SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 issue72WHAT DO BIOLOGy TExTBOOkS TEACH ABOUT BRAzILIAN WOMEN IN SCIENCE?EDUCATIONAL ACADEMIC PRODUCTION ON LESBIAN AND TRANS TEACHERS: REGULATION AND QUEER(IZATION) author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.72 Salvador  2023  Epub May 06, 2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p170-188 

Corpos, gêneros e sexualidades

NARRAR E DESCOLONIZAR: MEMÓRIAS DE MESTRAS DE CAPOEIRA E PERCURSOS EDUCACIONAIS FORMATIVOS

NARRATING AND DECOLONIZING: MEMORIES OF FEMALE CAPOEIRA MASTERS AND EDUCATIONAL PATHS

NARRAR Y DESCOLONIZAR: MEMORIAS DE LOS PROFESORES DE CAPOEIRA Y LAS RUTAS DE FORMACIÓN EDUCATIVAS

1Universidade Estadual de Campinas

2Universidade Estadual de Campinas


RESUMO

Este Corpos, gêneros e sexualidades é um recorte da pesquisa de doutorado “Educação com as mãos no chão: um princípio formativo a partir das memórias de mulheres mestras de capoeira no Estado de São Paulo”. Busca o reconhecimento e a visibilidade de memórias subalternizadas historicamente de mulheres na capoeira. Problematiza a ausência, o silêncio e/ou apagamento de memórias femininas no imaginário coletivo, discursivo e documental da capoeira. Vale-se de perspectivas educacionais inclusivas, feministas e decoloniais mobilizadas por narrativas de formação (auto)biográficas, produzidas em entrevistasconversas, Conclui que a capoeira é fortemente atravessada pelos efeitos da colonialidade de gênero, embora potencialmente, por sua ancestralidade afrobrasileira de luta e resistência aos processos de violação ontológica e de direitos humanos (ainda) preserva condições e possibilidades de se (re)inventar de modo a ensejar processos educativos/ formativos inclusivos e descolonizadores.

Palavraschave: Educação; Mulheres; Capoeira; Inclusão; Colonialidade.

ABSTRACT

This article is a segment of the doctoral study “Education with hands on the floor: an educational principle based on the memories of female capoeira masters in the State of São Paulo”. It aims to recognize and give visibility to historically subalternized memories of women in capoeira. It problematizes the absence, silence and/or erasure of female memories in the collective, discursive, and documentary imagination of capoeira. In this endeavor, it uses inclusive, feminist and decolonial education perspectives mobilized by narratives of (auto) biographical education, produced in interviews-conversations. It concludes that the capoeira is deeply influenced by the effects of gender coloniality, although potentially, for its Afro-Brazilian ancestry of struggle and resistance to processes of ontological violation and human rights, (still) preserves conditions and possibilities to invent itself in order to create inclusive and decolonizing educational processes.

Keywords: Education; Women; Capoeira; Inclusion; Coloniality.

RESUMEN

Este artículo es una sección del proyecto de investigación doctoral, titulado “Educación con las manos en el suelo: un principio formativo basado en las memorias de las mujeres maestras de capoeira en el Estado de São Paulo”. Busca reconocer y visibilizar las memorias históricamente subordinadas de las mujeres en la capoeira. Discute la ausencia, el silencio y/o el borrado de las memorias femeninas en el imaginario colectivo, discursivo y documental de la capoeira. Para ello, se recurre a perspectivas educativas inclusivas, feministas y decoloniales movilizadas por narrativas (auto)biográficas de formación, producidas en entrevistas-conversaciones, Se concluye que la capoeira está fuertemente permeada por los efectos de la colonialidad de género, aunque potencialmente, debido a sus orígenes afrobrasileños como forma de lucha y resistencia a procesos de violación ontológica y de los derechos humanos, (aún) conserva las condiciones y posibilidades de inventarse a sí misma de manera que dé lugar a procesos educativos/formativos inclusivos y descolonizadores.

Palabras clave: Educación; Mujeres; Capoeira; Inclusión; Colonialidad.

Introdução

Há tempos estudamos as representações femininas ao longo da história, nos diversos campos sociais, em fatos históricos. Em pesquisa documental, nos deparamos com a presença/ ausência de suas memórias, em que estas são ocultadas/ forjadas de modo a silenciar ou apagar as experiências de mulheres.

Podemos destacar que as experiências femininas representadas pelo viés masculino são percebidas como subalternizadas, produzidas e reproduzidas por discursos hegemônicos que desconsideram seus corpos, mentes e pensamentos. Suas subjetividades são ignoradas. Como resultado temos o apagamento e o silenciamento de suas memórias, desdobrando-se em uma série de representações históricas e sociais invisibilizadas, ao pensarmos em suas vidas cotidianas.

A partir disso, a invisibilidade de memórias de mulheres na sociedade contemporânea nos mobiliza a discutir como esse apagamento e silenciamento é (re)produzido em práticas culturais e contextos formativos, e no escopo deste Corpos, gêneros e sexualidades, no universo da capoeira.

Feito este preâmbulo, apresentamos um recorte da pesquisa de doutorado1, sobre as experiências e memórias de mestras de capoeira, no Estado de São Paulo. A partir de narrativas das participantes do estudo produzidas por meio de entrevistasconversas2, os processos formativos e singulares das experiências são acessados e compartilhados, permitindo a compreensão da complexidade e multiplicidade de sentidos e significações ao longo de suas histórias de vida.

O percurso educacional dessas mestras na capoeira, suas conquistas e percalços implicados em conquistas de graduações na capoeira e vivências como mulheres que lutam e (re) existem em diferentes espaços, traduz práticas culturais dentro e fora das rodas de capoeira.

A pesquisaformação3 narrativa (auto) biográfica, adotada no estudo, confere visibilidade às memórias produzidas pelas participantes. Trata-se de uma produção coletiva construída na circulação e afetação mobilizada entre palavras, escutas e escritas que (re)contam as diversas passagens e experiências relatadas pelas narradoras em reverberação na subjetividade da pesquisadora.

Constatamos que apesar de crescente a participação feminina na capoeira, ainda prevalece a colonialidade de gênero em narrativas machistas e sexistas que silenciam a memória de mulheres em documentos históricos e em outros campos sociais.

No caso deste estudo, analisamos um importante documento, o “Dossiê/Inventário para Registro e Salvaguarda da capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil” (IPHAN, 2007), que culmina na elaboração de Planos de Salvaguarda da capoeira nos níveis estaduais, reconhecendo como bens culturais o ofício dos mestres de capoeira e a roda de capoeira.

Se por um lado o documento corrobora para o reconhecimento da capoeira e a produção de uma memória coletiva acerca da relevância histórica e cultural deste acervo de saberes, por outro, nos permite identificar a invisibilidade das mulheres na constituição dessa produção documental e da memória coletiva da capoeira, como patrimônio imaterial de expressiva relevância ancestral, política.

Percebemos no referido Dossiê que as mulheres não estão representadas e nem relatadas como mestras na atualidade, ou mesmo como participantes do jogo da capoeira ao longo do tempo. O protagonismo feminino está ausente no registro documental e nas imagens (re) produzidas nessa memória coletiva.

Contudo, o Dossiê ao (re)produzir o apagamento/silenciamento de presenças e vozes femininas na capoeira, contribui para a formulação de nossa problemática de pesquisa, a saber: a invisibilidade e subalternidade do protagonismo feminino na capoeira.

Nesta pesquisa, as percepções referentes a invisibilidade feminina (re)produzida em diversos campos sociais nos permitem visualizar entre rasuras, novas interpretações, em conjunto com as experiências cotidianas das mestras participantes do estudo, de modo a contribuir com novos entendimentos necessários para a visibilidade de memórias subalternizadas.

A partir disso, interrogamo-nos sobre a não presença feminina em representações compostas em diversos coletivos sociais e como as experiências podem se apresentar de modo a incluir as narrativas femininas na capoeira e na sociedade. Nessa perspectiva, conhecemos, ouvimos e destacamos mulheres, mestras de capoeira, que (re)existem e (re)contam suas histórias por elas mesmas.

Ressaltamos a falta de uma história de mulheres na capoeira como resultado da produção de uma memória colonizada, (re)produzida e materializada em nossa sociedade em razão dos efeitos da colonialidade de gênero, conceito este que aborda as distinções hierárquicas e dicotômicas entre homens e mulheres nos processos de colonização das Américas e do Caribe (LUGONES, 2014).

Diante dessas considerações, as narrativas das mestras reportam-se às experiências engendradas em seus processos formativos na capoeira. Perspectivamos o potencial da pesquisa, a partir das narrações compreendidas em diálogos com o referencial teórico-metodológico adotado, como forma de descolonizar percepções e corpos.

Vislumbramos uma educação inclusiva na perspectiva feminista descolonizadora de modo a questionar o modelo colonial e patriarcal imposto como universal pela modernidade, estendida aos processos educacionais e formativos vigentes na atualidade, inclusive na capoeira, escopo da pesquisa.

Entendemos a educação como vasto campo social, presente não exclusivamente na escola, mas em diversos outros espaços e tempos de sociabilidades, fomentando processos e experiências formativas (LIMA, 2021a).

A inclusão, como princípio educativo e constitucional, entendida de forma ampla, não diz respeito a um grupo específico ou às características atribuídas/identificadas que servem à classificação e hierarquização de singularidades. Trata-se de tensionar práticas que enquadram as diferenças humanas em categorias definidoras de identidades fixadas. A educação compreendida na perspectiva inclusiva, onde quer que seja praticada, implica em favorecer processos de pertencimento e afirmação das diferenças em gozo pleno de direitos humanos como regra e não com exceção (LIMA, 2019).

Nesse sentido, podemos pensar a perspectiva da educação inclusiva em percursos formativos possibilitados pela capoeira, de modo a expandir as potencialidades humanas em conexão com ancestralidades afrobrasileiras, despertando e/ou afirmando sentimentos de pertencimento (LIMA, 2019, 2021a, 2021b).

Pelo exposto até então, temos aqui o objetivo de desconstruir e tensionar a colonialidade de gênero de modo a visualizar entre frestas e rasuras memórias (subalternizadas) de mulheres mestras de capoeira. Questionamos o padrão colonial instituído como universal e, ainda, hegemônico que tenta apagar e silenciar a história dos subalternizados.

O Corpos, gêneros e sexualidades está organizado em três seções. Inicialmente, apresenta um breve histórico da capoeira entendida como manifestação cultural de resistência aos desmandos e violência do poder colonial, tornando-se patrimônio cultural imaterial. A capoeira desenvolvida no Brasil colônia, apesar de atravessada pelos efeitos da colonialidade, sendo jogo que resiste e (re)existe, engendra um movimento potencializador de descolonização e inclusão.

Segue-se com o trajeto metodológico desenvolvido na pesquisa, explorando o conceito de memória-trabalho (BOSI, 2012) e da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica (BRAGANÇA, 2018). Destacamos que a memória ao ser trabalhada com a finalidade da produção de narrativas é composta por uma tarefa subjetiva, de cunho político. Essas mulheres ao (re)lembrarem as histórias de suas infâncias e juventudes, vivenciam o ato de ressignificar suas histórias no tempo presente. A narração no tempo presente ao rememorar, (re)configura um novo entendimento de suas experiências do passado na atualidade.

Excertos de narrativas das seis participantes, mestras de capoeira, foram selecionados, considerando que tais relatos dialogam com a inserção de suas histórias e com a visibilidade de suas experiências educacionais-formativas vividas na capoeira, em diálogos com o estofo teórico-metodológico. Os conceitos de gênero e outros, como: colonialidade, colonialidade de gênero e cosmopercepção mobilizados diante das memórias produzidas pelas mestras de capoeira nos encontros narrativos, contribuem com a visibilidade e a descolonização dos saberes, de modo a reconhecer a relevância da inclusão de narrativas femininas na contemporaneidade.

Por fim, este Corpos, gêneros e sexualidades pretende amplificar as discussões acerca das narrativas de mulheres na capoeira, e na sociedade, colaborando com a visibilidade feminina na participação e atuação em práticas culturais afrodiaspóricas, em seus processos educativos/formativos e suas lutas cotidianas de enfrentamento ao silenciamento de suas memórias individuais e coletivas.

Capoeira como jogo de (re) existência

São trinta e oito anos de capoeira com as mãos no chão jogando, é por isso que eu tenho o nome que eu tenho hoje. Por conta de estar dentro das rodas de capoeira e ser uma mestra dentro das rodas[...] quando eu comecei a capoeira, em 1982, eu tinha doze anos. Hoje eu estou com cinquenta anos e trinta e oito anos de capoeira. As mulheres antes não tinham protagonismo, nunca apareceram na história, não tem uma história delas, não tem nada conclusivo. É muito difícil, pode ser que surjam mais mulheres daqui a dez anos, a gente tem uma quantidade grande de mulheres dentro da capoeira [...]. Nós tivemos um enfrentamento muito grande para chegar a ser mestra de capoeira (Narrativa 3).

A capoeira, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil (IPHAN, 2008) e da Humanidade (UNESCO, 2014), é uma manifestação cultural afrodiaspórica, historicamente constituída como um espaço de sociabilidade predominantemente masculino, desde o período colonial-escravista. Constituise como acervo ancestral de matrizes africanas reconfiguradas em territórios de resistência ao colonialismo e à colonialidade, salvaguardando rituais e saberes em processos formativos com potencial de descolonização das pessoas que a praticam, numa perspectiva educacional inclusiva.

De acordo com Lima (2021b), a inclusão compreendida como princípio educacional inspira práticas formativas em diferentes contextos, tempos e espaços. Trata-se de ampliar o entendimento e o alcance político, ético, poético e estético da inclusão, para além dos contextos escolares, reconhecendo os bens culturais imateriais como territórios educativos-formativos, potencialmente, inclusivos, ao resguardar: memória coletiva, ancestralidade, rituais que ensejam sentimentos de pertencimento em modos plurais de ser, sentir e estar no mundo.

Portanto, consideramos a capoeira como importante legado cultural afrobrasileiro e território educacional inclusivo ao oferecer por meio de suas práticas, rituais e musicalidades estratégias de preservação, atualização e (re) existência da memória coletiva e sentimentos de pertencimento ancestral-afrodiaspórico.

Nesse sentido, a inclusão é uma perspectiva de se conceber as práticas formativas, articulando pertencimento, ética, política e poética em estéticas existenciais e ritualísticas que educam, acolhem e salvaguardam direitos constitucionais de ser e (re)existir (LIMA, 2019, 2021b).

Nas palavras da autora: “[...] a capoeira oferece um processo educacional, uma perspectiva identitária e comunitária cujos laços afetivos potencializam conexão e resgate do legado ancestral [...]” (LIMA, 2021a, p.5).

Dito de outro modo:

Eu sinto que ela sempre esteve na minha vida, ela capoeira foi uma base de comunicação com o mundo, uma base de relacionamento com o mundo porque eu acho que tudo na minha vida foi jogo, foi ritual e isso quem me ensinou muito foi a capoeira desde sempre, acho que até antes de eu virar capoeirista eu tinha alguma coisa ali, que já me levava para esse entendimento de mundo (Narrativa 4).

Historicamente, a capoeira (re)criou e fortaleceu sociabilidades e laços de pertencimentos necessários à sobrevivência e (re)existência daqueles que foram violentados e expatriados pelo colonialismo e sistema escravocrata, apartados de qualquer tipo de humanização.

Como campo de pesquisa, tomamos a capoeira enquanto legado ancestral e cultural afrodiaspórico, desenvolvido no Brasil durante o período colonial como forma de resistência ao sistema escravista por diferentes etnias e referências culturais africanas em diáspora compulsória, conforme discute Lima (2021a).

Desse modo, a capoeira remonta à ancestralidade afro-brasileira, constituindo-se como cultura de (re)existência, capaz de (re)estabelecer laços e afetos, transmitir e (re)significar memórias por meio do jogo, dos rituais, ritmos e músicas:

No período do Brasil colonial, a capoeira, como insurgência de povos africanos em diáspora possibilitou (re)construções de existências, criando laços de pertencimento e produzindo práticas/ narrativas de afirmação da vida e de uma humanidade outra (LIMA, 2021a, p.3).

Nesse percurso argumentativo, a capoeira, contrariando o sequestro colonial no Brasil, tornase um modo de resgate de vida, ou seja, uma forma de resistir e (re)existir às violências praticadas no período escravocrata. Destarte, “apesar de serem povos oriundos de diferentes regiões de África, a capoeira tornouse uma cultura, uma linguagem, uma confraria de apoio mútuo no Brasil colonial” (LIMA, 2021a, p.11).

A narrativa abaixo, corrobora nessa direção:

E tudo que eu tenho hoje sempre digo que se eu vivesse mais cem anos eu teria que agradecer à capoeira, enfim, ela que me deu toda a minha condição enquanto mulher negra. O conhecimento que eu tenho, foi a capoeira, foi ela que me deu (Narrativa 3).

A capoeira se constituiu pelos hibridismos culturais, pelos atravessamentos de resistências e se atualiza até os dias de hoje. Configura uma manifestação cultural tornada Patrimônio Imaterial do Brasil (IPHAN, 2008) e da Humanidade (UNESCO, 2014):

A roda de capoeira é meu alimento, a capoeira é o meu alimento, é o alimento interior, não é esse alimento que a gente come, mas é a minha alma, eu me alimento da capoeira, ela é a minha segunda pele, sem a capoeira eu não seria o que eu sou e sem capoeira eu não existiria e não faria o que eu faço hoje (Narrativa 3).

Em 2008, a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres foram registrados como bens culturais, reconhecidos como Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2008), compreendidos como um fenômeno múltiplo que transmite os saberes de geração em geração através da oralidade, rituais, ritmos e musicalidade reunindo, assim, referências, sentidos e símbolos representativos da cultura afro-brasileira (GONÇALVES; PEREIRA, 2015).

Os bens culturais de natureza imaterial são relacionados às práticas da vida social que se manifestam em saberes, modos de fazer, formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas. Com a Constituição de 1988 e o reconhecimento em seus Corpos, gêneros e sexualidadess 215 e 216, ampliou-se a noção de patrimônio cultural ao identificar e diferenciar a natureza de bens culturais material e imaterial, segundo o IPHAN (2008):

[...] O patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.

Disso decorre que, como patrimônio vivo, a capoeira se mantém por meio dos saberes e práticas transmitidos pelos mestres e mestras fazendo-se patrimônio cultural do Brasil. O IPHAN no processo de registro e reconhecimento da capoeira como bem cultural, após uma pesquisa realizada, produziu o “Dossiê/ Inventário para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil” (IPHAN, 2007).

Este documento mobilizou a problemática do presente estudo ao não encontrarmos representações femininas, como fotos ou menções sobre a atuação de mulheres na capoeira, muito menos algo que registre as memórias femininas de capoeiristas, ou mestras de capoeira.

O Dossiê é composto por dezessete entrevistas com mestres homens e nenhuma representação de capoeiristas mulheres. Isto posto, convém mencionar que, se por um lado, reconhecemos que toda produção é datada, e nesse sentido, passível de críticas com o passar do tempo, por outro, trata-se de um documento historicamente recente (2007), de relevância institucional e política para o reconhecimento da roda de capoeira e o ofício dos mestres de capoeira como patrimônios culturais do Brasil e da Humanidade.

A crítica diante do apagamento e/ou silenciamento das memórias de mulheres na capoeira ao longo da história, nos inquieta, pois a sua ausência é (re)produzida na memória coletiva de nossa sociedade.

Isso posto, problematizamos a produção dessa invisibilidade e destacamos as narrativas de mulheres mestras de capoeira, a fim de contribuir com a visibilidade de suas presenças e experiências no universo da capoeira.

Um percurso metodológico: as narrativas de mulheres mestras de capoeira

“Eu tenho história para contar” (Narrativa 2)

A pesquisa em andamento teve como objetivo ouvir, conhecer e registrar as experiências cotidianas de seis mestras de capoeira, participantes do estudo, a partir da narração de seus percursos formativos e educacionais evocados nas entrevistasconversas.

As narrativas, como fontes orais de cunho (auto)biográfico, abordam suas histórias de modo individual e coletivo. Ao acessarem suas memórias, evocam representações que discorrem sobre seus percursos. Circulam entre diversos enredos que indicam a relevância dessas experiências de atuação e presença feminina na memória coletiva da capoeira e na sociedade.

Quando conheci a capoeira eu tinha doze para treze anos. O meu contato com a capoeiragem em São Paulo sempre foi desde novinha, desde os catorze anos eu vim para cá, vim visitar a academia do mestre [...] (Narrativa 1).

Os sentidos e significados foram dados pelas próprias mestras ao narrarem os seus percursos. São memórias acionadas pela narração sobre a participação de mulheres de modo individual e coletivo na capoeira.

Daqui para a frente as histórias das mulheres ficarão registradas, o quanto é importante e significativo a minha participação dentro da capoeira, no mundo da capoeira e vai ficar registrado, mesmo se eu fosse embora hoje, a memória fica. Muitas mulheres não conseguiram isso que a gente faz para deixar nossas histórias para que as pessoas possam contar (Narrativa 3).

Os encontros com cada uma das participantes da pesquisa, mestras de capoeira no Estado de São Paulo, possibilitaram a escritura destas experiências, que buscou tecer histórias compostas por memórias evocadas em narrativas de mulheres capoeiristas.

Suas reconstruções de memórias são contadas por elas mesmas e o fazer narrativo se encontra presente entre os pensamentos e as trajetórias dessas mulheres, contribuindo com a visibilidade dessas experiências. Os relatos indicam que todas as participantes têm muitas histórias para contar.

O valor de cada narração se expressa em uma memória-trabalho, como descrito por Bosi (2012, p. 37): “[...] Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na história de sua vida. Recolhi aquela “evocação em disciplina” que chamei de memória-trabalho”.

Nessa esteira, a pesquisa se apoia na noção conceitual de memória-trabalho, sustentando a proposição investigativa às mestras participantes do estudo o ato de lembrar e contar suas experiências de iniciação na capoeira e ao longo dos anos, rememorando os processos vivenciados em suas formações, tornando-as mestras. Elas reconstruíram suas lembranças da infância, adolescência e como se constituíram em mulheres-mestras de capoeira no tempo presente.

[...] A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (BOSI, 2012, p. 55).

Em diálogo com Bosi, fazemos a leitura de que essas histórias contadas pelas mestras, são carregadas de lembranças de vários anos, mas ainda sim retomadas e registradas em um tempo presente. As imagens são retratadas com os enquadramentos de suas experiências formativas na atualidade:

[...]Essas histórias que eu estou te contando têm mais de vinte e cinco anos, daqui a pouco vai pra trinta anos de história… (Narrativa 4).

O ato de narrar é um movimento de constante (trans)formação. Nas palavras da autora:

[...] É possível perceber que mesmo quando o objetivo consiste no desenvolvimento de uma proposta de investigação, o fato de narrar a vida produz, potencialmente, um movimento de (trans)formação que envolve a todos investigador/a e participantes (BRAGANÇA, 2018, p. 68).

O trabalho narrativo evoca experiências dando continuidade a (trans)formar histórias. Demonstramos essa (trans)formação como algo que nos envolve de maneira conjunta na produção narrativa, em que temos a escuta de palavras e memórias como um primeiro momento de apreensão, seguido das reflexões de ambas as partes, ou seja, ao (trans)formarmos o movimento de narrar, de relatar as histórias tudo o que foi revelado também é (trans)formado pelo ato da escrita.

Eu comecei a capoeira em 1995, já são vinte e seis anos, tenho mais tempo vivendo capoeira do que tempo que eu não vivi capoeira, eu tenho quarenta e um anos, dos meus quarenta e um anos, vinte e seis anos foi na capoeira, todo dia (Narrativa 6).

A produção de narrativas como estratégia metodológica da pesquisaformação (auto) biográfica inscreve histórias. E, esse modo de pesquisar permite produzir memórias das experiências de narradoras/es que resultam em um escrever narrativo (auto)biográfico da pesquisadora de suas e outras histórias. Fragmentos dos relatos são revelados e selecionados a partir de um espaçotempo:

Assim, é sempre bom afirmar que tomamos o (auto)biográfico não pela narrativa, necessariamente, longitudinal da história de vida, da infância aos dias atuais, mas considerando a memória como fragmento, como dialética entre lembrança e esquecimento, a experiência educativa vivida entre um espaçotempo da vida é especialmente (auto)biográfica (BRAGANÇA, 2018, p. 70).

Esta dialogicidade entre o nosso espaçotempo entendemos como um encontro de relações, ligações fortes pela junção entre as memórias construídas e vividas por estas mulheres, mesmo que estas experiências tenham diferenças e sejam conduzidas pelos fios de lembranças atrelados às subjetividades que transbordam entre si.

Eu sou de 1979 começando os anos de 1980, eu faço parte da transição da capoeira. O mestre, ele era formado pelos Filhos da Bahia que ficava na Freguesia do Ó, próximo da minha casa, lugar onde começou a minha trajetória. Eu era a única menina lá, mas eu gostava da capoeira, gostava dos instrumentos [...] (Narrativa 5).

A composição relacionada por este espaçotempo se encontra presente em suas trajetórias de mestras de capoeira, pois suas histórias têm como ponto de partida as infâncias de meninas que começaram a jogar nesta pequena roda e seguiram adiante para a grande roda (ARAÚJO, 2017).

Eu peguei a minha graduação com quarenta e nove anos, olha para você ver o tempo que eu levei pra pegar a graduação de mestra. Eu comecei a capoeira em 1976, com oito anos. Foram mais de quarenta anos para pegar a graduação de mestra, mas eu reconheço, eu não me arrependo, fico feliz pela história que eu tenho. O que veio através de mim, várias e várias outras mulheres fizeram capoeira aqui em Ribeirão Preto, está cheio de mulher capoeirista agora. Muitas vezes eu ouvi “Quero ser igual a você” porque eu jogava muita capoeira, muito mesmo[...] (Narrativa 2).

Descolonizar com memórias: gingar conceitos e encontros narrativos de mulheres capoeiras

Naquela época eu não sentia muita discriminação por ser uma menina na capoeira, eu jogava com todos os meninos, mas eu sabia que tinha uma diferença sim, eu percebia que tinha poucas meninas jogando [...] (Narrativa 5).

Fizemos os registros dos encontros narrativos das mestras de capoeira como uma maneira de (re)compor memórias que não eram visíveis até pouco tempo atrás. Essas histórias fazem parte de seus cotidianos, de suas infâncias que são rememoradas na atualidade ao resgatarem os seus percursos educacionais e formativos na capoeira. Diversas questões atuais são exploradas, de modo a relacionar suas experiências na pequena roda (capoeira) e na grande roda (sociedade) (ARAÚJO, 2017).

Discutimos conceitos de modo a tensionar, desconstruir e (re)construir entre as frestas aquilo que a colonialidade não nos permite enxergar, rasuramos noções de modo a destacar a produção de invisibilidades e a não presença de mulheres mestras de capoeira.

De acordo com Maldonado-Torres (2019) a colonialidade pode ser entendida como uma lógica global capaz de desumanizar povos, dos quais os ideais são provenientes da “fundação/ descoberta” do “Novo Mundo” até os dias de hoje.

Os fundamentos da colonialidade encontram-se enraizados aos modos de colonialismo e escravização dos quais foram resultados do que se chamou de “descobrimento”, e a partir disso impõem formas de diferenciações e distorções aos significados da palavra humanidade.

O processo de dominação dos colonizadores perante os colonizados encontrou bases de apoio para nomear corpos e mentes, humanizando um grupo e desumanizando o outro grupo:

[...] A colonialidade do saber, ser e poder é informada, se não constituída, pela catástrofe metafísica, pela naturalização da guerra e pelas várias modalidades da diferença humana que se tornaram parte da experiência moderna/ colonial, enquanto ao mesmo tempo, ajudam a diferenciar modernidade de outros projetos civilizatórios e a explicar os caminhos pelos quais a colonialidade organiza múltiplas camadas de desorganização dentro da modernidade/colonialidade (MALDONADO- TORRES, 2019, p 42).

Buscamos compreender com Mignolo (2017) que a “modernidade” é uma narrativa complexa e eurocentrada da civilização, cujo ponto de origem foi a Europa ocidental. Destarte, ao celebrar suas conquistas, esconde “a colonialidade”, lado mais sinistro dessa invenção moderna.

Mignolo em suas afirmações, evidencia que o conceito de colonialidade ressalta a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até hoje, sendo os colonialismos históricos constituintes. Em suas palavras:

[...] O conceito empregado aqui, e pelo coletivo Modernidade/Colonialidade, não pretende ser um conceito totalitário, mas um conceito que especifica um projeto particular: o da ideia da modernidade e do seu lado constitutivo e mais escuro, a colonialidade que surgiu com a história das invasões europeias de Abya Yala, Tawantinsuyu e Anhauac, com a formação das Américas e do Caribe e o tráfico maciço de africanos escravizados. A “colonialidade” já é um conceito “descolonial”, e projetos descoloniais podem ser traçados do século XVI ao século XVIII. E, por último, a “colonialidade” (por exemplo, el patrón colonial de poder, a matriz colonial de poder - MCP) é assumidamente a resposta específica à globalização e ao pensamento linear global, que surgiram dentro das histórias e das sensibilidades da América do Sul e Caribe. É um projeto que não pretende se tornar único. Assim é uma opção particular entre as que aqui chamo de descoloniais. Para ser mais direto: o argumento a seguir tem como cerne a MCP e, portanto, o argumento é uma entre diversas opções coloniais em funcionamento (MIGNOLO, 2017, p. 2. )

Para o autor a colonialidade é constitutiva da modernidade - logo, não há modernidade sem colonialidade. Nessa perspectiva, encontramos autoras e autores que fazem a crítica ao universalismo moderno, em que o conceito de colonialidade busca reparar e combater os efeitos da colonização que por tanto tempo ocultaram as subjetividades, os saberes e conhecimentos de colonizados e colonizadas, e por um longo período a lógica moderna apagou/ silenciou outros pensamentos e somente considerou um tipo de saber, o do colonizador.

Nesse sentido, consideramos relevante contribuir com a visibilidade de experiências de mulheres, mestras de capoeira, ressignificando a pluralidade de suas vivências que muitas vezes são apagadas por determinados grupos hegemônicos. Questionamos o paradigma colonial moderno e o universalismo conceitual eurocêntrico/norte-americano impostos que escondem/apagam e silenciam histórias e memórias consideradas subalternas por determinados grupos.

Destacamos a narrativa 4, ao apontar sobre como as experiências femininas em sua pluralidade são diferentes, e nos afastamos de qualquer universalismo que visa apagar as singularidades:

Acho que “ser capoeira” é você assumir a sua história no mundo. Jamais saberemos como cada mulher se sente nesse mundo da capoeira, pois só cabe a ela mesma contar sobre suas experiências. Uma mulher negra falará como uma mulher negra, uma mulher mãe falará como uma mulher mãe, uma mulher branca falará como uma mulher branca, uma mulher indígena falará como uma mulher indígena, e assim vai. Eu sinto que é muito difícil a gente botar tudo num pacote, numa caixinha, o próprio universo da capoeira é complexo. E falar como capoeirista angoleira ou capoeirista regional é falar de caminhos, de giras que são completamente diferentes, de preciosidades gigantescas (Narrativa 4).

No trecho abaixo, a narrativa 1 nos demonstra que é necessária a mudança para que possamos conhecer outras narrativas, e com isso outros relatos presentes nas histórias de pessoas:

“Ainda tem muita coisa que precisa mudar e isso a história vai nos mostrando (Narrativa 1)”.

Scott (1995), demonstra as relações de poder implícitas em análises históricas ao se voltar para o conceito de gênero. Como historiadora, atenta às opressões, propõe análises que envolvem os sujeitos, em relatos que destacam dominações. Seu embasamento teórico permeia gênero como presente nas relações humanas, relações sociais entre os sexos em que os sujeitos operam de maneira simultânea, segundo a autora: “[...] O uso do “gênero” enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade.” (SCOTT, 1995, p. 76).

Ressaltamos a importância dos estudos feministas, apesar de muitas produções encontrarem-se datadas e, portanto, passíveis de serem problematizadas a partir de outras leituras não mais universalizantes e estáticas, como o corpo generificado, discutido por autoras na atualidade, tensionando explicações relacionadas ao pensamento europeu e norte-americano, ou seja, as categorias homem cis, branco e heterossexual passam a ser investigadas a partir de outras abordagens descolonizadoras.

Algumas lentes feministas decoloniais desnudam e demonstram as contradições existentes no discurso moderno, sexista e colonial. A presença de outras histórias tende a tensionar e provocar mudanças, como nos aponta a narrativa 1:

Eu, quando era atleta de vôlei e depois fui treinar capoeira, senti uma mudança, e vejo que isso vem da gente mudar mesmo uma cultura, por exemplo, da forma como a mulher se senta, dos gestos que são considerados “femininos”, isso tudo é muito complicado, mas com o tempo muda, quando a gente começa a estar presente acaba rompendo e modificando esses tipos de regras nos espaços (Narrativa 1).

Deste modo entendemos que a presença feminina em diversos lugares rompe com estereótipos, e com isso podemos ter outras leituras que visam romper com diversas características impostas pela cultura de determinada sociedade:

Eu devo ter passado muita coisa por ser uma mulher com um trabalho na capoeira, mas como eu comecei muito cedo não me lembro, mas se analisar como essas questões aparecem nos dias de hoje, eu consigo ter outra visão. Quando eu abri o trabalho em São Paulo foi evidente, antes eram somente mestres homens, todos os grupos de capoeira angola estão em São Paulo conduzidos por homens. Eles pensaram: “O que essa menina ainda trenel, primeiro nível de formação, tá achando que é quem pra dar aula de capoeira?”. Alguns homens mestres de capoeira mudaram a relação comigo, começaram a olhar para mim diferente e pensando: “Você deveria estar fazendo aula comigo e não dando aula”. Eu percebi essa questão do machismo ao abrir o trabalho aqui (Narrativa 6).

Em nossa cultura ocidental, a construção da masculinidade é baseada em uma formação da figura masculina em detrimento de uma figura feminina, ou seja, a “mulher” é sempre inferiorizada em prol de uma categoria a ser definida como primeira.

Scott e outras feministas ao elucidar o conceito de gênero como um modo proposto pela interação social a partir de uma abordagem histórica, nos atentam a não deixar de questionar e atualizar as ideias e pensamentos.

A partir dessas atualizações demonstramos as lacunas, conflitos e crises que são expostos ao se universalizar um sistema de relações sociais em diferentes culturas, ou como modo único de explicação de categorias sociais hierárquicas eurocêntricas e norte-americanas.

O garoto me falou que somente os homens podiam fazer capoeira, mulher não podia fazer capoeira, no caso eu menina não podia fazer. Eu tinha o cabelo bem grandão, tinha uma cabeleira. Comecei a pensar, como é que eu poderia jogar capoeira?[...] Fiquei toda feliz. Eu realmente comecei a fazer capoeira como menino. Eles me tratavam como homem, naquele momento ninguém descobriu que eu era uma menina. Tinha nove anos quando eles descobriram, eu fiquei um ano com eles sem saberem que eu era menina (Narrativa 2).

A narrativa 2 nos demonstra que somente uma categoria era aceita inicialmente, o masculino sempre foi aceito em todos os espaços sem questionamentos, em detrimento a categoria feminina teve que se adequar para poder estar em alguns locais.

Atualmente a aceitação feminina conquista diversos espaços, mas outras indagações são importantes em relação ao feminino como modo de não apagar outras representações, ou seja, não podemos somente visualizar a categoria mulher como única, e sim entender as suas vivências e experiências de maneira múltipla e plural.

Uma situação que eu vivenciei, foi de um cara durante a roda de capoeira, ele queria a todo custo tocar o berimbau, não tinha graduação para isso e tinha outros berimbaus com dois homens, mas ficou claro que ele só tentou pegar porque era comigo, ao ver uma mulher que estava tocando. Nessa situação eu não dei o berimbau mesmo (Narrativa 1).

Outras leituras feministas decoloniais, descolonizadoras do feminismo hegemônico branco nos chamam atenção para a observação das categorias “mulher” e “gênero” como definidas pela colonização, pela modernidade como um modo de universalizar e apagar outras categorias que devem ser nomeadas a partir de suas experiências, situadas não só como parte do processo histórico idealizado pela modernidade.

Miñoso (2020) nos alerta para a colonialidade da razão feminista, em que faz a crítica ao feminismo constituído pelo viés eurocêntrico e norte-americano, em face de desvelar as raízes coloniais em que a suposta epistemologia se ancorou juntamente com os traços da modernidade.

[...] De que maneira é possível contribuir com a construção de uma contra memória que nos permita evidenciar os jogos de poder, as relações hierárquicas que ocultam e colaboram com a produção local de subalternidade no “Sul global” e o rompimento interno do “sujeito colonial”? Se foi Mohanty que nos advertiu sobre o colonialismo discursivo dos feminismos do Norte, é a prática feminista subalterna que mostra o colonialismo internalizado, os dispositivos de controle e as estratégias de produção e conservação do poder de uma minoria dentro do campo feminista da América Latina. A ferida colonial sangra mais em umas que em outras. Os feminismos hegemônicos do Norte precisam da cumplicidade dos feminismos hegemônicos do Sul para dar continuidade à história de colonização e dependência. É por isso que uma análise dos feminismos do Sul e de sua relação de dependência com os feminismos do Norte precisa ser complexa de desfazer o mito de uma suposta unidade interna do sujeito “mulher” e nos permitir observar um campo vivo de disputa de sentidos na América Latina pós-independências, que acaba sendo resolvida com a imposição e a violência simbólica e material sobre aquelas cujos os corpos estão marcados por processos de racialização e contínua exploração, que chamo de “a outra da outra” (MIÑOSO, 2020, p. 113).

A autora problematiza o feminismo branco, hegemônico do Norte Global, aquele que faz crítica às opressões de uma parcela da população (mulheres brancas) e que questiona a objetividade científica que desconsiderou “mulheres” adequando os princípios de hierarquização entre o masculino e feminino. E, a crítica da qual nos apoiamos em Miñoso é que essa suposta razão feminista somente abrigou em seus questionamentos as mulheres brancas desconsiderando as “outras das outras” mulheres negras, mulheres não brancas.

O enquadramento que se faz do conceito de gênero não acolhe todas as mulheres, ou seja, de alguma maneira tenta universalizar um sistema de desigualdades aprisionando a categoria “mulher” como a única experiência feminina entre mulheres brancas.

Ser uma mulher negra já carrega uma série de preconceitos, essas dificuldades já vão bem além quando se pensa numa mulher negra que mora na periferia, pobre, lésbica e vai mais além, o caldo vai entornando ainda mais, é tudo muito difícil, eu sou mulher negra que faz capoeira, que vive de capoeira, me alimento de capoeira (Narrativa 3).

Esta narrativa dialoga com os questionamentos sobre a falta de uma memória feminina e a relevância da inclusão de experiências que anteriormente não eram visíveis. Contrariando noções universalizantes e binárias, o conceito de colonialidade de gênero insere outras categorias que não somente a categoria mulher e gênero, mas a categoria raça torna-se visível através da discussão dos efeitos da colonização nas categorias homens/ mulheres, machos/ fêmeas.

A capoeira me fez enxergar como branca, privilegiada e me fez participar de discussões sobre isso, se não fosse à capoeira, talvez eu como bióloga não tivesse essa discussão, esse não seria o foco da minha profissão (Narrativa 6).

A narrativa citada acima nos demonstra que seus processos formativos na capoeira a fizeram sentir outras questões que não perceberia se não tivesse a aprendizagem transmitida pelos saberes ancestrais que estão presentes na manifestação cultural da capoeira. Os efeitos da colonialidade encontram-se em nossa sociedade, e a partir de suas vivências como uma mulher capoeirista pode se questionar diversas vezes sobre suas experiências, sobre seus privilégios como uma mulher branca.

Um dos questionamentos que se faz ao conceito de gênero é que tal desconsidera outros pontos entre raça e classe, ou qualquer experiência local e a partir daí criase uma experiência global. O feminismo hegemônico torna-se colonial, pois sua epistemologia inicial se caracteriza por apagar e silenciar outras identidades, igualmente decorre como um dos princípios da modernidade em exterminar qualquer experiência dos colonizados.

Oyéwúmi (2021), expõe que para o contexto ocidental, a construção social e o determinismo biológico tem sido dois lados da mesma moeda, ambos os lados continuam se reforçando da mesma maneira. “Quando categorias de gênero são construídas, novas biologias da diferença podem ser inventadas p. 37.”

Para a autora um conceito alimenta o outro, ou seja, para a cosmovisão ocidental que privilegia o “olhar” sobre as diferenciações é necessário que a biologia justifique a cultura e a cultura justifique a biologia, de acordo com a autora:

A biologização inerente à articulação ocidental da diferença social não é, no entanto, universal. O debate feminista sobre quais papéis e quais identidades são naturais e quais aspectos são construídos só tem sentido em uma cultura na qual as categorias sociais são concebidas como não tendo uma lógica própria independente. Este debate, certamente, desenvolveuse a partir de certos problemas; portanto, é lógico que em sociedades nas quais tais problemas não existem não deveria haver tal debate. Mas, então, devido ao imperialismo esse debate foi universalizado para outras culturas; e seu efeito imediato é introduzir problemas ocidentais onde tais questões originalmente não existiam. Mesmo assim, esse debate não nos leva muito longe nas sociedades em que os papéis sociais não são concebidos como enraizados na biologia. Da mesma forma, em culturas nas quais o sentido visual não é privilegiado, e o corpo não é lido como um modelo da sociedade, as invocações da biologia são menos prováveis de ocorrer porque tais explicações não têm muita importância no campo social. O fato de muitas categorias de diferença serem socialmente construídas no Ocidente pode sugerir a mutabilidade das categorias, mas também é um convite a construções intermináveis de biologiasna medida em que não há limite para o que pode ser explicado por meio do apelo ao corpo[...] (Oyéwúmi, 2021, p. 37).

A crítica da autora é válida e merece destaque justamente ao questionar em que medida atribuímos valores sociais ao conceito de gênero de modo a reproduzir as diferenciações corporais biologizantes ou como ela acentua como uma bio-lógica reprodutiva ocidental para marcar o social.

O conceito de gênero é passível de se analisar historicamente, temos o entendimento de que se é uma construção histórica e social, sendo plenamente possível de que sua existência se dá em alguns lugares, espaços e tempos e outros lugares, espaços, tempos ele não tem sua existência, a não ser que sua existência seja construída (OYÉWÚMI, 2021).

Tem uma coisa que eu acho errado como mulher, eu não sou feminista, eu só acho que uma coisa que não concordo, o mestre tem o mesmo tempo de categoria que eu, mas pagar quinhentos reais para ele ou não pagar para mim, ou só cem reais pra mim. Eu não vou porque eu sou uma profissional da área, eu também tenho que ser respeitada.

Com os homens fazem os eventos e eles falam “Ah, vai mestre fulano”, vai pegar um Mestre Pinatti da vida, tudo bem, é outra coisa, o Mestre Gladson, mas você vai pegar o mesmo cara que tem o mesmo tempo que eu de capoeira e por que que ele vai me dar somente cem reais? Então, também na capoeira a mulher é desvalorizada quando ela é chamada para o evento [...] (Narrativa 5).

O gênero é uma questão de relações sociais operantes dentro do ocidente presente entre os indivíduos e grupos. E não é diferente no universo da capoeira, sendo o movimento cultural criado dentro do processo de diáspora compulsória no Brasil colonial.

A narrativa 5 especifica diferenças sociais que muitas vezes são naturalizadas, culminando na desvalorização feminina também na capoeira.

As mulheres tiveram muita dificuldade para chegar e hoje tem muitas cantando, inclusive compondo, mas por muito tempo foram só os homens. Como se aquele universo da bateria fosse só dos homens e as mulheres não pudessem estar próximas, isso também é um grande machismo. O machismo impera em todos os lugares, esse machismo não é diferente dentro da capoeira. Eu conheço muitos homens que apoiam a causa de que as mulheres têm que estar presentes, mas também é muito velado, eles falam aqui para você e depois eles viram as costas (Narrativa 3).

Daí a necessidade de pensar nas interações de gênero como sendo representadas por suas relações sociais. Podemos entender os termos diferenças e diferenciações não como algo que rompe com a composição das relações sociais, mas como termos que localizam e nomeiam os sujeitos em suas relações sociais, em grupos sociais e entendendo que outros conceitos estão juntos, o conceito de colonialidade de gênero deve ser entendido e compreendido como fundamental para o entendimento das relações de raça e gênero, entre colonizadores e colonizados na contemporaneidade.

E ao longo do tempo eu vi muitas dessas mulheres saindo da capoeira, isso é uma coisa recorrente, as mulheres vão parando por mil e um motivos, nós sabemos que tem os machismos de todo dia que acontecem na sociedade, e dentro da capoeira acontecem também [...] (Narrativa 6).

As representações femininas e masculinas se relacionam com as culturas, com o modo que vivenciam os corpos por meio das relações sociais. Transgredir as fronteiras de gênero nos traz a reflexão de que muitas imposições ao feminino e masculino são traduzidas em seus corpos como algo “natural”, nossa observação corrobora para que essas considerações se tornem afirmações de modo a desnaturalizar certos comportamentos.

[...] Se o gênero é socialmente construído, então não pode se comportar da mesma maneira no tempo e no espaço. Se o gênero é uma construção social, então devemos examinar os vários locais culturais/ arquitetônicos onde foi construído, e devemos reconhecer que vários atores localizados (agregados, grupos, partes interessadas) faziam parte da construção. Devemos ainda reconhecer que, se o gênero é uma construção social, então houve um tempo específico (em diferentes locais culturais/ arquitetônicos) em que foi “construído” e, portanto, um tempo antes do qual não foi. Desse modo, o gênero, sendo uma construção social, é também um fenômeno histórico e cultural. Consequentemente, é lógico supor que, em algumas sociedades, a construção de gênero não precise ter existido (Oyéwúmi, 2021, p. 39).

A autora traz como referência a abordagem transcultural, demonstrando a importância dessa observação não partir de uma organização cultural universalizante (em contraponto muitas vezes com a lógica ocidental que faz interpretações de determinadas culturas sob seus “olhos”). E continua a sua crítica em relação a mutabilidade de gênero, a categoria realmente se transforma se for construída socialmente e não dependente da biologia ou de um determinismo biológico assim como outras categorias/ conceitos ocidentais que oferecem subsídios para a organização do mundo.

Este posicionamento entre o humano e não humano, entre colonizador e colonizado, homens e mulheres, esta forma de distinção é abordada por Oyérónké Oyéwúmi (2021) ao apontar como o ocidente localiza as diferenciações entre os corpos em que o modo de “olhar” destaca o diferente, ignorando qualquer outro sentido em seu modo de socialização, segundo a autora:

A razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é percebido principalmente pela visão. A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo, cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao “ver”. O olhar é um convite para diferenciar. Distintas abordagens para compreender a realidade, então surgem diferenças epistemológicas entre as sociedades (OYÉWÚMI, 2021, p. 29).

Assim qualquer cultura que possa privilegiar outros sentidos que não seja o visual, como apontado por Oyéwúmi em que a oralidade constitui outra percepção de mundo, acaba sendo encoberta e apagada pelo “olhar ocidental”:

[...] O termo “cosmovisão”, que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta o privilégio ocidental do visual. É eurocêntrico usá-lo para descrever outras culturas que podem privilegiar outros sentidos. O termo “cosmopercepção” é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais [...] (OYÉWÚMI, 2021, 29).

Como demonstra a autora este “olhar” da diferença é um olhar ocidental generificado que classifica e nomeia os corpos de mulheres e homens em diversas sociedades, assim como relatado este “olhar” se fixa em uma ou outras culturas, especificamente a cultura iorubá descrita pela autora em seu livro.

A abordagem universalista ocidental busca interpretar e significar suas verdades sendo “visualizadas” e diferenciadas de modo a privilegiar uma cultura (a sua cultura) em detrimento de outras culturas, a cosmopercepção é uma outra chave de compreensão, um modo outro de nomear e sentir o mundo a partir de outros sentidos e significados desconsiderados pela “verdade absoluta” universal do ocidente.

Encontramos relações entre o conceito de colonialidade e cosmopercepção. Ambos tratam de culturas que foram atravessadas pelos efeitos da colonização. A colonialidade faz a crítica à desumanização organizada pela ordem colonial e a cosmopercepção interpreta outras significações culturais que a colonização tentou apagar/ silenciar.

Considerando que a capoeira se constituiu durante o Brasil colônia, encontramos ressonância na noção de cosmopercepção, ao se reportar à culturas que (re)nascem dentro dos modernos aparatos coloniais, frente aos seus dispositivos de poder que tentam impedir o reconhecimento de saberes e a existência de colonizados e colonizadas.

María Lugones (2008), amplia o conceito de colonialidade e discute a colonialidade de gênero. A ideia discutida advém da intersecção entre raça, classe, gênero e sexualidade, que permite vislumbrar que mulheres negras e não brancas (mujeres de color4) são vítimas da colonialidade do poder da qual não se separa a colonialidade de gênero.

Sua argumentação está presente dentro da tradição de pensamento de mulheres de cor que têm criado investigações críticas ao feminismo hegemônico, que muitas vezes ignora as relações entre raça, classe, gênero e sexualidade. Essas análises críticas se baseiam em um feminismo decolonial em resposta ao pensamento do feminismo hegemônico.

A autora se baseia nos estudos referidos pelo autor Aníbal Quijano, para tratar dos conceitos de colonialidade, colonialidade do poder, ser e saber, decolonialidade e o sistema moderno-colonial. Em análise feita por Lugones, a autora chama atenção para“el sistema modernocolonial de género”. Em suas palavras:

[...] Caracterizar este sistema de género colonialmoderno, tanto en trazos generales, como en su concretitud detallada y vivida, nos permitirá ver la imposición colonial, lo profundo de esa imposición. Nos permitirá la extensión y profundidad histórica de su alcance destructivo. Intento hacer visible lo instrumental del sistema de género colonial/moderno en nuestro sometimiento - tanto de los hombres como de las mujeres de color en todos los ámbitos de la existencia [...] (LUGONES, 2008, p. 77).

Vale ressaltar que em seu ensaio a autora compreende o destaque feito por Quijano (2005) entre raça e gênero, entre o padrão de poder capitalista, eurocentrado e global. Tanto raça como gênero adquirem um significado com a imposição desse padrão colonial de poder.

Em seu texto, Lugones (2008) faz uma crítica a Quijano (2005), por não se atentar às próprias questões que envolvem a colonialidade do poder ao pensar em gênero e sexualidade. Entendemos suas críticas e achamos pertinentes, mas também encontramos caminhos para um pensamento entre esses dois autores que discorrem sobre gênero e raça, de como a colonialidade do poder atua entre as diferenças sociais impostas pela colonização.

Lugones (2008) considera central em sua investigação que as relações sociais não estejam subordinadas ao padrão heterossexual patriarcal de gênero, afirmando que devemos entender como essas relações estão posicionadas historicamente. Assim, concebe a necessidade de compreender como as fissuras históricas específicas se organizaram em um sistema moderno/colonial de gênero (dimorfismo biológico, a organização patriarcal e heterossexual e suas relações sociais) e centraliza a compreensão da diferença de gênero em termos raciais.

María Lugones considera, ainda, os efeitos da colonialidade como aqueles que constituem os sujeitos, são efeitos da existência social e, como consequência, da dominação colonial.

Segundo a autora, em diálogo com Quijano (2005):

[...] Con la expansión del colonialismo europeo, la clasificación fue impuesta sobre la población del planeta. Desde entonces, ha permeado todas y cada una de las áreas de la existencia social, constituyendo la forma más efectiva de la dominación social tanto material como intersubjetiva. Por lo tanto, «colonialidad» no se refiere solamente a la clasificación racial. Es un fenómeno abarcador, ya que se trata de uno de los ejes del sistema de poder y, como tal, permea todo control del acceso sexual, la autoridad colectiva, el trabajo, y la subjetividad/intersubjetividad, y la producción del conocimiento desde el interior mismo de estas relaciones intersubjetivas. Para ponerlo de otro modo, todo control del sexo, la subjetividad, la autoridad y el trabajo están expresados en conexión con la colonialidad. Entiendo la lógica de la «estructura axial» en el uso que Quijano hace de ella como expresando una inter-relación, todo elemento que sirve como un eje se mueve constituyendo y siendo constituido por todas las formas que las relaciones de poder toman, con respecto al control, sobre un particular dominio de la existencia humana [...] (LUGONES, 2008, p. 79).

Em função disso, a colonialidade de gênero acompanha as distinções hierárquicas e dicotômicas entre homens e mulheres. Começando com a colonização das Américas e do Caribe, as diferenciações também classificatórias entre humano e não humano foram impostas sobre os/as colonizados/as (LUGONES, 2014):

[...] Só os civilizados são homens ou mulheres. Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/ as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas - como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/ agente apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento, mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade, e por estar atada ao lar à serviço do homem branco europeu burguês [...] (LUGONES, 2014, p. 936).

A partir dessa reflexão, podemos dizer que a distinção entre o humano e o não humano, em que o sexo era localizado como algo a ser isolado e a sexualidade atribuída ao “selvagem”, posicionava os/as colonizados/as como inferiores, mostrando-se como um dos modos de domesticação exercida pelos colonizadores.

Ao explorarmos certos conceitos entendemos o quanto a sua lógica é enraizada através dos princípios da modernidade, em que o conceito de colonialidade expõe as rasuras e fissuras conceituais e práticas de determinadas teorias universais, de teorias com suas implicações em determinados grupos sociais, grupos esses caracterizados como colonizados e colonizadores.

E que outros conceitos são inscritos por meio dessa lógica, ao observarmos o conceito de gênero e a categoria mulher, e para além de suas fissuras, visualizamos a lógica moderna eurocêntrica e norte-americana presente neste, em que o feminismo branco hegemônico tentou de algum modo apagar outras histórias e experiências de mulheres em sua pluralidade.

A colonialidade de gênero como um conceito expõe experiências sociais de “outras” mulheres que tem presente diversas categorias interpretativas em suas localizações, e temos a capoeira como campo de estudo que auxilia nessa investigação, pois também tem sua criação a partir do sequestro colonial, ou seja, sua constituição advém dos ideias modernos citados ao longo do texto.

Por isso que eu sempre digo que para ser quem eu sou foi dentro da capoeira, a capoeira que meu deu essa força, essa vontade de falar, eu vou estar nesse ambiente sim, esse ambiente é a minha história também. A capoeira tem toda essa questão da ancestralidade que fortalece a gente enquanto mulher. Então, assim, essa força que eu tenho foi a capoeira que me deu, se eu fizesse qualquer outra coisa eu não teria a força que eu tenho hoje de estar, de entrar e sair de qualquer lugar de cabeça erguida, eu não sou uma mestra de capoeira escondida, eu sou mestra de capoeira com muito orgulho (Narrativa 3).

Ademais, a colonialidade e a colonialidade de gênero são conceitos que se referem à sociedade ocidental e a capoeira não é uma cultura isolada no mundo, é cultura permeada pelos efeitos da colonização, da colonialidade e da colonialidade de gênero.

Considerações finais

Nesse dia fizeram uma homenagem e não sabia que eu era tão importante, eu só vivi a capoeira. E vi várias meninas me olhando e me admirando. Elas levantaram a minha história na capoeira, fotos que eu nem sabia que existiam e me dei conta que em São Paulo eu sou uma referência (Narrativa 5).

Este Corpos, gêneros e sexualidades problematiza a produção e a manutenção de ausência do protagonismo feminino na capoeira, assim como, cria condições de visibilidade à presença de mulheres nessa arte, por meio de suas narrativas.

Tratamos de tensionar as práticas formativas culturais afrodiaspóricas, cujo recorte é a capoeira, destacando a relevância de vozes plurais, narrações e memórias de mestras de capoeira que testemunham enfrentamentos e (re)existência de mulheres num universo ainda fortemente machista, patriarcal e colonial, podendo tal discussão se desdobrar a outros campos sociais, educacionais e formativos. Realizamos um movimento de escuta, diálogos, reflexões e escrituras com mulheres mestras de capoeira, na pequena e grande roda no Estado de São Paulo.

Nesse contexto, é necessário a (des)construção de alguns (pre)conceitos. Ouvimos, conhecemos e (co)produzimos memórias de mestras de capoeira com o intuito de descolonizar mentes e corpos, tendo em vista contribuir com os contextos educacionais e formativos das práticas culturais afrodiaspóricas, nesse caso, a capoeira. Consideramos que a outridade é resistência e (i)materialidade em ginga, na imprevisibilidade e atualização dos jogos/ corpos-territórios-pensamentos em movimento, mobilizando tensões e (re)significações do lugar e da presença de mulheres, ainda, subalternizadas, historicamente e politicamente, ocultadas/ silenciadas.

Tensionamos experiências para gingarmos com uma noção de educação/ formação inclusiva envolvida com a (trans)formação da descolonização, rompendo com a lógica de pensamentos e práticas racistas, sexistas, classistas e colonialistas. Referências estas que permeiam e sustentam a lógica moderna universal em nosso cotidiano.

A pesquisa nos possibilita questionar conceitos em seu universalismo, dos quais não articula experiências plurais de mulheres, interseccionadas entre gênero, raça, classe e outras categorias.

Os conceitos de colonialidade de gênero e cosmopercepção encontram-se em diálogo ao tecer a crítica à colonização. A colonialidade possibilita problematizar o que muitas vezes tenta-se apagar/silenciar. Criamos fissuras, a fim de descolonizar e incluir outras narrativas, em nosso estudo, de mulheres subalternizadas.

Vale comentar que, ainda que o conceito de gênero seja relevante na luta de equidade entre homens e mulheres, uma vez que é a partir de gênero que diversas políticas públicas são implementadas para atender a população, destacamos a pertinência da crítica à concepção de suas diferenciações iniciais entre os seres humanos colonizados e colonizadores. Ambos nomeados entre homens e mulheres, machos e fêmeas, a partir daquilo que foi chamado de Colonialidade de gênero, sendo passível de crítica o conceito de gênero, já que por si só tende a ignorar o conceito de raça, desconsiderando a necessidade de discussão, assim como, de sua invenção pelo moderno aparato colonial.

Fizemos nossa ginga com a manifestação cultural da capoeira, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil (IPHAN, 2008) e da Humanidade (UNESCO, 2014), historicamente constituída como um espaço de sociabilidades predominantemente masculino, desde o período colonial-escravista. Problematizamos o “Dossiê/Inventário para Registro e Salvaguarda da capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil” apesar de importante documento que impulsiona e divulga a capoeira como patrimônio cultural vivo.

Ressaltamos como justo e necessário o reconhecimento de memórias de mulheres capoeiras, a fim de mitigar o apagamento e o silenciamento de suas narrativas. Esperamos contribuir para o entendimento do conceito de colonialidade de gênero, ponderando rasuras e fissuras nas categorias de gênero e de mulher como produções da lógica colonial, moderna e universal.

As escrituras produzidas de modo coletivo por meio das escutas, narrações, interlocuções, reverberações e intersecções, entre pesquisadora e participantes do estudo na perspectiva epistemopolítica da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica, são descolonizadoras, como modos outros de produzir conhecimento, ao conferir centralidade às experiências subalternizadas historicamente e politicamente. Destarte, os estudos decoloniais, feministas e inclusivos credibilizam outras epistemes, numa pluriversalidade, distanciando-se da busca por verdades universais monoculturais, monorraciais, rompendo com dicotomias positivistas e coloniais de pesquisa.

Por fim, propomos pensar a capoeira como um tipo de Educação que atua por meio de processos formativos, cuja gira se potencializa em torno do NÓS, construída, sentida e “jogada” por pessoas e ancestralidades.

Desejamos uma educação descolonizadora e inclusiva que problematize as formas capilares e multifacetadas de colonialidades impostas aos corpos e pensamentos de todos nós.

Que a capoeira possa “jogar”, resistir e (re) existir aos modos da colonialidade de gênero e demais lógicas coloniais, potencializando e (re) criando memórias coletivas em outras chaves de percepção na vida social de forma subjetiva, amorosa em sua prática política de liberdade.

1A pesquisa foi aprovada pelo CEP, contemplando os procedimentos éticos recomendados pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), número do CAAE: 18810919.0.0000.8142. O documento conta com a participação de modo voluntário como forma de assegurar os direitos das participantes da pesquisa.

2 Conforme Bragança (2018)a entrevistaconversa é um dispositivo metodológico na pesquisaformação narrativa (auto)biográfica.

3 Bragança (2018) utiliza a união de palavras e o destaque em itálico de maneira a apontar a inseparabilidade dos conceitos e favorecer a junção de sentidos. Em seus escritos, caminha com autoras e autores que relacionam as pesquisas do cotidiano como uma forma de se contrapor aos limites muitas vezes apresentados pelas ciências modernas.

4Expressão utilizada pela autora originada nos Estados Unidos por mulheres que são vítimas de dominação racial, mujeres de color designa uma terminação entre coalizões de diversas opressões. Não se trata somente de um marcador racial, mas sim de uma dominação racial. Lugones não aponta uma identidade que separa os grupos de mulheres e nos quais estão presentes mulheres indígenas, mestiças, mulatas, negras: cherokees, porto-riquenhas, sioux, chicanas, mexicanas que são vítimas da colonialidade de gênero. Além de vítimas, a autora destaca que essas mulheres são protagonistas de um feminismo decolonial.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Rosângela Costa. Ginga uma epistemologia feminista. In Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 Women’s Words Congress, Florianópolis, (Anais Eletrônicos) Florianópolis v. 11. n.13, n. p. 2017. Disponível em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499469814_ARQUIVO_Gingaepistemologiafeminista. Acesso em 31. mar. 2023. [ Links ]

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças dos velhos. 17ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 484 p. [ Links ]

BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Pesquisaformação narrativa (auto)biográfica: trajetórias e tessituras teórico-metodológicas. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto et al. Pesquisa (auto) biográfica: diálogos epidêmico-metodológicos. Curitiba: CRV, 2018, v.1, p. 65-81. [ Links ]

GONÇALVES, Maria Alice Rezende; PEREIRA, Vinicius de Oliveira. Educação e patrimônio: notas sobre o diálogo entre a escola e a capoeira. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n.62, Dez. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rieb/a/K3yKrQpj8GCpKmVsKZ7X6my/?lang=pt. Acesso em 31.mar.2023. [ Links ]

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66.2008 . Acesso em: 20 jan. 2020. [ Links ]

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Dossiê - Inventário para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil. Wallace de Deus Barbosa (Coord.). Brasília: 2007. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossi%C3%AA_capoeira.pdf> Acesso em 15 set. 2021. [ Links ]

LIMA, Norma Silvia Trindade de. Capoeira em diáspora: capturas, insurgência e (re) existências por uma educação decolonial e inclusiva. Perspectiva: REVISTA DO CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO. Florianópolis, v. 39, n. 4, p. 1-17, out./ dez. 2021a. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/67913. Acesso em 5 de mai. 2023. [ Links ]

______. Capoeira: interfaces na educação e cultura. In SPIGOLON, Nima I. et al. Tambores, Urucuns e Enxadas: práticas e saberes contribuindo para a formação humana. Ituiutaba: Barlavento, 2019, p. 248-261. [ Links ]

______. Inclusão escolar e pertencimento, cruzos a partir da experiência: capoeira e decolonialidade. In MANTOAN, Maria Teresa Egler e LANUTI, José Eduardo de Oliveira Evangelista (Orgs.). Todos pela inclusão - dos fundamentos às práticas. Curitiba: CRV, 2021b. p.121-130. [ Links ]

LUGONES, María. Colonialidad y Género. Tabula Rasa. Bogotá- Colombia, No 9: p. 73-101, jul./ dic. 2008. [ Links ]

______. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 22 n. (3), p.935-952. set/ - dez. 2014. [ Links ]

MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO- TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 27-54. [ Links ]

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade. O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.32, n. 94, p. 1-18. jun/2017. [ Links ]

MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. Fazendo uma genealogia da experiência: o método rumo a uma crítica da colonialidade da razão feminista a partir da experiência história na América Latina. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de; autoras VAREJÃO, Adriana (orgs.). Pensamento Feminista hoje: perspectivas decoloniais - 1a. ed. - Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. n.p. [ Links ]

OYÈWÚMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. 1a. Ed. tradução Wanderson Flor do Nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. 324 p. [ Links ]

QUIJANO, Aníbal. A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. In Edgardo Lander (org.). Perspectivas latinoamericanas. CLACSO- Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad AutÛnoma de Buenos Aires, Argentina: ColecciÛn Sur Sur, CLACSO, p.117-142. set. 2005. [ Links ]

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica Educação e realidade. Porto Alegre: vol. 20, no 2, p. 1-35, 1995. [ Links ]

Recebido: 28 de Agosto de 2023; Aceito: 11 de Outubro de 2023

*

Pedagoga, licenciada pela Universidade Federal de São Carlos campus-Sorocaba. Mestra em Educação pelo PPGEd/ UFSCar e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas(PPGE/FE-UNICAMP). https://orcid.org/0009-0003-9259-8205. E-mail: m229642@dac.unicamp.br

**

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - FE/UNICAMP; Departamento de Ensino e Práticas Culturais - DEPRAC, Linha de pesquisa (8): Linguagem e Arte em Educação, Grupo de pesquisa Educação, Linguagem e Práticas Culturais - PHALA/campo de pesquisa: Educação e (re)existências em práticas culturais afro-diaspóricas. Integrante e graduada (professora) em capoeira pelo Instituto Brasileiro de Esporte, Cultura e Arte, IBECA (2018). E-mail: normatl@unicamp.br

Creative Commons License Este é um Corpos, gêneros e sexualidades publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.