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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.33 no.73 Salvador Jan./Mar 2024  Epub May 01, 2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v33.n73.p321-331 

Artigo

INTERNACIONALIZAçÃO INTERCULTURAL E REDES COLABORATIVAS: ENTREVISTA COM MARILIA MOROSINI, UMA REFERÊNCIA DA PESQUISA EM INTERNACIONALIZAçÃO DA EDUCAçÃO NO BRASIL

INTERNACIONALIZACIÓN INTERCULTURAL Y REDES DE COLABORACIÓN: ENTREVISTA CON MARILIA MOROSINI - REFERENCIA EN INVESTIGACIÓN SOBRE LA INTERNACIONALIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN EN BRASIL

Augusto César Rios Leiro1 

Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Professor Titular do Departamento de Educação II da Universidade do Estado da Bahia (Campus de Alagoinhas) e Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (UNEB) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFBA). E-mail: aleiro@uneb.br


http://orcid.org/0000-0002-6075-5187

Mônica Fantin2 

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina e docente permanente do Programa de Pós-graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação e Comunicação da UFSC. Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte. E-mail: monica.fantin@ufsc.br


http://orcid.org/0000-0001-7627-2115

Marília Costa Morosini3 

Professora Titular - College of Education Graduate Program PPGEdu FACED- PUCRS. Possui licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais, mestrado em Sociologia Educacional, doutorado em Educação pela UFRGS e pós-doutorado no LILLAS/ Universidade do Texas (2002/2003). Bolsista produtividade 1A do CNPq. Prêmio: Pesquisadora Gaúcha 2021 (FAPERGS). Scholar da New Castle University, School of Education, Communication and Linguistic Sciences. Lecture da Cátedra Unesco de Sustentabilidade da Universidade Católica de Brasília, UCB. Participa(ou) de projetos nacionais INEP/CNE e internacionais IAU/UNESCO/CNPq/UTexas, CPLP: INNOVACESAL (UE), ACRO, Alfa-Guia (UE), Newsatle (British COuncil), NEIES/Mercosul, entre outros. Coordenadora do Centro de Estudos em Educação Superior, CEES, PUCRS, Rede Sul Brasileira de Investigadores da Educação Superior, da RIES, e do Núcleo de Excelência em C, TI, CNPq/FAPERGS/PRONEX (2005 - 2009 e 2017 - 2022) e Coordenadora do Centro Internacional de Educação Brasil-Australia (2020-2023). E-mail: marilia.morosini@pucrs.br


http://orcid.org/0000-0002-2433-5783

1Universidade do Estado da Bahia Universidade Federal da Bahia

2Universidade Federal de Santa Catarina

3Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul


RESUMO

Trata-se de uma entrevista com a Professora Doutora Marília Costa Morosini, realizada na PUC-RS pelos coordenadores do Dossiê sobre Internacionalização da Educação, Prof. Dr. Cesar Leiro (UNEB/UFBA) e Profa. Dra. Mônica Fantin (UFSC). A entrevista tomada aqui como constructo teórico interessado em revelar experiências investigativas, formulações teóricas e tendências acerca da Internacionalização da educação aborda diferentes entendimentos da educação e da internacionalização, destacando uma perspectiva internacional e intercultural de respeito crítico ao outro e as possibilidades de redes colaborativas. Além do aspecto institucional, destaca-se a Internacionalização em Casa e os aspectos cognitivo e socioemocional no âmbito da formação para o mundo. A natureza semiestruturada da entrevista permitiu ainda percorrer trilhas pessoais e caminhos acadêmicos que transcendem fronteiras com a intenção de oferecer aos leitores e leitoras informações sobre a trajetória acadêmica de uma das mais referenciadas pesquisadora do tema em questão.

Palavras chave: internacionalização da educação; interculturalidade; redes colaborativas; integração curricular; cooperação universitária

RESUMEN

Entrevista realizada a la profesora Marilia Costa Morosini, en la Pontificia Universidad Católica de Rio Grande del Sur, por los coordinadores del Dossier sobre Internacionalización de la Educación: Profesores Dr. Cesar Leiro (UNEB/ UFBA) y Dra. Monica Fantin (UFSC). La entrevista, tomada aquí como un constructo teórico para revelar experiencias de investigación, formulaciones teóricas y tendencias sobre la internacionalización de la educación, aborda diferentes comprensiones de la educación y la internacionalización, destacando una perspectiva internacional e intercultural hacia el respeto crítico por el otro y las posibilidades de las redes de colaboración. Además del aspecto institucional, se destacan la internacionalización en casa y los aspectos cognitivos y socioemocionales de la formación para el mundo. El carácter semiestructurado de la entrevista también permitió explorar trayectorias personales y caminos académicos que trascienden fronteras, todo ello con la intención de ofrecer a los lectores información sobre la trayectoria académica de uno de las investigadoras más referenciadas en el tema en cuestión.

Palabras clave: internacionalización de la educación; interculturalidad; redes de colaboración; integración curricular; cooperación universitaria

ABSTRACT

The interview with Professor Marília Costa Morosini was conducted at PUC-RS by the Internationalization of Education dossier coordinators, Dr. Cesar Leiro (UNEB/UFBA) and Dr. Mônica Fantin (UFSC). The interview is a theoretical construction portraying research experiences, theoretical formulations, and tendencies regarding the Internationalization of Education, highlighting an international and intercultural perspective based on the critical respect of others and the possibilities of collaborative networks. Besides the institutional aspect, the interview highlights the ‘Internationalization at Home’ and the cognitive and socioemotional aspects in the formation for the world. The semi-structured nature of the interview also allows readers to wander on Morosini’s personal and academic pathways, offering more insight into one of the most prominent researchers in the theme.

Keywords: internationalization of education; interculturality; collaborative networks; curriculum integration; university cooperation

Introdução1

Após a aprovação do dossiê sobre Internacionalização da Educação no edital da Revista Educação e Contemporaneidade, imediatamente pensamos na possibilidade editorial de realizar uma entrevista significativa como suplemento qualitativo, para compor o projeto ao lado dos artigos. Uma vez decidido que teríamos uma entrevista no dossiê, formou-se consenso em torno do nome da professora doutora Marília Morosini, ícone dos estudos sobre internacionalização no Brasil.

Contatos protocolares feitos e convite aceito, fomos a Porto Alegre em julho de 2022, para entrevistar nossa convidada. Gentilmente recebidos pela professora Morosini, realizamos a entrevista na PUC-RS, em tom amistoso, ao longo de uma conversa que, por vezes, ganhava vida própria, ao percorrer trilhas e partilhas do tema e histórias de vida.

No momento em que apresentamos a entrevista, para deleite de nossos(as) leitores(as), buscamos manter o contexto da oralidade, a fim de aproximá-los(as) o máximo possível deste encontro, que agora compartilhamos com alegria, ainda mais pelo diálogo profícuo que a maioria dos textos que compõem este dossiê estabelece com a professora Morosini, uma importante referência neste campo de estudos.

Entrevista

Nossa entrevista entrecruzará perguntas e apartes complementares. Uma primeira questão que gostaríamos de saber é: como foi sua aproximação com a temática da Internacionalização da Educação?

Inicialmente, muito obrigada, pelo convite para esta entrevista. Eu fiquei, afetivamente, bastante tocada, porque o pesquisador, vocês sabem, muitas vezes trabalha muito sozinho. Eu, hoje, trabalho muito em equipe e tenho certeza de que a produção em equipe supera aquele isolamento. É um processo de idas e vindas entre o isolamento e a equipe. A síntese do pensamento - e a responsabilidade que temos, vamos dizer, com a produção de conhecimento - é construída entre nós, tem muito da inter-relação nos grupos, da bagagem formativa e familiar, da classe a que pertencemos, enfim do capital cultural e das relações geoeconômicas que interferem no território habitado. Fora isso, também a pandemia, nos colocou no isolamento físico, embora na parte da comunicação digital a gente tenha superado as barreiras geográficas, mas não é a mesma coisa como a que ora estamos, a entrevista presencial. Bom, então eu agradeço muito.

Como é que foi a minha aproximação com o objeto de estudo de mais de 45 anos? Eu sou formada em Ciências Sociais, sou socióloga, e o sociólogo vê o mundo de uma forma mais ampla. Ele vê o mundo na perspectiva do sistema-mundo, aquela relação global, a relação nacional, regional, institucional. Então, mesmo na área da Educação, eu sempre vi os problemas, as questões, nessa perspectiva de sistema-mundo.

Uma outra coisa também fortaleceu a minha entrada na internacionalização: eu sou professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sou aposentada, então isso reforçou essa perspectiva de olhar a questão da educação no Brasil, em última análise, dentro da visão de sistema-mundo. E, mesmo eu sendo professora do Instituto de Filosofia, sempre me dirigi para a perspectiva da educação. Eu lecionei bastante tempo na Faculdade de Educação, mas sempre nessa perspectiva de pensar a educação nessa relação maior. Essa foi a minha aproximação. Eu posso dizer - e aí é uma questão de carreira -, você começa a orientar nessa perspectiva, começa a pensar. E, se pensarmos um pouco além, ainda na UFRGS, eu comecei a trabalhar com a questão do Mercosul, sempre muito com foco na América Latina, mas não esquecendo que a América Latina está num contexto global - e ainda, também, que o Brasil está na América Latina.

Quais os principais teóricos que influenciaram e fundamentam sua trajetória no campo de estudos sobre a internacionalização?

O tema da internacionalização, como colocado anteriormente, eu o formalizei no final da década de 1980, ainda na UFRGS. Comecei a pesquisar o Mercosul, que era e foi aquele momento em que o sistema governamental, a América Latina, principalmente - num primeiro momento, quatro países no sul da América Latina começaram a pensar juntos: por que nós não podemos fazer uma circulação de diplomas? Porque aí, depois, eu vou retomar, mas a questão é a seguinte: inicialmente, se a gente pensar no processo de internacionalização, é por aí que eu vou aos teóricos. Sempre foi [um tema] muito pensado no global norte, nos países ditos desenvolvidos, e aqui me refiro, basicamente, aos Estados Unidos e à velha Europa, vamos dizer assim. Mas era muito pensado em termos de mobilidade, porque, se nós olharmos para os Estados Unidos, eles sobrevivem pela mobilidade. As aulas a que se assiste, por exemplo, elas têm chineses, asiáticos, dominando. E, na perspectiva de Portugal e Espanha, há uma presença significativa de latino-americanos e africanos, no primeiro caso. Então, surgiram dessa parte os meus teóricos. E ainda tinha uma outra questão muito específica: quem discutia internacionalização nesse global norte não eram tanto pessoas da faculdade de Educação, eram muito mais administradores da área, digamos, que poderia ser de Relações Internacionais, mas muito mais gestores de instituições universitárias. O papo era esse. E eu me alimentei. Quando eu fazia meu doutorado, talvez essa também tenha sido uma das colocações que me abriu os olhos para o processo de internacionalização numa outra perspectiva. Existiam fortes associações de Educação Superior, que no Brasil acho que não existem ainda. No Brasil, nós temos uma ANPEd, e lá dentro tem os GTs de Educação Superior, mas não existe, pelo menos com uma visibilidade forte, uma associação que pense somente a Educação Superior e que tenha reconhecimento e êxito. Não existe isso; está sempre se formando. Mesmo o nosso grupo Ries [Rede Sulbrasileira de Investigadores da Educação Superior], que existe desde 1999, não teve força para criar uma associação. Hoje, a professora Malu [Maria Lucia Almeida], juntamente com o grupo da Unicamp, é uma das únicas que edita uma revista de Educação Superior.

Meus primeiros teóricos, inicialmente, foram da América Latina. Quando comecei a trabalhar com Mercosul, era América Latina, e Quijano2 - talvez um dos mais potentes -, pensava essa perspectiva que nós defendermos. Naquela época, não se estudava o global sul, pois se trabalhava com países desenvolvidos, subdesenvolvidos, primeiro e terceiro mundo. Essa dicotomia deixa muito claro toda essa concepção.

Então, eu iniciei no Mercosul, muito voltada para a América Latina, onde realmente o Quijano era o mais potente. Ele ainda é uma forte referência. Quando eu vou pro doutorado, eu vou pro global norte. E eu fico sabendo da enorme extensão de produção sobre internacionalização, porque aqui, pela América Latina, eu era uma isolada pensando internacionalização na educação. Na Faculdade de Educação, eu era isolada, pensando a internacionalização. Os temas eram muito ligados à Educação Básica: metodologias de ensino e, posteriormente, de aprendizagem.

Então, a primeira questão foi essa da América Latina. Eu entro no doutorado, eu começo a pensar, eu vou a congressos de Educação Superior, começo a ver que existem pessoas, existem outras realidades, mas que não são para a América Latina. Existe a realidade de pensar a internacionalização como mobilidade, então é na América Latina que nós vamos, seja ela presencial ou virtual, ela vai ser a principal forma de pensar a internacionalização.

E aí eu vou para, obviamente, o conceito da Jane Knight3, que hoje circula ainda muito fortemente, porque ela tem uma característica: o conceito dela é muito importante na medida em que já trabalha com a questão de trazer para a instituição, trazer mais o institucional mesmo, aquela característica não só do internacional, mas do intercultural. Eu acho que, no Brasil, a questão da interculturalidade não está ainda bem discutida, pelo menos não na perspectiva da internacionalização da educação.

Nesse sentido Jane Knight influenciou fortemente seu pensamento.

Sim, é a questão da network dominante em termos de internacionalização. A Knight e as pessoas ligadas ao Centro Internacional de Educação Superior do Boston College. O pensamento deles, num primeiro momento, não é para o território latino-americano. Há a prevalência do tipo de internacionalização como mobilidade. Basicamente a mobilidade in: atrair estudantes. Porque a realidade onde é produzido esse pensamento é uma realidade diferente da nossa. No Brasil, a mobilidade é a out, a saída do país, ela é toda para o exterior. E, quanto à in, nós temos baixíssima capacidade de atração. Se olharmos os dados, não chega a ser 1% de toda a circulação de estudantes estrangeiros no mundo. Então, o que é 1% para nós frente a mais de 8 milhões de matriculados na Educação Superior? Nada. Atração é menor ainda.

Então, nós temos que pensar em outras formas de internacionalização. Eu me bato, e agora já não é uma perspectiva mais minha, digamos, pensando primeiro a América Latina, depois a questão desse global norte. Já na década de 80 - eu, nessa época, já trabalhava o global norte -, eu fiz aqui um seminário de países de língua oficial portuguesa. O que eu quero dizer? Eu pensava a América Latina, pensava o Brasil, eu pensava o global sul, tanto que eu trouxe para cá, com apoio da Capes e do CNPq, um seminário, para o qual vieram representantes de todos os países, desde o Timor-Leste, até Moçambique e Portugal, todos os países de língua portuguesa, para nos conhecermos e discutirmos possíveis saídas para o global sul. Mas eu não consegui liderar o prosseguimento a essa relação.

Podemos considerar que essa questão da interculturalidade é uma tendência nos estudos atuais, e o desafio parece ser pensar essa coexistência e a busca do diálogo.

Eu concordo, tanto que no conceito de internacionalização,4 eu procuro trazer uma perspectiva internacional e intercultural baseada em quê? Baseada em redes colaborativas.

Essas redes colaborativas, na minha perspectiva, são tanto com os países do global norte, ou países que têm uma produção de conhecimento significativa, quanto com outros territórios, que nos representam em termos de língua, em termos de tempo, em termos de cultura. Ou seja, é uma complementaridade. Para mim, a questão é o mundo. E para que isso? Para transformar, digamos, a instituição, o país ou os grupos em fontes, para que eles possam disseminar esse conhecimento, essa forma de respeito crítico às diferentes culturas.

Essa é a minha concepção. E o que eu quero dizer? Eu não sou ortodoxa, a minha vivência no mundo, o meu estudo da Sociologia, a minha busca de conhecer esse mundo, de respeitar esse mundo, fazem com que eu pense dessa forma. Temos pensamentos críticos com projetos que pensam essas questões de decolonialidade, ou descolonialidade, e eu plenamente os reconheço. Mas eu também reconheço que nós temos que pensar o nosso local claramente relacionado com outros setores, outras culturas, para que não fiquemos isolados, pensando uma América Latina sozinha.

Considerando a importância da pluralidade de pensamento, a que atribui a baixa circulação de artigos sobre internacionalização da educação de africanos e sul-americanos?

Se utilizarmos o parâmetro da Web of Science, não vai ter circulação. Por quê? Qual é a forma de comunicação, o idioma? É o inglês. E, outra coisa, não é simplesmente pegar um texto de uma revista e passar a versão para o inglês. Não. Eles têm uma estrutura de artigo diferente. Isso eu aprendi na prática. No Brasil, temos um item denominado “análise dos resultados”, onde se costuma colocar os dados, e tem outro item denominado “discussão dos resultados”. Aí é uma das questões. E nós temos produção! O que é que nós não temos? É a circulação internacional da produção.

A produção (Web of Science) está basicamente nos Estados Unidos, na Europa e na China. A China é um dos países mais produtivos.

Então, nós temos aquela velha discussão: eu vou produzir em português, e aí quem lê são somente nossos colegas. Mas hoje tem uma procura pelo global sul, por essa discussão de globalização, regionalismo, etc. E os do global norte estão ávidos para saber o que nós estamos produzindo. Eu participei recentemente de uma aula na Ohio, e a grande discussão foi: onde é que se produz, o que se produz e o que vocês pensam? Porque eles falam muito no global sul, mas o problema é o idioma, e esse idioma, nós vamos ter que fazer essa discussão: nós queremos que o nosso pensamento sobre internacionalização circule, ou nós queremos dialogar só entre nós mesmos? Eu posso te dizer, eu produzo no Brasil, na América Latina, mas também coloco nessas grandes revistas de Higher Education, porque é a forma de nos tornarmos conhecidos - pedagogia para a internacionalização na América Latina?

Então a senhora atribui a baixa circulação de artigos sobre a internacionalização da educação de africanos e sul-americanos ao idioma?

Uma das questões é a circulação. A outra questão, talvez seja um pouco da nossa forma, e eu também já fui marcada muito por isso, de achar que “o que se produz no Norte é o melhor”, “o que se produz numa África não é o melhor”, “eu não vou perder tempo em ler”. Eu realmente já pensei assim, eu me voltava para essa produção do Norte, muito mais do que para a produção, digamos, de uma Ásia, a produção de uma África. Eu já orientei alunos africanos, e a riqueza é imensa. A riqueza é maravilhosa.

Então, eu acho que, digamos, em primeiro lugar, na questão da circulação, é a questão do idioma, da forma de análise dos dados e da escrita do artigo. É mais que idioma, porque nós conseguimos vencer, relativamente, essas barreiras, porque hoje, inclusive, nós temos excelentes tradutores e plataformas de tradução bastante boas. Mas também é muito mais uma questão de valorização. Eu escrevi um artigo (Revista do CRUB), faz um tempo: por que nós líamos sobre Estados Unidos e Europa e nós não líamos sobre a América Latina? Nós estamos de costas para a América Latina ainda. Por quê? Porque a valorização que nós damos ao que é produzido no Norte é muito maior do que a valorização que nós damos ao que é produzido no Sul. Eu acho que essa é a principal razão.

E como percebe a questão da pandemia e o impacto das experiências políticas de internacionalização no âmbito da educação e de sua repercussão na produção acadêmica?

Para a produção, foi muito boa. Vamos desvelar os véus. As teses e dissertações pararam nesse período, quer dizer, elas foram sendo construídas, mas não foram entregues. Ou seja, a produção de teses e dissertações diminuiu. Explicando: eu trabalho com a metodologia de estado de conhecimento e ministro uma disciplina que analisa o banco do IBICT [Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia], e a gente fez esse levantamento. Diminuíram por quê? Em termos de teses e dissertações, a Capes estendeu em mais um ano a conclusão dos programas de pós-graduação, ou seja, a defesa das teses e/ou dissertações teve a possibilidade de ser estendida em mais um ano.

Agora, o aumento do número de artigos sobre internacionalização foi imenso. Isso vocês devem estar sentindo. Por exemplo: o que chega do Research Gate; cada dia tem lá um “Fulano de tal escreveu”. Muita gente pesquisa internacionalização no Brasil, inclusive. Então, para isso, eu acho que foi muito salutar.

Outra coisa positiva da pandemia quanto à internacionalização foi o domínio de trabalhar na nuvem. O que eu quero dizer? Isso nos fez saber - inclusive os nossos orientandos - que é possível assistir a uma aula em Madrid, na Argentina, em Santa Maria, na Bahia, entendeu? Dá para assistir se aula for remota, ou, como se diz, híbrida. As lives foram fenomenais, a constituição de redes foi maravilhosa.

Bom, mas e agora? Agora o que que eu estou vendo? Está difícil voltar ao presencial. Claro que, socioemocionalmente, foi muito ruim o impacto da pandemia. Cognitivamente, foi maravilhoso, mas emocionalmente foi muito ruim. A volta está sendo muito difícil. Se vocês olharem, a minha disciplina é remota, e ela é remota porque eu trabalho com alunos de diferentes países. Inclusive, eu estudo internacionalização, então não posso ficar fechada na presencialidade. Se eu trabalho com noção de redes, como é que eu vejo? Eu acho que nós não vamos sair da nuvem, não.

E nesse sentido, qual o papel das redes no processo internacionalização?

Na minha perspectiva, tem dois grandes polos. Um polo que vê a Educação Superior como um bem público, e outro polo que vê como serviço, guiado pela organização mundial do comercio. No meio desse campo, há diversas possibilidades de internacionalização.

Se eu vou para a questão da construção de redes colaborativas, isso é fenomenal. É claro que ninguém vai sem interesse nenhum: isso é utopia. Mas, se eu vou nessa questão, para ter internacionalização, eu acho que a grande saída é proporcionar a criação de redes colaborativas, que vão beneficiar, além da pesquisa, o ensino, a formação de professores, toda a graduação. E esse jogo do campo, na América Latina, está muito mais voltado para pensar, no caso, na educação como bem público, gratuito. E, obviamente, se eu não tiver o apoio de um Estado, isso vai limitar minhas pesquisas, vai limitar meu ensino, vai limitar meu o acesso público. Ou se eu vou por outro lado, para o outro extremo do campo científico da internacionalização - a Educação Superior como mercadoria, como serviço, eu vou ter meus alunos, por exemplo, dentro de um excelente nível, mas pagantes. Eu acho que é este balanço: pensar uma educação e uma internacionalização intercultural e de respeito ao outro, com respeito crítico, pensar em possibilidades colaborativas, mas também pensar em formas de “como é que eu faço?”. Os modelos existentes apontam para países extremamente competitivos e que vivem desses serviços para subsistir, vamos dizer assim. Como é que eu faço, no Brasil? Se eu pensar numa Capes, por exemplo, em primeiro lugar, eu não tenho política de internacionalização, no Brasil, para o sistema. Eu tenho a Capes fazendo alguma política, mas eu não tenho para a Educação Básica e eu não tenho para a Educação Superior como um todo.

Existe todo um movimento hoje que está pensando em fazer isso, pela importância que tem, porque a internacionalização é vista como qualidade. Então, como é que eu vou fazer essa qualidade, para que ela possa adentrar ao sistema?

É muito comum pensar em qualidade como aumento do número de carga horária do Inglês, não é simplesmente ensinar um pouco mais do book on the table. É muito mais utilizar o idioma como forma de conhecer a cultura. E entendo essa forma de conhecer a cultura, de respeitar o outro, em qualquer nível, seja na Educação Básica ou na Superior.

É muito mais do que bilinguismo.

Muito. Se ele for considerado como aumento da carga horário do inglês. A minha postura é propagar que a internacionalização é da educação, desde a escola infantil, porque eu creio que o sistema de educação não pode ser cortado entre o básico e superior. Se cortar no básico, o indivíduo já não tem nem o pensamento da sua possibilidade de acesso ao superior.

Então, continuando essa questão e ampliando um pouco mais. Estamos vivendo esse mundo multipolarizado, e quais os principais desafios nos processos de internacionalização da Educação?

Eu acho que a ciência e a tecnologia, no Brasil, estão muito mal. Os cortes, para todos os setores, para as públicas, eles têm sido, vamos dizer assim, marcantes e muito limitantes. Eu fui de uma época que se fazia doutorado liberada. E a gente hoje verifica - vocês provavelmente também têm toda essa experiência de ter um aluno trabalhador-doutor fazendo doutorado? Outra coisa é ter um aluno com bolsa fazendo doutorado. Eu acho que isso é fundamental. Se nós não tivermos apoio para ciência e tecnologia, nós vamos continuar a fazer internacionalização, mas, mesmo com o nível dos nossos doutores, a formação está muito cerceada. E na nossa experiencia nesse período pandêmico, como eu disse para vocês, foi excelente, no sentido de que possibilitou que os nossos alunos pudessem estar numa outra universidade. Claro está que uma coisa é assistir por internet a uma aula na Universidade de Madrid, outra coisa é estar no campus da universidade, com tudo que uma universidade pode te oferecer.

A internacionalização, para mim, é um meio, ela não é função universitária, é um meio que vai correr todas as outras funções da instituição. O que ela te traz? O convívio com outras culturas, e não estou falando simplesmente de culturas de países outros, eu estou falando inclusive na questão da interculturalidade at home, em casa, na minha sala de aula, no respeito à outra cultura. A internacionalização, além desse cognitivo, além desse socioemocional, nos traz uma formação para o mundo, entendeu? Uma formação em que eu aposto. Talvez eu seja um pouco utópica? Eu aposto nisso, para que este mundo possa melhorar. No momento em que eu conheço a outra cultura, que seja etnia, que seja gênero, que seja raça ou a diversidade, enfim. No momento em que eu convivo, que eu entendo, que eu respeito o outro, porque nós temos princípios comuns, universais, o respeito ao outro, digamos, de inclusão, de equidade, é isso que a internacionalização me traz. Pelo menos a internacionalização que eu defendo.

E na perspectiva dialógica, de troca e de respeito no seu entendimento de internacionalização, como pensa a relação entre formação e curricularização da extensão?

A curricularização da extensão nos dá uma riqueza muito grande, para trazer para a instituição universitária essa comunidade, esse outro olhar, olhar de respeito, porque parte de outro princípio: existem muitas formas de internacionalização. A integral, que se refere à instituição como um todo. Outra forma é a transfronteiriça - mobilidade, presencial ou virtual. No Brasil, ela é limitada; para a América Latina já existem algumas tentativas, mas não muito financiamento. Tem a Internacionalização do currículo (IoC), a Internacionalização em casa, (IaH), doméstica, e assim por diante.

Mas eu foco muito na Internacionalização em Casa, complementarmente aos outros tipos de internacionalização. Mas por quê? Considero-a com grandes chances de potencializar uma internacionalização para todos, durante toda a formação. Para a América latina, com grandes carências econômicas, é a possibilidade de muitos terem acesso à internacionalização. A internacionalização at home vem imbricada com a IoC. O currículo é o cerne do processo de formação. Eu foco no currículo formal, porque, se eu quero internacionalizar, o informal, ele vai depender muito do capital cultural do meu aluno, da família em que ele vive, das possibilidades que ele tem. Agora, o formal não; o formal é para todos. É pelo currículo formal que nós vamos poder ofertar a internacionalização, se não para todos, mas em casa.

Na ambiência da internacionalização, qual a importância dos órgãos internos de cada Instituição de Ensino Superior (IES) para a política de cooperação, para os intercâmbios e diálogos interculturais entre brasileiros e estrangeiros?

Bom, em primeiro lugar, a grande maioria de acadêmicos não sabe o que é a internacionalização. Ou, melhor dizendo, pensa que a internacionalização é a mobilidade, mas isso não é internacionalização, é um tipo de internacionalização. Então, do que que tu precisas? Não pode ter um gabinete de internacionalização longe das bases ou dentro de uma Pró-Reitoria de Pesquisa, de forma isolada. Quando eles pensam em internacionalização, é a pesquisa, é onde está o fomento, a Capes dando verba, etc. Só isso não é suficiente para internacionalizar uma IES. Tens que ter a internacionalização em todas as faculdades e cursos. Tens que ter essa discussão. Ter um projeto e, obviamente, um plano de internacionalização daquela instituição, que se transforma em política para a instituição. Isso é muito importante.

O meu grupo de pesquisa estudou os 36 planos das instituições que foram selecionadas para o Capes-Print. A grande maioria feita rapidamente, para atender ao Edital. Mas nós temos mais de duas mil IES no Brasil. Nesse contexto, a primeira coisa a fazer é levar uma discussão para dentro da própria instituição: “O que é internacionalização e quais os objetivos na minha IES?”

Há exemplo bem-sucedidos. Posso citar um projeto internacional desenvolvido na Newcastle, denominado The Approaches and Tools for Internationalisation at Home (ATIAH) Erasmus+ project (2016-2018).5 Em primeiro lugar, tem de ter um plano, uma gestão capacitada em todos os níveis e saber que a internacionalização é interculturalidade. O respeito pelo outro e pela sua cultura é fundamental. A capacitação do professor da instituição universitária também, e assim por diante.

A internacionalização, portanto, tem que ser transversal.

Ela não pode estar escondida num gabinete. Ela não pode ser só voltada a números de convênios, como é na maioria das vezes. Os convênios devem estar vivos e vibrantes, constantes.

Estamos próximos do final da entrevista, e queremos fazer uma pergunta que tem a ver com o retrovisor. Nós não estamos aqui por acaso, e sim porque reconhecemos a sua longa e produtiva trajetória, já que é considerada uma referência nesse campo de estudos, e seus escritos são dignos de nota e certamente serão citados por quase todos artigos deste dossiê. Como avalia a sua trajetória e esse reconhecimento da comunidade acadêmica?

É um orgulho, posso te dizer. Como professora, como pesquisadora, eu posso dizer que é muito trabalho, muito trabalho. Eu já poderia estar aposentada, novamente. Mas aí eu faço a questão: eu amo o que eu faço, eu acho que tem uma relevância no que eu estou fazendo, eu tenho um grupo de pesquisa maravilhoso, já formei em torno de 25 doutores e acho que isso, para mim, mostra uma caminhada. Eu tenho responsabilidade frente a toda essa trajetória que eu realizei, principalmente da construção de um conceito de internacionalização. Esse conceito não se fixa em um determinado setor, nem em um determinado país, mas é pensar numa internacionalização que seja um meio para a construção de um mundo melhor. Além do desenvolvimento todo da produção científica, do trabalho colaborativo em rede, a formação de um cidadão, de uma pessoa melhor. Cada vez mais eu coloco isso como algo importante para a vida.

E o que pensa do presente do Dossiê sobre Educação e Internacionalização?

É uma importante produção brasileira sobre a internacionalização e dá visibilidade a pesquisas, estudos e ensaios que se desenvolvem no mundo. Vamos aprender com esse dossiê. E vamos acreditar que a internacionalização da Educação Superior é um importante meio não só para a qualificação para o trabalho mas também para a formação de um cidadão integral.

O Brasil está entre os maiores PIBs, entre os países de maior extensão de terra, entre os maiores detentores de riquezas naturais maravilhosas, mas está entre aqueles com maior exclusão, com maior diferença de renda entre as camadas. E a gente se pergunta: “Mas por que isso? Nós temos riquezas, temos PIB, temos um continente em nossas mãos. O que ocorre?” A questão é investir na educação, formar todas as camadas com esse pensamento de uma universidade no mundo, é o Brasil no mundo. Mas o mundo - e aí eu volto à questão do dossiê, cabe a nós pensar num dossiê que reflita o que estamos fazendo em termos de internacionalização. Qual é o conceito de internacionalização para um Brasil, uma América Latina, para um país altamente potencializado, mas extremamente estratificado? Quais experiências exitosas em termos de internacionalização e outras práticas no mundo? Eu aposto, integralmente, no dossiê em questão.

Que mensagem deixaria para os/as novos/as pesquisadores/as ou interessados/as em estudar a internacionalização da educação?

Bom, eu dediquei a minha vida a estudar a internacionalização e vou continuar estudando. Eu tenho mestres, doutores, pós-doutores, nesse momento, todo mundo estudando a internacionalização e buscando formas de pensar como é que esse Brasil pode avançar na internacionalização de qualidade. É uma internacionalização além da mobilidade. Isso tenho certeza - internacionalização complementar entre os diferentes tipos, seja mobilidade, inatravés das pesquisas da internacionalização ternacionalização do currículo, internacionalipara o desenvolvimento socioeconômico. Com zação em casa e a busca da internacionalização a ciência e com estudos científicos, nós podeintegral. Nessa perspectiva podemos contribuir mos melhorar esse país e o mundo.

1Entrevista revisada por Jonhn Mafra

2O renomado estudioso peruano Anibal Quijano (19302018) foi professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de San Marcos, a mais antiga das Américas, criada em Lima, Peru, em 1551. Posteriormente atuou na Divisão de Assuntos Sociais da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), no Chile. O interesse de Quijano pela questão cultural, racial e pela desigualdade econômico-social - a seu ver consequência da destruição da América Indígena - não se restringiu à América Latina, e foi a premissa para a construção de seu conceito de Colonialidade. Ver https://www.scielo.br/j/ea/a/fPTHw8Z3TVXw9cS6Z5MffJR/?lang=pt

3Jane Knight, Professora do Instituto de Estudos em Educação de Ontário, Universidade de Toronto, Canadá, é considerada uma das maiores referências na área da Internacionalização da Educação. Seu trabalho de investigação, ensino e política sobre a dimensão internacional do ensino superior nos níveis institucional, nacional, regional e internacional em mais de 70 países tem contribuído com universidades, governos, agência da ONU e outras instituições. Possui intensa atuação em conselhos consultivos de várias organizações internacionais, universidades e revistas, bem como inúmeras publicações na área. É cofundadora da Rede Africana para a Internacionalização da Educação e recebeu diversos prêmios internacionais. A professora Jane Knight gentilmente aceitou participar deste dossiê autorizando a tradução de um dos seus qualificados artigos.

4Para Morosini, "a internacionalização é um meio para concepções mais amplas e densas, ligadas ao bem viver, ao desenvolvimento sustentável e a consecução de uma cidadania global." (Morosini, 2019, p.13). E a internacionalização da educação superior é um " processo de integrar a dimensão internacional e intercultural na Educação Superior, advindo de interações, sustentadas por redes colaborativas, com blocos socioeconômicos desenvolvidos e com outros que valorem múltiplas culturas, diferenças, locais e tempos, fortalecendo a capacidade científica nacional, com o fito de ser irradiador do desenvolvimento sustentável."(Morosini, 2017)

Recebido: 31 de Dezembro de 2023; Aceito: 20 de Janeiro de 2024

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