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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.71 Salvador July/Sept 2023  Epub Apr 22, 2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n71.p324-342 

Educação e aprendizagem da docência

NARRATIVAS DE FUTURAS PROFESSORAS INDÍGENAS KAINGANG: CONHECIMENTOS, EXPERIÊNCIAS E DESAFIOS EM SEUS PROCESSOS DE APRENDIZAGEM DA DOCÊNCIA

NARRATIVES OF FUTURE KAINGANG INDIGENOUS TEACHERS: KNOWLEDGE, EXPERIENCES AND CHALLENGES IN THEIR TEACHING LEARNING PROCESSES

NARRATIVAS DE FUTURAS DOCENTES INDÍGENAS KAINGANG: SABERES, EXPERIENCIAS Y DESAFÍOS EN SUS PROCESOS DE ENSEÑANZA APRENDIZAJE

Ivone Maria Mendes Silva1 

Pós-doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora associada da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim, RS, Brasil. E-mail: ivonemmds@gmail.com


http://orcid.org/0000-0002-0058-091X

1Universidade Federal da Fronteira Sul


RESUMO

O presente Educação e aprendizagem da docência objetiva discutir como futuras professoras indígenas aprendem a ensinar, considerando as experiências e conhecimentos da docência que constroem em contextos diversos, bem como os desafios enfrentados no processo. Para tanto, analisam-se as narrativas produzidas, em entrevistas individuais e grupais semiestruturadas, por cinco licenciandas Kaingang que estudam em uma universidade pública rio-grandense. Entre os resultados destacam-se as reflexões por elas produzidas sobre a importância da interculturalidade na ação pedagógica e a relação, por vezes conflituosa, que mantêm com a cultura escolarizada e os conhecimentos científicos. O reconhecimento positivo da profissão docente em suas comunidades, aliado às contribuições sociais, políticas e epistêmicas que a docência tem ajudado a produzir por meio dos professores indígenas atuantes e em formação, motivam-nas a investir na educação escolar como um instrumento de luta política por direitos e de concretização de aspirações individuais e coletivas.

Palavras-chave: Professor indígena; Formação docente; Aprendizagem; Educação básica; Ensino superior

ABSTRACT

This article discusses how future indigenous teachers learn to teach, considering the teaching experiences and knowledge they build in different contexts, as well as the challenges faced in the process. For that, we analyze the narratives produced, in individual and group interviews, by five Kaingang graduates who study at a public university in Rio Grande do Sul. Among the results, the reflections produced by them on the importance of interculturality in pedagogical action and the relationship, sometimes conflicting, that they maintain with school culture and scientific knowledge stand out. The positive recognition of the teaching profession in their communities, combined with the social, political and epistemic contributions that it has helped to produce through the indigenous teachers with whom they live and themselves, motivate them to invest in school education as an instrument of political struggle for rights and the realization of individual and collective aspirations.

Keywords: Indigenous teacher; Teacher training; Learning; Basic education; University education

RESUMEN

Este artículo analiza cómo los futuros docentes indígenas aprenden a enseñar, considerando las experiencias de enseñanza y los conocimientos que construyen en diferentes contextos, así como los desafíos que enfrentan en el proceso. Para eso, analizamos las narrativas producidas, en entrevistas individuales y grupales, por cinco graduados de Kaingang que estudian en una universidad pública de Rio Grande do Sul. Entre los resultados destacan las reflexiones producidas por ellos sobre la importancia de la interculturalidad en la acción pedagógica y la relación, a veces conflictiva, que mantienen con la cultura escolar y el saber científico. El reconocimiento positivo de la profesión docente en sus comunidades, combinado con los aportes sociales, políticos y epistémicos que ha ayudado a producir a través de los maestros indígenas con quienes conviven y de ellos mismos, los motiva a invertir en la educación escolar como instrumento de lucha política. por los derechos y la realización de las aspiraciones individuales y colectivas.

Palabras clave: Maestro indígena; Formación de profesores; Aprendiendo; Educación básica; Enseñanza superior

Introdução

No presente Educação e aprendizagem da docência, são analisadas as narrativas produzidas, em situação de entrevista semiestruturada, por cinco licenciandas indígenas sobre os contextos e experiências de aprendizagem que têm marcado suas trajetórias formativas e profissionais como (futuras) professoras, bem como os desafios associados aos processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional docente por elas vividos. A análise dessas narrativas possibilitou-nos conhecer as experiências significativas - vividas na universidade, na relação com a comunidade (aldeias indígenas), nas escolas (como estagiárias e/ou auxiliares pedagógicas), bem como em outros contextos - que elas atrelam a seus processos de desenvolvimento e aprendizagem profissional da docência.

Nosso objetivo central, no presente trabalho, consiste em apoiarmo-nos nesse conjunto de dados para, a partir dele e em diálogo com a literatura especializada sobre o tema, contribuir com o debate acadêmico sobre como professoras indígenas em formação/exercício têm aprendido a ensinar em nosso país e o que (princípios, valores, teorias, concepções etc.) orienta/fundamenta sua prática profissional.

Adicionalmente, tomando por base nosso trabalho como professora formadora junto a esse público - com quem mantemos diálogo constante por meio da docência e no contexto de pesquisas como a aqui apresentada -, recorremos a reflexões tecidas a partir de situações vividas e/ou observadas em sala de aula, bem como em outras atividades pedagógicas das quais participaram licencianda/os e professores/as indígenas, para enriquecer a compreensão e análise das entrevistas.

A partir do referencial ricoeuriano, entendemos que as experiencias educativas, entre outras, são construídas na relação que cada sujeito estabelece com seus outros significativos e com seu mundo de cultura. Dessa forma, a elaboração de narrativas, assim como a construção identitária, é um processo intersubjetivo, possibilitado pelas experiências que nascem a partir do diálogo com o outro, seja no contexto de interações que tomam a forma de cooperação, seja nos que se apresentam como competição ou luta (RICOEUR, 2010, p. 98).

Quanto ao uso da entrevista semiestruturada como recurso metodológico, cabe destacar que a construção de processos dialógicos flexíveis e abertos por ela viabilizada possibilitou que as participantes da pesquisa pudessem produzir, de forma mais livre, narrativas que expressassem suas ideias, sentimentos e impressões a respeito da temática investigada, bem como os valores associados às opiniões emitidas (FRASER; GONDIM, 2004, p. 150).

Foram realizadas entrevistas tanto individuais quanto em grupo1, pois constatamos que esta última modalidade, além de servir ao alcance dos objetivos acima listados, também permitia o mapeamento de “argumentos e contra-argumentos em relação ao tema estudado, emergentes do contexto do processo de interação grupal em um determinado tempo e lugar (jogo de influências mútuas no interior do grupo)” (FRASER; GONDIM, 2004, p. 146-149).

A entrevista grupal foi realizada em março de 2020 e teve aproximadamente três horas de duração, contando com a participação de cinco licenciandas do Curso Interdisciplinar de Educação do Campo: Ciências da Natureza - Licenciatura, da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim, Rio Grande do Sul; todas indígenas Kaingang2 oriundas de aldeias/reservas localizadas na região (aldeias Kandóia/ Votouro - Benjamin Constant/RS; Ligeiro - Charrua/RS; Serrinha - Nanoai/RS), média de idade de 22 anos, variando entre 19 e 24 anos. As entrevistas individuais foram conduzidas com três das participantes desse grupo (em março de 2020), com duração de, aproximadamente, uma hora e meia cada. A referência às participantes da pesquisa será feita, neste Educação e aprendizagem da docência, através de nomes fictícios3 de flores, escolhidos por elas próprias (Rosa, Açucena, Dália, Violeta e Iris). A maior parte delas tinha, à época da pesquisa, algum tipo de experiência docente, seja em função dos estágios curriculares e/ou extracurriculares cursados durante a graduação ou de experiências de trabalho como auxiliares pedagógicas.

Em termos teóricos, o trabalho ancora-se na concepção de narrativa e identidade narrativa proposta por Paul Ricoeur, que pensa a constituição identitária em sua relação com a alteridade, a partir das articulações entre o presente vivido, a história passada e o futuro almejado. A análise construída sobre o lugar ocupado pelos povos indígenas em nossa sociedade e nas universidades também se baseou em contribuições dos estudos pós-coloniais em diálogo com os estudos decoloniais latino-americanos, assim como produções de intelectuais indígenas brasileiro/as.

Em relação à análise dos dados obtidos, uma vez realizadas as entrevistas, procedemos com a transcrição e análise de conteúdo (BARDIN, 1977) dos dados gravados em áudio. Foram realizadas diversas leituras do material, procedendo-se, num segundo momento, à organização do texto em unidades de análise (eixos temáticos), para sua posterior descrição e interpretação. O cotejamento dos dados analisados com a revisão da literatura especializada, tendo em perspectiva os objetivos propostos para a pesquisa e o referencial teórico adotado, constituíram outra etapa importante do processo que, uma vez concluída, possibilitou a produção destes escritos.

Aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência: formando professores/as para a constituição e consolidação da educação escolar indígena no Brasil

O lugar central ocupado pela escolarização e pelos sujeitos escolarizados nas dinâmicas de organização e funcionamento das sociedades contemporâneas é incontestável. Consequentemente, a docência e a formação para seu exercício tornaram-se, nesse contexto, parte essencial do processo de construção de respostas às demandas e exigências de nossa época.

Todavia, a docência é, ao mesmo tempo, uma forma de trabalho material, cognitivo/intelectual e interativo (com e sobre outros seres humanos) que, para ser efetivado, requer conhecimentos especializados por parte de seus agentes, eles próprios igualmente complexos, dada sua humanidade. Um trabalho composto por atividades que podem ser cumpridas de forma rotineira, porque suscetíveis a controle e planejamento, mas também por experiências imprevisíveis, dilemáticas, problemáticas e, até certo ponto, arriscadas. Ademais, ainda que envolva atribuições assumidas individualmente, trata-se de um trabalho coletivo, que se entrelaça e repercute à/na vida de muitos outros sujeitos (aluno/as e familiares deste/as, colegas de profissão, autoridades educativas, pessoas que habitam o entorno das escolas etc.). Essa dimensão coletiva pode se traduzir na construção de parcerias colaborativas, assim como em toda sorte de conflitos e disputas por poder, afirmação e/ou reconhecimento. Para completar, em função da natureza dinâmica e multifacetada da docência, nós, professore/ as, podemos ser instados/as, no decurso da carreira profissional, a (re)criar várias vezes o sentido (tanto em termos de direção/rumo como de significado) que atribuímos ao nosso trabalho, a depender das funções e atividades efetivamente exercidas em cada momento constitutivo de nossas trajetórias laborais. Esses aspectos, em seu conjunto, sinalizam a complexidade de que se reveste a profissão docente (TARDIF; LESSARD, 2012).

É com o processo de desenvolvimento profissional, aqui entendido como “[...] uma encruzilhada de caminhos, como a cola que permite unir práticas educativas, pedagógicas, escolares e de ensino” (MARCELO GARCIA, 1999, p. 139), que o/as docentes aprendem a manejar esses múltiplos saberes-fazeres cujo domínio, a princípio, coloca-se apenas como uma potencialidade para quem faz a escolha pela profissão.

Desse ponto de vista, a profissionalização docente começa a ser estruturada a partir da formação inicial, consolidando-se com a formação continuada, mas sua ocorrência depende também de outras experiências de aprendizagem, as quais se encontram distribuídas nos/ pelos diversos tempos e espaços que compõem a vida do/as professore/as. O engajamento nesses variados processos formativos e experiências de aprendizagem é que lhes facultaria a aquisição e aprimoramento de “conhecimentos, competências e disposições” capazes de torná-los apto/as a “intervir profissionalmente no desenvolvimento do seu ensino, do currículo e da escola, com o objetivo de melhorar a qualidade da educação que os estudantes recebem” (MARCELO GARCIA, 1999, p. 26).

Articulando outras contribuições teóricas, o uso do conceito de “desenvolvimento profissional de professores”, no presente Educação e aprendizagem da docência, ancora-se numa ideia do desenvolvimento humano como processo que “não obedece a um itinerário linear, coerente e determinado” (OLIVEIRA; REGO; AQUINO, 2006, p. 126), pois pode incluir tanto avanços e continuidades como retrocessos, rupturas e descontinuidades. É dinâmico e, por vezes, contraditório. Isso porque as mudanças que podem ensejar as aprendizagens do/as professore/as - motor do seu processo de desenvolvimento profissional - não são percebidas, vividas e/ou significadas por ele/as sempre da mesma maneira; algumas, por exemplo, são morosas - quase imperceptíveis -, outras fulminantes; há as que ocorrem espontaneamente, num ritmo personalizado pelo sujeito, e também as provocadas e/ou impostas pelos gestores locais ou pelas políticas governamentais; aquelas que atingem processos da cotidianidade ou cujos efeitos restringem-se à sala de aula, e as que podem revolucionar a forma como o/a profissional que as experimenta se relaciona com o fazer pedagógico e o sistema de ensino (DAY, 1993).

A realidade educacional brasileira atual tem sido marcada por uma atenção crescente aos processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência, tanto por parte de pesquisadores quanto de gestores e formuladores de políticas públicas. Além da publicação de mais e mais estudos sobre o “aprender a ensinar” e o exercício profissional docente (AZANHA, 2004; ROLDÃO, 2007, 2017; MIZUKAMI, 2010; ZEICHNER, 2010; GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011; REALI; MIZUKAMI, 2012; GATTI, 2013, 2014; NÓVOA, 2017; BACURY; MELO; CASTRO, 2022; SILVA; SCARAMAZU, 2022; BETTIOL; MUBARAC SOBRINHO, 2023), vimos intensificar-se, ao longo das últimas décadas, a produção de orientações e diretrizes para a formação e o trabalho do/as professore/as, divulgadas na forma de documentos oficiais.

Sobre este ponto, cabe destacar que o governo federal tem demonstrado preocupação com o alcance de melhorias na qualificação profissional docente e investido principalmente na formação inicial e continuada de professore/ as da Educação Básica, por meio de iniciativas concretizadas por estados e municípios, em parceria ou não com as universidades, outra grande aliada do Estado no cumprimento dessa tarefa (GEGLIO, 2015). Porém, a existência de diversos desafios, associados às concepções e práticas que estruturam a maneira como essa formação de fato acontece e alcança o público visado, tem alimentado importantes debates acadêmicos e sociais sobre o assunto.

Uma das questões candentes levantadas por esses debates refere-se à diversidade de contextos, sujeitos e experiências de aprendizagem que precisa ser levada em conta no planejamento e execução das ações nesse âmbito para que as necessidades formativas do/ as profissionais da educação sejam realmente atendidas. Ademais, como bem destaca Geglio (2015), as múltiplas especificidades culturais, regionais e políticas de nosso país tornam ainda mais complexo o cenário a ser considerado ao se projetar e levar à frente tais ações.

Cientes disso, dirigimos nosso olhar para uma parcela da população nacional que começa a receber maior atenção dos governantes após um longo período de exclusão histórica: os povos indígenas, os quais somente com a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) passam a ter seus direitos reconhecidos na esfera educacional pelo Estado brasileiro, que então assume o compromisso de não mais pautar sua relação para com eles por uma perspectiva integracionista e assimilatória, vigente até então, mas “[…] pelo reconhecimento, pela valorização e manutenção da sociodiversidade indígena” (CONFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, 2009, p. 2). Posteriormente, esse avanço legal foi endossado pelo reconhecimento da Educação Escolar Indígena em outras leis e normativas específicas, como os Referenciais para a Formação de Professores Indígenas (BRASIL, 2002), e, mais recentemente, as Diretrizes Nacionais da Educação Escolar Indígena no Brasil (BRASIL, 2012) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas em cursos de Educação Superior e de Ensino Médio (BRASIL, 2015).

Considerando essas políticas nacionais de formação docente indígena, chamamos atenção para a elaboração dos referenciais para formação de professores indígenas, ocorrida em 2002, a partir da interlocução do Ministério da Educação (MEC) com representantes de diversas comunidades indígenas. O documento oficial dos referenciais assinala, de forma pioneira, as responsabilidades formativas e sociais dos programas de formação docente indígena, ao indicar que seu objetivo é formar “professores indígenas para a pesquisa e para a reflexão pedagógica e curricular, de forma que pensem e promovam a renovação da sua educação escolar, sensíveis às necessidades históricas de sua comunidade” (BRASIL, 2002, p. 23).

Desde então, tem ocorrido maior investimento público na criação de cursos de licenciaturas interculturais específicas, como o Programa de Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind) e cursos de magistério indígena de nível médio na modalidade normal, além da reserva de vagas em cursos regulares. Em consonância com as políticas nacionais de formação, essas iniciativas têm focalizado a missão de promover a formação de professore/ as indígenas que se insiram na realidade das escolas sendo capazes de mobilizar os complexos conhecimentos da docência sem deixar de desenvolver uma consciência crítica acerca das finalidades (social, política etc.) da educação, de modo que estejam habilitado/as a realizar um diálogo crítico entre os saberes tradicionais (cultura(s) indígena(s)) e os saberes científicos ocidentais (AMARAL; BAIBICH, 2012; BERGAMASCHI; DOEBBER; BRITO, 2018).

Nas últimas décadas, constata-se um crescimento do número de crianças e jovens indígenas matriculados no sistema educacional público, além do aumento de escolas em terras indígenas e da presença, nestas, de professore/ as pertencentes às próprias comunidades4. Essas mudanças se fazem acompanhar, em muitos casos, de outras atinentes às práticas curriculares e modelos de gestão adotados por estas escolas, à(s) língua(s) faladas em sala de aula (BERGAMASCHI; DOEBBER; BRITO, 2018), bem como à organização dos tempos e espaços educativos, sinalizando apropriações e reformulações da forma escolar tradicional que vão ao encontro das necessidades e interesses dos povos indígenas e de suas tradições culturais específicas. Como avaliam Amaral e Baibich (2012), esses processos compõem um cenário de “luta reivindicatória dos movimentos e organizações indígenas pela efetiva institucionalização das escolas indígenas no país” que, ao longo das últimas décadas, pôde contar com “respaldo legal e normativo” (p. 198-199).

É essa a conjuntura a partir da qual tem se dado o processo de construção e fortalecimento das escolas indígenas pelo Brasil (em diferentes regiões geográficas, para aldeias e etnias caracterizadas por grande variedade cultural e sociolinguística), assim como da formação de professore/as, em nível médio e superior, para nelas atuarem. Processo crivado de desafios particulares a cada contexto, os quais, não raro, têm sido lidos como “obstáculos” ou “entraves”, mas que também podem ser assumidos como oportunidades de desenvolvimento profissional (MIZUKAMI; REALI, 2010). Tal conjuntura reforça a importância de se preparar o/as professore/as para a ação de ensinar, cerne da profissão, mas não somente isso, pois o exercício da docência requer que possam construir “uma identidade com seu locus laboral”, desenvolvendo formas coletivas de trabalho (em colaboração com os pares e com as famílias e comunidades de origem do/as estudantes) que o/as apoiem no enfrentamento dos desafios (GEGLIO, 2015, p. 236).

Argumentando na mesma direção, Zeichner (2008) e outros autores (SILVA; BORDIN; FÁVERO, 2019) pontuam a importância da formação docente reflexiva sublinhando sua potencialidade política, a qual, se negligenciada, faz a própria prática reflexiva perder seu sentido enquanto recurso formativo e formador. Para que esta formação venha a fomentar o desenvolvimento profissional, portanto, ela deve estar atrelada a “lutas mais amplas por justiça social e contribuir para a diminuição das lacunas na qualidade da educação disponível para estudantes de diferentes perfis, em todos os países do mundo” (ZEICHNER, 2008, p. 545).

Nesse sentido é que podemos pensar, como propõe Roldão (2017), que o desenvolvimento profissional não é um processo endógeno/ autocentrado do professor ou da instituição escolar, apesar de ser por estes possibilitado, se considerarmos a escola como “contexto gerador do saber profissional” e o professor como protagonista do processo. Entretanto, ao fim e ao cabo, a razão de existirem o/a professor/a e seu desenvolvimento profissional, assim como a escola, é “a satisfação do direito à aprendizagem que os alunos e a comunidade social esperam” desta (ROLDÃO, 2017, p. 201).

Aprender e ensinar a partir do encontro intercultural na universidade/escola e o desafio de integrar, na prática pedagógica, saberes plurais

Quando indagadas sobre as experiências e contextos de aprendizagem que lhes permitiram construir conhecimentos da docência, as entrevistadas Rosa, Violeta, Iris, Açucena e Dália destacaram o ensino superior, mencionando a preocupação de grande parte do/ as professore/as com quem tiveram aula na universidade em aproximar o ensino ofertado a elas da realidade/cultura indígena, contemplando de forma satisfatória seus interesses e necessidades.

Todavia, ao realizar uma retrospectiva de sua trajetória escolar, Rosa ressalta que “os seus tempos de escola” eram muito diferentes da formação universitária. Mesmo ao longo do ensino fundamental, quando frequentou uma escola localizada em sua aldeia, e que se propunha a oferecer uma educação escolar diferenciada, o conhecimento científico foi trabalhado de forma menos acessível do que se houvessem sido utilizadas metodologias mais próximas de sua realidade. Sobre isso, Rosa analisa que, apesar de a escola em questão ter sido construída por e para seu povo, a maioria do/as professore/as nela atuantes à época (entre 2006 e 2012, aproximadamente) não eram indígenas. Também não existia, no currículo e nas práticas escolares vigentes naquele contexto, uma ênfase na “importância de se trabalhar o conhecimento científico buscando integrá-lo aos saberes tradicionais” (Rosa, EG). Nesse sentido, a entrevistada contextualiza que a análise que faz hoje de suas primeiras experiencias educativas é muito influenciada pela visão crítica que construiu sobre educação escolar ao longo do próprio curso de graduação em Educação do Campo/UFFS. Aplicando essa visão numa análise das dificuldades que enfrentou em sua trajetória escolar é que Rosa chega às conclusões apresentadas no trecho da entrevista grupal (EG), realizada em março de 2020, transcrito a seguir:

Assim, na verdade o ensino da educação indígena é um pouco diferenciado da educação não indígena. Porque muitas vezes a gente como indígena precisa de uma certa atenção, enfim, para que a gente possa entender aquele conteúdo. Mas não extremamente científico, porque a gente já tem um conhecimento diferenciado da nossa cultura. Mas como que a gente poderia... Essa é uma das sugestões que sempre têm dito os professores e eu tenho aprendido bastante aqui no curso: que o conhecimento científico e o popular têm que andar junto. Só que muitas vezes, no meu tempo do ensino fundamental, a maioria dos professores eram não indígenas. Daí eles já traziam a metodologia não voltada para nós, pra nossa realidade, digamos. Aí se tornou um pouco mais dificultoso para nós, pra gente entender, digamos. Era para eles, os educadores e professores, trazerem um ensino de acordo com a nossa realidade, né? Isso eu aprendi bastante aqui. Por isso, fiz nos estágios e faço em sala de aula também, agora eu como professora. (EG)

Rodrigues Marqui e Beltrame (2017, p. 240) auxiliam-nos a fazer uma leitura crítica dessa realidade ao avaliarem que “[...] a consolidação das escolas indígenas no Brasil vem ocorrendo de formas e em tempos diferentes”, com repercussões variadas sobre as diversas dimensões do processo pedagógico, incluindo a “maneira como os conhecimentos reconhecidos como tradicionais pelos professores, sejam eles indígenas ou não, entram nas salas de aulas como atividades escolares”, ou mesmo o modo como os conhecimentos tidos como científicos são trabalhados pela escola junto ao público escolar, em geral composto por sujeitos com pertencimentos étnico-raciais, de classe, gênero etc. plurais (RODRIGUES MARQUI; BELTRAME, 2017, p. 240).

Não obstante, Rosa também destacou, em complemento às ponderações apresentadas no excerto da narrativa citado anteriormente, sua percepção de que as escolas indígenas têm alcançado melhorias ao longo do tempo, o que, a seu ver, é fruto do esforço e das lutas reivindicatórias das comunidades e famílias Kaingang, bem como do trabalho do/as profissionais da educação: “[...] nós, que estamos nos formando professores, chegamos nas nossas escolas com ideias e motivação para fazer essa educação que realmente atende às nossas necessidades” (Rosa). Ela explica, no excerto transcrito a seguir, sua perspectiva de como os/as professores/as indígenas podem fazer uso de sua formação acadêmica para contribuir com o desenvolvimento de suas comunidades de origem, utilizando os conhecimentos da docência para promover o fortalecimento e a revitalização da identidade e cultura indígena Kaingang, tema que buscou discutir em seu próprio Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na UFFS.

O que tem me marcado muito é em relação ao meu TCC, o que eu vi quando apliquei o questionário. Eu apliquei o questionário junto com meu estágio, onde eu pude buscar como que eu posso, como professora, revitalizar ainda mais a cultura indígena Kaingang, né? Porque várias áreas, por exemplo, a comida típica, a dança, assim, vai se perdendo muito. Está se perdendo muito com o passar dos tempos. Mas eu pensei em relação a isso, como que eu posso fortalecer mais a nossa identidade, voltada mais para a nossa língua, nossa linguagem. Porque a identidade do indígena Kaingang, hoje em dia, é, na minha opinião, é a melhor... porque a nossa comida típica vem se perdendo por causa dos agrotóxicos, enfim. As danças, muitas vezes o próprio indígena não tá mais fazendo bem, né? Daí o que que eu fiz, pensando na área da ciência, eu formada na área da ciência: como é que eu poderia desenvolver minhas aulas com meus alunos? Será que eu poderia trazer a metodologia lá vinculada aos não indígenas e aplicar pra eles? Sendo que eu poderia estar trabalhando na realidade dos meus alunos. Na parte da física, na parte da física eu trouxe a cultura do arco e flecha, o tiro da lança, pude interligar a força, a velocidade. E na química, o que eu trouxe, na química, eu pude trazer a elaboração dos modelos atômicos, feitos com materiais que a gente faz na nossa cultura, como semente que a gente usa pra fazer colares, essas coisas, artesanato. Isso chama muito a atenção deles, e motiva mais os alunos ao aprendizado. E na parte da biologia, eu estudei a erva moura, que é o famoso fuá, que a gente diz, né? Aí a gente ia pro laboratório e os alunos podiam visualizar... Enfim, assim eu pude interligar a cultura indígena junto com a área científica. E é isso que tem me marcado bastante, porque a gente tem escutado comentário dos próprios indígenas que a maioria quer, a partir de se formarem aqui, querem voltar para as suas aldeias. Mas pensando assim, o que de conhecimento eu adquiri aqui na universidade? O que eu posso levar lá para a minha comunidade, pra aperfeiçoar mais ainda, pra contribuir bastante? (EG)

Ao escreverem sobre a história da escolarização Kaingang no Rio Grande do Sul, Bergamaschi, Antunes e Medeiros (2020) produzem reflexões que vão ao encontro dessa avaliação tecida por Rosa, ao afirmar que os Kaingang têm sonhado e atuado ativamente na construção da “escola desejada”:

Nas últimas décadas, nesta escola que passou a ser reconhecida como ‘dos indígenas’, viu-se uma forte atuação política dos kaingang no movimento pela educação específica e diferenciada [...]. São movimentos que apontam um novo momento histórico na escolarização kaingang, marcado, talvez, por um processo de kainganguização da escola, em que eles próprios vêm tomando as rédeas da educação escolar, buscando apropriar-se desta instituição de modo que possa fortalecer o seu povo (BERGAMASCHI; ANTUNES; MEDEIROS, 2020, p. 20).

Avançando nessa discussão, podemos destacar também a pertinência de o sistema educacional como um todo (das escolas de educação básica às universidades, consideradas em cada um de seus segmentos e envolvendo cada um dos atores sociais que delas fazem parte) avaliar o modo como tem sido desenvolvido o trabalho educativo junto às populações indígenas, atentando às possibilidades de aprendizado que podem ser oportunizadas aos/às estudantes por meio do estabelecimento de diálogos e articulações entre os chamados conhecimentos tradicionais, presentes nas culturas indígenas, e as práticas pedagógicas construídas como parte da cultura escolarizada. Como salientado por Souza e Bruno (2017), em estudo no qual problematizam a situação de estudantes indígenas que não alcançam as expectativas estabelecidas pelo sistema de ensino, especialmente no que tange ao domínio da leitura e da escrita,

Mesmo que, em sua maioria, as culturas indígenas sejam marcadas pela oralidade, ler e escrever tornaram-se, a partir da colonização, elementos imprescindíveis para a sobrevivência de muitos povos, pois tais habilidades possibilitam, entre outras, conhecer e dominar os códigos utilizados pelos não indígenas. Tanto que, o aluno, ao não conseguir alcançar as competências estabelecidas pelo sistema de ensino, já tem em si o sentimento de fracasso, e, antes de ser questionado, utiliza-se do mecanismo de defesa e afirma: Ainda não sei ler e escrever [...]. (SOUZA, BRUNO, 2017, p. 200).

Esse “sentimento de fracasso” com o qual estudantes indígenas podem se deparar ao lidarem com aquilo que lhes é ensinado na forma de conteúdo escolar ou mesmo com as rotinas, práticas e interações que compõem a chamada “liturgia do cotidiano” das instituições educativas (AQUINO, 2000, p. 61) foi problematizado com muita propriedade por Rosa. É digno de nota seu alerta para a importância de se significar as possíveis dificuldades vivenciadas por esses sujeitos em seus percursos escolares como “desafios a serem enfrentados” (Rosa), sem que isso implique a perda de esperança na construção de novas possibilidades no futuro. Comentário esse que nos remete às considerações tecidas por Amaral (2002) quando esta lembra que, ao utilizarmos o termo enfrentamento junto à palavra desafio, colocamos em nosso horizonte de expectativas a possibilidade de “superar, mitigar e contornar uma situação difícil” (p. 247), considerando o desafio como algo que embaraça, inquieta, dificulta, mas que também pode instigar a reflexão, a vontade de superação e a ação. É o que Rosa destaca, segundo nos parece, ao falar também sobre a necessária construção de novos hábitos que todo encontro intercultural exige e o significado de se conceber esse processo como um desafio a ser enfrentado, e não apenas pelos estudantes e suas famílias, mas por professore/as, gestore/ as, enfim, pela comunidade escolar/acadêmica como um todo.

Em sua análise acurada da questão, Lisbôa e Neves (2019, p. 5, grifo nosso) concluem que está posto “o conflito cosmológico entre mundos diferentes: o do branco e os modos de vida indígenas” e se, por um lado, a presença indígena nas universidades e nas escolas tem “desestabilizado a homogeneidade acadêmica” e gerado resistência de outros segmentos que com ela passam a conviver; por outro, as demandas e saberes desses sujeitos não podem mais continuar sendo invisibilizados e/ ou deslegitimados, não há como fugir a esse encontro e ao necessário diálogo intercultural que ele possibilita.

A atualidade dos acontecimentos históricos evidencia que um novo se anuncia nos enunciados que circulam, permitindo-nos vislumbrar que o futuro urge no presente, mas que exigirá muitas mobilizações para que possa vir a acontecer. [...]. Embora não possamos ainda afirmar o que pode ser essa nova ordem, ela não é o que está no arquivo, no passado, no que já foi, nem mesmo o que somos hoje no presente (LISBÔA; NEVES, 2019, p. 18).

Talvez um passo importante a ser dado na direção da concretização das mudanças que se fazem necessárias nas instituições escolares seja reconhecermos, como adverte Gabriel (2013), que o modelo de escola “monocultural”, criado na modernidade, tem se mostrado incapaz de “lidar com as diferenças de vozes, leituras, desejos, sonhos, narrativas, dos diferentes sujeitos que nela interagem”. Neste modelo, “produzir e ensinar saberes tende ainda a ser visto como um ato de desvelar as verdades universais e absolutas das coisas [...], transmitidas por ‘aqueles que sabem’ para aqueles ‘que não sabem’” (GABRIEL, 2013, p. 236). Um saber-fazer que se revela insuficiente para tornar as escolas de educação básica e as universidades espaços de diálogo intercultural e de participação democrática.

Nesse sentido, concordamos com Catherine Walsh (2019) quando ela postula que a interculturalidade epistêmica enquanto “prática política” assentada na confrontação dos conhecimentos indígenas e ocidentais pode fazer nascer a “pluriversidade”, em lugar do que hoje entendemos e praticamos como universidade. Ao discutir o conceito de interculturalidade referido pelo movimento indígena equatoriano e analisar sua aplicação na Universidade Intercultural das Nacionalidades e dos Povos Indígenas (UINPI), ela defende a necessidade de se praticar nas instituições educativas uma “interculturalização” capaz de abrir novos horizontes para a compreensão da alteridade, ao mesmo tempo em que se mostra crítica “à suposta universalidade do conhecimento ocidental” (WALSH, 2019, p. 16-17) - mesmo porque o modelo de escola que conhecemos, enraizado na “tradição monocultural” (MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 161), está em crise, assim como o próprio projeto de modernidade que a inspira demonstra “sinais de esgotamento” (GABRIEL, 2013, p. 214).

Aprendizagem das responsabilidades políticosociais docentes e da necessidade de continuamente aprender a ensinar

Rosa, Dália, Açucena, Violeta e Iris também foram unânimes em afirmar que o acesso à formação inicial numa licenciatura (Curso Interdisciplinar em Educação do Campo: Ciências da Natureza) ofertada por uma instituição pública que buscava promover a inclusão educacional de diversas formas5 colocou-as em contato com um universo de preocupações e aprendizados político-sociais. Elas aprenderam, já nos primeiros anos da trajetória formativa e profissional, que não poderiam negligenciar suas responsabilidades como professoras nessa esfera.

Ao analisarmos as narrativas de nossas entrevistadas, cabe não perdermos de vista que, no caso dos povos indígenas brasileiros, os significados atribuídos à educação escolar ganham, na atualidade, contornos distintos dos construídos em outros momentos históricos, especialmente no período colonial, quando certo modelo de escolarização foi imposto a esses grupos com o objetivo de cristianizá-los e civilizá-los. Discorrendo sobre o tema, Bergamaschi e Medeiros (2010, p. 60) esclarecerem que esse modelo anterior de escolarização, baseado sobretudo numa concepção disciplinadora de educação, ignorava e desrespeitava as cosmologias e modos próprios de educar dos indígenas. Em resposta a essa forma de opressão travestida de educação, algumas etnias encontraram no isolamento uma maneira de se proteger e resistir. Hoje, no entanto, transcorridos mais de cinco séculos desde o início da colonização, a maioria dos grupos indígenas brasileiros enxergam na educação escolar “uma estratégia de afirmação étnica”, uma vez que:

Ela [a educação escolar] possibilita o contato com conhecimentos e saberes do mundo não indígena, tornando-o mais compreensível, e permite que, de posse desses novos instrumentais, os povos indígenas possam lutar por seus direitos de forma mais simétrica, apreendendo o sistema de vida ocidental, mas mantendo e afirmando seus modos próprios de educação (BERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010, p. 60).

Perspectiva semelhante é apresentada por Dutra e Mayorga (2019, p. 113) quando reconhecem que, como parte desse movimento de ressignificação da escola pelas populações indígenas em nosso país, a academia passou a no endereço eletrônico da instituição: https://www.uffs.edu.br/institucional/pro-reitorias/graduacao/ingresso/processos-seletivos-especiais/programa_de_acesso_e_permanencia_dos_povos_indigenas ser vista como um “espaço político estratégico” no qual os/as indígenas e outros segmentos da população brasileira historicamente excluídos dos processos escolares podem ampliar o acesso a estratégias importantes para sua luta por direitos e reconhecimento (DUTRA; MAYORGA, 2019, p. 113).

A discussão sobre essa questão emergiu na entrevista grupal em diferentes momentos da conversação estabelecida entre as participantes. Destacamos o excerto a seguir, no qual Iris pondera que as comunidades indígenas precisam de “pessoas bem-informadas”, entre elas os/as profissionais da educação e da saúde, cujos conhecimentos são necessários para que estas comunidades estejam preparadas para lutarem por seus direitos.

Iris: O indígena pode ter na universidade esses conhecimentos de... ele pode... tem várias verbas nas comunidades, né? E às vezes as pessoas não correm muito atrás porque não têm conhecimento disso. E eu acho que isso aí conta bastante. Ter uma pessoa bem-informada para correr atrás dos nossos direitos, das verbas. Vou citar um caso que teve: uma vez era pra ir uma creche lá na aldeia. Tipo os indígenas tudo desinformado [...], cacique e tal... não olharam, não viram, né? Às vezes não correm atrás das coisas pra ver. O prefeito de lá colocou essa creche lá na cidade. Daí ele convida os indígenas agora e ainda vem com aquela desculpa, ‘os indígeninha pode vir pra cá’, mas era pra lá? Ele deu essa desculpa aí. Eu acho que nas aldeias precisam ter pessoas bem-informadas pra brigar pelos nossos direitos. A gente é cidadão, então pra eleger um prefeito ele precisa dos nossos votos e muitas vezes a gente acaba sendo esquecido e não sendo tratado igual eles [de forma correta]. Tanto na área da saúde como na área da educação [...]. Os profissionais dessas áreas podem ajudar muito, porque têm acesso a esses conhecimentos.

Dália: Pra mim, no meu ponto de vista, o indígena pode querer ir além. Isso vai abrir muitos caminhos para ele, de crescer no sentido bom.

[...]

Rosa: Principalmente o indígena ser visto também, porque imaginem: uma comunidade indígena sendo que os trabalhadores são todos não indígenas. Como é que ficaria? [--] Isso na educação, na área da saúde também, né? Isso fortalece mais ainda. É muito importante.

Dália: Porque onde a gente for nós vamos ser reconhecidos como indígenas. Não importa onde a gente for, onde a gente tiver, a gente vai ser reconhecido como indígena. Como índio, né? Indígena. (EG)

Na parte final da interação acima citada, ocorrida na entrevista grupal, Rosa e Dália apontam ainda outro aspecto relevante: o reconhecimento positivo que os/as indígenas podem alcançar ao ocuparem, em suas comunidades de origem, cargos e postos de trabalho que anteriormente eram preenchidos apenas por não indígenas, especialmente aqueles que exigem maior escolaridade e especialização profissional. A docência, como destacam elas, é um trabalho de prestígio entre os Kaingang. Não apenas porque o/a professor/a pode contribuir muito com o coletivo do qual faz parte, mas também em função do fato de que, tornando-se professor/a, o/a indígena demonstra que é possível “ir além” e desconstruir os estereótipos6 ainda existentes sobre os povos indígenas, que acabam restringindo suas possibilidades de ser e vir a ser o que quiserem.

Em consonância com o pensamento de Stuart Hall (2016), entendemos que a tentativa de reduzir a identidade cultural indígena a um modelo genérico, amparada por determinados estereótipos existentes desde a época da colonização, pode trazer prejuízos tanto para os povos indígenas como para a sociedade da qual eles fazem parte, uma vez que a fixação de sentidos ou representações promovida por essa ação pode alimentar a produção de preconceitos e comportamentos discriminatórios. Bonin, Kirchof e Ripoll (2018) reiteram esse argumento, ao comentarem um exemplo de prejuízo potencial implicado na reprodução de estereótipos como os de “pureza” e “primitivismo”, frequentemente associados aos “índios” em nossa sociedade: “qualquer mudança no estilo de vida indígena é qualificada como perda cultural. Uma suposta pureza indígena, ligada à condição de serem eles sempre os mesmos, faz pensar que toda mobilidade equivaleria, portanto, à falta de autenticidade” (p. 234235). Assim, por exemplo, se um indígena usa tênis e celular, mora na cidade, estuda numa universidade, torna-se médico ou professor ou se especializa em qualquer outra área que fuja às expectativas convencionais, estaria atestada a sua “falta de pureza cultural”, o que “colocaria sob suspeita o conjunto de ações político-jurídicas específicas voltadas para a proteção dessas etnias” (BONIN; KIRCHOF; RIPOLL, 2018, p. 232).

Nossas entrevistadas deixam claro que ir contra as representações estereotipadas das pessoas indígenas e as expectativas normatizadoras nelas depositadas é um ato de contestação e resistência política. Um ato necessário, porque traduz um modo de afirmar seus direitos e, assim, conquistar uma “vida melhor” para si próprias e suas comunidades, mas que pode levá-las a se defrontar com o olhar discriminatório dos que apreendem as populações indígenas, suas identidades e alteridades, de forma homogeneizadora, como se elas fossem estáticas e/ou pudessem ser fixadas/cristalizadas de modo definitivo nos estereótipos produzidos a seu respeito.

Aqui mais uma vez podemos identificar a conexão entre docência e política sendo evidenciada nas narrativas colhidas durante nossa pesquisa. Os depoimentos obtidos revelam que, além de ter um valor estratégico na luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas, os conhecimentos construídos na/a partir da universidade contribuem, segundo afirmam as entrevistadas, para que possam exercer de forma mais consciente e crítica sua condição de professoras e cidadãs, produzindo um empoderamento que pode servir a diferentes usos, tanto no presente quanto no futuro, com possibilidade de resultados positivos para suas comunidades, mas também para cada uma, individualmente. Esses dados nos ajudam a problematizar o papel que os cursos de formação de professores, em nível superior, podem exercer para a construção de conhecimentos da docência não desconectados das lutas por justiça social, tendo em vista “uma concepção de educação entendida não apenas como forma de conhecer o Mundo, mas como espaço-tempo capaz de fornecer instrumentos de interpretação, inclusão e participação” (GOMES, 2010, p 10). Instiga-nos também a pensar, tendo como foco os sentidos atribuídos à educação escolar pelas participantes da pesquisa, uma questão de grande relevância lançada por Alves (2017, p. 4) quando discute a forma como as instituições educativas escolares têm se posicionado com relação à constituição de identidades, especialmente políticas. Segundo defende esta autora, com quem concordamos, a reinvenção necessária da escola deve abarcar não apenas alterações curriculares, mas “mudanças ideológicas e estruturais que ampliem as reflexões sobre o seu significado na constituição da identidade humana” (ALVES, 2017, p. 8), de modo que tais instituições possam atuar mais como mediadoras de políticas que fomentem a emancipação dos sujeitos que por ela passam. Isso porque não raramente ocorre, nesses contextos educativos, a perpetuação de uma perspectiva colonizadora, de manutenção da hegemonia instituída, sem que os atores sociais implicados em sua construção percebam “as contradições que as relações do mundo global possam estar tecendo” (ALVES, 2017, p. 8).

As narrativas produzidas pelas entrevistadas deixam entrever, ainda, que as preocupações político-sociais são um dos principais fatores que orientam as ações pedagógicas por elas construídas no contexto dos estágios e outras inserções nas escolas de suas comunidades. Preocupações estas que não somente fazem com que elas queiram assumir responsabilidades nessa esfera que concretizem os ideais almejados, como modelam sua maneira de buscar conhecimentos para construir práticas pedagógicas condizentes com suas lutas por afirmação étnica/identitária e direitos indígenas. Faremos dois destaques sobre isso.

O primeiro deles refere-se ao compromisso que as entrevistadas assumem de buscar aproximar seus atuais e futuros alunos dos saberes ancestrais da cultura Kaingang, praticando, nas escolas, os processos de ensinar e de aprender valorizados por seus ancestrais. Dália, Iris, Rosa e Açucena mencionam, adicionalmente, o quão positiva tem sido, para elas, a possibilidade de ocuparem o lugar de referências identificatórias para as crianças com as quais convivem, no contexto de suas redes de parentesco, nas escolas ou em outros espaços sociais, uma vez que observam que suas trajetórias escolares exitosas têm servido ou podem vir a servir como incentivo para tais crianças se reconhecerem como capazes de buscar a realização dos próprios sonhos. No futuro imaginado por essas entrevistadas, seja para si mesmas, seja para as crianças e jovens de suas comunidades, surge como uma constante a educação e tudo o que ela pode proporcionar de positivo. Nas palavras de Açucena:

Eu fiz o fundamental na aldeia e o médio também na aldeia. [...] Quando nós começamos o ensino médio eles [professores da educação básica] incentivavam bastante pra nós chegar até onde nós estamos agora. [...]. Mas também quando veio a notícia pra mim [do ingresso na universidade] foi aquele impacto que deu no meu coração porque era o que eu queria, sabe? Fazer uma faculdade. Eu tenho um filho de sete anos, sabe? Ser um exemplo para ele, ele me ver indo pra faculdade e dizer ‘óh, lá a mãe indo... vou terminar meus estudos. Eu também vou fazer isso. Quero ser um exemplo pra minha mãe.’ Eu tô fazendo isso! [...]. Não sei minhas colegas, mas é o que eu quero [ser professora]. O que eu queria também não era essa área, essa área aqui [Educação do Campo]. Eu queria Pedagogia mesmo pra poder dar aula lá na minha aldeia e ensinar cada vez mais os meus alunos a seguir pra frente, né? Incentivar eles a ser alguém na vida. A ser alguém. Assim como a gente também luta pra ser alguém na vida, eles também podem fazer. (EG)

Emerge, portanto, nas narrativas obtidas na pesquisa, a compreensão de que o propósito da ação docente deve ser educar as crianças e jovens para “se tornarem alguém na vida”, mas também criar condições, por meio do trabalho cotidiano, para a invenção de uma educação escolar indígena própria, diferente da que está posta atualmente em suas comunidades e daquela à qual elas mesmas tiveram acesso em escolas indígenas e não indígenas, no decurso do ciclo de formação nos Ensino Fundamental e Médio. Como esclarece Iris, “uma educação que aproxime as futuras gerações dos conhecimentos necessários à construção de uma vida digna, mas sem perder a nossa cultura [...] a chance de uma escola que tenha a nossa cara” (Iris).

Outro ponto a ser destacado é o perceptível cuidado que as professoras entrevistadas têm tido com sua formação e a possibilidade de crescimento profissional a partir dela, dado que não apenas discursam sobre a importância de se investir na continuidade dos estudos, mas praticam continuamente essa valorização em seus percursos biográficos.

Rosa: Eu me vejo depois de formada cursando um mestrado. Isso durante o curso veio em mim e, como eu posso dizer... O indígena na universidade já é uma conquista, né? E o indígena do mestrado? Ir além, né? Por que o indígena não pode estar em uma universidade dando aula também, né? Seria uma grande conquista pra nós. [Eu trabalharia com] algo relacionado a física ou na biologia.

Dália: Como eu já estou terminando o curso, eu pretendo dar aula em escola no ensino fundamental. Eu escolhi ciências [...]. O meu estágio ocorreu assim: nas áreas indígenas e não indígenas e eu fui bem. Tô indo bem [...].

Iris: Meu sonho é me formar aqui e voltar lá pra dentro da minha comunidade. Dar aula lá e também não parar. E cursar mais alguma coisa na área da psicologia ou odontologia. Algo assim.

Rosa: [...] hoje que a gente tá vivenciando as lutas dos nossos antepassados. Eles não tinham direito a nada. Se eles não tivessem lutado, a gente nem estaria aqui também. Na verdade, eu penso muito nas lutas que eles tiveram e agradeço muito.

Iris: Sim, eles frequentavam a escola e quando eles já aprendiam a ler e escrever e eram tirados da escola para já ir trabalhar nas lavouras. Então o indígena não tinha esse direito de estudar, de se formar. Até hoje a gente vê quando pergunta pra eles até que série estudou, aí eles falam que já aprendiam a ler e escrever e já eram tirados pra trabalhar, ajudar em casa, contribuir, né? Não tinha oportunidade. Então como a gente tem oportunidade, tem que ir avante e mostrar pros nossos pequenos, pras crianças, que é possível. (EG)

Dália resume ainda o vínculo percebido entre estudar e ensinar, destacando a tarefa de nunca parar de estudar como dever docente: “Foi nos estágios que deu um clique, assim, de perceber que a gente, professor não pode parar de estudar nunca. Haja disposição! Mas o nosso trabalho é ensinar e aprender, aprender estudando e ensinando, com os alunos, os livros, a experiência de sala de aula” (Dália).

Iris também revela como o/as aluno/as com o/as quais teve contato por meio dos estágios acabaram exercendo uma influência positiva e estimuladora sobre sua relação com a prática docente, a qual, a seu ver, não pode prescindir de planejamento e estudo.

Iris: Acabei gostando [da docência] durante os estágios. Quando a gente entra na sala de aula a gente acaba chegando à conclusão do que você quer realmente. Se você quer ser professor ou não. Isso aconteceu comigo! Eu consegui fazer os planos direito, consegui dar minha aula. Claro que tremia que nem vara verde lá (risos). Minha letra é feia, mas eu pretendo melhorar no quadro, enfim. E eles me obedeciam. O que mais me deixou apaixonada foi quando uma aluna dos mais pequenininhos me perguntou “Professora, como é que a gente faz isso aqui?”, aí lá fui eu, quase dei risada do que ele fez (risos). E teve um outro que disse “Ela nem é professora ...” (risos). Daí o outro respondeu “Claro que ela é, óh. Ela tá aqui! A profe deixou ela aqui.” (risos) É que nem a gente escutar os elogios das professoras que estão assistindo a gente: “Você foi bem”, aí elas também falam as partes que você tem que melhorar. Mas elas falam quando você foi bem, né? [afirmativas das participantes] então isso daí já é um grande passo pra você melhorar.

Dália: Os pontos negativos e os pontos positivos.

Iris: E eu era muito tímida. Mas elas começaram a reparar que eu me preparava bastante pras aulas [...] estudava e planejava. (EG)

Realizando uma análise mais abrangente dos excertos de narrativas citados ao longo das páginas anteriores, observamos como várias das expectativas de futuro anunciadas pelas entrevistadas guiam, lado a lado com a relação que elas mantêm com o presente vivido e o passado rememorado, a configuração de suas identidades pessoais e profissionais, denotando algo para o qual Ricoeur (1981, 1995, 2006) chama a atenção em diversas de suas obras: o peso decisivo que a imaginação pode exercer sobre a forma como nos constituímos enquanto sujeitos, como entendemos a realidade (fazendo a leitura de seus limites e possibilidades) e nela atuamos (adaptando-nos às versões do real existentes ou transformando-as). Em seu seminário sobre “Ideologia e utopia”, o autor apresenta a seguinte argumentação:

Quanto mais escavamos sob as aparências, mais perto chegamos de um tipo de complementaridade de funções constitutivas (como entre ideologia e utopia). Os símbolos que governam nossa identidade derivam não apenas do nosso presente e de nosso passado, mas também de nossas expectativas para o futuro. É parte de nossa identidade. Estar aberta a supressas, a novos encontros. O que eu chamo de identidade da comunidade ou do indivíduo é também uma identidade prospectiva. A identidade está em espera. Portanto, o elemento utópico é, em última análise, um componente da identidade. O que chamamos de nós mesmos é também aquilo que esperamos e que ainda não somos. Este é o caso ainda se falamos da estrutura de identidade como uma estrutura simbólica (RICOEUR, 1981, p. 311, tradução e grifos nossos).

Esse componente utópico que alimenta a abertura a “novos encontros”, tal como descrito por Ricoeur, sem dúvida faz-se presente na vida das entrevistadas, segundo podemos depreender de suas narrativas. Isso se torna perceptível quando elas anunciam a esperança que depositam no futuro das crianças indígenas com quem convivem e a expectativa de poderem ajudá-las a “seguirem em frente”, para que venham a realizar suas aspirações. Esperança que, em alguma medida, é alimentada e guarda relação com algumas das experiências por elas mesmas vividas no/a partir do contexto universitário e em suas próprias trajetórias de escolarização, as quais abriram caminho, em seu conjunto, para a construção de novos conhecimentos, pertencimentos e projetos, bem como para o enfrentamento de desafios.

Nesse sentido é que concordamos com a professora e pesquisadora Guarani Sandra Benites (2017), quando ela argumenta que para a escola indígena e a educação escolar de maneira geral reconhecerem a potência dos indígenas como sujeitos epistêmicos e atores sociais faz-se necessário o empoderamento dessas populações, o fortalecimento de sua identidade e cultura. Um empoderamento cuja função não é “dominar o outro”, mas garantir “autonomia de verdade” (p. 62). Não obstante, Benites reconhece que esse é um trabalho complexo e desafiador, que demanda tempo e recursos apropriados, pois “implica também ensinar aos juruá” [não indígenas] sobre a cultura de cada povo, sua história, seus anseios, suas visões sobre a educação e a vida (BENITES, 2017, p. 62).

Considerações finais

Importa não perdermos de vista que, para os povos indígenas brasileiros, o direito à educação é uma conquista relativamente recente, assim como o reconhecimento e a valorização de sua diversidade cultural e linguística, historicamente abordada de forma discriminatória; questão essa que “ainda não foi devidamente equacionada pelas políticas de Estado, pelas escolas e seus currículos” (GOMES, 2012, p. 688).

Além dos conhecimentos da docência que têm construído por meio de sua atuação profissional em escolas indígenas, especialmente no âmbito dos estágios, mas também através de outras experiências, as participantes de nossa pesquisa destacaram os aprendizados oportunizados pela formação inicial na universidade ou em cursos e eventos científicos que frequentam por conta própria, na expectativa de ampliarem seu repertório de saberes. O que há em comum entre essas experiências díspares é o fato de que elas têm possibilitado às entrevistadas a construção de novos olhares a respeito do trabalho com a docência nas escolas de educação básica; olhares outros que, inclusive, têm-nas ajudado a (re)situar e (re) significar suas próprias experiências de escolarização na educação básica.

Assim, as entrevistadas revelaram seu entendimento de que a construção de uma presença indígena com mais igualdade e, portanto, menos excludente, nas instituições educativas e em nossa sociedade, é um processo pelo qual elas mesmas e as futuras gerações de indígenas brasileiro/as deverão lutar para alcançar. Consideramos, portanto, que as suas narrativas, como tantas outras às quais tivemos acesso ao longo dos anos em que trabalhamos com a formação de professore/as indígenas na universidade, revelam sua disposição em combater as injustiças sociais de que são alvo, transformando a escola, como outros espaços sociais dos quais participam, em um “espaço de luta política” (MAYORGA; PRADO, 2010, p. 62). Luta pelo reconhecimento de seus direitos, por autonomia econômica e política, por afirmação étnica e identitária, mas também, no microcosmos que é a instituição educativa escolar (escola de educação básica ou universidade), por aulas nas quais as “tarefas colocadas” sejam bem compreendidas, os conteúdos trabalhados “estejam voltados à sua realidade” e as metodologias adotadas estimulem efetivamente a participação e a troca de saberes entre professore/as e aluno/as, como também entre pares. Luta para criar possibilidades de aprendizagem que oportunizem à/aos estudantes indígenas o acesso a conhecimentos que até recentemente, antes da democratização do acesso à escola, costumava ser privilégio de indivíduos oriundos de grupos social e economicamente favorecidos.

1Para facilitar a condução desses processos, promovendo a construção de uma abordagem atenta e sensível dos assuntos que seriam discutidos, foi adotado um roteiro de perguntas previamente elaborado, composto de perguntas como: a) Que conhecimentos você considera importantes e/ou necessários ao exercício da docência? Em que contextos/situações/experiências de aprendizagem você teve a oportunidade de construir esses e outros conhecimentos da docência? b) Quais os desafios/dificuldades que marcaram e/ou marcam atualmente sua formação e prática profissional?

2Dos 37.470 indígenas que vivem no estado do Rio Grande do Sul, segundo estimativa do IBGE (BRASIL, 2012), mais de 17 mil são Kaingang - tronco linguístico Macro-Jê (PORTAL KAINGANG, 2020). Eles compõem comunidades que habitam tanto as regiões denominadas Reservas ou Terras Indígenas, reconhecidas oficialmente a partir das demarcações feitas pelo Estado, quanto em territórios que passaram por processos de ocupação ou “retomada”, além dos/as que residem no meio urbano (SILVA; LAROQUE, 2012).

3Além dos nomes fictícios, outros cuidados éticos foram adotados, como a confidencialidade dos dados, incluindo a preservação do anonimato e a manutenção das informações pessoais das entrevistas em sigilo, entre outros. Nesse contexto, foi feito uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

4Na atualidade, grande parte das crianças Kaingang frequenta escolas indígenas, que contam com professores/ as bilíngues. Segundo os dados mais recentes que pudemos acessar, o Rio Grande do Sul conta com 90 escolas indígenas, das quais 58 atendem os Kaingang (INEP, 2017). Bergamaschi, Antunes e Medeiros (2020) informam ainda que, nas duas últimas décadas, cresceu o número de professore/as Kaingang, muito/as do/as quais com formação superior, que ingressaram na carreira do magistério estadual em função dos concursos com vagas voltadas ao/às professore/as indígenas que vêm ocorrendo desde 2001, promovidos pela Secretaria Estadual de Educação.

5A universidade em questão (UFFS, Campus Erechim/ RS) está situada numa região fronteiriça, o noroeste rio-grandense, caracterizada pela forte presença indígena (grupos étnicos Guarani, Kaingang e mistos), com predominância numérica dos Kaingang. Desde o ano de sua criação (2010), a referida instituição oferta diversos cursos de formação de professores (licenciaturas em Filosofia, História, Geografia, Ciências Sociais, Pedagogia, Educação do Campo) e bacharelados (Arquitetura, Engenharia Ambiental e Agronomia), sendo a inclusão educacional amparada pela adoção de mecanismos de promoção do acesso e permanência dos estudantes. O acesso a maiores informações sobre esse assunto pode ser obtido

6O estereótipo é, segundo Stuart Hall (2016, p. 191-192), uma prática representacional que “reduz, essencializa, naturaliza e fixa a ‘diferença’”, constituindo “uma prática de fechamento e exclusão. Simbolicamente, ela fixa os limites e exclui tudo o que não lhe pertence”. O autor ainda destaca que “a estereotipagem tende a ocorrer onde existem enormes desigualdades de poder. Este geralmente é dirigido contra um grupo subordinado ou excluído”, sendo um dos seus aspectos o etnocentrismo.

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Recebido: 20 de Março de 2023; Aceito: 04 de Julho de 2023

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