INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho foi analisar, por meio da incidência de temas, conceitos e referências, a produção historiográfica sobre currículo no Brasil. Esse esforço justifica-se pela necessidade de dar maior visibilidade às narrativas históricas que vêm sendo produzidas nos grupos de pesquisa dedicados aos estudos do currículo e da história da educação e, ao mesmo tempo, de contribuir para a identificação de lacunas na produção acadêmica que podem ser exploradas em novos projetos de pesquisa.
Os primeiros estudos sobre a história do currículo foram publicados nos Estados Unidos da América no decorrer da década de 1970. A análise do cenário internacional demonstra a persistência desses estudos e a intensificação da produção acadêmica nos últimos dez anos. Os Estados Unidos e a Austrália são os responsáveis por mais da metade das publicações disponíveis na atualidade, seguidos pelo Reino Unido, Brasil e Canadá. A University of Wisconsin-Madison, situada em Madison, capital do estado norte-americano de Wisconsin, é a principal instituição de afiliação das pesquisas, porém são do Reino Unido as revistas com o maior número de publicações relacionadas à história do currículo: Curriculum Inquiry, Journal of Curriculum Studies e History of Education.
Curriculum Inquiry é um periódico que tem como objetivo a divulgação de pesquisa, desenvolvimento, avaliação e teoria educacional1 e publica artigos voltados à discussão do currículo, política educacional e formação de professores. Journal of Curriculum Studies, por sua vez, além de possuir um escopo mais aberto às questões educacionais da atualidade, apresenta o tema currículo subdividido em abordagens históricas, filosóficas, comparativas e políticas. Já o periódico History of Education, como o nome indica, é dedicado à divulgação de trabalhos que apresentam, pela perspectiva histórica, questões relativas às políticas e aos sistemas educacionais, à educação comparada e às experiências pedagógicas.
No Brasil, a história do currículo é tema com pouco mais de 20 anos de estudo sistemático, contudo a quantidade de trabalhos produzidos nos últimos anos é significativa. A busca pelo termo história do currículo no Google Acadêmico2 retornou mais de 2.500 resultados3, dois quais aproximadamente 40% foram publicados nos últimos cinco anos. As principais revistas científicas que divulgam a produção brasileira em história do currículo são: Revista Brasileira de Educação, História da Educação e Currículo sem Fronteiras.
A Revista Brasileira de Educação4 é uma publicação fluxo contínuo da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) que desde 1995 divulga textos provenientes do trabalho realizado pelos pesquisadores que compõem seus diferentes grupos de trabalho. Já a revista História da Educação5 é uma publicação da Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação (ASPHE6) que circula desde 1997 e tem como foco as produções em história e historiografia da educação. Com publicação quadrimestral, a revista Currículo sem Fronteiras7 iniciou suas atividades em 2001 num esforço conjunto da University of Massachusetts Dartmouth, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e tem como objetivo reforçar o diálogo entre os países de língua portuguesa.
Cotejando o escopo das principais revistas nacionais e internacionais, é possível identificar três diferentes enfoques: revistas que divulgam sobretudo a produção do campo do currículo, revistas voltadas à história e historiografia da educação e revistas abertas às temáticas gerais da educação.
Diferentes perspectivas também podem ser observadas na análise dos artigos sobre história do currículo publicados no Brasil. Uma pesquisa voltada à construção do panorama da produção nacional (Fonseca et al., 2013) concluiu que os artigos publicados entre os anos 2000 e 2010 podem ser divididos em dois grupos: um alinhado à sociologia do currículo e outro à história da educação. As autoras perceberam que, apesar de a história do currículo representar um território de disputa entre os campos do currículo e da história da educação, as pesquisas apresentam desenhos distintos, correspondendo ao enfoque teórico e metodológico próprio de cada grupo.
Mariana Cassab (2010), por sua vez, apresenta outro elemento a ser considerado. Tendo como foco os artigos sobre a história das disciplinas escolares publicados em revistas científicas de circulação online, a autora destaca a convergência epistemológica presente na base das pesquisas realizadas por diferentes autores e autoras. Por meio da análise de referências bibliográficas, Cassab (2010, p. 240) concluiu que não há grande diversidade de obras na fundamentação das pesquisas que abordam a história das disciplinas escolares e aponta quatro autores como fundamentais: André Chervel, Ivor Goodson, Luciano Faria Filho e Carmen Lúcia Soares.
Haja vista a intensificação da produção acadêmica sobre a história do currículo, é relevante verificar o panorama atual da produção nacional, assim como determinar quais são os principais temas, conceitos e referências que têm caracterizado essa produção. O artigo está organizado em três partes. Na primeira é apresentada uma visão geral da produção acadêmica identificada na revisão sistemática da literatura. Na segunda parte são discutidas as teses e dissertações detectadas no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com o intuito de perceber quais são os temas que vêm sendo abordados de forma mais recorrente e como estão distribuídos nas diferentes universidades e grupos de pesquisa. Por fim, na terceira parte são analisados os principais conceitos e referências bibliográficas dos artigos localizados na base de dados SciELO Citation Index, que compõe o acervo da Web of Science.
METODOLOGIA
Situado no campo da história da educação, este trabalho utiliza como aporte metodológico algumas estratégias da pesquisa bibliométrica ou bibliometria, que é uma “técnica quantitativa e estatística de medição dos índices de produção e disseminação do conhecimento científico” (Araújo, 2006, p. 12), e da metapesquisa, que Mainardes (2018, p. 3) define como a análise de um conjunto de artigos provenientes de pesquisas teóricas ou empíricas com os objetivos de identificar e estabelecer relações entre elementos teórico-epistemológicos considerados relevantes para a resolução de novos problemas.
Para identificar os principais temas, conceitos e referências que caracterizam a produção acadêmica sobre a história do currículo no Brasil, a pesquisa foi organizada em três partes. Na primeira etapa, fez-se a revisão sistemática da literatura8, contemplando teses, dissertações e artigos científicos. A pesquisa foi realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES9, por meio do termo história do currículo, e nas bases de dados Scopus (Elsevier), Web of Science - Coleção Principal (Clarivate Analytics) e SciELO Citation Index, com a fórmula booleana história do currículo OR curriculum history, sem delimitação por data de publicação. A pesquisa nas bases de dados aplicou a delimitação “artigo” para o tipo de documento e “Brazil” para país ou território.
Na segunda etapa foram analisados os títulos e resumos das teses e dissertações selecionadas durante a revisão sistemática com o intuito de identificar os temas e objetos das pesquisas. A análise buscou identificar também as universidades de origem dos trabalhos, a linha de pesquisa e o ano da defesa. As informações foram organizadas em planilha eletrônica.
A terceira etapa visou identificar algumas características epistemológicas dos artigos localizados na revisão sistemática da literatura por intermédio da análise das referências bibliográficas e das palavras-chave indicadas pelos autores. Para tanto, foi utilizado o software VOSviewer10, cujas finalidades são a construção e visualização de redes ou mapas bibliométricos (Van Eck e Waltman, 2010) de um conjunto de publicações individuais mediante os metadados disponíveis em algumas bases de dados11.
Primeiramente, os artigos selecionados foram planilhados levando-se em conta as seguintes informações: ano de publicação, base de dados, periódico, autores, título, tipo (teórico ou empírico) e área/tema/objeto de pesquisa. Em seguida foi utilizado o software VOSviewer, que permite a identificação da dinâmica conceitual da produção acadêmica pelo número de ocorrências de termos em palavras-chave (coocorrência) e pela visualização das tendências epistemológicas conforme o número de vezes em que os autores são citados nas referências de um artigo (cocitação). O software também permite verificar o impacto das redes de colaboração acadêmica pela frequência de citações recíprocas entre os autores (citações) e identificação da literatura influente do campo pelo número de referências bibliográficas compartilhadas nos artigos (acoplamento bibliográfico). Para realizar a análise no VOSviewer, foi necessário optar por uma das bases consultadas. A escolha da base SciELO Citation Index foi motivada pela maior concentração de artigos sobre o tema em relação às outras bases consultadas.
A REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA
A revisão sistemática da literatura tem como finalidade localizar, considerando critérios objetivos de inclusão e exclusão, trabalhos acadêmicos produzidos em determinada área de pesquisa. A revisão da literatura realizada dessa forma permite a replicabilidade do estudo e favorece a cumulatividade do conhecimento científico:
O avanço do conhecimento científico depende da acumulação sistemática de informação. [...] Revisões da literatura se justificam, dada a enorme quantidade de informação produzida em diferentes ramos do conhecimento. Do ponto de vista do leitor, o objetivo da síntese de pesquisa é concentrar em um só trabalho resultados de vários outros e definir o atual status do conhecimento sobre um determinado problema de pesquisa, tornando desnecessária a consulta sistemática a trabalhos mais antigos. (Figueiredo Filho et al., 2014, p. 207)
A consulta ao Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES usando o termo história do currículo retornou 109 trabalhos: 35 teses e 74 dissertações produzidas entre os anos de 1996 e 2018. A análise dos títulos e resumos dessas teses e dissertações permitiu identificar 25 trabalhos que, embora afeitos às temáticas do currículo, não apresentavam problema de pesquisa voltado à investigação histórica. Considerando que “o tema do pesquisador da história situa-se no passado” (Ayala e Zevallos, 2003, p. 52), o critério de exclusão utilizado foi a ausência, no título ou no resumo, de um recorte temporal para o problema de pesquisa. Assim, os trabalhos enunciados como pertencentes à história do presente foram incluídos na seleção, que resultou em 84 trabalhos - 54 dissertações e 30 teses.
A busca de artigos acadêmicos foi realizada por meio da plataforma Portal de Periódicos CAPES, com acesso do tipo Comunidade Acadêmica Federada (CAFe), que permite acesso remoto ao conteúdo assinado do portal12. A pesquisa feita mediante a fórmula booleana (história do currículo OR curriculum history), sem delimitação por data de publicação, resultou na identificação de 210 artigos: 115 na Scopus, 77 na coleção principal da Web of Science e 18 na coleção SciELO Citation Index.
Considerando os objetivos deste artigo, aplicou-se o filtro “Brazil” nos artigos selecionados. Com essa limitação, foi possível perceber que a produção brasileira tem pouca representatividade nas bases com maior visibilidade internacional. Na base Scopus foram identificados cinco artigos, publicados nos periódicos Currículo sem Fronteiras, Revista Brasileira de Educação e Química Nova. Na coleção principal da Web of Science se localizaram dois artigos, nas revistas Comunicações e Química Nova. Na coleção SciELO Citation Index, que integra a base Web of Science, foram localizados 15 artigos, publicados nos seguintes periódicos: Revista Brasileira de Educação, Educar em Revista, Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, História da Educação, Revista Brasileira de História da Educação, Educação & Sociedade, Educação e Pesquisa, Estudios Pedagógicos (Valdívia) e Revista Latino-Americana de Enfermagem.
Dos 22 artigos identificados, três foram descartados, por estarem presentes em mais de uma base. A análise preliminar desses artigos demonstrou que todos abordam a história do currículo. Sendo assim, como seleção final, obtiveram-se 19 artigos, entre os quais 15 integram a coleção SciELO Citation Index, três estão disponíveis somente na base Scopus e um deles apenas na coleção principal da Web of Science, conforme apresentado na Figura 1.
TEMAS E OBJETOS DAS TESES E DISSERTAÇÕES SOBRE HISTÓRIA DO CURRÍCULO
A análise das teses e dissertações publicadas pelos programas de pós-graduação permite visualizar a origem e o desenho das pesquisas que vêm sendo realizadas em determinada área, assim como identificar os pesquisadores que estão trabalhando sistematicamente na construção de conhecimentos sobre certo tema.
Produzidas em contexto acadêmico, semipublicadas e sem fins comerciais, até a recente consolidação das plataformas digitais, as teses e dissertações eram consideradas como literatura cinzenta ou não convencional, por causa da sua circulação limitada. Segundo Gomes, Mendonça e Muhlethaler (2000, p. 96-97), esses materiais são de alta relevância para a comunicação científica, uma vez que contêm informações mais detalhadas do que aquelas veiculadas na forma de artigos em periódicos acadêmicos.
No Brasil, a produção sistemática de teses e dissertações sobre a história do currículo iniciou-se na segunda metade da década de 1990 e intensificou-se a partir de 2007, ainda que sem muita regularidade. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é a instituição que concentra o maior número de trabalhos, entretanto outras instituições de ensino superior (IES) também contribuíram significativamente para a construção desse acervo. Considerando como indicativo de produção sistemática a frequência mínima de três trabalhos na mesma instituição no período de 1996 a 2018, na Tabela 1 é possível observar a distribuição desses trabalhos por universidade e professores orientadores.
Orientadores | Número de trabalhos orientados | ||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
UFRJ | UFPR | UFF | UFPA | UFMG | UNICAMP | UNIRIO | USP | PUC-Petrópolis | PUC-SP | Total | |
Márcia Serra Ferreira | 11 | 11 | |||||||||
Marcus Aurélio T. de Oliveira | 9 | 1 | 10 | ||||||||
Antônio Flávio Barbosa | 3 | 3 | 6 | ||||||||
Sandra Lúcia Escovedo Selles | 6 | 6 | |||||||||
Ana Maria F. C. Monteiro | 4 | 4 | |||||||||
Genylton Odilon Rêgo da Rocha | 4 | 4 | |||||||||
Dayse Martins Hora | 4 | 4 | |||||||||
Maria Margarida P. de L. Gomes | 2 | 2 | |||||||||
Maria do Carmo Martins | 2 | 2 | |||||||||
Everardo Paiva de Andrade | 1 | 1 | |||||||||
Clarice Nascimento de Melo | 1 | 1 | |||||||||
Lucíola Licínio de C. P. Santos | 1 | 1 | |||||||||
Luciano Mendes de Faria Filho | 1 | 1 | |||||||||
Bernando Jefferson de Oliveira | 1 | 1 | |||||||||
Lili Katsuco Kawamura | 1 | 1 | |||||||||
Pedro Laudinor Goergen | 1 | 1 | |||||||||
Dislane Zerbinatti Moraes | 1 | 1 | |||||||||
Circe Maria F. Bittencourt | 1 | 1 | |||||||||
Nelson Schapochnik | 1 | 1 | |||||||||
Antonia Terra C. Fernandes | 1 | 1 | |||||||||
Antônio Chizzoti | 1 | 1 | |||||||||
Helenice Ciamp | 1 | 1 | |||||||||
Circe maria F. Bittencourt | 1 | 1 | |||||||||
Total por Universidade | 20 | 9 | 7 | 5 | 4 | 4 | 4 | 4 | 3 | 3 |
UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro; UFPR: Universidade Federal do Paraná; UFF: Universidade Federal Fluminense; UFPA: Universidade Federal do Pará; UFMG: Universidade Federal de Minas Gerais; UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas; UNIRIO: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; USP: Universidade de São Paulo; PUC: Pontifícia Universidade Católica.
No período analisado, dos professores com maior número de orientações, somente Márcia Serra Ferreira esteve vinculada a uma única universidade. O professor Marcus Aurélio Taborda de Oliveira concentrava o maior número de orientações sobre o tema na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Já o professor Antônio Flávio Barbosa Moreira tem sua produção igualmente dividida entre a UFRJ e a Pontifícia Universidade Católica de Petrópolis (PUC-Petrópolis).
As primeiras dissertações sobre o tema foram desenvolvidas na UFRJ, sob orientação do professor Antônio Flávio Barbosa Moreira, e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob orientação do professor Antônio Chizzotti. O professor Antônio Flávio Moreira havia concluído seu curso de doutorado no Instituto de Educação da Universidade de Londres no ano de 1988, sob orientação dos professores Michael Young e Robert Cowen, e sua tese, intitulada Towards a reconceptualisation of educational transfer: the case of curriculum studies in Brazil, foi adaptada e publicada no Brasil em 1990 pela editora Papirus com o título Currículos e programas no Brasil, tornando-se em pouco tempo uma referência fundamental para a produção acadêmica sobre currículo que começava a se estruturar.
Moreira (2011) lembra que em 1984 a história do currículo era um tema pouquíssimo explorado, mas que correspondia, enquanto “estudo sócio-histórico das disciplinas curriculares” (Moreira, 2011, p. 19), a uma das linhas de pesquisa da sociologia do currículo. Em 1997, o pesquisador participou como coorientador da tese defendida pela professora Elizabeth Macedo na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Sua orientação mais recente foi em 2017, na linha de pesquisa Currículo, Docência e Linguagem, do Programa de Pós-graduação da UFRJ.
Já os trabalhos realizados na PUC-SP, ainda que também tenham começado por volta de 1996, não se estabeleceram com a mesma regularidade. O professor Antônio Chizzotti atuava no Programa de Pós-graduação em Currículo e desde 1979 orientava dissertações de mestrado sobre o tema, entretanto a abordagem histórica não era a sua principal linha de pesquisa.
A análise das linhas de pesquisa13 das teses e dissertações identificadas, em que pesem as mudanças ocorridas nesse período de aproximadamente 20 anos, confirma que a produção acadêmica sobre a história do currículo está dividida em duas áreas: estudos do currículo e história da educação. O Quadro 1 apresenta essa divisão.
UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro; UFPA: Universidade Federal do Pará; PUC: Pontifícia Universidade Católica; UNIRIO: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; UFF: Universidade Federal Fluminense; UFPR: Universidade Federal do Paraná; UFMG: Universidade Federal de Minas Gerais; UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas; USP: Universidade de São Paulo.
A análise dos títulos e resumos dos trabalhos realizados demonstra, entretanto, que a divisão conforme a ênfase nos estudos do currículo ou na história da educação não é tão evidente quando dissociada dos grupos de pesquisa a que estão vinculados. A atuação nesse território de intersecção que é a história do currículo faz com que as fronteiras fiquem menos nítidas principalmente porque os cursos de origem da maioria dos mestrandos e doutorandos é bastante variada e os temas das pesquisas costumam ser definidos de acordo com questionamentos que advêm da trajetória de formação e atuação profissional dos discentes.
Macedo (2001) e Moreira (2008), em linhas gerais, identificaram três eixos temáticos na produção histórica sobre currículo realizada no Brasil14:
Pensamento curricular;
Reformas, propostas e práticas curriculares;
Currículo de cursos e disciplinas.
A análise da temática das teses e dissertações confirma a pertinência desses eixos, e a comparação entre os temas dos trabalhos realizados no campo de estudos do currículo e da história da educação demonstra similaridades, principalmente entre as pesquisas relacionadas ao eixo Currículos de cursos e disciplinas, como é possível observar no Quadro 2.
O eixo Currículos de cursos e disciplinas agrega o maior número de trabalhos. As disciplinas Educação Física, Matemática, Geografia, Ciências e Música foram tomadas como objeto de pesquisa tanto no contexto acadêmico quanto no escolar. Já as disciplinas Química, Biologia, Higiene, Português, Espanhol, Ensino Religioso, Humanidades e História foram analisadas somente no âmbito escolar. Entre as disciplinas acadêmicas estudadas, destacam-se as relativas à formação de professores, como, por exemplo: Biologia Educacional, Prática de Ensino, Filosofia da Educação e Didática Geral. No que diz respeito ao estudo dos currículos de cursos específicos, a maioria trata do contexto universitário. Os currículos de graduação mais estudados pela perspectiva histórica são: Pedagogia, Educação Física, Ciências, História, Enfermagem e Medicina.
Nos temas pertinentes aos eixos Pensamento curricular e Reformas, propostas e práticas curriculares, a relação entre as duas áreas fica menos evidente em razão dos diferentes termos utilizados em cada contexto de pesquisa. O eixo Pensamento curricular refere-se a um número reduzido de trabalhos e demonstra-se complexo em um momento em que a história intelectual busca superar o modelo inspirado na história da filosofia que predominava nos antigos manuais de história da educação.
A história intelectual, nos moldes defendidos por Vieira (2008), está articulada à história das linguagens e contempla “a análise dos processos de produção, circulação e recepção das ideias e dos discursos científicos, políticos, pedagógicos ou artísticos” (Vieira, 2008, p. 80). Nessa ótica, mais do que pensamentos ou ideias curriculares, a investigação histórica dos contextos de produção da teoria do currículo pode ser considerada na análise da produção acadêmica, apesar da dificuldade de definir o que é e o que não é teoria do currículo com base nas publicações acadêmicas (Young, 2014, p. 193).
Popkewitz (1994, p. 183-185) evoca uma tradição histórica “que focaliza a forma como as ideias estão corporificadas na organização do conhecimento escolar”, o que possibilita entrever que uma teoria do currículo desenvolvida no contexto acadêmico não pode ser desagregada dos sujeitos nem das práticas sociais que constroem esse conjunto de conhecimentos especializados. Sendo assim, a produção das teorias do currículo ou do pensamento curricular pode ser relacionada às demais práticas curriculares.
O aumento quantitativo da produção acadêmica sobre a história do currículo nos últimos dez anos promoveu uma significativa diversificação de temas e objetos de pesquisa. Em 2008, as reflexões de Moreira já permitiam inferir que a expansão dos estudos poderia produzir novas formas de sistematizar a produção acadêmica. Naquele momento o autor indicava como temas emergentes “as reformas e as propostas curriculares, os currículos de um curso, os livros e os textos didáticos, os espaços e os tempos escolares, as práticas docentes, os cadernos dos alunos” (Moreira, 2008, p. 7).
Os estudos históricos sobre as políticas curriculares e as práticas que representam a “materialização cotidiana” do currículo (Macedo, 2001, p. 144) passaram a ser fundamentais para contemplar novos ou renovados objetos que respondem ao alargamento do conceito de currículo, que marcou o desenvolvimento do campo nos últimos 30 anos.
Com base nessas reflexões, a análise da incidência dos diferentes objetos de estudo nas teses e dissertações demonstrou que a produção acadêmica pode ser distribuída em quatro eixos temáticos, que dizem respeito tanto ao contexto escolar como ao contexto acadêmico: cursos, disciplinas, políticas e teorias-práticas.
Política curricular é um termo que só muito recentemente vem sendo utilizado nas pesquisas sobre a história do currículo. O eixo políticas abarca os estudos históricos sobre as reformas curriculares, parâmetros curriculares ou base curricular nacional, exames nacionais, escolarização primária e instrução pública.
A organização do eixo teorias-práticas levou em consideração os apontamentos de Viñao (2008, p. 191) sobre a história dos elementos que constituem e ordenam o universo escolar, como por exemplo os livros de texto e a história das disciplinas escolares. Apesar dos aspectos indissociáveis dessas abordagens, é possível discriminar os trabalhos que estão voltados primordialmente para os elementos da cultura escolar e abrigar numa mesma chave, entre outros, os trabalhos que têm como objeto de pesquisa as formas de ensinar, os livros didáticos e impressos escolares, as práticas de leitura, o recreio, a construção da memória de professores e a identidade profissional.
Ao analisar os temas e objetos das teses e dissertações produzidas nas universidades em que a história do currículo representa um projeto sistemático e persistente, percebe-se uma diferença significativa entre os diferentes contextos de pesquisa, conforme o Quadro 3.
UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro; UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas; USP: Universidade de São Paulo; UFPA: Universidade Federal do Pará; UNIRIO: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; PUC: Pontifícia Universidade Católica; UFPR: Universidade Federal do Paraná; UFF: Universidade Federal Fluminense; UFMG: Universidade Federal de Minas Gerais;
Nesse quadro é possível observar que a história do currículo tem localizado seus objetos de pesquisa tanto no contexto escolar quanto no acadêmico, com uma pequena diferença numérica entre eles, entretanto a análise comparativa entre os trabalhos desenvolvidos no campo de estudos do currículo e da história da educação sugere que o primeiro tem privilegiado o contexto escolar enquanto o segundo apresenta maior concentração no âmbito acadêmico.
Os currículos de cursos específicos aparecem como tema mais explorado no campo do currículo, com ênfase para a história de cursos de graduação. Além dos trabalhos de história da educação, constam também dessa temática trabalhos produzidos em outras áreas, como por exemplo enfermagem e medicina. As pesquisas sobre os currículos dos cursos que não pertencem à área da educação são produzidas no contexto dos programas próprios de pós-graduação e guardam pouca relação com os estudos do currículo ou da história da educação. A história das disciplinas escolares ou acadêmicas é o segundo eixo temático com maior número de trabalhos e pode ser localizada nas duas perspectivas, mas o campo do currículo concentra o maior número de trabalhos.
As pesquisas desenvolvidas no campo da história da educação apresentam maior concentração no eixo temático teorias-práticas, com destaque ao contexto escolar. Assim como no contexto escolar, o contexto acadêmico possui materiais, práticas, ritos e ordenamentos que pouco têm sido tematizados pela história do currículo, que se volta, na maioria das vezes, para as instituições, cursos e disciplinas, porém percebe-se, nos trabalhos mais recentes, o interesse em investigar aspectos concernentes às práticas curriculares e à teorização do currículo numa perspectiva histórica.
O eixo políticas apresenta menor representatividade nesse conjunto de teses e dissertações. As políticas curriculares voltadas para o contexto acadêmico são pouco exploradas nas pesquisas atuais, o que é um indicativo importante para futuros projetos. Na perspectiva da história da educação, a investigação das políticas curriculares tem privilegiado o contexto escolar, com ênfase para os processos de escolarização e instrução pública.
Nesse ponto é necessário destacar que os temas relativos às políticas, teorias e práticas curriculares apontam para significativa diferença de denominação, quando abordados haja vista os campos de estudos do currículo e da história da educação. Embora tratem dos mesmos temas, os campos distinguem-se na metodologia, periodização e definição de fontes, resultando em diferentes narrativas e elaborações teóricas.
O elemento de diferenciação mais evidente foi o recorte temporal. A maior parte dos trabalhos realizados pelos pesquisadores da história da educação contempla um recorte temporal de 20 a 30 anos que se inicia nas últimas décadas do século XIX ou começo do século XX e termina entre os anos de 1920 e 30. Já a maioria dos trabalhos realizados pelos pesquisadores do currículo abrange um recorte temporal menor que 20 anos, localizados entre 1960 e 2010. Esse deslocamento de aproximadamente um século no período privilegiado em cada perspectiva é relevante para compreender a diferença nos termos utilizados para indicar os objetos de pesquisa.
Segundo Reinhart Koselleck (1992, p. 140), o movimento semântico das palavras no decorrer do tempo pressupõe disputas em torno da atribuição de sentidos e significados que ocorrem no debate público. Nesse movimento novos conceitos são produzidos e, mesmo quando as palavras permanecem, outras podem surgir para suprir novas necessidades.
A abordagem de temas semelhantes em diferentes épocas pode ser impactada por modificações no campo semântico ou no léxico especializado de determinada área, uma vez que os conceitos são formulações polissêmicas, passíveis de generalização, que apresentam alguma regularidade de significado, mas podem sofrer alterações de sentido na relação com o contexto.
Sendo ferramenta para pensar, entender a realidade, produzir explicações e mediar a ação (Koselleck, 1992, p. 136), a compreensão das modificações de termos ou de sentidos linguísticos dos conceitos no decorrer do tempo é fundamental para o diálogo acadêmico e para a compreensão histórica de determinado tema. A análise dos temas e objetos das teses e dissertações sobre a história do currículo produzidas no Brasil demonstra que, apesar das diferenças teórico-metodológicas, há uma convergência temática que justifica a maior aproximação entre as diferentes áreas de pesquisa.
BASES EPISTEMOLÓGICAS DOS ARTIGOS SOBRE HISTÓRIA DO CURRÍCULO
A terceira etapa deste trabalho visou identificar algumas características epistemológicas dos artigos localizados na revisão sistemática da literatura conforme a análise das referências bibliográficas e das palavras-chave indicadas pelos autores. A busca nas bases Scopus, Web of Science (coleção principal) e coleção SciELO Citation Index retornou 19 diferentes artigos publicados entre os anos de 2002 e 2018 em 12 periódicos. Currículo sem Fronteiras e Revista Brasileira de Educação foram os periódicos que concentraram o maior número de publicações sobre o tema.
Dos 19 artigos localizados, 11 pertencem à área de história da educação, seis aos estudos do currículo e dois a outras áreas de pesquisa. A maioria dos artigos provém das instituições com produção sistemática de teses e dissertações, no entanto, considerando o total de trabalhos do período, 12% foi publicado em forma de artigo nas bases pesquisadas, o que indica que as pesquisas brasileiras possuem pouca visibilidade internacional.
Foram localizados cinco artigos teóricos, um ensaio e 13 artigos empíricos. Os artigos teóricos são provenientes de pesquisa bibliográfica ou reflexões teórico-metodológicas realizadas no âmbito de grupos de pesquisa. Dos 13 artigos empíricos, nove são decorrentes de teses ou dissertações. Quanto à orientação metodológica dos artigos empíricos, a análise documental foi a escolha mais recorrente, em alguns casos associada a procedimentos da história oral. As fontes mais utilizadas consistiram em relatórios, legislação e manuais didáticos, no entanto os artefatos materiais também apareceram como alternativa para a história do currículo.
Assim como no acervo de teses e dissertações, o recorte temporal dos artigos abrangeu os séculos XIX e XX. Mesmo entendendo que a definição exata do período a ser estudado depende do problema de cada pesquisa, em linhas gerais é possível dividir os artigos em três grupos:
trabalhos que se iniciaram no fim do período imperial ou no começo da república e terminaram até a revolução de 1930;
trabalhos situados entre os anos de 1930 e o fim da década de 1960;
trabalhos que começaram na década de 1970 e terminaram nos últimos anos do século XX.
No segundo período, que corresponde aos anos em que o currículo começou a ganhar visibilidade no debate educacional brasileiro, observa-se a maior concentração de trabalhos.
Os temas e objetos de pesquisa dos artigos também correspondem ao esquema identificado na análise das teses e dissertações, o que reforça a relação já identificada entre esses dois tipos de produção científica, no entanto algumas diferenças entre os campos de estudo responsáveis por essa produção ficam ainda mais evidentes.
No Quadro 4 é possível observar que a maioria dos artigos produzidos pelos pesquisadores da história da educação se volta ao estudo da história do currículo no contexto escolar, enquanto os artigos publicados pelos pesquisadores do currículo abordam aspectos teóricos e práticos próprios do contexto acadêmico. Aqui também figuram com destaque os estudos de currículos de cursos e disciplinas, mesmo com a contribuição de outras áreas de pesquisa, como enfermagem e contabilidade.
A investigação da dinâmica conceitual dos artigos publicados nas revistas científicas, assim como as principais referências que sustentam essa produção, foi realizada com o auxílio do software VOSviewer. Essa ferramenta metodológica permite visualizar a relação entre os trabalhos pela coocorrência de palavras-chave indicadas pelos autores e pela cocitação, ou seja, pelo número de vezes que os autores são citados nas referências de um mesmo artigo. O software VOSviewer também permite verificar o impacto das redes de colaboração acadêmica mediante a frequência de coautorias e citações recíprocas, além de identificar a literatura influente do campo pelo acoplamento bibliográfico, que usa como base o número de referências compartilhadas nos artigos.
As análises foram realizadas com base em um conjunto de 15 artigos localizados na coleção SciELO Citation Index, da Web of Science. A escolha da coleção SciELO Citation Index deve-se à maior concentração de artigos sobre o tema em comparação com as duas outras bases pesquisadas, uma vez que nessa ferramenta não é possível agregar em uma mesma rede artigos identificados em bases diferentes. Todos os artigos selecionados estão disponíveis para download gratuito. Os quatro artigos que não participaram da análise realizada com o software VOSviewer, por pertencerem somente à base Scopus e à coleção principal da Web of Science, também estão disponíveis para download gratuito. Com base na análise dos elementos sistematizados nas planilhas eletrônicas, considerou-se que a exclusão desses artigos não comprometeu os resultados obtidos. Nas redes construídas por meio do software VOSviewer, as características que devem ser observadas são a distância e a intensidade da ligação gráfica entre as palavras e o tamanho que cada uma é apresentada.
A análise de coautoria feita pelo software não trouxe nenhum novo elemento à análise desenvolvida por meio das planilhas eletrônicas. Como é possível perceber nos apontamentos anteriores, a principal forma de coautoria estabelecida nessa amostra deu-se entre orientandos e orientadores, nos trabalhos decorrentes de teses e dissertações.
A análise de citações, na qual as redes são formadas pelo número de vezes que os autores se citam reciprocamente, não demonstrou a existência de grupos formados haja vista afinidades científicas, o que reforça a necessidade já apontada por Moreira (2013, p. 6-7) de maior interlocução entre os pesquisadores da história do currículo.
A análise de acoplamento bibliográfico, que tem como finalidade localizar a literatura emergente em determinado campo e decorre do número de vezes que as mesmas referências são utilizadas em diferentes artigos, revela que o uso de referências comuns está limitado às relações institucionais. Considerando as instituições de afiliação dos artigos, a única relação de acoplamento bibliográfico observável foi entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR).
A análise das cocitações, cuja unidade de observação são os autores das referências bibliográficas citadas nos artigos, tem como finalidade a identificação de tradições intelectuais em determinada área de pesquisa. Esse recurso verifica a relação entre as referências com base no número de vezes que estas são citadas concomitantemente (Grácio, 2016, p. 84).
Segundo Walsh e Renaud (2017, p. 22), quanto mais duas referências são citadas juntas, mais próximas elas estão de uma “escola de pensamento”. A proximidade, as ligações e a escala em que esses autores são apresentados na rede indicam os grupos de autores que são centrais para o desenvolvimento das pesquisas em história do currículo, como é possível observar na Figura 2.
Na amostra pesquisada, Ivor Goodson é o autor mais frequente, com 21 citações, seguido por Thomas Popkewitz, com seis citações. Apesar da diferença significativa no número de citações, a rede sugere que os dois autores possuem um número equivalente de relações: o primeiro está ligado a 14 autores e o segundo a 13. Sendo assim, pode-se inferir que os autores Goodson e Popkewitz são as referências mais influentes nas pesquisas sobre a história do currículo realizadas no Brasil. Lisete Jaehn e Márcia Serra Ferreira (2012), com base nas reflexões realizadas pelo Núcleo de Estudos de Currículo da Faculdade de Educação da UFRJ, discutem as contribuições desses autores indicando as diferenças e aproximações entre as duas perspectivas e como cada uma tem colaborado para as pesquisas realizadas na instituição.
Os autores identificados compõem quatro agrupamentos, compostos da seguinte forma:
Meily Assbú Linhales, António Nóvoa, Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, Guy Vincent, Antonio Viñao Frago e Raymond Williams;
Basil Bernstein, Herbert Kliebard, Alice Casimiro Lopes, Thomas Popkewitz e Mirian Jorge Warde;
Luciano Mendes de Faria Filho, Michel Foucault, Ivor Goodson, Rosa Fátima de Souza e Diana Vidal;
Elizabeth Macedo e Clarice Nunes.
A composição da rede de cocitações demonstra, como já havia indicado Cassab (2010), a existência de algumas relações entre o referencial teórico utilizado nas pesquisas realizadas nos âmbitos da história da educação e dos estudos de currículo, no entanto é possível perceber que há um distanciamento significativo entre as duas perspectivas. Dos nove autores estrangeiros que integram a rede, somente Ivor Goodson, Thomas Popkewitz e Herbert Kliebard são citados juntos com pesquisadores brasileiros do campo do currículo e da história da educação. Entre as referências brasileiras, as únicas autoras de campos diferentes citadas juntas são Clarice Nunes e Elizabeth Macedo.
A análise da coocorrência de palavras-chave definidas pelos autores, por sua vez, indica a dinâmica conceitual de determinada área, uma vez que tem como unidade de análise os termos ou conceitos utilizados com o objetivo de facilitar a localização do artigo por outros pesquisadores interessados pela temática. Segundo Van Meter e Saint Léger (2008), a análise de coocorrência mede a força de associação entre termos e, por extensão, entre temas e objetos de pesquisa. Considerando que a unidade de observação são as palavras que aparecem juntas em dado documento e que as redes são formadas pela relação entre as palavras, a força de associação é estabelecida com base no número ocorrências conjuntas.
A rede de coocorrência confirma a divisão dos trabalhos em dois grupos que pouco se relacionam, um mais associado ao termo história do currículo e outro ao termo currículo. Para uma análise comparada desses dois agrupamentos, foram construídas três redes, contendo:
todos os artigos selecionados;
os artigos selecionados da área da história da educação;
os artigos selecionados da área do currículo.
A rede apresentada na Figura 3, que contempla todos os artigos selecionados, é constituída de oito agrupamentos, estando os dois principais organizados em torno dos termos história do currículo e currículo. O único termo que estabelece ligação entre os dois grupos é história das disciplinas.
Na Figura 4, que apresenta uma rede formada pelos artigos produzidos na área do currículo, é possível verificar maior relação entre os termos. “Formação de professores” está ligado a todos os demais, com exceção de enfermagem, que é o mais isolado. As palavras-chave formam os seguintes agrupamentos:
didática geral, história das disciplinas, teoria do discurso;
competências e recontextualização;
currículo e enfermagem;
formação de professores e identidade.
Já a rede formada pelos artigos produzidos na área de história da educação demonstra que a produção acadêmica está dividida em subgrupos que abordam temáticas específicas e se relacionam somente nesses agrupamentos. O software identificou seis agrupamentos:
arquitetura escolar, curso de Pedagogia, ensino de estatística, história da educação, história do currículo, história dos sujeitos;
ensino de história, ensino secundário, estudos comparados, pesquisa em educação, regulação social;
educação dos sentidos, história da escola, história das disciplinas, recreios escolares;
educação cívica, educação política, Itália-Brasil;
educação do corpo, ensino de educação física, latino-américa;
educação norte-americana, história do ensino primário.
Nessa rede, o termo que liga todos os diferentes agrupamentos é história do currículo. Os agrupamentos 3 e 5 são os únicos que estão próximos, ocupando o quadrante inferior esquerdo da Figura 5. Das palavras-chave que compõem essa parte da rede, o termo educação do corpo funciona como ligação entre os termos: educação dos sentidos, história da escola, história das disciplinas, ensino de educação física e latino-américa. Como o termo história das disciplinas representa o elo entre os trabalhos produzidos na área do currículo e da história da educação, é nesses agrupamentos que há a maior proximidade entre as temáticas abordadas pelas duas áreas. Mariana Cassab (2010) também identificou nos estudos das disciplinas escolares a possibilidade de aproximação entre as diferentes perspectivas. A autora defende:
O estudo das disciplinas escolares tem operado um importante deslocamento na forma como usualmente tem sido investigada a escola, seja pela sugestão de novas problemáticas, pela eleição de variadas fontes ou pelo diálogo produtivo que promove entre diferentes perspectivas teóricas. Todavia, como supõe nosso estudo, este potencial parece ainda passível de ser mais largamente explorado nas pesquisas brasileiras. (Cassab, 2010, p. 246)
A análise das referências bibliográficas e dos conceitos que compõem as palavras-chave indicadas nos artigos demonstrou que a base epistemológica dessa produção acadêmica está intrinsecamente relacionada à área de pesquisa de origem dos autores.
Para Michel Foucault (2004, p. 26), o autor pode ser entendido, para além da pessoa que fala ou escreve um texto, “como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. Haja vista esse entendimento da “função-autor”, é possível concluir que a configuração atual da produção acadêmica decorre de diferentes autorias instauradoras de discursividade que atuam de forma determinante no desenho das pesquisas e na composição do horizonte teórico do campo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A coexistência de duas diferentes áreas de pesquisa na produção acadêmica sobre história do currículo vem sendo apontada por diferentes autores. Fonseca et al. (2013, p. 219) identificou a existência de “interessantes disputas acerca de que campo do conhecimento e, consequentemente, de que comunidade disciplinar ‘poderia’ ou ‘deveria’ assumir os estudos em história do currículo”. Antônio Flávio Barbosa Moreira (2013, p. 6-7), por sua vez, aponta como indispensável o diálogo entre esses dois domínios.
Neste trabalho foi possível confirmar que as pesquisas sobre história do currículo se estruturam em torno de duas diferentes perspectivas: história da educação e estudos do currículo. Os grupos de pesquisa responsáveis por essa produção possuem forte vínculo institucional e vêm sendo consolidados nos últimos 20 anos pela produção sistemática de teses, dissertações e artigos científicos.
Algumas universidades, com destaque para a UFRJ e a UFPR, apresentam uma produção sistemática e persistente sobre o tema, enquanto a outra parte está dividida em diversas instituições, o que demonstra que o tema também vem sendo abordado de forma ocasional em outros contextos institucionais e de pesquisa.
A análise dos objetos de pesquisa das teses e dissertações sugeriu que a produção acadêmica pode ser distribuída em quatro eixos temáticos, que dizem respeito tanto ao contexto escolar como ao acadêmico: cursos, disciplinas, políticas e teorias-práticas. A comparação entre os trabalhos desenvolvidos no campo de estudos do currículo e da história da educação apontou que o primeiro tem privilegiado o contexto escolar enquanto o segundo apresenta maior concentração no âmbito acadêmico. A análise das referências bibliográficas e dos conceitos que compõem as palavras-chave indicadas nos artigos, por sua vez, demonstrou que a base epistemológica dessa produção acadêmica está intrinsecamente relacionada à área de pesquisa de origem dos autores. Ivor Goodson e Thomas Popkewitz são os autores mais influentes, e a aproximação entre os trabalhos produzidos na área da história da educação e dos estudos do currículo dá-se pelos trabalhados voltados à história das disciplinas.
A categoria função-autor elaborada por Michel Foucault (2004) permite reconhecer que a configuração atual da produção acadêmica decorre de diferentes autorias instauradoras de discursividade que atuam de maneira determinante na composição do horizonte teórico do campo. O reconhecimento das diferenças e aproximações entre as narrativas históricas produzidas pode contribuir para borrar fronteiras, questionar divisões e ampliar o potencial de produção de conhecimentos sobre a história do currículo no Brasil.