INTRODUÇÃO
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) foi criada em 1961 para arbitrar e coordenar, pelo Plano Marshall, a reconstrução dos países devastados pela Segunda Guerra Mundial (1939−1945), assegurar o crescimento da produção, construir marcos regulatórios para capacitação de pessoal nas áreas científicas e tecnológicas e criar mecanismos para destravar barreiras e liberar o comércio entre os países. Nessas relações, americanos e europeus operam por meio da determinação de instrumentos de estabilização econômica e regulação de transações financeiras, setores da indústria, comércio, agricultura, infraestrutura, transporte, tecnologias, meio ambiente e da educação, instigando a competição entre países-membros.
Com sede em Paris e sob liderança dos Estados Unidos, a OCDE, nas décadas seguintes a sua criação, tornou-se uma instituição com poder econômico, jurídico e político internacional, atuando como formuladora de políticas para ampliar a estabilidade e consolidar um modelo econômico liberal voltado para o crescimento da economia dos países desenvolvidos e a regulação das políticas públicas, especialmente a política educacional.
Para operar, a OCDE conta com uma estrutura organizacional composta de centros, agências, escritórios, departamentos, comitês, fóruns, grupos de trabalhos, técnicos e especialistas. Em 1970, criou a Diretoria de Educação. Em 2012, foi criada a Diretoria de Educação e Habilidades, com um expert staff, tendo como propósito tornar a educação pública um serviço a ser explorado pelo mercado privado e alcançar o status de banco de dados, com poder de prescrição da política global para a educação dos países-membros e parceiros-chave.
Atuando na economia, ciência, comércio, mercado financeiro e política industrial por inquéritos de dados, relatórios estatísticos, avaliação por pares, publicações e programas, logo a OCDE percebeu a educação pública como mais um nicho estratégico a ser explorado pelo capital mercantil e financeiro. Nesse processo de atuação, os documentos Preliminary reflections and research on knowledge, skills, attitudes and values necessary for 2030 (OCDE, 2016), The future of education and skills - Education 2030 (OCDE, 2018a) e Future of Education and skills 2030: conceptual learning framework (OCDE, 2018b) antecipam competências futuras e defendem uma padronização curricular em escala mundial, com conhecimentos, habilidades, atitudes e valores a serem desenvolvidos pelos estudantes, sob o mote de bem-estar. Por sua vez, o documento Learning compass 2030 (OCDE, 2019a) apresenta uma visão ambiciosa para o futuro da educação, destaca uma estrutura de aprendizagem em evolução e fornece pontos de orientação para o bem-estar individual. Assim, utiliza a metáfora da bússola de aprendizagem com o objetivo de enfatizar a necessidade dos estudantes de aprenderem a navegar por si próprios em contextos desconhecidos, adversos, incertos, bem como durante as crises constantes.
Com esse raciocínio, em termos teóricos, entende-se que a base econômica determina e produz as decisões políticas e o ordenamento jurídico, e que o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia são condutores das visões de mundo que se espalham na forma de acordos, protocolos de intenções, contratos de empréstimos, publicações, relatórios estatísticos e programas de educação. Esses mercadores, financistas e organizações lideram e ordenam uma Agenda Global Estruturada da Educação (Dale, 2004), utilizando-se de programas, convenções e relatórios estatísticos internacionais para imprimir uma concepção de educação a serviço dos interesses econômicos competitivos internacionais.
Parte-se, então, da premissa teórica de que fontes documentais e legislação representam o movimento histórico, e não o todo. Constitui-se parte do real e trazem-se expressões de dissensos, dominação e assimetrias. Desse modo, indaga-se: que interesses fundamentam a intervenção da OCDE nos currículos escolares no contexto educacional brasileiro? Como ocorrem os alinhamentos entre as diretrizes inscritas na Base Nacional Curricular Comum - Ensino Médio e proposições da OCDE entre 2012 e 2021? Como a pedagogia das competências e habilidades se tornou o paradigma ordenador da legislação, concepções e práticas curriculares da educação básica?
Assim, a primeira seção deste texto discorre sobre como a lógica dos números conduz e transporta as proposições determinadas para a educação pela OCDE; a segunda seção analisa o ideário de um currículo internacional, fundamentos teóricos e mercadológicos que regem tal perspectiva; e a terceira evidencia, por meio de mediações históricas, os alinhamentos conceituais e teóricos na educação básica pública de Goiás.
GOVERNAR POR NÚMEROS E INDICADORES ESTATÍSTICOS INTERNACIONAIS
A OCDE é uma organização normativa internacional composta de 36 países-membros, tem como parceiros-chave Brasil, China, Índia, Rússia, África do Sul e Indonésia e está voltada para a regulação do crescimento econômico, a arbitragem de tarifas e barreiras, a promoção de políticas que visem à estabilidade financeira mundial, o fortalecimento do livre mercado e os avanços tecnológicos entre mercados. Desde a década de 1990, ela lidera um programa econômico neoliberal e preconiza a livre circulação de capitais; a abertura das economias nacionais, desregulamentando-as; a reforma do Estado e ajustes estruturais que alteram a relação entre Estado e sociedade civil; a adoção de equilíbrio fiscal; as privatizações; a adoção de parcerias público-privadas; enfim, a adoção de instrumentos de regulação nacional. Desde a reunião de Seattle, em 2002, aumentaram as tensões nas reuniões de cúpula internacionais das organizações em que corporações, rentistas e financistas defendem os serviços comerciais privados e os serviços públicos - educação e saúde - passíveis de ser ofertados pelo setor privado lucrativo.
Nesse contexto, desencadeiam ações, convenções e acordos em que experts da OCDE propuseram um modus operandi, seja por convergências de política ou transferência de política (Ball, 2001), seja pelo governo dos números, relatórios estatísticos, indicadores e inventários (Popkewitz e Lindblad, 2016). Isso significa dizer que os dados dos sistemas educacionais do país de origem são traduzidos em relatórios e publicações pelo Centro para Pesquisa e Inovação em Educação (CERI) e pela Diretoria de Educação e Habilidades, gerando indicadores e métricas com vistas à melhoria da qualidade educativa dos países-membros e parceiros.
As contingências econômicas e políticas e os avanços da tecnologia da informação e comunicação moveram mercadores e rentistas a incluir, de forma orgânica, a educação pública como nicho de negócios. Estudos de Pereira (2016), Popkewitz e Lindblad (2016), Freitas e Coelho (2019) e Hypólito e Jorge (2020) demonstram que a OCDE atua na superestrutura por meio de estratégias e ideologias que são transportadas em acordos, programas, avaliação por pares, relatórios estatísticos, Education at a Glance, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e publicações, contribuindo para hierarquizar os países-membros e parceiros no circuito internacional.
Essa lógica dos números traduzida em indicadores estatísticos hierarquiza, categoriza, classifica e separa países, instituições, regiões, escolas e pessoas, além de apontar outros nichos mercantis. Tal lógica concebe a criança, as pessoas, como reduzidas a dados estatísticos e sujeitas aos mecanismos de controle social (Popkewitz e Lindblad, 2016). No entanto, os números ajudam na organização e na compreensão da dinâmica social e tipificam pessoas, grupos e instituições. Os números servem para excluir e incluir, são úteis para governar e dominar. Atuar pela lógica dos números e dos relatórios internacionais indica formas de dominação, intervenção e controle político-ideológico dos dominantes sobre as pessoas, grupos e instituições. Os números transportam ideologias, visões, valores e poder. Destituídos do contexto histórico, podem encobrir ou descobrir e legitimar decisões e programas voltados para interesses econômicos, tecnológicos e sociais. Números e relatórios estatísticos indicam aos governos neoliberais e organizações financeiras as possibilidades de crescimento, seja nos serviços comerciais privados, seja nos serviços públicos estatais. São tortuosos e são proveitosos. Os números ocultam e revelam, pois fazem circular as visões de superioridade do mercado privado na administração das instituições públicas e, ao mesmo tempo, evidenciam e confirmam as desigualdades, exclusões e hierarquias.
A lógica do governo por números fabricados por dados e informações extraídos de programas de educação dos países sustenta uma estrutura ideológica e operacional capaz de interconectar interesses da política econômica e da política educacional. Essa lógica neoliberal enfatiza que o baixo crescimento econômico resulta da baixa qualidade da educação, verificada e aferida pelos programas: Programa de Indicadores de Sistemas de Ensino (INES); PISA; Programa para Avaliação Internacional das Competências dos Adultos (PIACC) e Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (TALIS).
O Quadro 1 traz, cronologicamente, as publicações e programas educacionais da OCDE desenvolvidos entre 1960 e 2020.
A relação do Brasil com a OCDE, como país associado e como parceiro-chave, implica fornecer os números e relatórios estatísticos da educação; aderir às regras, normativas e convenções; pagar os custos financeiros; aplicar ajustes na economia; participar de comitês e implementar programas referentes à educação, conforme excerto a seguir.
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Agência de Produtividade Europeia | 1953 |
Gabinete para pessoal técnico-administrativo (OSTP) | 1958 | |
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Projeto Regional Mediterrâneo (MRP) | 1961 |
Programa de estatísticas educacionais e técnicas de análise quantitativa | 1961 | |
Programa de bolsas | 1962 | |
Centro para Pesquisa e Inovação em Educação (CERI) | 1967 | |
Departamento de Educação | 1970 | |
Programa Foco na escola e no processo de ensino e aprendizagem e em políticas de desenvolvimento e pesquisa | 1970 | |
Programa de análise e formação docente | 1970 | |
Programa de gerenciamento do ensino superior (IMHE) | 1971 | |
Programa de construção de prédios escolares (PEB) | 1972 | |
Programa de Formação Internacional para o Gerenciamento da Educação | 1973 | |
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Programa de Indicadores de Sistemas Educativos (INES) | 1983 |
Education at a Glance - Panorama da Educação | 1992 | |
Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) | 1997 | |
Programa de Política de Aconselhamento e Implementação (PAI) | 1998 | |
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Programa para Avaliação Internacional das Competências dos Adultos (PIAAC) | 2008 |
Programa de Avaliação do ensino superior e resultados de aprendizagem (AHELO) | 2010 |
Fonte: Adaptado de Papadopoulos (1994) e Pereira (2016).
A cooperação entre o Brasil e a OCDE data do início da década de 1990, quando a OCDE começou a trabalhar com quatro países latino-americanos (incluindo também Argentina, Chile e México). O Brasil juntou-se ao seu primeiro Comitê da OCDE, o Comitê do Aço, em 1996 e tornou-se membro do Centro de Desenvolvimento em 1997. Desde então, a cooperação tem crescido constantemente, e o Brasil é hoje o parceiro chave [sic] mais engajado da Organização. (OCDE, 2018c, p. 6)
Entretanto, desde 2000, o Brasil participa do PISA, aplicado com o objetivo de aferir a aquisição de certa quantidade de conteúdos, medidos por indicadores internacionais. A organização, divulgação e manutenção do sistema de informações e estatísticas educacionais, o pagamento dos custos financeiros, a elaboração de questões, bem como toda a aplicação do programa de avaliação no país, é realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Essa posição do Brasil conduz a alinhamentos políticos, pois as prescrições e programas educacionais da OCDE são aceitos e traduzidos em discursos e ações, na legislação, planos, programas e projetos na gestão educacional com a anuência do governo federal, e conduzidos por grupos privados a serviço de interesses corporativos e mercantis, entre eles o Todos pela Educação, o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e o Movimento todos pela Base.
A BÚSSOLA DE APRENDIZAGEM E O IDEÁRIO DE UM CURRÍCULO INTERNACIONAL COMUM
As discussões sobre um projeto na perspectiva global para a educação avançaram quando a OCDE (2005) criou o projeto Definição e Seleção de Competências (DeSeCo), com a intenção de confeccionar um marco conceitual sólido, traçando objetivos para países fomentarem a educação ao longo de toda a vida. Integra esse contexto o relatório da Comissão Internacional sobre a educação para o século XXI, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - Unesco (1993-1996), presidido pelo economista Jacques Delors. Este difundia o adágio aprendizagem ao longo de toda a vida, e os pilares da educação aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser aceitos e tomados como sustentáculos de políticas de educação dos estados e municípios brasileiros (Delors et al., 1996).
Em 2015, a perspectiva de comparabilidade entre países levou a OCDE a conduzir o Projeto Educação 2030, em um movimento com representantes de diversos países, instituições, empresários, experts e líderes, com o objetivo de aprofundar as competências futuras fundamentais esperadas do estudante, visando ao fomento do crescimento tecnológico e econômico. Nesse intento, a Diretoria de Educação e Habilidades da OCDE, nos documentos Learning Compass 2030 (OCDE, 2019a) e The future of Education and Skills (OCDE, 2018a), propôs a criação de uma matriz conceitual de aprendizagem e a criação de um currículo internacional para fins de comparabilidade entre países, instituições escolares e pessoas. A estruturação da matriz de referência supranacional ocorreu em duas fases. Na primeira, reuniu expert staff e governos, líderes, empresários, gestores e diretores para o redesenho conceitual do currículo internacional; na segunda, em 2019, consolidou o conceito de competências e habilidades com proposta curricular supranacional comum, a ser implementada em diferentes países.
Em seguida, o documento Future of Education and Skills 2030 Conceptual learning framework - Concept Note (OCDE, 2019b) prescreveu as habilidades do futuro: habilidades cognitivas e metacognitivas; habilidades sociais e emocionais; e habilidades físicas e práticas. Além disso, ressalta três postos-chave:
1. as tecnologias deslocaram os trabalhadores de tarefas de rotina para outras que exigem habilidades metacognitivas, emocionais e criatividade;
2. para se manter, os trabalhadores precisarão de novas habilidades, flexibilidade, curiosidade, atitude positiva para o aprendizado ao longo da vida; e
3. as habilidades sociais e emocionais são igualmente essenciais para formar cidadãos responsáveis. Em outro documento, Future of Education and Skills 2030 Project (OCDE, 2018b, p. 2-3), a organização questiona:
- Quais as competências (habilidades, conhecimentos, valores e atitudes) de que os alunos de hoje precisam para moldar o futuro para si e o bem-estar social e ambiental?
- Como projetar ambientes de aprendizagem capazes de promover essas competências, ou seja, como projetar e implementar um currículo orientado para o futuro?
- Como será a escolaridade no futuro?
Na posição de liderança internacional, a capacidade política e operacional de governar pelos números tornou-se um eficaz meio de dominação da OCDE. Nesse movimento, ela atua na regulação da economia, do setor financeiro e das políticas públicas e pressiona para associar a escola pública ao setor produtivo, semelhantemente às empresas. A organização interroga, no documento Learning Compass 2030 (OCDE, 2019a, p. 1):
- Que tipos de conhecimento, habilidades, atitudes e valores são necessários para entender, envolver-se e moldar um mundo em mudança, rumo a um futuro melhor em 2030?
- Como é que as políticas e as práticas podem ser, efetivamente, transformadas para apoiar a aprendizagem dos jovens e o bem-estar no contexto de sociedades em mudança, bem como as economias?
Observe-se que a metáfora da bússola transporta fundamentos políticos e ideológicos. De maneira sutil, a OCDE reafirma preceitos neoliberais como livre comércio, competitividade, flexibilidade, privatização e parcerias a serviço da ordem capitalista. Ao definir a bússola de aprendizagem, estabeleceu uma cartografia da educação no mundo, assegurando a prerrogativa de uma liderança global na direção do futuro da educação, paralelamente com o Banco Mundial e corporações relacionadas à seara mercantil. A quem interessa a antecipação da educação násica? A quem interessam as pedagogias do aprender a aprender? Soam alertas nos escritos de Freitas e Coelho (2019) e Arelaro (2020), exigindo que retomemos ações e projetos voltados para a formação humana e integral.
Esses fundamentos estão nos acordos político-educacionais entre países e corporações que regem o capitalismo globalizado. Trata-se de levar a cabo os serviços comerciais privados e invadir os serviços públicos como se fossem privados. A educação tem sido direcionada conforme as prerrogativas e os interesses corporativos próprios do capitalismo, de uma perspectiva pragmática, instrumental e alinhada às necessidades emergentes do mundo do trabalho e da nova ordem social. O propósito de criação de um currículo supranacional retoma o ideário global da educação atrelada aos interesses corporativos, especialmente no documento Learning Compass 2030 (OCDE, 2019a), quando consigna as competências, habilidades, atitudes e valores que se requerem do indivíduo para viver em uma sociedade capitalista.
Como podemos equipá-los para prosperarem num mundo interligado onde precisam compreender e apreciar diferentes perspectivas e visões do mundo, interagir respeitosamente com os outros e tomar medidas responsáveis em prol da sustentabilidade e do bem-estar coletivo? OCDE, 2019a, p. 2).
Com esses direcionamentos, a OCDE delimitou os passos para a consolidação de seu projeto expansionista e planetário, pois “[...] a bússola traça as bases de um currículo internacional comum, aplicável a todos os tipos e níveis de educação e dinâmico.” (RBE, 2020, s. p.). A bússola de aprendizagem tem as competências como núcleo, esboçada com base no princípio da circularidade, que envolve a recíproca e ininterrupta interação entre ação, reflexão e aplicação, viabilizando a difusão de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores como eixos norteadores dos currículos escolares (OCDE, 2019a), como se pode observar na Figura 1.
No núcleo da rosa dos ventos está o indivíduo; ao redor, as competências; e, nas pontas, estão knowledge, skills, attitudes e values; depois, outros dois círculos. No primeiro estão os core foundations (fundamentos centrais) e, no segundo, entre as pontas da bússola, estão: transformative competencies (competências transformadoras), taking responsibility (assumindo responsabilidades), reconciling tensions and dilemmas (reconciliando tensões e dilemas) e creating new value (criando um novo valor). Estes expandem-se para o outro círculo com setas seccionadas, que indicam um movimento circular para action, reflection, anticipation. Nos cantos da bússola foram colocados os atores: peers, teachers, parents, communities e student-co-agency, escolhidos pela OCDE como responsáveis pelo bem-estar de cada um e de todo o planeta.
O Learning Compass 2030 (OCDE, 2019a) define as três competências transformadoras esperadas dos estudantes para moldar um futuro melhor: assumir responsabilidades, criar novos valores e reconciliar tensões e dilemas. Na representação da bússola estão definidas as condições fundamentais e os conhecimentos básicos, habilidades, atitudes e valores que constituem os elementos da instrumentalização da aprendizagem para o currículo de qualquer país. Há um destaque para agency e co-agency, que consigna ter capacidade, motivação, vontade e valores para influenciar positivamente sua vida e a do mundo que o cerca.
OS PRINCÍPIOS TEÓRICOS ENCOBERTOS NA PROPOSTA CURRICULAR DA ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Por meio da proposição de um currículo escolar internacional, a OCDE expande uma ideologia fundamentada nos pressupostos do mercado, condicionando os programas e políticas da educação dos países adeptos. Acredita que um currículo internacional pode resultar na melhoria do desempenho acadêmico, impulsionando o aprender a aprender com retórica do cidadão responsável e proativo diante das incertezas do cotidiano, e o zelo pelo bem-estar. Essa visão encontra-se no documento Curriculum (re)desing: a serie of thematic reports from the OECD Education 2030 project e afirma que “[...] um projeto de currículo baseado em evidências é provavelmente a melhor possibilidade de equipar alunos com o conhecimento, habilidades, atitudes e valores de que eles precisam para moldar seu futuro e prosperar.” (OCDE, 2019a, p. 2).
Desse modo, a organização supõe que um currículo em si tem o condão de equipar alunos. Observe-se que os determinantes históricos são suprimidos, as questões estruturais ocultadas, as migrações apagadas, e o estudante é lembrado como um número atrelado aos interesses corporativos. Com um raciocínio linear, estéril e mecânico, oferece-se aos governos uma fórmula perfeita para equipar alunos. Sabemos que diferentes princípios e fundamentos ordenam e estruturam um currículo escolar. No entanto, como explicar tanto interesse pelo currículo da educação básica pública? E quais são os princípios teóricos encobertos nas proposições da OCDE?
Os experts sabem das rejeições à proposição de um currículo internacional e apontam três designs: currículo escrito, oficial, definido pelos órgãos governamentais, que divulgam o que os estudantes devem aprender; currículo implementado, que se refere às interpretações e experiências dos professores que organizam o ensino; e currículo alcançado, que diz respeito às aprendizagens que os alunos são capazes de demonstrar (OCDE, 2019a). Importa registrar aqui a velha estratégia de dominação: uns pensam e outros executam. Além do mais, operam com uma concepção de currículo apartada da história, descontextualizada das condições estruturais, dos processos e das inter-relações e conexões que permeiam as políticas educacionais e o trabalho pedagógico nas escolas públicas. Desse modo, as pedagogias do aprender a aprender preceituam que são mais desejáveis as aprendizagens que o indivíduo faz por si mesmo e que desenvolvem competências sociais e emocionais.
Vê-se que o foco é o student-agency, e não há discordância de que a educação escolar realmente deva desenvolver, no sujeito, a autonomia intelectual e a liberdade de pensamento, mas a crítica ocorre pelo fato de as pedagogias do aprender a aprender estabelecerem uma hierarquia valorativa, na qual aprender sozinho se situa em um nível mais elevado do que a aprendizagem resultante das trocas, da transmissão de conhecimentos pelas relações sociais. Com isso, elas revelam a perspectiva instrumental, autonomista, eficientista e individualista de educação, em que, segundo Saviani (2013, p. 439-440) “[...] o neotecnicismo se faz presente alimentando a busca da qualidade total na educação e a penetração da pedagogia corporativa, consumando o processo de adoção do modelo empresarial na organização e no funcionamento das escolas.” (Duarte, 2001).
O segundo princípio refere-se à teoria do capital humano (Schultz, 1973), traduzida na ideia de competências e habilidades ancoradas na necessidade de formação de indivíduos capazes de sobreviver às permanentes mudanças na sociedade e, ao mesmo tempo, capazes de aceitar as estruturas hierárquicas e de dominação. Em outras palavras, se o contexto exige agentes produtivos, eficazes, eficientes e competentes, atribui-se à educação a função de produzi-los segundo as necessidades do mercado. Com isso, conforme apregoa Schultz (1973, p. 33), o ser humano passa a ser reconhecido com base em seu potencial produtivo, uma vez que, “[...] ao investirem em si mesmas, as pessoas podem ampliar o raio de escolha de posto à disposição. Esta é uma das maneiras por que os homens livres podem aumentar o seu bem-estar.”. Competências e habilidades são dois pilares de sustentação da política da OCDE para a educação básica dos países, cujos fundamentos estão na suposta sociedade do conhecimento e na superioridade do mercado para a distribuição de políticas educacionais. Elas consignam que
[...] a educação deve preparar os indivíduos para acompanharem a sociedade em acelerado processo de mudança, ou seja, enquanto a educação tradicional seria resultante de sociedades estáticas, nas quais a transmissão dos conhecimentos e tradições produzidos pelas gerações passadas era suficiente para assegurar a formação das novas gerações, a nova educação deve pautar-se no fato de que vivemos em uma sociedade dinâmica. O indivíduo que não aprender a se atualizar estará condenado ao eterno anacronismo, à eterna defasagem de seus conhecimentos. (Duarte, 2001, p. 37)
Sob a lógica da sociedade do conhecimento, as competências tornaram-se as modeladoras dos indivíduos, em conformidade com as necessidades do mundo emergente e com os interesses da máquina produtiva. Segundo Jimenez (2003, p. 4), isso se traduziu na afirmação de que, segundo essa concepção,
[...] o novo trabalhador deve, principalmente, saber ser polivalente no trato de novos instrumentos de trabalho, ágil e flexível no raciocínio e na tomada de decisões, além de mostrar-se também harmonioso, cooperativo e emocionalmente equilibrado.
Com esse raciocínio, segue o terceiro princípio, que se refere à lógica dos números e relatórios estatísticos, apontados em Popkewitz e Lindblad (2016), que servem como instrumentos de comparação e regulação da política de educação dos países. Assim, eles desencadeiam formas de dominação por meio de intervenção nos desenhos curriculares e dos programas dos quais o país participa. Observe-se que dados escolares do país de origem, obtidos na execução de programas, são transformados em números para, depois, servirem para justificar a necessidade de um currículo mundial e da padronização de testes e exames internacionais. Com isso, legitimam-se políticas de controle, com vistas à formação de cidadãos produtivos e alinhados aos novos ordenamentos sociais e jurídicos.
O quarto princípio atrela-se à perspectiva do futuro antecipado, por meio do controle do conhecimento global. O discurso do futuro antecipado é uma estratégia de convencimento pautada pela ideologia do senso de urgência, que traz, virtualmente, para o presente um futuro inexistente. Ele alardeia um futuro desejado e toma as instituições e os estudantes como entes a serem equipados por uma fórmula rumo a um futuro idealizado. Essa perspectiva de futuro antecipado, ressaltada nos estudos de Freitas e Coelho (2019), contribui para explicar um par de dominação, seja pela penhora e desorganização da vida vivida, seja pela tendência da economia do conhecimento de transformar os países em redes de interação-exclusão. Assim, o ritmo de crescimento ocorre pela concorrência, competividade e flexibilidade em um único espectro: “[...] o da corrida a novo colonialismo tecnológico por meio do saber e do discurso do futuro antecipado.” (Freitas e Coelho, 2019, p. 3).
As competências transformadoras da Learning Compass 2030 (OCDE, 2019a) têm como fins estruturar os conteúdos, moldar aptidões, difundir valores e atitudes orientadores dos currículos internacionais em uma aprendizagem mecânica, artificial e descontextualizada, conforme prescrição inscrita no Quadro 2.
Competências transformadoras: Os alunos precisam ser capacitados e sentir que podem ajudar a moldar um mundo onde o bem-estar e a sustentabilidade - para si próprios, para os outros e para o planeta - sejam alcançáveis. Todos os alunos precisam dessa base sólida para cumprir seu potencial de se tornarem contribuintes responsáveis e membros saudáveis da sociedade. |
Agência/co-agência estudantil: Crença de que os alunos têm a vontade e a capacidade de influenciar positivamente suas próprias vidas e o mundo a seu redor, bem como de definir uma meta, refletir e agir com responsabilidade para efetuar mudanças. Alunos desenvolvem coagência em uma interação interativa, de autoeficácia, favorável e enriquecedora no relacionamento com seus pares, professores, pais e comunidades, de forma orgânica e em um ecossistema de aprendizagem maior. |
Conhecimento: Inclui conceitos e ideias, além de compreensão prática com base na experiência de ter executado certas tarefas. Reconhecem-se quatro tipos diferentes de conhecimento: disciplinar, interdisciplinar, epistêmico e procedimental. |
Aptidões: Correspondem à capacidade de usar o próprio conhecimento para um objetivo. Aptidões são a habilidade e a capacidade de realizar processos e de usar os próprios conhecimentos de forma responsável para atingir um objetivo. Afirmam-se três tipos diferentes de competências: cognitivas e metacognitivas; social e emocional; e prática e física. |
Atitudes e valores: Referem-se aos princípios e crenças que influenciam as escolhas de uma pessoa, julgamentos, comportamentos e ações no caminho para o indivíduo, a sociedade e o bem-estar ambiental. O fortalecimento e a renovação da confiança nas instituições e entre as comunidades exigem maiores esforços para desenvolver os principais valores compartilhados de cidadania, para construir economias e sociedades mais inclusivas, justas e sustentáveis. |
Ciclo de antecipação-ação-reflexão: Processo de aprendizagem interativo por meio do qual os alunos continuamente melhoram seu pensamento e agem intencional e responsavelmente. Na fase de antecipação, os alunos ficam informados ao considerar como as ações realizadas hoje podem ter consequências para o futuro. Na fase de ação, os alunos têm vontade e capacidade de agir em prol do bem-estar. Na fase de reflexão, os alunos melhoram seu pensamento, o que leva a melhores ações para o bem-estar individual, social e ambiental. |
Fonte: Traduzido e adaptado de Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE ( 2019a, p. 17).
As concepções políticas e ideológicas da OCDE estão subjacentes nas publicações, acordos, relatórios estatísticos e programas como PIACC, PISA e TALIS, bem como nas avaliações em larga escala das quais os países participam. Os números não apenas circulam, mas também transportam ideologias, visões, valores, previsões, crenças e doutrinas. Assim, importa elencar as posições da OCDE, pois ela:
defende o comércio dos serviços privados e dos serviços públicos como um nicho de expansão do setor privado mercantil;
preconiza que a escola pública seja reconhecida como uma empresa regida pelas leis de mercado;
acredita na superioridade do mercado livre para a oferta da educação básica pública; e
posiciona-se com o slogan da aprendizagem ao longo da vida, exigindo que os governos rompam com um currículo estático e obsoleto e se sujeitem a um currículo escolar internacional que, depois, serve de base para os rankings e comparações entre os países.
Ao se analisarem as publicações da OCDE, observam-se alinhamentos de termos, conceitos, ideias e concepções semelhantes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Exemplos desse alinhamento estão nas competências e habilidades consignadas na BNCC (Brasil, 2017; 2018) e na Lei nº 13.415/2017 (Brasil, 2017), que dispõe sobre a reforma do ensino médio e altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9394/1996 (artigos 32 e 35 - Brasil, 1996). Ambos os normativos estabelecem intencionalidades e finalidades para a educação básica e orientam reformulações nos currículos nos estados e municípios.
Para exemplificar, vimos que o Documento Curricular para o Estado de Goiás (DC-GO)1 objetiva “[...] aproximar a legislação curricular vigente em nosso país da realidade goiana.” (SEDUC/GO, 2018). Os alinhamentos ocorrem nos documentos curriculares, projetos político-pedagógicos e projetos de vida, conectados ao DC-GO que, por sua vez, se alinha à BNCC de Goiás.
Deve-se observar que a Rede Municipal de Educação de Aparecida de Goiânia, no Estado de Goiás, determinou por meio do comunicado nº 004/2020, de 10 de março de 2020, o alinhamento do Projeto Político-Pedagógico das unidades escolares ao DC-GO e à BNCC.2 Essa orientação tem caráter obrigatório, por meio do preenchimento das competências e habilidades a serem alcançadas em cada um dos conteúdos planejados, denominados objetos do conhecimento.
Por meio da Resolução nº 2, de 22 de dezembro de 2017, o Ministério da Educação instituiu e orientou a implantação da BNCC - Ensino Fundamental. Em 2018, foi homologada a BNCC - Ensino Médio. De caráter normativo, ela passou a definir o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação básica. Adotou-se a perspectiva de um currículo unificado para todo o Brasil, com 60% dos conteúdos definidos pela base e os 40% restantes determinados pelas redes estaduais e municipais de ensino para as particularidades regionais. Ocorre que, na prática, a ênfase é dada no trabalho com os conteúdos definidos por base nacional (os 60%), em detrimento dos conteúdos regionais e culturais, uma vez que os primeiros serão cobrados nas avaliações externas de aferição da qualidade do ensino.
No Quadro 3, observam-se os descritores apresentados na Base Nacional Comum Curricular - Ensino Médio (Brasil, 2018), que se alinham às perspectivas sinalizadas pela OCDE.
Conhecimento: Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. |
Pensamento científico, crítico e criativo: Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas. |
Comunicação: Utilizar diferentes linguagens: verbal (oral ou visual-motora, como Língua Brasileira de Sinais - Libras), escrita, corporal, visual, sonora e digital, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos, além de produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. |
Repertório cultural: Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural. |
Cultura digital: Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. |
Trabalho e projeto de vida: Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais, apropriar-se de conhecimentos e experiências que possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao próprio projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. |
Autoconhecimento e autocuidado: Conhecer-se, apreciar-se e cuidar da saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo as próprias emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. |
Empatia e cooperação: Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, suas identidades, suas culturas e suas potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético com relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. |
Responsabilidade e cidadania: Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. |
Fonte: Adaptado de Brasil (2018, p. 9).
Ao se analisarem nas publicações o conceito de competências da OCDE e o da BNCC, constatam-se alinhamentos conceituais entre eles, pois estão centrados no indivíduo e na mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para a resolução de demandas do cotidiano. Trata-se de competências que se fundamentam em práticas relacionadas ao indivíduo, com ênfase nos aspectos interpessoais e socioemocionais, também na capacidade produtiva, no consumo de tecnologias, na utilização de conhecimentos rudimentares e no saber fazer instrumental, de modo a tornar os jovens mais responsáveis, produtivos e consumidores (Libâneo, 2016; 2020).
As competências transformadoras ensejam os conhecimentos, atitudes e valores que são elementos instrumentais para um currículo escolar internacional. Prescrito e praticado dessa forma, espera-se: assumir responsabilidades, avaliar as próprias ações e objetivos éticos; ser um agente ativo e proativo; desenvolver competências socioemocionais, metacognitivas, práticas e físicas, ter a capacidade e conhecimentos para a resolução de questões complexas, saber definir metas e agir com responsabilidade em um contexto de mudanças.
Assim como o Learning Compass 2030, a BNCC - Ensino Médio estrutura-se fundamentalmente em competências e habilidades, com vistas a assegurar aos estudantes o desenvolvimento de suas potencialidades nos âmbitos cognitivo, pessoal e relacional, como ferramentas para alavancar a aprendizagem e o desenvolvimento. Ela define competência como a “[...] mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos) e habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), como atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.” (Brasil, 2018, p. 8). Ao se analisarem os documentos, percebe-se que a OCDE concebe a escola pública como semelhante a uma agência, uma empresa que consome currículo e equipa alunos. Em ambos os documentos, percebe-se a ocultação da escola pública, não se menciona a sala de aula como locus de formação escolar, nem o projeto político-pedagógico. Não se faz referência à escola como local de formação integral dos estudantes, mas difunde-se uma visão de que a aprendizagem ocorre na prática, em empresas, no trabalho. Oculta-se e despreza-se a escola pública como lugar precípuo da formação humana e integral; e torna-se o professor um repassador de conteúdos via currículos, que depois serão aferidos nos exames e testes de larga escala. Não se vê o estudante, veem-se somente os números.
Pode-se observar, nas proposições da OCDE, a ocultação da função social da escola pública voltada para a formação integral do sujeito, pois elege-se um conjunto de conteúdos mínimos gerais tidos como necessários ao trabalho e ao emprego, com forte apelo à inclusão social e às lições de vida. Há uma aposta na mecanização da aprendizagem e no treinamento para a resolução de testes e avaliações padronizadas e em larga escala. Centra-se a escola na posição de divulgadora de conhecimentos pragmáticos, utilitários e instrumentais para formar um trabalhador para um mercado de trabalho incerto e tortuoso.
Os experts da OCDE acentuam e apregoam que não há diferença entre empresa privada e escola pública. Se a empresa fabrica e vende produtos, a escola equipa os alunos e eles consomem conhecimento. Ora, se a escola pública se tornou semelhante à empresa privada, pode, então, comercializar os currículos, matrículas, equipamentos, plataformas, tecnologias, apostilas, ações na bolsa de valores, fracionar a contratação de professores, ou seja, consignar um espaço de expansão do setor privado mercantil. Assim, a função social da escola pública vem sendo substituída pela função econômica, que enreda outras organizações econômicas que atuam com princípios particulares - eficiência, qualidade e competitividade - próprios do universo empresarial. Tomar esse espaço público significa controlar grupos disfuncionais, fora dos padrões, que vivem às expensas do Estado capitalista e estão propensos à desordem.3
Contudo, em outra direção, segmentos sociais e associações científicas afirmam que a escola pública é uma instituição social, um espaço público, no sentido de patrimônio público, espaço da liberdade e dos princípios democráticos. Esses espaços tornam-nos iguais nos direitos, voltados para valores coletivos, plurais e do bem comum. O tempo na escola significa tempo da liberdade, da elevação das capacidades cognitivas, de compreender o mundo que cerca o estudante.
Contudo, Kuenzer (2017), Motta e Frigotto (2017), Arelaro (2020) e Silva e Silva (2020) assinalam que essa tensão entre necessidades da produção, circulação e acumulação de capitais e a formação dada pela educação básica ocorre pelo desatino de querer associar o tempo da escola ao tempo da empresa produtiva. As tensões intensificam-se porque a história nos mostra que a escola pública não está associada ao tempo da produção fabril. Em tempos difíceis, a escola pública precisa ser legitimada e reconhecida como lugar para o exercício da liberdade e da democracia (Saviani, 2013).
Assim sendo, cumpre recompor a função social da escola pública; oportunizar a todos uma educação de qualidade social; democratizar o acesso ao conhecimento; ampliar as condições de permanência, de transmissão do conhecimento científico, artístico, estético e ético; avançar na elaboração do pensamento crítico e socializar os saberes historicamente elaborados. Enfim, é necessário criar possibilidades para a superação das formas de dominação cultural e ideológica por uma nova consciência coletiva e plural, capaz de abrir caminhos para a emancipação humana.
LIÇÕES E REFLEXÕES
A OCDE, o Banco Mundial e as demais instituições financeiras congregam múltiplos interesses na produção, circulação e acumulação de capitais e governam por números. Nesse intento, explorar com fins mercantis a educação básica pública permanece no horizonte dos mercadores, financistas e capitalistas. Para sustentar seus fundamentos políticos e econômicos, essas organizações reafirmam para a educação pública as competências, conhecimentos, habilidades, atitudes e valores a serem incorporados nos currículos escolares dos países-membros e parceiros.
Os alinhamentos da BNCC estão nos descritores, vocábulos, palavras, no sentido oculto dos termos, nas competências e habilidades e, principalmente, nas finalidades da educação emanada da organização. De fato, a pedagogia das competências e habilidades, capacidades interpessoais e socioemocionais, projetos, lições de vida e aferição de resultados via testes e exames em larga escala estão alinhados com propósitos da OCDE.
A pedagogia das competências e habilidades assumiu a centralidade na direção dos currículos escolares, coexistindo com a perspectiva da formação escolar integral e humana, voltada para a valorização dos sujeitos da escola e de sua capacidade de decidir. Desse modo, reconhece que o currículo extrapola prescrições externas e intentos de padronização mundial, pois desconsidera as particularidades históricas, econômicas, culturais, de acesso e de permanência dos estudantes na escola (Saviani e Duarte, 2015) e do direito à educação (Cury, 2008; Silva e Silva, 2020). O currículo escolar integra e é parte da formação, diz respeito às finalidades da escola, aos valores éticos, estéticos, culturais e aos princípios democráticos que a comunidade escolar acredita e abraça. Sob mares revoltos, tempestades, ventos tenebrosos e barcos tão desiguais, a bússola tem que estar com os estudantes, professores e diretores - sujeitos da relação pedagógica de ensinar e aprender na escola pública.
Reafirma-se, portanto, que a escola pública é o lugar de formação integral e humana dos estudantes, de liberdade de expressão, de pensamento ético, crítico e coletivo com vistas à elevação cognitiva e emancipação dos sujeitos humanos e sociais.