INTRODUÇÃO
A prevalência de meninos no fracasso escolar foi salientada por vários estudos (Carvalho, 2001, 2003, 2004, 2012; Fernandez, 2006 apud Marangon, 2006; Borsa, Souza e Bandeira, 2011; Emerich et al., 2012), e o fenômeno vem se acrescentando com a prevalência do diagnóstico de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) no sexo masculino (Rohde e Halpern, 2004; Siqueira e Gurgel-Giannetti, 2011; Rezende, 2013). No entanto, a explicação do porquê os meninos fracassam mais do que as meninas na escola ainda não é consenso.
O mapeamento da complexidade dos fatores envolvidos na construção histórica das identidades de gênero permite entender melhor alguns dados alarmantes da realidade escolar brasileira. No ano de 2015, o Censo Escolar apontou um total 3 milhões de crianças e jovens entre 4 e 17 anos fora da escola. Nesse mesmo ano, 1,6 milhão de alunas e alunos que apareciam matriculados no Censo de 2014 abandonaram a instituição escolar, sendo denominados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) como “invisíveis” (Tokarnia, 2016). O perfil majoritário dos estudantes era de sexo masculino, negros e de escolas urbanas.
Esse perfil prevalente converge com as estatísticas que revelam os três fatores da composição de alunas e alunos que mais impactam no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)1: nível socioeconômico, cor/raça e gênero (Alves e Soares, 2013). Ainda que o nível socioeconômico seja o fator de maior impacto, gênero e cor/raça também são elementos significativos (Alves e Soares, 2013). Entretanto, segundo Carvalho (2004), poucos são os estudos de gênero que consideram suas relações com esses outros fatores sociais, o que acaba reduzindo a complexidade do fenômeno do fracasso escolar. Nesse sentido, a autora constatou que, em comparação com os meninos, as meninas costumam ser menos identificadas pelos professores a partir de seu perfil racial (Carvalho, 2004).
Embora as pesquisas sobre preconceitos de gênero no contexto escolar venham se desenvolvendo há mais de duas décadas (Guimarães, 1995; Camargo e Ribeiro, 1999; Nunes e Silva, 2000; Figueiró, 2009; Madureira e Branco, 2015), sua relação com os transtornos da aprendizagem é mais incipiente. O fenômeno é saliente para pensar de que modo o gênero permeia a queixa escolar. Durante os primeiros anos do ensino fundamental, o principal motivo de consulta psicológica consiste em demandas ligadas à escolaridade que contemplam queixas por problemas de adaptação e de aprendizagem (Lenoble, 2010; Zulueta, 2010). Nesses atendimentos de saúde mental, corrobora-se a maior proporção de meninos. Por exemplo, das 551 crianças e adolescentes de 6 a 14 anos atendidas em 1997 no Ambulatório do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Sepia), 386 (70%) eram meninos e 165, meninas (30%), o que confirmou uma diferença significativa da variável sexo (Lee e Matarazzo, 2001).
Atualmente, essa primazia masculina está associada ao TDAH, transtorno do neurodesenvolvimento intimamente correlacionado à queixa escolar (Bonadio e Mori, 2013; Bianchi e Faraone, 2015; Janín, 2004). A literatura que trata do perfil desse polêmico diagnóstico verifica maior prevalência nos meninos e as proporções segundo o sexo variam entre: aproximadamente 2:1 (em estudos populacionais) e até 9:1 (em estudos clínicos) (Rohde e Halpern, 2004). Observa-se maior presença de sintomas hiperativos nos meninos, enquanto as meninas apresentam mais o tipo desatento (Siqueira e Gurgel-Giannetti, 2011; Rezende, 2013). Em função disso, a sintomatologia externalizante dos meninos causa mais encaminhamentos da escola e/ou mais preocupação dos pais pela tensão gerada na convivência familiar. Essa diferença de gênero no TDAH concorda com a distribuição das tendências de comportamentos internalizantes em meninas e externalizantes em meninos (Emerich et al., 2012). Entretanto, essa discrepância geral de gênero resulta ainda controversa e sem consenso na literatura (Borsa, Souza e Bandeira, 2011).
A relação entre gênero e fracasso escolar foi abordada por Carvalho (2003, 2004) e por Carvalho, Senkevics e Loges (2014), que analisou as causas da prevalência dessa condição em meninos. Um dos pressupostos habituais para explicar a questão é o trabalho infantil majoritário em crianças de sexo masculino. Contudo, essa justificativa não seria pertinente, já que as meninas, em compensação, trabalham mais em serviço doméstico ou cuidando de irmãos mais novos (Carvalho, 2003). O estereótipo de meninas tranquilas e dóceis e meninos indisciplinados e desorganizados também não explicaria essa diferença. Sem chegar a conclusões definitivas, Carvalho (2003) e Carvalho, Senkevics e Loges (2014) apontam a um imaginário de masculinidade no qual o menino que vai bem na escola ou que é elogiado pela professora “acaba sendo desprezado pelos colegas, chamado de ‘bicha’ ou de ‘mulherzinha’, e para afirmar sua masculinidade acaba tendo que recorrer até ao mau desempenho escolar, à indisciplina” (Carvalho, 2003, p. 191).
Desde outro ângulo, algumas autoras destacam que a menina seria mais sensível ao olhar do outro e, com base nessa maior necessidade de aprovação do que o menino, deslocaria seu desejo de integridade e estética nas aprendizagens escolares (Arbisio, 2007). Também conforme Janín (2004), o valor da estética tem pesos diferentes em meninos e meninas, o que explicaria os cadernos caprichados que elas mostram com orgulho procurando a aprovação dos adultos. Já os meninos rejeitam a ideia de ficar em uma atitude passiva de obediência e tendem a responder e “desafiar” o outro, ativo e poderoso, para evitar uma posição feminina (Janín, 2004). Desse modo, o problema da disciplina se coloca para o menino como uma luta pelo poder e, assim sendo, para ele seria melhor ser visto como líder no grupo do que como bom aluno, o que converge na linha de interpretação de Carvalho (2003, 2004) já mencionada.
Fernandez (2006 apud Marangon) coloca o foco da questão no universo feminino prevalente do professorado e sublinha que, no ciclo I do ensino fundamental, mais de 95% dos profissionais são mulheres. Conforme a autora, isso causaria dificuldades de identificação dos meninos com as professoras e seria um obstáculo para a significação prazerosa do conhecimento. Em concordância com esse raciocínio, a pesquisa de Sleator e Ullman (apudJanín, 2004) comprovou que crianças com diagnóstico de TDAH amenizam a expressão da sintomatologia hiperativa em contextos de interação com figuras de autoridade masculina em vez de feminina.
Em síntese, a literatura identifica que, além de raça e classe, o fracasso escolar é permeado pelo fator gênero. Mas o tema é incipiente e não há ainda consenso para explicar a prevalência masculina. Entretanto, há convergências na observação da presença de estereótipos de gênero no contexto educativo, tanto familiar como escolar (Le Maner, 1997; Brougère, 1999; Moreno, 1999; Reis e Maia, 2009; Cechin e Silva, 2012; Madureira e Branco, 2015).
Considerando-se que as pesquisas sobre gênero e fracasso escolar dão pouco protagonismo às próprias crianças (Carvalho, 2004), o objetivo deste artigo é suprir parcialmente essa lacuna dando-lhes voz. Desse modo, a partir de um lócus “micro” de atendimento, pretende-se enfatizar um ponto que não teve devida atenção e não foi suficientemente pesquisado: a interpretação das crianças protagonistas da queixa. Situando-se nas coordenadas do macrocontexto do fracasso escolar, o trabalho visou caracterizar e ilustrar a tendência da interface gênero × queixa indagando se seria possível identificar diferenças nas produções discursivas e ações de meninos e meninas. Em termos metodológicos, o estudo propõe o instrumento de rodas de conversa para fomentar a expressão de ideias e os sentimentos acerca dos estereótipos de gênero e dos conflitos escolares.
Antes de passar aos dados encontrados na pesquisa, no intuito de avançar na discussão acerca do sexismo na base da queixa escolar, serão sistematizados três prismas de análise da presença e perpetuação da educação sexista na infância que contribuem para sua desnaturalização, salientando-se seu caráter social e histórico:
ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO
O mapeamento da discussão sobre a construção dos comportamentos de gênero na dialética genética-ambiente evidencia que, na contramão das explicações naturalistas e biologizantes das discrepâncias do ser menino × ser menina, prepondera a hipótese etiológico-cultural que remete aos aspectos de criação que influenciam a construção das identidades de gênero (Le Maner, 1997; Parisotto et al., 2003). Esses trabalhos do âmbito da psicologia das diferenças sexuais e de gênero convergem em apontar que é a educação familiar e escolar a que continua reforçando certos padrões de conduta ao longo do desenvolvimento (Le Maner, 1997; Reis e Maia, 2009). A partir de entramados conceituais de diferentes perspectivas teóricas, a construção das identidades de gênero é explicada, em parte, pelas atitudes comunicativas e afetivas desiguais dos adultos primários (familiares ou escolares) conforme sejam direcionadas, desde o nascimento, aos meninos ou às meninas (Moreno, 1999; Reis e Maia, 2009; Madureira e Branco, 2015).
Além dessas questões culturais, identificam-se diferenças no prisma neurofuncional e endócrino: por exemplo, a maior agressividade nos homens correlacionada a maiores níveis de testosterona (Westly, 2012). Entretanto, os estudos das neurociências apontam que, mesmo havendo leves diferenças anatômicas endócrinas e cerebrais, o papel do entorno é capital no desenvolvimento de certas habilidades mediante ofertas seletivas de objetos segundo o gênero (Cahill, 2012). O ambiente reforça, por exemplo, o desenvolvimento desigual das habilidades espaciais, sendo uma capacidade levemente diferenciada em favor dos homens no plano genético, mas altamente exacerbada na oferta de brinquedos e jogos “de meninos e de meninas”. Em resumo, é a experiência que muda o cérebro pelo mecanismo de plasticidade cognitiva e o modo de criação do indivíduo constitui uma “infusão de gênero cultural” (Cahill, 2012).
Os estudos contemporâneos acerca dessa “infusão cultural” destacam que a cultura demanda responder a identidades de gênero, com modelos de masculinidade ligados à agressividade e aos riscos (Le Maner, 1997). Já os femininos estão mais relacionados ao “ser bela”, via controle do peso e cuidado do corpo, das unhas e do cabelo (Arbisio, 2007; Gutton, 2009). O império rosa e banal de Barbie e de outras bonecas similares permanece sendo um fenômeno crescente em vendas, promovendo o culto à vaidade, à riqueza e ao corpo perfeito branco, loiro, magro e ocidental (Cechin e Silva, 2012).
As escolhas infantis de jogos e brinquedos são propiciadas pelas experiências lúdicas diferenciais que os adultos oferecem (intencionalmente ou não) e, na maioria das vezes, respondem a estereótipos de gênero (Le Maner, 1997; Brougère, 1999; Reis e Maia, 2009). Ademais, o público infantil continua sendo o destinatário de clichês fomentados pela indústria dos brinquedos que fortalece os lugares-comuns do sexismo com a clássica divisão de produtos para meninas e para meninos. Os primeiros continuam relacionados a temáticas domésticas e de cuidados maternos (Le Maner, 1997; Moreno, 1999). No caso dos brinquedos “para meninos”, proliferam carrinhos, armas e bonecos lutadores que evocam aparatos militares de guerra, fomentando o estereótipo da agressividade (Brougère, 1999; Figueiró, 2009).
A respeito das meninas, vários autores contemporâneos vêm assinalando sua sexualização precoce, que traz como efeito o abandono de brincadeiras e jogos para usar maquiagem, roupa adulta e começar a se interessar por meninos cada vez mais cedo (Arbisio, 2007; Urribarri, 2012). O fenômeno da sexualização precoce das meninas é fomentado pela mídia e por uma educação frágil em tempos em que a autoridade, as diferenças geracionais e os limites vão sendo diluídos (Steibel et al., 2011; Souza, 2014).
Acerca dos conteúdos do jogar, historicamente houve diferenças nas escolhas de brinquedos e jogos mais relacionados a um ou outro gênero, fato ilustrado no caso da sinuca, que foi mal vista entre as mulheres até algumas décadas atrás (embora esse tom pejorativo possa ainda persistir). Pesquisas atuais que abordam as tendências no uso dos videogames também mostram preferências diferenciadas nas escolhas feitas por homens e mulheres segundo tipos de jogos escolhidos e habilidades (Alves e Carvalho, 2011; Suzuki et al., 2009). Nesse sentido, um estudo com crianças evidenciou a preferência masculina pelo “futebol” e o “videogame” e observou que a interpretação de “jogo violento” foi um dos argumentos femininos para rejeitá-los no seu repertório lúdico (Rossetti e Souza, 2005).
Já o campo da literatura infantil vem protagonizando um papel transgressor em torno da desconstrução desses estereótipos sexistas. Nos últimos anos, tem surgido uma vasta produção internacional que aborda essa temática em histórias para crianças e adolescentes. Elas apresentam princesas independentes que não querem se casar e preferem atividades historicamente destinadas aos homens, assim como príncipes que gostam de cozinhar e não se mostram sempre fortes e valentes. A crescente presença de famílias homoparentais nos contos também interroga esses papéis sexuais clássicos (Silveira e Kaercher, 2013).
Entretanto, ainda quando a orientação sexual era um tema transversal do currículo, a diversidade sexual gerava, e continua gerando, fortes resistências no âmbito escolar (Cadete, Ferreira e Silva, 2012). O eixo “orientação sexual” foi incorporado, em 1997, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) desde o ciclo I do ensino fundamental. A partir da sua inserção no currículo e em projetos de formação de professores, o sexismo e a diversidade de identidades de gênero eram abordados em seu estatuto de “tema transversal” (Vianna, 2012; Madureira e Branco, 2015). Vários pesquisadores realizaram uma leitura crítica do antigo documento curricular, ressaltando sua abordagem naturalista com base em uma concepção biológica que deixava de lado a diversidade sexual e os valores socioculturais que permeiam o sexismo (Altmann, 2001; Vianna, 2012). Apesar dessas críticas, a orientação sexual foi um importante avanço em matéria de oficializar a temática no contexto escolar, mas acabou sendo suprimido na nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2019.
A supressão do tema na nova BNCC foi um retrocesso, considerando-se que os dados sobre situações de violência relacionadas com preconceitos sexuais continuam sendo alarmantes. A Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil (2016) verificou que 73% dos estudantes LGBT já foram atacados verbalmente e 36% foram agredidos fisicamente na escola (apudTokarnia, 2016). Os desafios colocados pelas novas configurações familiares e os direitos da população LGBT tornam impostergável a reincorporação da orientação sexual como tema transversal no cotidiano escolar (Vianna, 2012). A estrutura homoparental, por exemplo, ainda é fortemente rejeitada em seu estatuto de família, o que corresponde com a ausência do tema na escola (Cadete, Ferreira e Silva, 2012).
No campo acadêmico, entretanto, já faz mais de duas décadas que as pesquisas sobre educação sexual discutem os aspectos sócio-históricos do sexismo focando, notadamente, os preconceitos de professores e pais, os estereótipos fomentados pelas escolas, a vulgarização da sexualidade humana na mídia e a ausência ou distorções de explicações sobre as diferenças sexuais, os papéis de gênero e a reprodução humana (Guimarães, 1995; Camargo e Ribeiro, 1999; Nunes e Silva, 2000; Figueiró, 2009; Madureira e Branco, 2015). No que diz respeito às representações acerca da sexualidade, prevalece o estudo das crenças e dos discursos dos adultos, sejam professoras, professores e/ou pais (Altmann, 2009; Madureira e Branco, 2015). Observa-se que na instituição escolar existem posições diversas do professorado, que funciona como prolongamento da família e reforço de seus valores, como meio de abertura de horizontes para a criança na linha de sua emancipação, ou como agente moralizador (Guimarães, 1995).
Os discursos das professoras e dos materiais didáticos não são neutros na construção dos estereótipos de gênero (Madureira e Branco, 2015). A escola colabora para os modos de subjetivação das crianças reproduzindo os discursos imperantes em cada época histórica (Moizés e Bueno, 2010). O clássico Como se ensina a ser menina, de Monserrat Moreno (1999), foi um dos pioneiros em discutir essa questão em detalhe, mostrando de que modo o sexismo se reproduz na práxis escolar. Em relação aos livros didáticos, a associação da mulher às tarefas domésticas e do homem como “provedor” tem diminuído (Moreno, 1999), em parte, como reflexo do âmbito laboral: ainda que as mulheres sigam dedicando mais tempo aos serviços domésticos do que os homens, observam-se deslocamento das fronteiras do masculino e do feminino e significativas modificações nas modalidades dessa divisão (Hirata, 2002).
Contudo, a sexualidade perpetua-se como uma dimensão das relações de poder entre jovens e velhos, pais e filhos, educadoras, educadores e estudantes (Vianna, 2012). Historicamente, os contextos da infância (escola, família, mídia etc.) constituem dispositivos de poder e controle permeados pelas chamadas “políticas sexuais” que, por diferentes meios, reduzem a sexualidade “à sua função reprodutiva, à sua forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial” (Foucault, 2010, p. 114).
Nessa mesma lógica, a subjetividade infantil resulta atravessada pelo discurso institucional que nomeia e justifica o desempenho escolar das crianças (Guarido, 2007; Osti e Brenelli, 2013; Bautheney, 2011). Essa circulação das explicações acerca da competência e da dificuldade para aprender está silenciosamente atrelada às representações de gênero instituídas no cotidiano escolar (Carvalho, 2003; Fernandez, 2006 apud Marangon, 2006). Progressivamente, essa nomeação do sujeito matriziada conforme os clichês sexistas acaba sendo aprendida e internalizada pelas alunas e pelos alunos.
A seguir, esses estereótipos são assinalados e discutidos a partir dos resultados de uma pesquisa empírica realizada em um programa de extensão para crianças com queixa escolar. A análise de dados objetivou identificar possíveis tendências diferenciais de meninos e meninas diante de conflitos cognitivos e intersubjetivos. Além disso, propõe-se o uso de rodas de conversa como instrumento pedagógico fértil para a identificação e a desconstrução dos estereótipos de gênero.
O TERRENO DISCURSIVO DAS CRIANÇAS: APROXIMAÇÕES E TRILHAS DA PESQUISA
O trabalho foi realizado no contexto de um programa de extensão universitário2 que realiza intervenções com crianças com queixa escolar. Os participantes, de 7 a 11 anos, frequentam, majoritariamente, escolas públicas ou fundações. O atendimento é grupal, conformado geralmente por 8 a 10 participantes, com duração de três semestres e encontros semanais de uma hora. Utilizam-se jogos lógico-matemáticos e de comunicação (individuais, em duplas ou grupais) bem como situações-problema que exigem diferentes estratégias de resolução. A segunda parte dos encontros se estrutura no dispositivo de rodas de conversa sobre temáticas diversas relacionadas aos âmbitos escolar e familiar.
A demanda com que a criança chega aos atendimentos é diversificada conforme a prevalência de dificuldades na alfabetização e/ou matemática, queixas por dispersão, falta de interesse, desatenção, problemas de relacionamento e disciplina, bem como os diagnósticos de transtornos específicos ou síndromes (suspeita ou diagnóstico de TDAH, dislexia etc.). A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPH) da USP, sendo aprovada pelo parecer nº 1.082.789.
Os materiais obtidos dos arquivos são referentes ao primeiro semestre de participação de 35 crianças (15 meninas e 20 meninos). Tentou-se aproximar a quantidade de meninos e meninas, mas esta não foi equiparada, fato que deriva da prevalência do sexo masculino na procura do atendimento, tal como será mostrado nos resultados. No total, foram analisados sete semestres, do período 2011-2014, em que a pesquisadora foi membro da equipe. Para a coleta de dados, foram consultados três tipos instrumentos: 142 fichas de matrícula com motivos de inscrição, 172 protocolos de observação e 10 registros escritos de rodas de conversa.
Os dados foram organizados conforme as recorrências e convergências observadas em meninos e meninas. A análise foi qualitativa e quantitativa. No primeiro caso, foram contemplados os 172 protocolos sistematizando os itens marcados na observação de três momentos: o afrontamento da proposta, a interação global com a tarefa e a resolução dos conflitos cognitivos. Da marcação total de 1.385 itens, foram considerados os 5 que manifestaram maior discrepância de gênero: envolvimento, impulsividade, fuga - dispersão, rapidez para começar e autonomia.
Já os registros escritos das rodas de conversa foram abordados qualitativamente, conforme a análise de conteúdo (Castro, Abs e Sarriera, 2011). No caso da temática “resolução de conflitos intersubjetivos”, os dados foram sistematizados em tipos de modalidades prevalentes segundo a predominância de respostas físicas ou simbólicas. Tanto nos protocolos de observação de modalidades do jogar como nos registros escritos das rodas de conversa foram consideradas produções verbais e não verbais que envolvessem gestos, olhares, movimentos, expressões faciais etc.
A (DES)CONSTRUÇÃO DO SEXISMO: RESULTADOS, ANÁLISES E REFLEXÕES
Em relação ao perfil de gênero da população dos atendimentos, a análise de 142 fichas de matrícula confirmou que quase o triplo dos participantes eram meninos. Esse dado corroborou a prevalência masculina citada na literatura acerca do fracasso escolar e da demanda por atendimento em instituições de saúde mental. A porcentagem de inscrições3 em cada semestre do período 2011-2014, segundo o sexo, pode ser observada na Tabela 1.
Frequência absoluta | Frequência relativa (%) | |
---|---|---|
Meninos | 102 | 71 |
Meninas | 42 | 29 |
Total | 142 | 100 |
Fonte: adaptado de Garbarino (2017).
As diferenças de gênero nas formas de resolução de conflitos cognitivos foram abordadas na análise quantitativa (não estatística) dos 172 protocolos de observação de ações. Os achados são apresentados no Gráfico 1. Observa-se que os procedimentos diante dos conflitos cognitivos propiciados pelos jogos e pelas situações-problema manifestaram poucas divergências em meninos e meninas. Ainda assim, a frequência de todos os itens é maior entre os meninos: envolvimento (19% a mais) e impulsividade (16% a mais), seguidas de dispersão (14% a mais) e rapidez para começar (13% a mais). Considerando-se que esses procedimentos e atitudes estão bastante correlacionados, é preciso que sejam considerados em conjunto. Por exemplo, embora os meninos tenham mostrado maiores indícios de envolvimento, o fato de estarem envolvidos não levava, necessariamente, a procedimentos de resolução de melhor qualidade, em comparação com as meninas.
A maior impulsividade observada nos meninos envolveria reações de automatismo e imediatez, atitudes cognitivas que se situam na antítese da reflexão (Houdé, 2014). Esse achado converge com a literatura sobre o diagnóstico de TDAH, que tem mostrado maiores índices de desatenção para as meninas e hiperatividade nos meninos (Siqueira e Gurgel-Giannetti, 2011; Rezende, 2013). A divergência foi constatada nas observações sobre impulsividade, mas não sobre dispersão, que também foi maior nos meninos. Além disso, a constatação de maiores índices de envolvimento e autonomia (11% a mais) a favor deles pode também estar relacionada com a prevalência da rapidez para começar (13% a mais). Em síntese, embora tenham sido identificadas algumas distinções na resolução de conflitos cognitivos, elas resultam pouco expressivas e não permitem concluir em modalidades femininas e masculinas.
A análise qualitativa referente ao dispositivo das rodas de conversa indagou possíveis divergências de gênero em matéria de diversas temáticas, tais como: conflitos intersubjetivos com pares; preferências lúdicas; diferenças entre meninos e meninas; e projeção profissional. Cabe assinalar que as rodas de conversa constituem uma metodologia amplamente utilizada com adolescentes e adultos no âmbito da saúde (Sampaio et al., 2014; Branco e Pan, 2016; Melo et al., 2016), mas os estudos com crianças no âmbito escolar ainda são escassos. Entretanto, sua riqueza pedagógica é vasta por possibilitar que a criança, usufruindo do espaço de circulação da palavra, vivencie um novo modo de autovalorização como sujeito crítico pensante em uma posição mais autônoma, descentrada e flexível, não só com os objetos de conhecimento, mas também nas suas relações interpessoais nos contextos escolar e familiar.
Para abordar as modalidades de resolução de conflitos intersubjetivos com colegas, foram analisadas as produções discursivas acerca da questão: “o que você faz quando alguém te provoca ou tira sarro de você?”. Cabe mencionar que, conforme as respostas dadas, não se deduz que a criança realmente fez ou faz aquilo que diz. Elas são analisadas identificando-se tendências prevalentes de atribuição de sentido sobre a ação (sejam realistas ou fantasiosas), e não a própria ação de resolução.
Após a leitura exaustiva de 28 respostas, elas foram sistematizadas de acordo com o reconhecimento (ou não) de uma instância de regulação social externa ao indivíduo que perpassasse a resposta física. Identificaram-se três modalidades4 preponderantes de regulação na interpretação do conflito:
retração ou inibição da ação: a criança manifesta desinvestimento da situação, via retração, tentativa de fugir ou anular o conflito;
agressão física irruptiva: a perturbação é investida massivamente com o corpo, sendo irruptiva por envolver a invasão ou o transbordamento súbito de sentimento;
mediação simbólica: o sujeito apela à palavra, à regra, ou procura a mediação do adulto.
Tal como exposto no Quadro 1, as produções discursivas evidenciaram discrepância de gênero na segunda categoria de resolução do conflito apelando ao corpo. Nenhuma menina fez menção a esse tipo de estratégia, já que as 16 menções à regulação física foram feitas por meninos. Cabe destacar que, durante a fala, eles costumavam rir ou procurar um olhar de cumplicidade nos colegas. Ainda que a enunciação não reflita a ação verdadeiramente realizada, a produção discursiva responde a um estereótipo de masculinidade no qual a agressão física é esperada e, no pior dos casos, celebrada e legitimada. Já no caso das meninas, predominou a inibição da ação ou a mediação simbólica.
Retração ou inibição da ação |
Ca (M)5 “não faço nada e vou para outro lugar” / Mi (F) “finjo que não prestei atenção” / La (F) “não ligo” / Lar (F) “eu corro” / Gui (M) “fiquei quieto [pediu ajuda?] não” / H (M) “Ignoro”. |
Agressão física irruptiva |
Di (M) “não [me xingam], apanham se alguém fala isso” / Cle (M) “Bato” / GuiS (M) “bati” / Fel (M) “meti um soco na cara” / B (M) “eu bati e xinguei” / Vin (M) “bati e falei com o moleque” / B (M) “quando uma criança provoca ao invés de ficar com raiva eu dou um soco nele e fico mais aliviado” / Pe (M) “meu primo ficou xingando. Eu bati nele de tanto que me encheu” / De (M) “deixo para lá ou bato” / D (M) “faço a mesma coisa que a pessoa fez em mim” / P (M) “Vou no inspetor e peço ajuda. Ou meto a mão, dou surra no moleque que me xingou” / Vin (M) “Se me provocam eu dou um chute”. / Ga (M) “pega uma arma ninja e dá na cara dele, esfaqueia e atira” / Vi (M) “eu fiz picadinho dele, joguei ele do avião. Eu pensei em dar um soco nele” / Ed (M) “Vou atrás para bater” / Ga (M) “Dou um chute se ele me provoca” |
Mediação simbólica |
Fe (M) “Pedi para pararem e eles pararam” / Ja (F) “mando calar a boca” / Le (F) “eu fico triste e bem nervosa. Eu falo para a professora” / Th (M) “mando calar a boca e conto para pró” / Am (F) “falei com a professora” / Lu (M) “um menino de minha classe me chama de ‘gorducho’ e gordo tapete velho. Pedi ajuda para a professora, mas ele mente e diz que não falou nada” |
Fonte: adaptado de Garbarino (2017).
A tendência masculina de preferência lúdica pelos videogames violentos também foi verificada em expressões como: Gu (M) “Tiro? Sangue? Luta? Gosto porque desconta a raiva” / Wa (M) “gosto é da hora matar os carinhas” / Cl (M) “gosto porque é da hora”.
Já as meninas tenderam a rejeitar esses tipos de jogos, o que fica ilustrado nos seguintes exemplos: La (F) “não gosto porque é chato” / Am (F) “não gosto, não é legal” / Ja (F) “meu preferido é o twister” / Is (F) “não gosto de nada violento, às vezes eu tinha pesadelo com os jogos do meu irmão”.
Ainda com clara divergência, a divisão de preferências lúdicas não é taxativa, encontrando rejeição também em meninos: Di (M) “odeio porque incentiva as pessoas a bater”. Similarmente, algumas meninas manifestaram interesse pelo futebol: La (F) queixou-se porque quer aprender jogar “mas os meninos não deixam”, Ma (F) diz que ela é boa jogando futebol e Be (F) diz que quando crescer quer ser “dançarina de dança do ventre ou jogadora de futebol”. Apesar disso, observou-se que o futebol é hegemônico nas escolhas dos meninos e em seus projetos futuros de jogadores profissionais.
Nesse sentido, a tendência estereotipada de gênero também foi identificada em relação à questão da escolha profissional, ilustrada nos seguintes exemplos: [Imagine você no futuro. O que precisa fazer para conseguir?] Vin (M) “[quero ser] matador de matar coisas do mal. Com 30 anos, matar bandidos, tem que treinar, lutar com espada e matar com arma” / Pe (M) “jogador de futebol, empinar pipa até ser adulto” / So (F) “uma princesa de contos de fadas com duas coroinhas”.
Imaginar-se no futuro é um convite para projetar a si mesmo, o que, indiretamente, vai ao encontro do desejo de crescer. Cabe salientar que, além de serem estereotipadas em relação ao gênero, as produções fantasiosas (princesa, matador) acima apresentadas oferecem indícios do pensamento mágico. Essa indistinção ficção × realidade resulta relevante porque, em linhas gerais, grande parte das crianças com queixa escolar que chegam ao atendimento por motivos mais ligados a dificuldades cognitivas (em detrimentos das comportamentais) ainda manifesta a prevalência de um pensamento pré-operatório que dificulta a apropriação dos conteúdos do ciclo básico I. É aqui um ponto crucial da interface gênero × fracasso escolar, que será aprofundado a seguir e que impõe desafios para as educadoras e os educadores.
Várias pesquisas piagetianas verificaram que, durante o período do pensamento intuitivo ou pré-operatório do desenvolvimento, a construção da diferença sexual tende a tomar como base os estereótipos de gênero, como cabelo, roupa e brincadeiras (Kohlberg, 1966; Jagstaidt, 1986; Le Maner, 1997; Garbarino, 2012). Para a maioria das crianças dessa etapa, a genitalidade e os elementos anatômicos secundários, como o peito, não são ainda uma “necessidade lógica” de definição sexual, e a identidade de ser menina ou menino pode mudar conforme as aparências de gênero (Jagstaidt, 1986; Garbarino, 2012). Portanto, para manter a própria identidade do Eu, a criança precisa se “aferrar” a essas atividades, brincadeiras, acessórios e vestimentas classicamente adjudicados ao universo masculino ou feminino. Caso contrário, o Eu se diluiria na ambiguidade sexual, correndo o risco de ser marginalizado e “diferente” dos estereótipos que acalmam e oferecem a acolhida cultural do pertencimento (por exemplo, menino que usa saia, brinca de casinha ou deixa o cabelo comprido vira menina).
Desse modo, além da imersão em um contexto cultural que fomenta a dicotomia, o reducionismo e a rejeição para a diversidade sexual, a tendência infantil de apelar a estereótipos de gênero para definir a identidade sexuada se corresponde também com uma característica do desenvolvimento cognitivo (Kohlberg, 1966; Garbarino, 2012). Assim, ainda que o ambiente seja o fator fundamental para a (des)construção dos estereótipos, o pensamento pré-operatório oferece dificuldades para coordenar e abstrair informações referentes à complexidade da sexualidade humana e à histórica construção binária das identidades de gênero.
Destarte, “ser menino” e “ser menina” ficam atrelados à rigidez da demanda cultural de ser, respetivamente, forte e bela. Os modelos femininos relacionados ao “ser bela” via controle do peso e cuidado do corpo, das unhas e do cabelo (Arbisio, 2007; Gutton, 2009) se apresentam em diversos momentos dos atendimentos. Assim como observado na literatura (Steibel et al., 2011; Souza, 2014), é habitual que as meninas cheguem com as unhas pintadas, usando maquiagem, sapato de salto ou diversos acessórios no cabelo etc. A imposição do “ser bela” fica ilustrado na fala de Is (F), quando comenta que pinta as unhas para ir à escola porque “tenho que ir bonita, né?”.
A tendência das crianças de 7 a 11 anos de demarcar diferenças de gênero na amizade leva a relações grupais que separam meninos de meninas e fortalece essa divisão estereotipada da imposição de beleza feminina e de força física masculina. A autorrealização e satisfação na vida de grupo, ou seja, a vida similar para todos, é baseada no “querer ser” como os outros (Arbisio, 2007).
Em síntese, e em concordância com o paradigma da intersubjetividade proposto por Golse (2010), o sexismo se enfraquece ou potencializa na retroalimentação das crianças e seu entorno sociocultural, em processos suscitados pela educação. Os estereótipos de gênero são reforçados e valorizados pelos educadores dos âmbitos escolar e familiar, tal como ilustrado na escrita de uma mãe sobre os aspectos positivos de seus filhos (ambos participantes do programa). Diz sobre o menino: “esforçado, dedicado aos esportes”, e sobre a menina: “não se envolve em confusão, é carinhosa”, diferença que parece estar permeada pela legitimação dos estereótipos do menino esportista e da menina dócil.
Esses modelos educativos de feminilidade e masculinidade ressoam na construção infantil das identidades de gênero (Reis e Maia, 2009). Entretanto, a dinâmica de circulação do saber e do confronto com outros pontos de vista propiciados pelas rodas de conversa mostra seu potencial de desconstrução, tal como exemplificado na seguinte sequência sobre diferenças entre meninos e meninas: Di (M) “os meninos são mais altos e as meninas são mais pequenas” / Is (F) [responde a Di] “mas há homens baixos e meninas altas!” [depois acrescenta] “os homens cozinham mal” Br (M) [lhe responde] “não, meu pai cozinha muito bem, melhor que minha mãe”.
Cabe salientar que além dos clichês sexistas perpetuados pelas educadoras e pelos educadores (Moreno, 1999; Reis e Maia, 2009; Madureira e Branco, 2015), a mediação simbólica da palavra fica restrita em modelos educativos em que prevalecem os mecanismos de coação. A fala de Am (F) exemplifica esse mecanismo quando, diante da pergunta “o que você acha muito chato de fazer, mas faz mesmo assim?”, diz: “Eu não gosto quando eu quero andar de bicicleta e minha mãe não deixa. Ela tem medo de eu cair e machucar. [E por que você obedece?] Porque eu posso apanhar de cinto”.
Na base da obediência hegemônica, ensina-se a desprezar a discussão como troca simbólica e a calar a singularidade. Na cronificação dessas práticas, as crianças aprendem a não mediar seus afetos simbolicamente, e a raiva, a tristeza ou a ansiedade se tramitam diretamente no corpo (desde roer as unhas até bater nos outros). Tal como apontado pela literatura, se os meninos apelam à força física como via para resolver conflitos com os pares, não é em função nem da genética, nem do cérebro, nem dos hormônios. A violência física é exacerbada nos processos de socialização primária e secundária de matriz coercitiva que, na contramão da dinâmica das rodas de conversa, limitam o potencial da palavra, da discussão e da expressão de ideias e sentimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde uma perspectiva empírica, os resultados obtidos neste trabalho visaram contribuir para a discussão das teses frequentes na literatura que buscam explicar a dinâmica das relações entre gênero e fracasso escolar nas últimas décadas. Os dados corroboraram tanto a prevalência de meninos com queixa escolar como o estereótipo masculino de resolução de conflitos interpessoais via agressão física (que responderia ao clássico preconceito do “machão”). Salientou-se que essa distinção na modalidade de afrontamento está relacionada a uma impronta irruptiva de apelação ao corpo associada a questões de gênero, especificamente a representações de masculinidade ligadas à força física. Também os tópicos escolha de preferências lúdicas e escolha vocacional viram-se permeados por esses estereótipos.
Mesmo sendo um tema sem explicações consensuais, e que ainda precisa de mais pesquisas, pode-se afirmar que a manifestação da queixa escolar é sutilmente tonalizada por um modo cultural de entender a distinção masculino × feminino que se perpetua no contexto escolar. As expectativas e crenças das professoras e dos professores em relação ao ser menino × ser menina permeiam, “contaminam” e “deformam” seu olhar sobre o desempenho e a disciplina das alunas e dos alunos. Portanto, os estereótipos de gênero primeiramente precisam ser identificados para poderem ser desconstruídos. Desse modo, posteriormente, as educadoras e os educadores poderão propiciar propostas pedagógicas que favoreçam sua problematização tanto entre as crianças como na comunidade escolar.
As limitações do presente estudo pautam-se principalmente no tipo de material analisado, que se circunscreve às ações e aos discursos produzidos em um lócus específico de pesquisa no contexto do atendimento de crianças com queixa escolar. Outra restrição a destacar é que o trabalho focalizou a escuta das crianças, sem contemplar a voz das educadoras e dos educadores, tanto da família como da escola. Considera-se, então, a fecundidade de realizar novas investigações que promovam a escuta direta das professoras e dos professores, resgatando o valor das suas crenças, narrativas e vivências no contexto escolar. Além disso, com base no movimento crescente de pesquisas no campo do gênero e do feminismo na educação, são necessários mais estudos que contemplem a pesquisa-ação e o planejamento conjunto de propostas pedagógicas que superem a hegemonia de atividades superficiais, discursivas, prescritivas e moralizadoras que acabam fomentando o respeito heterônomo diante da diversidade de gênero e dos direitos da população LGBT. Em síntese, um dos maiores desafios dos estudos empíricos no campo escolar consiste no progressivo e difícil trabalho de desconstrução da histórica e enraizada naturalização dos estereótipos de gênero no contexto das relações sociais vivenciadas nesse espaço.
Em termos metodológicos, o presente trabalho permitiu concluir que as rodas de conversa constituem instrumentos frutíferos não só para discutir temas como orientação sexual e sexismo, mas também, indiretamente, como estratégia pedagógica que abre espaço para a desconstrução do que se apresenta como óbvio. Ao propiciar o contato com o pensamento livre, prazeroso e autônomo, bases da construção do conhecimento, esse dispositivo traz ganhos para a aprendizagem, para a constituição subjetiva das crianças e para o exercício de reflexão e da cidadania.
Ainda há muitos interrogantes e tópicos abertos acerca da perpetuação das diferenças de gênero que permeiam a queixa escolar. Essa relação se manifesta explícita, mas, na maioria das vezes, de maneira sutil no microcotidiano da escola, nos discursos, nos gestos e nas crenças sexistas de alunas e alunos, professoras e professores, que ocultam seu carácter de construção sociocultural. Destarte, requer-se um olhar agudizado e crítico para detectar e questionar essas práticas, quase sempre inconscientes. A escola precisa então abrir espaços de fala e escuta às crianças para desentranhar os estereótipos e clichês do ser menino e ser menina.
Nesse sentido, no dispositivo das rodas de conversa, “o outro” confronta e amplifica o pensar, com alternativas que podem ser impensadas ou indizíveis para um sujeito. É nesse âmbito que o outro funciona como estrangeiro (Kristeva, 1998) e a intervenção de cada criança pode diversificar os lugares-comuns. A experiência da troca de pontos de vista se enriquece quando o sujeito se posiciona no ato de enunciar, evitando ficar preso à repetição de enunciados feitos e problematizando o que até então parecia não ir além do já conhecido e repetido. A dicotomia reducionista dos estereótipos femininos × masculinos e seus clássicos universos estáticos do ser menino x menina constituem uma das tantas temáticas que se apresentam como “óbvias e naturais”. Nesse sentido, a relação gênero e queixa escolar pode ser problematizada ao colocar em xeque sua reificação, salientando que ambas são construções sociais e, portanto, podem ser mudadas. É então nesse movimento de trocas com a alteridade que algo do histórico laço entre gênero e fracasso escolar poderá ser desconstruído, porque, quando o mundo deixa de ser um lugar de evidências, torna-se mais complexo e atrativo de aprender e transformar.