizada a partir do final do século XX. Há um campo aberto para novas pesquisas sobre a inserção profissional, com múltiplas possibilidades de investigações a partir da análise do BDTD, sobretudo trazendo à luz o referencial teórico no qual tais pesquisas se basearam.

Ao procurarmos no BDTD o termo “perseverança docente” como descritor, deparamo-nos com 8 trabalhos, sendo 3 teses e 5 dissertações, realizados entre os anos 2000 e 2018: um resultado diametralmente oposto ao resultado da busca pelo descritor “inserção profissional”. Há pesquisas da área de Saúde (SILVEIRA, 2000), de Letras (COUTO, 2009), de Avaliação de Políticas Públicas (VIANA, 2011), de Educação em Ciências e em Matemática (ANDRADE, 2007), de Educação (SIMÕES, 2013; SILVA, 2016; SCHECHTMAN, 2017) e de Administração (MERCALI, 2018). Tais trabalhos destacam a relevância da perseverança para o desenvolvimento profissional.

Apesar de haver parcos trabalhos que utilizam o termo “perseverança”, constatamos que para nos desenvolvermos profissionalmente necessitamos de persistência, o que nos levou a considerar esse termo como conceito importante para nosso estudo. Silveira (2000), por exemplo, recomenda que a perseverança, o compromisso, o profissionalismo e a seriedade partam da própria escola de saúde como projeto coletivo de trabalho, sobretudo se a escola pretende garantir a qualidade de seus cursos. Segundo Couto (2009), para que o docente alcance sua profissionalização, perseverança e autogovernança são imperativos. Andrade (2007) explicita a necessidade de compreender o conceito de perseverança diante das dificuldades de se constituir como docente. No campo educacional, Schechtman (2017), em sua tese sobre as dinâmicas curriculares e as ações pedagógicas para a implementação de um curso de licenciatura a partir do pensamento complexo e da transdisciplinaridade, destaca a necessidade de perseverança para consolidar os movimentos educacionais e inovações.

Cientes de que a mobilidade de pesquisadores e a internacionalização do ensino superior são critérios relevantes na avaliação de programas de pós-graduação, e que nos aproximam enquanto pares, nos levando a compreender nosso contexto a partir do outro, apontamos que a influência da pesquisa francófona quebequense referente à inserção profissional ocorreu desde a dissertação defendida por Pena na UFMG, em 1999, a qual aborda a obra de Maurice Tardif, Claude Lessard e Louis Lahaye (1991) que focaliza a problemática do saber docente dentro desse contexto2.

Desde o final dos anos 1990, uma das pesquisadoras mais referenciadas em pesquisas sobre inserção profissional e perseverança docente em contexto francófono é Joséphine Mukamurera. Ela nos apresenta a complexidade inerente ao processo de inserção profissional nas trajetórias de jovens docentes entre os anos 1980 e 1990 em Québec, no Canadá. Mukamurera publicou seus resultados de pesquisa em Educação e aprendizagem da docência (sem tradução para o português) intitulado “O processo de inserção profissional de diplomados em docência no Québec”3, em que pondera sobre a situação de milhares de jovens docentes que sofrem devido à precariedade de emprego e a uma difícil inserção profissional nesse contexto. Mukamurera dedica-se à temática da inserção de profissionais até o presente momento, abordando conceitos como desenvolvimento profissional, mentoria, entre outros.

Uma colaboradora de Joséphine Mukamurera que tem refletido sobre a entrada na carreira docente é Aline Niyubahwe, que assina um Educação e aprendizagem da docência e uma ficha-resumo, intitulada, em tradução livre para o português: “Retenção do futuro corpo docente: necessidade de um acompanhamento atrelado às realidades escolares”, da série “Les faits en éducation”4 em janeiro de 2023. De acordo com Niyubahwe (2023),

a escassez de docentes no Québec, como em fora do Canadá, é uma realidade das/os estudantes desde sua entrada em formação. Dificuldades vividas ao longo da formação ou no trabalho em contexto escolar poderiam ter como consequência o questionamento sobre a continuidade dos estudos e sobre o abandono precoce da profissão. Surge assim a necessidade de se ter dispositivos de acompanhamento durante a formação inicial que sejam atrelados às realidades escolares. (NIYUBAHWE, 2023, p. 1, tradução nossa)5

Essa pesquisadora propõe diferentes estratégias de acompanhamento para uma melhor retenção do futuro docente, tais como a) a possibilidade de conciliar os estudos e o trabalho temporário a fim de poder atender às demandas do estudante em formação inicial; b) a conciliação entre estudos, trabalho e família para aqueles que ainda não estão legalmente qualificados para a docência; c) a adaptação em ambiente digital e plataformas de acesso ao ensino remoto para os estudantes em formação, visando prepará-los para esta realidade nos sistemas de ensino; e d) a organização de mentoria por meio dos pares, de maneira presencial ou remota, desde o início da formação inicial (NIYUBAHWE, 2023).

Trazer as contribuições de Joséphine Mukamurera para a pesquisa sobre inserção profissional no Brasil significa relacionar suas pesquisas com coautores/colaboradores francófonos que também estudam essa temática, de maneira a alargar e adensar nosso quadro teórico sobre o desenvolvimento profissional. Na impossibilidade de trazer amplamente todos os pesquisadores francófonos quebequenses que se debruçam sobre a inserção profissional, optamos por adensar as reflexões de Mukamurera na seção a seguir, esperando que os Educação e aprendizagem da docências que escreveu com seus pares - tais como Aline Niyubahwe e Stéphane Martineau - sejam objeto de futuras traduções para a língua portuguesa, facilitando a circulação de reflexões e de resultados de pesquisas sobre essa temática.

A contribuição de Joséphine Mukamurera ao debate sobre a inserção profissional e sobre a perseverança na carreira docente

Mukamurera (2014) compreende que o desenvolvimento da carreira docente é um longo processo, que se inicia na formação universitária e continua durante os primeiros anos na profissão, estendendo-se por toda a carreira. Ela atribui relevância aos primeiros cinco anos de trabalho docente, período considerado de inserção profissional: em conferências recentes, Mukamurera chama a atenção para o fato de os três primeiros anos serem ainda mais importantes nesse processo de inserção profissional.

O conceito de perseverança contém a ideia de persistir, continuar, conservar-se firme e constante (FERREIRA, 1987), o que sugere um movimento perene e contínuo oriundo de vivências, experiências, opções e ações profissionais. Quem perseverou na docência talvez o tenha feito devido às aprendizagens, aos contextos favoráveis e aos diversos fatores que o motivaram a permanecer. O termo “perseverança” está presente na obra organizada por Portelance, Martineau e Mukamurera (2014), ainda sem tradução para a língua portuguesa, intitulada, em tradução livre, “Desenvolvimento e perseverança profissionais na docência”6. Em um dos capítulos dessa obra, as autoras empregam o termo “perseverança” ao reconhecer que há “fatores de risco e de proteção na inserção profissional” (ed. Kindle, s/p). Destacam como fatores de risco à inserção profissional exitosa, por exemplo, um ambiente escolar pouco acolhedor, as dificuldades advindas de tarefas que demandam uma competência escritural na língua materna, e a falta de compreensão sobre que é colaboração e coletividade, entre outros fatores. Como um dos fatores de proteção a uma inserção profissional bem-sucedida, esses autores citam as práticas de acompanhamento do estudante em licenciatura desde sua formação inicial, sobretudo as práticas que focam a gestão da classe. Esse acompanhamento pressupõe a abertura de espaços de reflexão sobre as aprendizagens úteis e pertinentes desde a formação inicial.

Para Martineau et al. (2014), a crença de que a formação inicial “não serve para nada” (ed. Kindle, s/p.) é uma análise demasiadamente redutora, que diminui a influência dessa formação na vida profissional do docente. As autoras destacam que as interações são fonte de perseverança na docência e que tais interações ocorrem desde a formação inicial. Assinalam a relevância de se propor pesquisas futuras que tragam esclarecimentos sobre estratégias de apoio aos docentes iniciantes que levem à perseverança profissional docente. Com tais estudos, é possível compreender a existência de uma relação entre a mobilização de certas dimensões de mediação durante a formação inicial e continuada e a perseverança profissional docente, e concluem que seria conveniente conhecer e compreender melhor os fatores de risco e de proteção que caracterizam a experiência de inserção profissional (MARTINEAU; PORTELANCE; MUKAMURERA, 2014, edição digital).

Os docentes iniciantes demonstram frequentemente o desejo de compartilhar suas práticas entre si e com os colegas mais experientes. De acordo com Martineau et al. (2014), essas trocas podem resultar em um sentimento de mais segurança, reforçando a autoestima e diminuindo os riscos de abandono da docência. Entretanto, ao nos relembrarmos do termo “risco” na obra de Paulo Freire, deparamo-nos com a ideia de que o risco é algo inerente ao “existir”. Fischer e Lousada (2008) assinalam que, para Freire, a “disponibilidade ao risco seria condição própria do pensar certo, saber necessário à criação de uma pedagogia da autonomia”, tendo em vista que somos seres aprendentes (FISCHER; LOUSADA, 2008, p. 372). A presente pesquisa corrobora a ideia de que o desenvolvimento profissional principia na formação inicial, e não somente no primeiro emprego.

Esta concepção de formação inicial como etapa do processo de desenvolvimento profissional é compartilhada por André (2016), para quem o coletivo escolar - e não apenas o docente em ambiente escolar, individualmente - deve ter a oportunidade de se desenvolver profissionalmente. Daí, não basta a formação continuada: há outros fatores relevantes a serem considerados, tais como o salário, a carreira, o ambiente escolar, as condições em que a docência acontece, as relações de poder e a forma como se organiza o trabalho docente na escola, por exemplo. Há de se valorizar a reflexão do docente quanto a sua prática, problematizando-a, compreendendo -a, avaliando-a, tomando novas decisões para melhorá-la. André (2016) destaca que, para o desenvolvimento profissional, é necessária uma autonomia na colegialidade, uma troca de experiências entre iguais e um projeto institucional fruto de esforço coletivo, visando as metas acordadas inicialmente, monitorando as ações e os resultados obtidos.

Para além das condições objetivas atreladas à formação e ao contexto de atuação do docente, “o conhecimento do professor transcende os domínios particulares da área específica de conhecimento, que é aperfeiçoado e enriquecido pelo conhecimento dos alunos, do currículo, dos conteúdos relacionados a outras áreas, do conteúdo pedagógico etc.”, de acordo com Corradini e Mizukami (2011, p. 60). Assim, estamos em constante aprendizado da docência quando refletimos sobre as experiências exitosas e menos exitosas em sala de aula; quando compreendemos que temos um “domínio da sala de aula” e que criamos estratégias para a gestão do ambiente escolar; quando vislumbramos que temos “estratégias para conduzir as aulas, principalmente, a criação de um ambiente de aprendizagem” (CORRADINI; MIZUKAMI, 2011, p. 60). Vivências profissionais positivas que nos motivam a perseverar na profissão docente.

Aproximações metodológicas entre o Método Documentário e o método Análise de Prosa na compreensão de trajetórias de profissionais do DF

Apresentamos dois contextos de pesquisa com aportes teórico-metodológicos que se aproximam, na medida em que se enquadram no âmbito das pesquisas qualitativas em educação que buscam construir os dados a partir das falas dos participantes, em um movimento de indução.

Na pesquisa realizada entre 2010/2014, os dados foram coletados por meio de grupo de discussão (WELLER, 2006). Distinguimos duas vertentes para essa forma de coleta de dados: uma vertente espanhola e uma vertente anglosaxônica. Meinerz (2011), na vertente espanhola, destaca que o pesquisador tem papel de moderador, de organizador dos discursos dos participantes durante a realização de grupos de discussão. Isso não é recomendado na vertente anglo-saxônica, que preza pelo apagamento do pesquisador durante as discussões dos participantes, visando a autonomia destes na organização de suas falas - sobretudo na construção de uma orientação coletiva, ou seja, conjuntiva (WELLER, 2006; BOHNSACK, 2020).

O Método Documentário (WELLER; PFAFF, 2010) foi empregado na pesquisa realizada entre 2010 e 2014. Tem sido amplamente utilizado em pesquisas na Alemanha há muitos anos, tendo chegado ao Brasil no início do século XXI por meio de Wivian Weller (2005), que desenvolveu sua pesquisa com Ralf Bohnsack, organizador desse método. É um método recomendado para análise e interpretação de grupos de discussão da vertente anglo-saxônica, na medida em que se busca o sentido imanente, expressivo e documentário (WELLER, 2005). Esse método pressupõe quatro etapas, a saber: interpretação formulada (o que o participante disse); interpretação refletida (um segundo nível de análise que se debruça sobre como as coisas foram ditas, as análises interacionais); análise comparativa (cotejamento de orientações coletivas oriundas dos grupos de discussão); e tipificação, ou seja, construção de tipos, caso seja possível. No caso da pesquisa realizada entre 2010 e 2014, empregaramse as quatro etapas e as duas tipificações de docência na análise de grupos de discussão realizados com docentes iniciantes e pioneiros do DF: uma docência para toda uma vida e uma docência como passagem para outra carreira profissional.

O método Análise de Prosa foi apresentado por Marli André (1983) no Educação e aprendizagem da docência “Texto, contexto e significados: algumas questões na análise de dados qualitativos”. A autora informa que tal Educação e aprendizagem da docência foi motivado pela necessidade de revisitar o método de Análise de Conteúdo para a análise de dados qualitativos. Assim, André (1983, p. 68), após ponderar questões referentes à diferença entre tópico e tema, e ao considerar “o conhecimento como pessoal, intuitivo, subjetivo e experiencial” (p. 68) agrega a esse método um olhar mais amplo para o material coletado “através da observação participante, entrevistas não-estruturadas e revisão de documentos”. Propõe ainda que o termo “conteúdo” seja “substituído por ‘Análise de Prosa’ sempre que assumir um sentido mais amplo” (ANDRÉ, 1983, p. 67).

Durante a pesquisa realizada no pós-doutorado, optamos em coletar os dados com entrevistas narrativas (BOHNSACK, 2020), que foram analisadas por meio do Método Documentário (entrevistas com as participantes Paula e Bela) e pela Análise de Prosa para as entrevistas de João Pedro, Diane e Anastácia. Ao fazermos um exercício metodológico de aproximação entre os dois métodos de análise de dados, constatamos que há elementos em comum entre o Método Documentário e o método de Análise de Prosa, sobretudo quando partem dos dados empíricos a fim de se chegar às orientações coletivas, no caso do Método Documentário, e dos tópicos e temas às categorias, no caso do método Análise de Prosa.

Os dois métodos pressupõem uma organização rigorosa de procedimentos para interpretação dos dados oriundos das falas dos participantes. No Método Documentário, há uma reconstrução desses dados por meio do diário de campo, que traz observações do pesquisador ao longo da etapa empírica, guardando as marcas da oralidade nas transcrições, realizando a minutagem das falas e elaborando uma codificação da fala em si, com as marcas de silêncios, risadas, aumento e diminuição de voz, presença de fontes de outros discursos nas falas e análise das trocas de pares adjacentes, entre outros detalhamentos. Selecionamos passagens significativas, contendo experiências conjuntivas, muitas vezes representadas por metáforas enunciadas pelos participantes. No método Análise de Prosa, a análise dos dados acontece desde o início da pesquisa, com as observações, anotações de percepções e de mensagens implícitas ao longo do percurso de campo. Segundo André (1983, p. 70), “desde o início do estudo nós já fazemos uso de procedimentos analíticos quando procuramos verificar a pertinência das questões e problemas selecionados frente ao objeto estudado”. O diário de campo parece-nos um elemento comum entre os dois métodos.

Uma segunda aproximação entre o Método Documentário e o método Análise de Prosa é o fato de ambos valorizarem o “empreendimento conjunto” (ANDRÉ, 1983, p. 70). Ao longo da pesquisa realizada entre 2010 e 2014, a coleta de dados em grupos de discussão ocorreu por diversas vezes com o apoio de pesquisadores e a discussão dos dados em reuniões do grupo de pesquisa. Já o debate sobre metodologia aconteceu em diversos momentos: durante as reuniões de grupos de pesquisa, nas disciplinas sobre a Pesquisa em Educação e nas trocas em atividades de tutoria, entre outras. Os dois métodos buscam definir a análise de interpretação, ou seja, a maneira de “destrinchar” o material empírico que leva à interpretação dos dados pelo pesquisador. Os resultados não são obtidos a partir de hipóteses previamente determinadas: problematiza-se o objeto de pesquisa, considerando o pesquisador como parte da pesquisa. Para André (1983, p. 70), há uma “multiplicidade de sentidos que podem estar implícitos no material” a ser analisado e interpretado. No Método Documentário, a reconstrução dos dados é feita a partir do diário de percurso, do perfil dos entrevistados e do pesquisador e da análise pormenorizada das falas em interação.

O diário de campo como apoio para a análise e a interpretação dos dados de pesquisa em educação

A escrita de um diário de campo, com as impressões do pesquisador desde o início do estudo, é um ponto comum entre os métodos de análise e de interpretação que foram utilizados nos dois contextos desta investigação. Na obra de Delory-Momberger (2019), o verbete “diário”7 é apresentado como um procedimento e uma prática da pesquisa sobre história de vida e narrativas biográficas em educação.

Durante a pesquisa doutoral e pós-doutoral, realizadas entre 2010 e 2014 e entre 2020 e 2022, escrevemos nossas percepções e notas como diários de campo do percurso empírico. Os dados contidos nesse diário são potencialmente úteis para a análise em pesquisa qualitativa.

Para Oliveira e Camargo (2018), a escrita cotidiana em diários cria elos na escola, “pontes entre o cotidiano e a escola” (p. 9). Os autores nos levam a ponderar sobre o ato de escrever a respeito de como a coleta de dados aconteceu, como nos sentimos durante a coleta dos dados e como ocorreram as interações com os participantes. Este foi um segundo momento do campo: um “experimentar através da escrita” (OLIVEIRA; CAMARGO, 2018, p. 9). No caso deste estudo longitudinal, isso se tornou possível na medida em que foram tomadas notas no diário de campo após cada entrevista narrativa realizada durante a investigação.

Discutindo as trajetórias de dois profissionais do DF: da inserção profissional à perseverança ou não na docência

Os participantes da pesquisa realizada em estágio de pós-doutoramento (2020-2022) foram contactados anos depois por meio das informações contidas no Questionário de Identificação de Participantes preenchido no ano de 2010, no qual havia uma pergunta sobre o desejo de colaborar em etapas futuras da pesquisa. Esta informação pôde ser recuperada facilmente, pois o material da pesquisa estava arquivado. Um primeiro contato foi realizado via mensagem eletrônica e contato telefônico para cada participante. De modo geral, dos 14 docentes entrevistados na etapa de coleta de dados da pesquisa doutoral nos anos de 2010 a 2014, sendo que apenas uma docente sinalizou em suas respostas ao Questionário de Identificação que não tinha interesse em participar de outras etapas da pesquisa.

Optamos por contactar os cinco participantes do grupo de discussão realizado em 7 de dezembro de 2010. Esse grupo de discussão, composto por Anastácia, Bela, Diana, João Paulo e Paula, foi nomeado “GD Porto Seguro”. À época, a orientação coletiva emanada das discussões desse grupo apontava para um sentimento de segurança em sala de aula a portas fechadas, apesar de dificuldades dos jovens docentes como a timidez no início da carreira, o medo de estar do início da carreira e o encontro com um público-alvo heterogêneo. O espaço individual de sala de aula dava um sentimento de segurança e autonomia.

Do material coletado recentemente, destacamos que houve uma entrevista narrativa piloto para preparação do projeto de pesquisa do doutorado com Paula, cuja análise e interpretação encontra-se em Damasco e Passos (2021a) . Uma segunda entrevista foi realizada em 2020 com a participante Bela, de maneira on-line, dando origem a reflexões que foram apresentadas em 2021 no IX CIPA por Damasco e Passos (2021). Três entrevistas narrativas foram realizadas em 2022; para este Educação e aprendizagem da docência, analisaremos e interpretaremos as entrevistas com Diane e João Paulo.

O contato com Diane e João Paulo ocorreu por meio de e-mail e contato telefônico. Diane foi entrevistada no seu primeiro mês de trabalho na rede pública de ensino do DF (SEEDF) como docente do quadro do magistério da educação básica do DF. Ela relatou este fato via e-mail, mostrando-se muito aberta à pesquisa.

Os diários de campo de dois contextos de pesquisa

O Método Documentário se insere no que chamamos de pesquisa social reconstrutiva (BOHNSACK, 2020): os dados são reconstruídos ou gerados por meio dos diários de campo e dos perfis dos entrevistados, pois dados complementares podem auxiliar na interpretação das falas colhidas durante a investigação. Ao trazermos excertos do diário de campo da pesquisa realizada entre 2010 e 2014, mais especificamente da coleta de dados em grupo de discussão no dia 7 de dezembro de 2010, buscamos elementos para além das falas dos participantes que nos rememorem essa troca entre pesquisadora e pesquisados.

Este foi o primeiro GD com jovens que ensinam línguas. Intitulei este grupo de discussão como GD Porto Seguro, tendo em vista a fala sobre o fato de se sentirem mais tranquilos na profissão, depois de alguns anos de trabalho, vencendo as dificuldades que tiveram como docentes jovens e iniciantes. Como característica geral deste grupo de discussão no que se refere ao quadro interacional, constatei que existe uma relação interpessoal entre os/as participantes, detectada a partir das trocas verbais foi uma relação horizontal. […] Percebi familiaridade entre os/as participantes. Isto ocorreu por meio de dados externos, como exemplo, a presença de laços socioafetivos, revelados com as citações de fontes contextuais comuns a todos/as. Houve dados internos ao grupo, que fortalecem esta relação horizontal, como por exemplo, pausas com risos, conversas paralelas e sequências encaixadas sem que houvesse a ruptura do tópico desenvolvido na fala. Quanto à forma de se conversar, destacase que neste grupo de discussão aconteceram diversas conversas paralelas, ou cisma (MARCUSCHI, 2006). Segundo este autor, a cisma pode acontecer quando se há mais de três participantes na discussão. […] As passagens temáticas são geralmente de longa duração. Fiz poucas intervenções. Gesticularam bastante me relatando que estavam satisfeitos com essa atividade porque foi um “momento de falar de suas experiências pessoais e profissionais” sem restrições. (DAMASCO, 2014, p. 278)

O perfil de dois entrevistados em um tempo remoto nos auxilia a compreender as mudanças que ocorreram ao longo de suas trajetórias pessoais e profissionais. A seguir, o perfil de Diane e João Paulo no ano de 2010:

Diane tem 28 anos, não declarou sua cor, brasileira, natural de Caxias (MA), solteira, não tem filhos/as, religião católica e trabalha como instrutora de francês há dois anos na instituição de ensino. Sua carga horária semanal é de 28h em sala de aula, nos turnos vespertino e noturno. Não exerce outra atividade remunerada. Recebe em média de 4 a 6 salários-mínimos. Tem cinco irmãos e irmãs. Sua mãe e seu pai também são da cidade de Caxias (MA). Sua mãe tem ensino fundamental completo e é costureira. Seu pai tem o ensino fundamental completo e é sapateiro. Mora em Samambaia Norte há 11 anos com parentes. Diane estudou durante a educação fundamental em Taguatinga Sul (DF), em uma escola urbana. Fez o ensino médio também em escola pública de Taguatinga Sul (DF), uma escola urbana. Estudou Letras, com licenciatura em português e francês, na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia (GO). Aprendeu o idioma que ministra como bolsista da SEDF nesta escola conveniada. Estudou outros idiomas e atualmente [em 2010] somente trabalha. Fez viagem para o país do qual ministra o idioma por turismo e lazer. Seu meio de transporte para o trabalho é o carro próprio. Seu lazer preferido é o cinema. Não faz parte de grupo ou associação. Possui email e gostaria conceder novas informações para pesquisa, caso seja necessário. (DAMASCO, 2014, p. 280)

João Paulo tem 29 anos, pardo, brasileiro, natural de Brasília (DF), casado, não tem filhos/as, declarou-se ateu e trabalha como instrutor de francês. Não declarou há quanto tempo trabalha na instituição de ensino. Sua carga horária semanal é de 34h em sala de aula, nos turnos matutino, vespertino e noturno. Faz atendimento psicológico como outra atividade remunerada. Recebe em média de 7 a 11 salários-mínimos. Tem três irmãos e irmãs. Seus pais são do Rio de Janeiro (RJ). Ambos têm o ensino superior completo, são contadores e funcionários públicos. Mora há 29 anos em Brasília (DF), declarando morar com parentes. João Paulo estudou durante o ensino fundamental e no ensino médio em Brasília em escolas públicas e urbanas de Brasília, na Asa Sul. Estudou Psicologia na Universidade de Brasília. Fez mestrado acadêmico em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações. Aprendeu o idioma que ministra por meio do acordo entre a Secretaria de Educação e a escola conveniada, como estudante bolsista beneficiado pela Cooperativa Técnica entre a SEDF e essa escola. Estudou alemão, inglês e espanhol. Nunca fez viagem para o país do qual ministra o idioma. Vem a pé ao trabalho, de bicicleta ou de metrô. Seu lazer preferido é o cinema, leitura, jogos de tabuleiro e o futebol. Não faz parte de grupo ou associação. (DAMASCO, 2014, p. 281)

No grupo de discussão realizado com João Paulo, Bela, Anastácia, Paula e Diane há um debate sobre ser professor de adolescentes. Surgem os temas relativos ao imprevisível em sala de aula, as dificuldades com as relações interpessoais e a questão da timidez e o encontro com o outro. Ressaltamos que, primeiramente, selecionamos uma passagem que chamamos Profissão Docente. As passagens são selecionadas de acordo com sua densidade temática, com as metáforas de foco presentes que possam levar a uma orientação conjuntiva, ou seja, coletiva.

As figuras 1 e 2 exemplificam a transcrição codificada pelo Método Documentário. Na figura 1, temos a fala de João Pedro sobre estar diante de um público-alvo adolescente; e na figura 2, Diane declara-se tímida, o que não a impede de se expandir em sala de aula, pois se transformou sendo professora. Destacamos que os nomes são codificados, pois Jm, significa João Paulo e “m” é o gênero masculino (no caso de Diane, será Df). Quando todos os participantes tomam a palavra, representamos por TD. Outras participantes interagem: Pf (Paula) e Bf (Bela).

Fonte:DAMASCO, 2014, p. 295 e 2968

Figura 1 Exemplificação de transcrição codificada de um trecho de fala de João Pedro em interação com Bela 

Fonte:DAMASCO, 2014, p. 32010

Figura 2 Exemplificação de transcrição codificada de um trecho de fala de Diane. 

A seguir, há um excerto da interpretação refletida, que é a segunda etapa (de quatro) do Método Documentário. Essa etapa nos convida a compreender como a mensagem foi dita, para além do que foi dito. A triangulação com o método Análise da Conversação nos auxilia nessa etapa de interpretação das falas. Exemplificamos a interpretação realizada a partir da fala de João Paulo, entre as linhas 135-147:

Faz sua elaboração complementar com a presença de marcadores conversacionais verbais no final de turnos pós-posicionados, ao usar “né” (linhas 135 e 136), buscando confirmação das ouvintes para o que relata. Sua elaboração é acompanhada da diminuição do tom de voz no término das unidades comunicativas, famente, orquestrar” (linha 144) e João Paulo zendo uma pausa e alongando a pronúncia do complementa: “tudo isso” (linha 146). Entremarcador conversacional verbal temporal: tanto, o marcador “orquestrar” (linhas 143 e “Quando::” (linha 138). A partir do momento 144) atenua a ideia posterior de João Paulo de em que traz um exemplo real, de sua práti“pandemônio” (linha 142), sobretudo porque ca docente, desvencilha-se das hesitações e ele procura um “meio termo” (linha 147) em lança a imagem da função docente como a de sua prática docente. Orquestrar significa para alguém que precisa “orquestrar” (linha 143) a João Paulo, fazer com que seus estudantes fasala de aula de adolescentes, comparada por çam o que ele quer. Enfatiza esta ação ao proele a um “pandemônio” (linha 142). Bela faz nunciar enfaticamente e, em tom mais forte, o sua primeira validação ao concordar com a marcador conversacional verbal: “fizessem”. imagem apresentada por João Paulo: “exata- (DAMASCO, 2014, p. 296-298)

De acordo com o perfil de João Paulo, temos a informação de que ele tem uma primeira graduação: é psicólogo. A formação em língua se encerrou paralelamente ao mestrado em Psicologia. Suas falas vão ao encontro do que as pesquisas sobre inserção profissional apresentam: a gestão de sala de aula como uma questão nevrálgica dessa fase profissional. Como destaca Niyubahwe (2023, p. 1), é um desafio o “peso e a complexidade da tarefa: tarefa fora de seu domínio de formação, com turmas difíceis”9.

A intepretação refletida do trecho apresentado na Figura 2, entre as linhas 401 e 421, evidencia a presença de outras participantes: Paula, Anastácia e Bela. Na vertente anglo-saxônica do grupo de discussão, o entrevistador não faz a mediação das falas; a pesquisadora não interage, e uma das participantes assume esse papel. Isso é ressaltado na interpretação a seguir, a título de exemplificação.

Nesta primeira sequência, Paula assume a mediação da discussão e seleciona Diane para que fale. Todos riem. Diane apresenta como se transformou em professora. Surge a metáfora da sala de aula como um porto seguro, juntamente com a sensação de domínio e a compreensão de que pessoas tímidas podem ser professores/ as. Paula toma o turno após uma pausa de três segundos (linha 402) e dá preferência à Diane. Recorda-se que ao longo da passagem Profissão Docente, Diane assumiu a posição de público, pouco participando oralmente das interações, porém isto não significa que não participasse do debate: o silêncio e a atenção são também formas de participação e marcadores conversacionais não-verbais. Contudo, após nova pausa de dois segundos entre risos, Diane relata como se transformou em professora, porque também sempre foi muito tímida a ponto de no ensino médio evitar apresentar seminários. Suas amigas sempre lhe davam um texto menor, somente porque tinha de apresentar na frente de todos. Diane afirma que não conseguia, que “travava” e isto era impressionante. Paula sempre gostou disto, de apresentações em seminários. (DAMASCO, 2014, p. 321-322)

Nesses primeiros anos de docência de Diane, ela reconhece que a docência a transformou. As lembranças de situações vivenciadas durante o ensino médio parecem ainda recentes e marcantes. Tem na sala de aula um espaço que lhe pertence, no qual consegue vencer a timidez e se tornar docente. Sabe se comunicar: foi uma conquista da docência. Sente-se protegida, apesar de saber que a timidez poderia ser um risco (MARTINEAU et al., 2014).

Diane e João Paulo, doze anos depois…

João Paulo e Diane têm em comum o fato de terem realizado estudos na mesma escola conveniada. As entrevistas narrativas realizadas em 2022 foram analisadas e interpretadas pelo método Análise de Prosa. Atualizamos seus perfis profissionais e pessoais; registramos cada entrevista em um diário de campo, o que favorece a criação de laços entre participantes e pesquisadora por meio da pesquisa. Trazemos narrativas dessa história da pesquisa, possíveis graças ao olhar longitudinal sobre as trajetórias docentes. Assim,

Engajar-se em um processo de integração é, portanto, enveredar por uma história - a dos atores, seus projetos e carreiras - em que ações, eventos, cargos profissionais ocupados, decisões, estratégias, chances e oportunidades vão gradualmente contando, deixando vestígios, somando, criando um passado que condiciona de certa forma o presente profissional. (MUKAMURERA, 1999, p. 74)11

Construímos nossa história comum ao longo dos anos. Os excertos de um diário guardam vestígios desses momentos: a seguir, trecho do diário de campo escrito em 18 de fevereiro de 2022, por ocasião da entrevista com João Paulo:

O convite para uma entrevista foi realizado por email em 15 de fevereiro de 2022. Ele me respondeu no dia seguinte, pela manhã, explicitando que havia deixado a docência em 2012 e que atuava como psicólogo desde então. Afirmou que estava contente em participar do estudo e que tinha o horário livre às terças depois das 17h. Podia me encaixar entre seus atendimentos. Foi simpático. Achei interessante a ideia de me “encaixar” entre seus horários. Isso me lembrou de quando fiz grupos de discussão com estudantes: a gente tinha o horário da aula e pronto, no intervalo, acabou, pois durante a hora de recreio, é recreio e ao final da aula, tem a van, o ônibus e o transporte. Não se pode perder o horário do transporte. No caso de João Paulo, há o horário entre os atendimentos, realmente, ao iniciarmos o ano de 2022, no início de um período quase pós-pandemia, estar on-line para trabalhar e depois em entrevista é bem complicado. Muita tela. […] Marcamos assim por e-mail. O encontro com João Paulo foi muito alegre. Depois de um dia de trabalho dele, já era tarde, noite caindo. Ele estava firme. […] Eu tinha uma lembrança muito boa dele e de seu jeito forte de falar. Praticamente ele não mudou nesses doze anos. Diante de mim, vi um profissional maduro, um profissional do atendimento on-line, eu senti isso. Falar de sua trajetória foi algo que, segundo minha percepção, lhe agradou. Ele foi objetivo, sorriso largo, frases e datas e nomes apresentados sem titubear. Em alguns momentos senti que estávamos em um bate-papo informal. Percebi o impacto da pandemia em sua vida, na vida profissional de sua esposa que havia aberto uma escola de dança antes do isolamento. […] Percebi que ele tem interesse na docência, quem sabe em um futuro distante, um projeto ao longe… foram perto de 35 minutos de entrevista, encerrada nossa conversa, ele parte para suas meninas, filhas e esposa que o aguardam. Quem sabe daqui uns 10 anos nos reencontraremos novamente.

João Paulo casou-se; tem duas filhas. De imediato, ele avisa que não está mais na carreira docente. Decidimos mesmo assim entrevistá-lo, para compreender por que não perseverou na carreira docente. Ele se mudou de Brasília devido a um concurso que fez antes de nosso encontro em 2009. Contou sua trajetória de profissional de sucesso na psicologia. Detalhou outros interesses durante a entrevista. Relatou que pensa em dar aula, pois gosta de dar aula, mas não se identifica com o ensino superior. Sua esposa é psicóloga também e, com a pandemia, fechou sua escola de dança e assumiu essa carreira. A entrevista narrativa realizada em 2022 com João Paulo foi analisada e interpretada por meio da Análise de Prosa. O quadro 1 apresenta, como exemplo, os tópicos e temas analisados, na ordem do discurso realizado durante a entrevista.

Quadro 1 Tópicos e temas da entrevista narrativa com João Paulo em 2022. 

TÓPICO TEMAS
Rememoração do contexto de 2010 Lapso temporal de 12 anos do GD
Nome fictício João Paulo
Indicação do link do relatório de tese oriundo da pesquisa
Trajetória na docência entre 2010 e 2012 Dois anos de docência
Carga horária de trabalho
Primeiro ano de trabalho - fui direto para a sala de aula
Rotina de trabalho e carga horária
A inserção profissional
Situação profissional em 2009 Estudo paralelo (mestrado em Psicologia)
Desemprego e fim da bolsa de mestrado
Concurso no Rio de Janeiro para a área de Psicologia
Formação continuada entre 2010 e 2012 Formação de curta duração em Vichy com bolsa da escola conveniada
Conteúdo da formação em Vichy
Reflexões sobre as trocas realizadas durante a formação
Docentes iniciantes e experientes na formação
Características do público-alvo na docência em francês A questão geracional no ensino de línguas: diferentes idades
O público adulto e adolescente na mesma aula
A questão da cultura do outro
Distintas gerações de docentes na sala dos professores
Viver no Rio de Janeiro (2014/2016) Posse no concurso realizado em 2009
Casamento e rotina de trabalho
Vida familiar no RJ
Retorno à Brasília
Retorno para Brasília (2016-) Escola de dança da esposa e atividade de administrador
Aproximação com o curso de Filosofia
Rotina antes da pandemia e nascimento das filhas
Pandemia (2020/2021) Fechamento da escola de dança
Esposa: retorno à atividade ligada à psicologia Trabalho on-line
Percepção da carreira docente Dúvida no momento de abandonar a docência
Dificuldade de trabalhar fora do horário
A docência em Brasília e as condições de salário e de trabalho Professor ou pesquisador?

Fonte: elaboração própria.

Na impossibilidade de trazer a entrevista em sua totalidade, optamos por refletir sobre as razões pelas quais João Paulo não perseverou na docência. Ele relatou que, no momento, apreciava não ter de trabalhar fora do horário de trabalho, pois seu trabalho “acaba na hora que desliga o computador” (João Paulo, 2022, linha 291). Quando foi docente, o deslocamento de casa para o trabalho era muito difícil, “pegava trânsito, era muito desgastante” (João Paulo, 2022, linhas 293-294). Após essa avaliação, adentrou à questão salarial, afirmando que como docente a sua situação seria melhor se estivesse na rede pública. Afirmou que, na universidade, ser professor ou ser pesquisador é uma questão complexa, como duas ações distintas.

Narrou que sua formação inicial foi em Psicologia; seu mestrado na área e o êxito no concurso o levaram para o Rio de Janeiro. Declarou ter “balançado” (João Paulo, 2022, linhas 244 e 249) na hora de se mudar: havia chegado de um curso na cidade de Vichy, na França, em uma escola de formação para docentes de francês. Contudo, mesmo tendo tido essa excelente oportunidade de formação continuada, optou em interromper sua trajetória na docência.

Ao olhar os anos que se passaram, ponderamos que a escola de dança pode ter significado uma forma de estar próximo da docência. A pandemia foi um momento de ruptura; a docência ficou no passado. João Pedro escolheu a segurança e condições melhores. Doze anos depois, compreendemos que os dois anos de docência de João Paulo foram efetivamente uma fase para que pudesse se posicionar em outra carreira, oriunda de sua primeira graduação. Os primeiros anos mostram-se cruciais, como tem afirmado Mukamurera (2019). Na coleta e análise de dados em 2010, não tínhamos todos os elementos para compreender a trajetória de João Paulo, mas nesse momento, com o passar dos anos, depreendemos que ele foi um jovem de “passagem na docência”, em espera de outra carreira que lhe oferecesse condições de trabalho mais satisfatórias. A formação inicial em Psicologia e o mestrado realizado paralelamente ao curso de formação em francês tiveram um peso maior na trajetória e escolha profissional de João Paulo. Apesar de ter “balançado” após voltar de Vichy, já tinha uma trajetória traçada em sua primeira área de formação.

A trajetória de Diane, ao longo dos 12 anos, efetivou-se integralmente na profissão docente. Esteve na escola conveniada, depois em uma escola privada de alto padrão com a língua francesa na grade curricular até o ano de 2020 e, na época da entrevista, tomou posse como docente da rede pública de ensino do DF. Apesar de Diane nos apresentar sua exitosa trajetória na docência ao longo dos doze anos, consideramos que não há modelo único de inserção (MUKAMURERA, 1999), mas aprendizagens ao longo do tempo, que constituem a complexidade dos percursos profissionais docentes.

Optamos em não trazer o diário de campo nem o detalhamento de tópicos e temas da entrevista com Diane, pelo escopo deste Educação e aprendizagem da docência. Contudo, reconhecemos o sentimento de transformação na e pela docência narrado por Diane como um elemento que favoreceu a perseverança em sua carreira docente. Relata que foi professora de contrato temporário em 2011 e que foi uma experiência “fantástica”: reitera que “fantástico” também era o livro didático com o qual trabalhou na escola privada de alto padrão durante dez anos. Descreve que em 2015 fez uma formação “fantástica” na França, pois foi “contemplada” com uma bolsa de formação de curta duração (a mesma bolsa que João Paulo recebeu em 2012). Diane reconhece que houve aprendizagem durante a pandemia:

nessa escola particular não foi o online e o presencial né então isso me tirou do conforto assim 100% e foi maravilhoso pra mim porque hoje eu me vejo assim fortalecida, mas… “a gente vai ter que voltar a trabalhar presencial, vai ser assim… não me sinto pronta ainda…” Mas não, eu me sinto pronta porque experiência melhor que essa não existe. (Diane, 2022, linhas 89-92)

Sentiu-se “fortalecida”. O sentimento negativo da pandemia pareceu não estar presente nas percepções de Diane. Tardif e Damasco (2020) asseveram que os docentes se sentiram sem rumo, “sem bússola” no início da pandemia, dada a excepcionalidade da situação que vivemos, o que provocou “uma reflexão sobre a natureza e poder da escola na nossa sociedade, considerando que nos meses subsequentes, ninguém obteve a resposta de quando a escolas poderiam retornar as suas atividades regulares” (TARDIF, DAMASCO, 2020, p. 43). Diane se recentrou rapidamente, sobretudo graças ao fato de ter sido devido à pandemia que assumiu o cargo conquistado no concurso que realizou em 2016.

Para Diane, a aprendizagem durante a pandemia foi significativa apesar de a escola se reorganizar em 2020, retirando a sua disciplina da grade curricular e propondo-lhe que lecionasse em turma no ensino fundamental. Ela afirma:

Foi porque a escola viu a necessidade de investir em outras áreas com a pandemia. Até a pandemia estava tudo bem, mas aí veio a pandemia e a escola sentiu a necessidade de investir em matérias ligadas à tecnologia, à informática […] não tinha mais onde colocar mais nada porque é uma escola que tem uma grade assim bem puxada. Você tem as 3 línguas, tem aula de educação financeira, tem aula de educação bíblica tem aula de educação emocional […] tudo bem que o inglês espanhol sim, mas o francês, educação bíblica não é em todo lugar que você encontra e educação emocional, educação financeira, robótica. Então queriam inserir outra coisa, não tinham mais espaço: então vamos tirar o quê? O francês. Aí retiraram o francês, mas pra me manter ainda na instituição me ofereceram o fundamental 1 […] eu falei sim com certeza e fui. E foi uma experiência fantástica né muitos alunos muitas turmas mesmo, mas eu consegui e fiquei muito feliz. (Diane, 2022, linhas 120-139)

Declara que acabou de assumir uma vaga em um centro público de línguas e que essa escola é “fantástica”. O fato de estar diante de um público diferente daquele com o qual ela trabalhava foi considerado positivo: “é fantástico, quando você vê cada um com a sua história, os meninos carentes ali” (linhas 429-430), ou seja, ali aprendendo francês. Ao retomarmos seu perfil profissional, as anotações de campo e a entrevista em 2022, destacamos que essa percepção de sua trajetória docente é muito positiva, levando-a a se emocionar e, em lágrimas e tom mais baixo, afirmar que “ser professor é uma escolha, eu amo. Amo o que eu faço, faço com muito prazer mesmo, assim tento me doar” (Diane, 2022).

Algumas considerações finais

Buscamos realizar um estudo longitudinal de duas pesquisas qualitativas, objetivando compreender as trajetórias docentes ao longo de um período, ancoradas em dois procedimentos de coleta de dados (grupos de discussão e entrevista narrativa) e dois métodos de análise e interpretação da pesquisa qualitativa que valorizam os elementos implícitos ao longo da pesquisa, construindo e reconstruindo interpretações com o apoio de diários de campo, valorizando o rigor na análise dos dados.

A repercussão de pesquisas realizadas em outros contextos e países sobre as etapas de desenvolvimento profissional e sobre as aprendizagens da docência contribuem para o aprofundamento da análise de dados de investigações no país, na medida em que cotejar o que acontece em outro contexto nos faz olhar de maneira singular para o nosso. Depreendemos, das leituras e falas de Mukamurera (1999; 2014), a dupla face da inserção profissional: uma face objetiva, relacionada às questões de precariedade das condições de trabalho, oferta de trabalho, realização de tarefas complexas etc.; e uma face subjetiva, ligada aos interesses pessoais, motivações internas, autoestima etc. Essa autora nos sugere que as trajetórias são uma “história aberta” (MUKAMURERA, 1999, p. 76), na medida em que se estudam minuciosas trajetórias reais, sem a pretensão de termos um modelo único de inserção profissional.

Ao investigarmos a fase de inserção profissional de jovens e iniciantes, estivemos diante de indivíduos cuja característica é a “ductilidade” (FLITNER, 1968, p. 68), ou seja, a flexibilidade. Em outra fase de suas vidas, mais de uma década depois, deparamo-nos com profissionais adultos e experientes. Segundo Flitner (1968, p. 39), “o período de maturidade não é tratado como fase isolada, mas considerado através de descrições minuciosas no contexto de toda a obra”. Os participantes desse estudo longitudinal, ao olharem a década transcorrida e suas aprendizagens profissionais - no caso de Diane com as aprendizagens docentes durante a pandemia, e no caso de João Paulo, com sua trajetória diante de duas carreiras profissionais -, compreendemos que o desenvolvimento profissional é construído passo a passo desde a formação inicial.

Mukamurera (1999, p. 73) afirma que os docentes jovens, “ao se engajarem na docência, entram, de alguma maneira, em um longo labirinto profissional, cujas especificidades se tornam desafios para eles”. Ao analisarmos e interpretarmos trajetórias de jovens docentes, verificamos que os resultados obtidos em 2014 e em 2022 foram similares quando estivemos diante de trajetórias não-lineares, como é o caso da trajetória profissional de João Paulo. Diante dos desafios, João Paulo recentra suas expectativas e abandona a docência, retomando o caminho profissional já iniciado em anos anteriores.

Concluímos que, ao identificarmos a inserção profissional docente como uma etapa profissional isolada e atrelada, principalmente, a um profissional jovem, corremos o risco de fazer uma redução desse campo de pesquisa. Há o jovem e o adulto em inserção profissional em distintos contextos: a inserção docente no âmbito da educação básica não ocorre da mesma forma que no ensino superior. Outro risco de redução nesse campo pode ser causado pela desvalorização da formação inicial como fase de desenvolvimento profissional, devido à crença de que basta a oferta e a realização de formação continuada para se perseverar na docência. São inúmeros os fatores que complexificam a profissão docente, dentre os quais as condições de trabalho e outras condições subjetivas inerentes a ele.

Para se entender as aprendizagens durante as fases de desenvolvimento profissional docente, seria importante um alargamento da compreensão de inserção laboral, de seu contexto profissional e geracional: como compreender jovens, adultos e idosos em inserção profissional? Quais são as motivações para perseverar em uma carreira? Pistas para novas pesquisas.

Este estudo longitudinal não passou ileso pela crise sanitária mundial, sendo elaborado, por assim dizer, no momento pré-pandêmico, com uma entrevista narrativa piloto em 2019; em plena pandemia, em 2020 e 2021; e em uma fase de menor contaminação, com maior índice de vacinação da população, em 2022, caminhando para um período pós-pandêmico. Em falas de entrevistados em 2022, reconhecemos a percepção dos participantes quanto às aprendizagens no período pandêmico. Percebemos que os docentes como um todo recentralizaram suas bússolas com o término da crise sanitária, na medida em que foram refletindo sobre sua atuação profissional docente - seja em escola, seja em instituição superior e em pesquisa.

Ao trazermos uma trajetória de abandono da docência, ou seja, de não perseverança de docência, propiciamos um esgarçamento de nossa visão sobre a temática, na medida em que ponderamos que não bastam as formações continuadas, aprendizagens exitosas, o sentimento de sucesso docente ou o desejo de ser docente ou de se apreciar o componente educacional lecionado para se permanecer na docência. Como proposta metodológica, o olhar longitudinal pode evocar sentimentos de satisfação ou de frustração, bem como uma reflexão sobre novas possibilidades no futuro, nos levando à conclusão de que não basta sermos perseverantes na carreira docente: havemos de sê-lo igualmente na pesquisa, retornando ao campo, coletando novos dados e revisitando os antigos, desconstruindo e reconstruindo conceitos e ideias já estabelecidas.

1É preciso salientar as precauções éticas ao longo das duas pesquisas: foram resguardados os nomes dos participantes, assim como ocorreu na pesquisa entre 2010/2014 e 2019/2022. Cada participante assinou o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). Foi solicitada autorização junto à Secretaria de Estado de Educação do DF (SEEDF) para adentrar os espaços escolares.

2A obra de Tardif e colaboradores sobre saberes docentes foi amplamente traduzida no país e é, desde então, utilizada em análises.

3Do original em francês : “Le processus d’insertion professionnelle de diplômés en enseignement au Québec : une analyse de trajectoires”. Disponível em: https://www.erudit.org/fr/revues/ef/1999-v27-n1ef06286/1080484ar.pdf

4Do original em francês: “Rétention du futur personnel enseignant : nécessité d’un accompagnement branché sur les réalités scolaires” (2023). Disponível em https://www.edcan.ca/articles/retention-du-futur-personnel-enseignant-realites-scolaires/?lang=fr Acesso em fev. 2023.

5Do original em francês : “La pénurie du personnel enseignants qui sévit au Québec, comme ailleurs au Canada, fait que des étudiants et étudiantes se retrouvent en situation d’enseignement dès leur entrée en formation. Des difficultés vécues au cours de la formation ou au travail dans le milieu scolaire pourraient avoir comme conséquence la remise en question de la poursuite de leur formation, voire l’abandon précoce de la profession. D’où la nécessité de dispositifs d’accompagnement en formation initiale branchés sur les réalités scolaires.” (NIYUBAHWE, 2023, p. 1).

6Do original em francês : “Développement et persévérance professionnels dans l’enseignement : Oui, mais comment ?” (2014), obra publicada também on-line via Kindle, sem numeração de página.

7Delory-Momberger (2021) nos apresenta o verbete em francês journal, que de maneira livre traduzimos por “diário”.

8As falas são numeradas e codificadas. Os :: significa um alongamento na vogal. Palavras repetidas são aglutinadas com =. A vírgula significa uma diminuição do tom de voz. A pausa de um segundo é marcada com (.). Palavras não pronunciadas de maneira completa têm o traço para identificar essa situação, como é o caso de -tava. Uma narrativa ao longo da fala é marcada por aspas. A vírgula marca uma pergunta, ou seja, um tom ascendente de voz. As palavras sublinhadas foram pronunciadas de maneira enfática.

9Do original em francês : “lourdeur et complexité de la tâche : la tâche est parfois hors de leurs champs de formation […] ” (NIYUBAHWE, 2023, p. 1).

10No trecho de fala de Diane, temos a marcação de risada de todos por dois segundos por meio de @(2)@. A narrativa indireta é marcada por meio de aspas. A palavra sublinhada significa que foi pronunciada com força e tom de voz alto. A vírgula significa pergunta, ou seja, um tom de voz ascendente. Conversas paralelas são marcadas entre parênteses e Marcuschi (2006) as intitula por cisma.

11Do original em francês : “S’engager dans un processus d’insertion, c’est donc s’engager dans une histoire - celle des acteurs, de leurs projets et parcours - où les actions, les événements, les positions professionnelles occupées, les décisions, les stratégies, les chances et les opportunités finissent peu à peu par compter, par laisser des traces, par s’additionner, par créer un passé qui conditionne d’une certaine façon le présent professionnel”. (MUKAMURERA, 1999, p. 74).

REFERÊNCIAS

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ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Texto, Contexto e Significados: algumas questões na análise de dados qualitativos. Caderno de Pesquisas, São Paulo, n. 45, p. 66-71, maio 1983. [ Links ]

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Recebido: 18 de Março de 2023; Aceito: 06 de Julho de 2023

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