INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como principal objetivo caracterizar como relações entre ciência e imaginação foram construídas em uma turma de crianças nos anos iniciais do ensino fundamental. Para isso, apoiamo-nos na noção de “atividade criadora” e analisamos interações discursivas em aulas de Ciências. Dessa forma, procuramos compreender a presença de saberes gerados com base em contextos como a imaginação e a brincadeira (Murphy, 2012) e a forma como as crianças usam as experiências cotidianas na construção do conhecimento científico em sala de aula (Sandoval, 2005).
A Educação em Ciências, desde os anos iniciais da Educação Básica, é considerada importante por diversos estudos acadêmicos e documentos oficiais (Brasil, 1996; Zanon e Cardinal, 1999; Lorenzetti e Delizoicov, 2001; Sasseron e Carvalho, 2008; Mozena e Osterman 2008; Versuti-Stoque e Lopes Júnior, 2009; Brasil, 2013; Monteira e Jiménez-Aleixandre, 2015; Brasil, 2018; entre outros). Além disso, diversos estudos afirmam que há grande interesse entre crianças de seis a nove anos por assuntos relacionados às Ciências da Natureza e que elas se engajam em atividades dessa disciplina (Sasseron e Carvalho, 2008; Rodrigues e Teixeira, 2011).
Assim, vários autores têm levantado questionamentos sobre como se dão os processos de ensino e de aprendizagem de Ciências com crianças. Uma perspectiva que tem ganhado força é de que a aprendizagem de Ciências é uma atividade humana (Vigotski,1 2009), que se constitui nas interações entre os participantes, ampliando as possibilidades de desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e cultural do ser humano. Todavia, no Brasil, ainda são relativamente incipientes as discussões sobre as implicações da faixa etária das crianças no processo de aprendizagem de Ciências da Natureza e sobre as noções de infância que orientam esses estudos (Colinvaux, 2004; França et al., 2015). Assim, no presente trabalho, pretendemos contribuir para o aprofundamento das discussões sobre as especificidades da infância, relacionando-as ao ensino de Ciências nos anos iniciais.
Nesse sentido, procuramos investigar, especificamente, quais aspectos seriam centrais nesse processo de construção de relações entre ciência e imaginação. Para tanto, torna-se necessária a caracterização do que os membros dessa sala de aula precisam saber, fazer, prever e interpretar a fim de participarem de eventos em que se constroem as relações entre ciência e imaginação em uma sala de aula do 2° ano do ensino fundamental.
CIÊNCIA E IMAGINAÇÃO: O QUE DIZEM AS PESQUISAS ACADÊMICAS?
Para iniciar nossa investigação, realizamos uma busca em dois dos principais websites brasileiros: Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Selecionamos dois artigos que analisaram a imaginação como um importante conceito no processo do ensino e da aprendizagem. Usando o termo imagination, encontramos três estudos internacionais que traziam importantes relações entre a imaginação e a Educação em Ciências. A seguir, apresentamos algumas contribuições dos artigos encontrados.
Girardello (2011, p. 75) apresenta “[…] uma breve discussão conceitual sobre a relação entre imaginação e infância, apontando alguns fatores considerados favoráveis à imaginação infantil […]”. Maheirie et al. (2015, p. 49) abordam “[…] a imaginação como processo psicológico fundamental do ser humano […]” e apresentam uma pesquisa empírica realizada em uma organização não governamental (ONG) de arte-educação com estudantes de nove a 14 anos. Foram analisadas as experiências de jovens que participaram de oficinas de percussão, produção de espetáculo musical e produção de vídeo. Como resultado, eles observaram que a “[…] experiência (re)significada pelos sujeitos vai compondo núcleos de memória, de forma que a atividade imaginativa se apresenta como um processo psicológico (re)combinador, objetivada em um novo produto […]” (Maheirie et al., 2015, p. 49). Os autores concluíram que a memória dos jovens investigados vai sendo significada e ressignificada na experiência do processo de criação. Assim, a atividade criativa recombina-se em um novo produto.
Fleer (2011) analisou situações que envolviam brincadeiras livres com água e terra entre crianças de quatro e cinco anos em uma pré-escola na Austrália. Baseada em estudos de Vigotski (1966; 2004),2 a autora discute a teoria da imaginação para relacionar a brincadeira e a aprendizagem, demonstrando como brincar, imaginar e aprender podem atuar cognitivamente em atividades na Educação Infantil. A autora argumenta que a imaginação tem papel central na brincadeira, pois atua como reelaboração criativa da realidade, propiciando relações com esta a fim de que as crianças possam brincar com objetos e ideias e, dessa forma, (re)criar novos significados.
Dois aspectos chamaram nossa atenção no estudo de Fleer (2011). O primeiro deles é a articulação da brincadeira realizada com conteúdos relacionados à Educação em Ciências, o que evidencia e melhor caracteriza o interesse de estudantes pequenos/as por essa disciplina já apontado em vários estudos (e.g. Versuti-Stoque e Lopes Júnior, 2009; Fagundes e Lima, 2009). O segundo é que se destaca o papel da professora de apoiar os/as estudantes na construção de significados, em um processo mediado pela linguagem, incentivando a brincadeira. A docente dialogou com os/as estudantes, considerando seus argumentos provenientes da brincadeira e da imaginação. Dessa forma, ela busca entender as interações das crianças e articular, com elas, alguns elementos que contribuam para a aprendizagem escolar.
Ainda segundo Fleer (2011, p. 254, tradução nossa), a “[…] contradição entre imaginação e realidade cria a força dinâmica, que permite o conhecimento teórico a ser contemplado por crianças pequeñas.”. Para essa autora, a imaginação atua ativamente na construção da realidade e, por isso, não deve ser ignorada nos processos do ensino e da aprendizagem.
Em outro estudo, Heath (2008) apresenta uma discussão teórica sobre a imaginação e sua relação com a aprendizagem baseada na Fenomenologia e na Filosofia da Educação. O autor afirma que a imaginação tem sido “marginalizada na educação” (Heath, 2008, p. 115, tradução nossa) apesar de haver estudos que revelam a sua importância nos processos de aprendizagem. O autor destaca o estudo de Greene (1995),3 que, como Fleer (2011), argumenta que a imaginação é importante para a criação ao possibilitar uma nova aprendizagem sobre determinado assunto apoiada em elementos aprendidos anteriormente.
Heath (2008) propõe que haveria dois tipos de imaginação. A imaginação inventiva (inventive imagination, no original) seria “[…] a capacidade cognitiva de trazer diante da mente uma imagem que não está no presente, mas tal visão da imaginação pode ser vista como bastante ingênua fazendo todo o tipo de suposições sobre a realidade e subjetividade.” (Heath, 2008, p. 117, tradução nossa). A imaginação radical (radical imagination, no original) “[…] pode criar novas experiências ou fantasias não representadas em qualquer experiência anterior.” (ibidem, p. 117, tradução nossa). Para Heath (2008), esse segundo tipo de imaginação é importante para compreender a aprendizagem, pois envolve um processo de transformação da consciência de quem aprende, tornando-a diferente como resultado dessa aprendizagem. Finalmente, Heath defende a importância de compartilharmos coletivamente a imaginação, lembrando que, para isso, a linguagem é fundamental. A relação da imaginação com a realidade é uma noção importante, pois a imaginação está baseada na experiência anterior do indivíduo de modo a colaborar para a construção do sentido dado à experiência atual e ao conhecimento cultural, em um processo de reelaboração criativa.
Andrée e Lager-Nyqvist (2013), em estudo desenvolvido em duas escolas de Educação Infantil suecas, discutem como a brincadeira espontânea com orientação científica é importante, pois ela oferece aos/às estudantes oportunidades de trabalharem valores epistêmicos e normas da ciência, auxiliando-os/as a criarem um posicionamento em relação à ciência. Os autores argumentam, ainda, que a aprendizagem de Ciências é social, cultural e historicamente incorporada por meio da brincadeira, podendo transformar e transcender as práticas de sala de aula existentes. Infelizmente, eles comentam que esse tipo de atividade tem sido pouco explorado e pouco investigado no contexto de sala de aula.
A breve revisão aqui realizada nos mostra que poucos trabalhos relacionam ciência e imaginação no contexto do ensino e da aprendizagem. Os estudos encontrados apontam para discussões interessantes que são, ainda, pouco exploradas na Educação em Ciências. As relações da imaginação com a realidade, compartilhadas por meio das interações discursivas e apoiadas pelas diferentes experiências de estudantes e professores/as na sala de aula, podem contribuir de forma importante para a aprendizagem de Ciências. No presente estudo, alinhamo-nos com essas pesquisas, buscando investigar de forma mais aprofundada tais aspectos.
PERSPECTIVAS SOBRE IMAGINAÇÃO NA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL
Um dos elementos culturais presente na sala de aula e compartilhado ativamente entre os membros do grupo social estudado é a imaginação. Vigotski (2009) ilustra como a imaginação não se reduz ao devaneio distante de qualquer realidade, nem apresenta um caráter exclusivamente individual. A imaginação é vista como uma atividade humana, ou seja, não é um dom inato e, por isso, é constituída pela cultura e desenvolve-se com as interações sociais. “Toda obra da imaginação constrói-se sempre de elementos tomados da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa.” (Vigotski, 2009, p. 20) e apresenta um caráter emocional, expresso de duas formas: a emoção seleciona impressões, ideias, imagens que funcionam como uma linguagem interior para os sentimentos e, de modo contrário, a imaginação pode exercer influência nos sentimentos.
Para Vigotski (2009), a imaginação apresenta forte relação com a criação, tornando-se importante na medida em que esses elementos estão presentes em situações de ensino e de aprendizagem. Em síntese, a imaginação não é um devaneio individual, está ligada à atividade criadora, todos os indivíduos a desenvolvem e está direta ou indiretamente relacionada a algum tipo de experiência. Partindo desses pressupostos, entendemos que as ideias expressas por meio da imaginação podem dar visibilidade aos significados compartilhados nos processos do ensino e da aprendizagem de ciência.
A Psicologia Histórico-Cultural assevera que “[…] o aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daquelas que as cercam.” (Vigotski, 1989, p. 99). Vigotski destaca, ainda, que as interações sociais possibilitam tanto o acesso quanto o processo de apropriação da cultura pela criança, constituindo as crianças como seres humanos singulares e sociais. Mais além, as vivências da criança no processo de apropriação da cultura ensejam a possibilidade de transformação tanto da criança quanto do meio no qual ela está inserida (Vigotski, 2010). Para ele, a instrução não é desenvolvimento, mas a instrução adequadamente organizada tem a possibilidade de propiciar o desenvolvimento (Vigotski, 1989). Tal processo é interativo, mais do que ativo, porque pressupõe relações entre o sujeito com outros sujeitos e com o conhecimento social. Assim, a imaginação é afetada pela cultura e pelas interações estabelecidas entre as crianças e entre elas e os adultos, isto é, as atividades criadoras estão inseridas no contexto coletivo (Vigotski, 2009).
APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO E CONTEXTO DA PESQUISA4
Para investigar como as relações entre ciência e imaginação são discursivamente construídas em uma turma de crianças dos anos iniciais do ensino fundamental, apoiamo-nos em elementos da Etnografia em Educação (Green, Dixon e Zaharlick, 2005; Bloome et al., 2005; 2008; 2012), assim como em literatura da área de Educação em Ciências (Driver et al., 1999; Mortimer e Scott, 2002; Kelly, 2007; 2014). Para a construção dos dados e a discussão dos resultados, a etnografia é entendida como o estudo de práticas culturais, com base em uma perspectiva contrastiva e holística, bem como em um processo iterativo-responsivo (Green, Dixon e Zaharlick, 2005. Veja Franco e Munford, 2018, para uma discussão relacionada à Educação em Ciências).
A pesquisa foi desenvolvida em uma turma com 25 estudantes de uma escola pública federal. Essa escola teve sua origem na década de 1950, passando por diversas reestruturações. Destaca-se o fato de que, desde 2006, foi implementado o ensino fundamental de nove anos. O ingresso dos alunos nessa escola é realizado por meio de sorteio público, por ser considerado uma forma democrática, diminuindo o favorecimento de qualquer grupo social. Assim, promove-se nas turmas uma diversidade na composição discente, tanto no que diz respeito aos aspectos socioculturais quanto aos aspectos econômicos. A escola e o grupo estudado participam de um projeto mais amplo que investigou essa mesma turma de crianças desde o início do 1° ano até o 3° ano do ensino fundamental.
Esse projeto possui três eixos. O primeiro eixo visa relacionar a construção/apropriação da cultura de pares e da cultura escolar. O segundo eixo insere-se nos processos de ensino e de aprendizagem relacionados às disciplinas escolares Português e Ciências da Natureza. Finalmente, o terceiro eixo procura analisar diferentes aspectos da formação docente. O presente estudo está diretamente ligado ao segundo eixo do projeto, trabalhando mais especificamente com questões relacionadas ao ensino das Ciências da Natureza. Entretanto, essa investigação está em estreita interseção com o primeiro eixo, uma vez que o processo de ensino e de aprendizagem de Ciências é construído na medida em que os participantes se tornam membros da sala de aula e se apropriam da cultura escolar. Acompanhamos as aulas de Ciências e de Português, ambas ministradas pela professora Karina, constituindo um banco de dados de 107 aulas com duração média de 2 horas cada. A professora é doutora em Educação, mestre em Estudos Linguísticos e graduada em Pedagogia e Psicologia. Karina era professora há 25 anos e estabeleceu uma relação dialógica e responsiva com a turma, escutando as demandas e interesses das crianças. Nesse sentido, não se tratava apenas de “dar voz” às crianças, mas de, efetivamente, construir uma relação em que a fala da criança alterava o próprio posicionamento da docente enquanto professora que se assume responsável diante daquilo que ensina (Corsino, 2015). As aulas de Ciências foram desenvolvidas com base em uma abordagem de Ensino de Ciências por Investigação. Sob a orientação da professora e direcionados por perguntas científicas, solicitava-se aos estudantes que, ao responderem às questões, utilizassem evidências e formulassem explicações apoiadas nelas, bem como avaliassem, comunicassem e justificassem suas explicações (Munford e Lima, 2007).
As principais fontes de dados foram a observação participante, o registro em vídeo e as anotações em caderno de campo. Para analisar o discurso construído na sala de aula, recorremos às transcrições desenvolvidas de forma macroscópica e microscópica. No nível macroscópico, construímos mapas e quadros de eventos (Dixon e Green, 2005) com a intenção de caracterizar a história da turma. Por meio dessas transcrições macroscópicas, localizamos um evento que foi considerado um “caso expressivo” (telling case, no original) (Mitchel, 1984). Ou seja, identificamos momentos, ao longo da história da turma, que ressaltavam as relações entre eventos ocorridos na turma e o fenômeno que se queria investigar; situações particulares que envolviam um caso expressivo, que podiam trazer esclarecimentos às relações teóricas não conhecidas anteriormente. Cabe ressaltar que a ideia de buscar um evento considerado telling case é a de buscar não um evento típico, mas sim um evento que revelasse aspectos importantes da construção de relações entre a ciência e a imaginação.
No nível microscópico, baseamo-nos na Microetnografia (Bloome et al., 2005; 2008) para fazer transcrições palavra a palavra de eventos considerados telling cases. Após a identificação dos eventos, realizamos a transcrição das falas do discurso verbal em unidades de mensagem, ou seja, a menor unidade de significado que os participantes envolvidos usam na comunicação oral (Bloome et al., 2008). Assim, foram consideradas as pistas contextuais, ou seja, entonação, gestos, expressões faciais, velocidade da fala, pausa etc. (Gumperz, 1982). Essas pistas forneceram elementos para compreender, sob a perspectiva do participante, os significados das discussões sobre ciência e a ligação das discussões com a atividade criadora que estava sendo criada e compartilhada pelo grupo.
Para as análises microscópicas, elaboramos quadros de interações discursivas com colunas para identificar a presença de aspectos importantes dessas interações, com base em construtos centrais para a nossa discussão (atividade criadora, memória e discurso escolar). Apresentaremos quatro quadros na próxima seção. O Quadro 1 sumariza a unidade que será analisada e os três quadros seguintes (Quadros 2, 3 e 4) são quadros de interações para análises microscópicas.
Aula | Data (Duração) | Breve descrição da aula |
---|---|---|
1 | 28/10/13 (01:27:27) | O grupo discute, em sala de aula, diferenças entre mágica e experiência. A discussão surge logo no início da aula, a partir do relato espontâneo de uma estudante. |
2 | 30/10/13 (03:56:42) | Aula prática em grupos, na sala de aula, com a pesquisadora Danusa. Estudantes misturam extrato de repolho roxo com alguns líquidos (vinagre, limão, água boricada etc.). A discussão sobre as diferenças entre mágica e experiência continua. |
3 | 05/11/13 (02:01:33) | Aula no laboratório de Ciências. Estudantes testam, em grupo, a água de repolho com quatro materiais diferentes: refrigerante, vinagre, água sem gás e água com gás. |
4 | 11/11/13 (01:34:25) | Estudantes fazem o registro escrito das atividades realizadas na aula 3. Eles estão organizados em grupos, mas o registro é feito individualmente. |
5 | 26/11/13 (02:29:53) | Em sala de aula, estudantes realizam novos testes com a água de repolho para descobrir o que fez com que ela ficasse rosa. Ao final da aula, fazem misturas “livres” usando materiais próprios, como tinta de canetinha hidrográfica. |
6 | 27/11/13 (03:09:54) | Estudantes realizam uma produção de texto individual, explicando as diferenças entre mágica, experiência e efeitos especiais. Após a elaboração dos textos, alguns estudantes leem para a Danusa ou para a monitora da sala. |
Fonte: Elaboração das autoras.
O EVENTO ÁGUA COLORIDA: IDENTIFICANDO TRÊS ASPECTOS CENTRAIS NA CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E IMAGINAÇÃO
Na Figura 1, apresentamos uma linha do tempo dos temas de Ciências desenvolvidos na turma. Demarcamos a localização temporal das aulas em que discussões sobre a natureza do conhecimento científico e/ou o seu processo de produção foram destacadas pelos observadores no caderno de campo. Nos eventos destacados, a turma engajou-se em discussões sobre, por exemplo, as características da ciência ou sobre as diferenças entre o que poderia ou não ser considerado ciência.
Para nossas análises, selecionamos a unidade Misturas, que envolve várias aulas em que houve discussões sobre ciência. Tais discussões remetem ao termo “misturas”, frequentemente usado, ao longo dos três anos, como representativo do que seria ciência. Além disso, era uma unidade com seis aulas, sendo possível analisá-la de forma integral, para entender melhor o fluxo dos acontecimentos e as relações entre os eventos. A unidade Misturas envolveu atividades diversas, distribuídas em seis aulas que totalizaram 14 horas e 39 minutos de gravações em vídeo. O Quadro 1 sumariza essa unidade.
Em estudo mais amplo, foram analisados nove eventos, na unidade Misturas, que ocorreram em quatro aulas diferentes. Neste trabalho, apresentamos análises do evento Água colorida, ocorrido na aula 3. Selecionamos esse evento porque ele torna visível como os membros dessa sala de aula construíam relações entre ciência e imaginação. Além disso, ele possibilitou localizarmos outros eventos, na mesma unidade, que contribuíram para uma análise aprofundada de aspectos centrais nesse processo de construção de relações.
Três momentos importantes destacaram-se no evento analisado, sinalizando quebras de expectativa (frame clash, Agar, 1994; Gumperz, 2002) fundamentais para ter acesso à perspectiva dos participantes. Green e colaboradores (2012, p. 310, tradução nossa) explicam que frame clashes são momentos em que o pesquisador é “[…] confrontado/a com uma surpresa ou algo que não sai como esperado […]”, tornando alguns significados e práticas mais visíveis para entender o grupo na perspectiva do próprio grupo.
No início da aula, antes de irem para o laboratório de Ciências, a professora e uma das pesquisadoras conversaram com os estudantes sobre o que foi desenvolvido na aula anterior. Já nesse momento, os estudantes fizeram relatos sobre experimentos realizados em casa. Em seguida, a professora deu algumas orientações para a atividade que seria realizada no laboratório. A turma foi para o laboratório e lá, enquanto a pesquisadora preparava o extrato de repolho roxo para realizar a atividade prática, conversaram novamente sobre experimentos que realizaram anteriormente em casa e sobre os objetivos da aula que seria realizada. Após essa conversa, que envolveu toda a turma, os estudantes, organizados em grupos, receberam tubos de ensaio com o extrato de repolho. Cada grupo escolheu quatro materiais para misturar com o extrato e responder à seguinte questão: “Como fazer a água de repolho ficar rosa?”. Os materiais disponíveis para os testes eram: limão, água boricada, água oxigenada, detergente, refrigerante de limão, amônia e ácido cítrico. Após os testes realizados pelos grupos, a pesquisadora sumarizou, no quadro, os resultados obtidos.
O evento Água colorida ocorreu no início da aula, quando a professora e a pesquisadora pediram aos estudantes que relembrassem o que fizeram na aula anterior. A estudante Karla respondeu à pergunta e, em seguida, o estudante Maurício perguntou como fazer esse experimento. Nesse evento, percebemos três momentos (cujas transcrições são apresentadas nos Quadros 2, 3 e 4) que sinalizam uma quebra de expectativa entre os participantes (frame clash, Gumperz, 2002).
Os quadros apresentam seis colunas: a primeira indica o número da linha, a segunda o pseudônimo do participante, a terceira o discurso. A coluna “atividade criadora” tem como foco as interações em que os participantes trazem aspectos da imaginação ao discutirem determinado assunto. A coluna “referência ao contexto escolar ou não escolar” sinaliza momentos em que os participantes relembram experiências anteriores, considerando que a atividade criadora pode estar pautada nessas experiências e em que lugar elas acontecem (Vigotski, 2009). A última coluna explicita aquelas unidades de mensagem em que os participantes trazem elementos das aulas de Ciências ou mesmo as interações de elementos que nos remetem a um contexto mais amplo da cultura escolar. O traço é utilizado para unir as colunas quando elas estão diretamente relacionadas entre si.
Como já mencionado, a professora e a pesquisadora iniciam a aula falando sobre as diferentes mudanças de cor nas substâncias em extrato de repolho que a turma havia observado na aula anterior. Assim, elas pedem que os estudantes relembrem e falem sobre essa atividade. Karla responde: “A gente fez aquele negócio pra água ficar rosa” (linhas 4 e 5). A estudante refere-se ao que foi produzido com a atividade de forma descritiva e como se fosse um objetivo ou finalidade preestabelecida, sem se deter sobre como se chegou a esse produto/resultado e como foi o trabalho no seu grupo. A professora, ao repetir (revoicing) a última unidade de mensagem da Karla (linha 6), dá visibilidade a um dos aspectos que compõem a lembrança da estudante: o resultado do experimento, ou seja, a mudança de cor da água. A pesquisadora, por sua vez, pergunta: “A gente usou o quê?” (linha 8). Assim, em vez de contribuir para a caracterização do “produto” da atividade, a pesquisadora posiciona-se de modo diferente e focaliza o processo de produção daquele resultado. As diferentes ações da professora e da pesquisadora ao falarem sobre o experimento indicam uma primeira quebra de expectativa (frame clash), considerando-se que uma ressalta questões relativas ao resultado do experimento, enquanto a outra abre espaço para falar sobre os procedimentos, trazendo à tona diferentes concepções do que seria a Educação de Ciências com essa turma.
A pesquisadora solicita aos estudantes que se lembrem dos materiais utilizados na experiência realizada na aula anterior, abrindo uma oportunidade para se falar sobre como foi realizada a atividade. Alguns estudantes citaram um dos materiais usados (linha 10), e Maurício tomou a palavra para pedir uma explicação sobre como fazer a experiência em casa: “Ô professora, como é que faz essa experiência com esse tal de repolho aí?” (linhas 11, 12 e 13). As respostas demonstraram que houve um reconhecimento (ou taken up) de que, naquele momento, a discussão sobre como foi feita (ou como se faz) a “experiência” é significativa para os participantes. Logo após a fala de Maurício (linha 14), identificamos uma transição para se estabelecerem relações com as memórias não escolares e falar de ciência/sobre ciência. Jonas começa a falar que tentou fazer a experiência em casa: “Eu coloquei repolho na água” (linha 14). Com o deslocamento da discussão para o contexto não escolar, a pesquisadora reitera os modos de produzir resultados e os estudantes participam ainda mais ativamente, com novos relatos e debates.
Nesse contexto, identificamos uma segunda quebra de expectativa (frame clash), pois a discussão principal centra-se nos experimentos realizados pelos estudantes em suas casas e não nos experimentos realizados em sala de aula, como esperado pela pesquisadora e pela professora. A pergunta inicial relacionava-se ao experimento realizado na aula anterior por toda a turma — uma experiência compartilhada —, e apenas Karla dá uma breve resposta que não recebe retorno por parte dos colegas.
Em contraste, vários estudantes querem contar os experimentos que fizeram em casa (Quadro 3), como fica claro nas falas de Breno (linhas 24–26) e Karla (linhas 28). Percebemos que tanto a professora (linha 20) quanto a pesquisadora (linha 23) acolhem a mudança de direção apontada pela turma e orientam suas falas para o contexto não escolar.
A discussão levada para o contexto não escolar resulta em interações entre a pesquisadora, a professora e dois estudantes que realizaram experimentos em casa. Breno, neste momento, fala somente sobre o resultado do experimento, como parte do que, para nós, parece ser uma narrativa construída predominantemente sobre a imaginação. Breno afirma: “Eu coloquei o repolho lá na agua, ficou marrom” (linhas 24, 25 e 26). A seguir, relata brincadeiras que fez com os colegas misturando iogurte e lembra-se de um episódio de desenho animado, assistido em casa, em que o personagem principal derrete uma lasanha no micro-ondas. Ou seja, Breno reelabora criativamente o que vivenciou na escola e em casa, relacionando os dois contextos.5 Esta é a terceira quebra de expectativas: a pesquisadora posiciona-se como cientista em busca de evidências do experimento, enquanto Breno se apoia em sua imaginação para narrar o que aconteceu. Por outro lado, Karla assegura “O meu ficou verde” (linha 28) e, ao responder à pesquisadora, dá detalhes sobre os materiais e procedimentos realizados (Quadro 4).
O relato de Karla6 evidencia que a criança estava alinhada com a perspectiva da pesquisadora e ajuda-nos a compreender os acontecimentos nessa turma. Apesar de diferentes, os relatos das duas crianças ganham espaço na sala de aula, sendo discutidos pelo grupo.
Em síntese, identificamos três frame clashes no evento Água colorida que foram importantes para dar visibilidade a aspectos da construção de relações entre a imaginação e a ciência nessa sala de aula. Um panorama dessas análises é apresentado na Figura 2,7 na próxima seção — primeiramente, o discurso da professora, que dá visibilidade à resposta de Karla sobre o resultado do experimento, e o discurso da pesquisadora, que pede uma descrição sobre como o resultado foi alcançado, ou seja, uma descrição sobre o processo. Processo e resultado destacados na fala de cada uma dão ênfase a modos diferentes de fazer e de falar ciências. Em segundo lugar, algo inesperado acontece do ponto de vista instrucional: na aula anterior, foram realizadas várias explorações com o material, mas quando a pesquisadora solicita que esses acontecimentos sejam relatados, a participação dos estudantes só aumenta quando falam sobre experimentos que fizeram em casa. Esses relatos são mais detalhados, com maior participação dos estudantes; estabelece-se uma conversa em torno do processo mais que do resultado. Finalmente, Karla e Breno trazem duas perspectivas de atividade criadora, uma mais centrada na sua ação sobre o mundo concreto e outra mais centrada na construção de narrativas imaginativas com base em brincadeiras com os colegas e desenhos animados assistidos na televisão. Nossas análises revelam, porém, que o aspecto ressaltado no segundo frame clash é particularmente importante, pois continuidades e tensões entre o contexto escolar e o contexto não escolar permeiam o processo de construção de relações entre imaginação e ciências e criam condições para a emergência e/ou consolidação dos outros elementos, como diferentes formas de atividade criadora e também resultados e procedimentos da ciência escolar. A seguir, aprofundamo-nos nessa questão, agregando outras evidências.
O CONTEXTO NÃO ESCOLAR E A CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES ENTRE ATIVIDADE CRIADORA E CIÊNCIAS
A análise do evento Água colorida (Figura 2) comprovou que a atividade criadora, as ciências e o contexto não escolar estão intimamente relacionados: a casa possui papel central na construção das relações entre a ciência e a atividade criadora. Houve uma preferência em narrar e conversar sobre atividades realizadas em casa a relembrar, como sugerido pela professora e pela pesquisadora, atividades compartilhadas em sala na aula anterior. As narrativas de Breno e Karla foram construídas de duas formas: uma mais detalhada e com evidências de ter acontecido de forma mais efetiva; e outra sem muitos detalhes, trazendo, até mesmo, características mencionadas anteriormente em outra aula, como a cor marrom para a mistura realizada. Nesse sentido, vemos que o grupo discutiu diferentes situações de experimentos e engajou-se em uma discussão sobre como um resultado foi alcançado, ou seja, não se mencionou/aram apenas o/s resultado/s em si, mas também foi iniciada uma busca por uma explicação para ele/s.
Conversar sobre os procedimentos traz a casa para as interações. Ao utilizar o contexto não escolar, a própria casa, a participação dos estudantes aumenta, ampliando a discussão sobre os procedimentos do experimento em questão. Ou seja, uma relação importante entre a imaginação e a ciência foi observada no evento Água colorida, que remeteu à casa das crianças. Por isso, revisitamos todas as aulas da unidade e identificamos oito novos eventos em que o mesmo ocorreu (Figura 3).
Após as análises, foi possível perceber que a casa aparece em diferentes momentos, sendo utilizada tanto por estudantes quanto pela professora e pela pesquisadora, e com consequências importantes para o ensino e a aprendizagem de Ciências. No evento −3, a professora traz a casa em uma tentativa de ajudar os estudantes a falar sobre experimentos que não têm misturas. No evento −2, a pesquisadora pergunta a Maurício o que ele fará em casa com a água de repolho. No evento +1, Ramon relata um experimento que fez em casa e a professora conversa com a turma, questionando o que ele poderia ter feito de diferente em seu experimento. No evento +4, a professora sugere que os estudantes façam em casa o que estão fazendo em sala naquele momento.
Assim, a relação entre o contexto escolar e o contexto não escolar dá-se em ambas as direções, potencializando o ensino e a aprendizagem de ciências. O contexto escolar está presente no contexto não escolar, e ações relatadas em sala de aula sobre o contexto não escolar estão diretamente relacionadas a ações/atividades no contexto escolar. Em seus relatos de experimentos em casa, os estudantes falam sobre ações que foram realizadas anteriormente no contexto escolar. Por exemplo, no evento Água colorida, trazem relatos de como “replicaram” o experimento da aula anterior em casa. Não falam sobre “misturas” variadas ou sem uma intencionalidade como o fizeram em outros momentos da história da turma.
Além disso, chama a atenção como, nos relatos sobre experimentos realizados em casa, abrem-se possibilidades para alterar o resultado que foi visto em sala de aula. Nesse sentido, as discussões não giram em torno de previsões sobre “o que aconteceria se eu fizesse isso?”, mas em torno de resultados relatados que diferem daqueles observados em sala de aula. Assim, o experimento em casa é discutido como “real”. Esse processo também é evidente com relação ao relato de Bruno no evento Água colorida. Posteriormente, no evento +3, Maurício faz algo similar ao contar que, em casa, seu experimento não ficou verde, mas voltou a ser transparente. Reagindo a esse relato, a professora, a pesquisadora e a monitora discutem objetivos e resultados de experimentos.
Finalmente, outro aspecto interessante dessas relações entre os dois contextos é que, nos eventos analisados, havia uma solicitação recorrente de fazer os experimentos em casa ou relatar o que havia sido feito em casa. Esse “fazer em casa” não é uma ação totalmente livre ou descompromissada com um reconhecimento de resultados e também de procedimentos (como fazer) na escola. No evento Água colorida, Karla relata que repetiu o experimento em casa e observou um resultado semelhante ao encontrado em sala de aula. Outros estudantes narram experimentos de forma diferente: algumas vezes falam sobre os mesmos materiais usados na escola ou os mesmos procedimentos, mas chegam a resultados diferentes. Posteriormente, Vinícius, no evento +3, por exemplo, quer fazer uma mistura em casa, mas depois quer trazer o experimento para a pesquisadora ver. Isso mostra que, mesmo tendo certa liberdade para fazer o experimento em casa, há a expectativa de que ele seja objeto de discussão e análise por parte dos pares e da professora em sala de aula.
Assim, a atividade criadora apoiada na narrativa imaginária possibilitou discussões sobre procedimentos de experimentos realizados em casa, desempenhando, nessa sala de aula, um papel importante e fazendo com que o grupo pudesse discutir, fazer ciência e construir uma compreensão sobre os fenômenos naturais. Dessa forma, a atividade promoveu interações com maior participação dos estudantes, dando a eles um papel ativo na construção do conhecimento de diferentes formas. Percebemos, assim, que, já nos primeiros anos do ensino fundamental, os estudantes engajam-se em discussões significativas sobre ciências e constroem a ciência escolar com base em seu cotidiano escolar e não escolar.
DISCUSSÃO
Ao analisarmos uma sequência de aulas, observamos que a narrativa trazida pelos estudantes desempenhou importante papel nas discussões da turma. O contexto não escolar, ou seja, o espaço da casa apareceu por meio das histórias trazidas por diferentes estudantes nos eventos analisados: as narrativas engajaram a turma em discussões sobre experimentos de formas diversificadas, mas com semelhanças significativas em vários casos. Isso é, justamente, o que faz dessas narrativas uma atividade criadora que merece ser examinada com mais detalhes, por ser algo significativo para aprender Ciências nessa sala de aula.
A atividade criadora desempenhou importante papel, relacionando as oportunidades de aprendizagem de Ciências em sala de aula e as narrativas imaginárias trazidas pelos estudantes. Os estudantes retiram elementos da realidade vivida por eles na turma, mostrando sua imaginação baseada nas próprias memórias do grupo. A imaginação, como atividade criadora, -setorna um recurso usado pelo grupo para discutir, para fazer e para interpretar os experimentos realizados em sala de aula e gera recursos para novas discussões sobre experimentos. É importante destacar que isso se torna possível porque a professora escuta e valoriza essas narrativas.
O papel da professora enquanto mediadora que cria condições para a participação das crianças foi destacado por outros autores (Fleer, Fragkiadaki e Rai, 2020). Baseando-se em uma concepção histórico-cultural de brincadeira, Fleer (2019a) discute resultados de pesquisas desenvolvidas com crianças pequenas. Para a autora, “a narrativa e a situação imaginária criam novas condições para o desenvolvimento da criança.” (Fleer, 2019b, p. 11, tradução nossa). Nessa perspectiva, Fleer (2019b) desenvolveu o que ela chamou de Universo Lúdico-Conceitual8 (Conceptual PlayWorld). Esse universo é um modelo baseado em evidências de ensino intencional, que valoriza as brincadeiras e as histórias para aprender conceitos relacionados às ciências, tecnologias, engenharias e matemática. Foi desenvolvido pensando na interação das crianças da Educação Infantil (zero a cinco anos) com os adultos (pais e professores) para enfrentar, resolver desafios e aprender conceitos usando a imaginação enquanto brincam. Pode ser inspirado em um livro infantil ou em uma história de conto de fadas e pode ser desenvolvido em uma sala de aula ou em casa. A ideia do modelo é criar situações científicas imaginárias, construindo coletivamente situações-problema científicas e imaginando as relações entre contextos observáveis e conceitos não observáveis, transformando as práticas cotidianas em uma narrativa científica e promovendo o engajamento das crianças. Esse mundo imaginário permite que educadores e famílias ofereçam situações imaginárias para crianças pequenas, em que elas possam vivenciar conceitos que, de outra forma, seriam difíceis de explicar. Fleer (2019a) argumenta que o adulto terá um papel importante no sentido de:
dar uma natureza mais coletiva à participação das crianças, na medida em que dá suporte para elas entrarem, participarem e saírem de uma narrativa coletiva;
mostrar que se trata de uma situação de aprendizagem, contrastando esse tipo de brincadeira com outras brincadeiras que as crianças desenvolvem e, assim, introduzindo-as nos modos de participar de atividades de aprendizagem, que são centrais na Educação Infantil; e
introduzir aspectos conceituais (incluindo conceitos de ciências da natureza) nas brincadeiras.
Paralelamente, estudos quantitativos longitudinais com estudantes do ensino fundamental e médio também assinalam que a imaginação criativa estaria mais presente quando o professor adota estratégias mais centradas nos estudantes, com trabalhos em grupo e uma abordagem mais cooperativa (Ren et al., 2012).
Vigotski (2008) sinaliza que a atividade criadora pode apontar um caminho para o desenvolvimento do pensamento abstrato. Os estudantes discutem as ações (supostamente) realizadas em casa, sem falar diretamente sobre as ideias nas quais estão se apoiando para entender o experimento. Nesse sentido, Colinvaux (2004, p. 107), ao discutir o caráter abstrato da atividade científica e as concepções do senso comum de que a criança é concreta, questiona “[…] a visão de que a criança não está pronta para aprender algo tão abstrato, complexo e difícil.”, afirmando que o desenvolvimento do pensamento abstrato não acontece só a partir da adolescência e que crianças pequenas podem aprender Ciências se apoiando no pensamento abstrato em pleno processo do desenvolvimento.
A brincadeira, realizada por meio da atividade criadora, permitiu a criação de um elo importante entre a ciência e a imaginação, no sentido de possibilitar uma ampla discussão sobre os experimentos que foram realizados na sala de aula. A brincadeira foi realizada (ou imaginada) no espaço da casa e entrou na sala de aula por meio das narrativas dos estudantes. Consideramos, dessa forma, que foi com base nas histórias que os estudantes contaram sobre seus experimentos feitos em casa que eles se engajaram na discussão sobre suas observações e suas hipóteses relativas aos experimentos feitos em sala de aula. As pesquisas de Fleer (2011; 2019a; 2019b; 2020) evidenciam a centralidade das narrativas para a construção de conhecimento em sala de aula por meio de articulações entre casa e escola. No nosso trabalho com crianças mais velhas e sem a sistematização metodológica do Universo Lúdico e conceitual desenvolvido por Fleer (2019b), que envolve planejamento pedagógico e mediação da família, as próprias crianças levam a escola para casa e também trazem a casa para a escola, em um movimento complexo, fluido e contínuo que ainda precisa ser mais bem compreendido, como a própria Fleer aponta em texto anterior (Fleer, Fragkiadaki e Rai, 2020).
O que as crianças compartilham de suas culturas de pares contribui ativamente para a mudança social. Essa mudança foi claramente percebida no evento Água colorida. O fato de as crianças trazerem o que fizeram em casa reorganiza e muda os rumos da aula naquele momento. Observa-se, então, que elas contribuíram para influenciar a aula e sua própria aprendizagem. Por outro lado, professora e pesquisadora apoiam-se no que as crianças trazem para organizar os processos de ensino. Assim, as crianças transformam-se e transformam o contexto no qual estão inseridas. Elas não estão apenas “consumindo” o mundo adulto, elas levam a discussão para casa e produzem algo novo por meio das brincadeiras que foram narradas em sala de aula. O diálogo casa-escola estabelece-se sem necessariamente haver um direcionamento da escola.
Desse modo, o presente trabalho caracteriza recursos que estão presentes e podem ser utilizados para consolidar esse diálogo. Entendemos que as crianças maiores não dependem tanto da interação com adultos da família, possibilitando um movimento contrário de trazer coisas de casa para a escola. De fato, estudos quantitativos têm revelado que há um aumento da imaginação criativa em crianças mais velhas (Ren et al., 2012), o que demonstraria que o papel ativo das crianças pode ser potencializado ainda mais se nos apropriarmos de algumas discussões desses trabalhos da Educação Infantil, considerando as especificidades dessa etapa posterior de escolarização.
Entendemos a participação das crianças na perspectiva da reelaboração criativa (Vigotski, 2009). Dessa forma, suas contribuições tornam-se fundamentais para a apropriação das discussões dos experimentos realizados. Se suas histórias ou falas sobre os experimentos imaginários realizados em casa fossem entendidas na “perspectiva do déficit”, isso poderia ser visto como um “mau comportamento” e limitaria as ricas discussões trazidas pelas crianças, contradizendo perspectivas da própria Educação em Ciências que mostram o valor desse tipo de experimento na construção do conhecimento científico (Gilbert e Reiner, 2000). Os experimentos imaginários, tanto narrativas imaginárias quanto outros elementos da cultura de pares, como as brincadeiras, têm papel importante na aprendizagem de Ciências. Nesta sala de aula, a professora abriu espaço para negociar com esses elementos, respeitando as crianças e suas culturas de forma dialógica e responsiva. Assim, criaram-se espaços para a apropriação da ciência escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao possibilitar a discussão em sala de aula sobre os experimentos realizados em casa (e experimentos “imaginários”), os estudantes tiveram a oportunidade de discutir a razão de o resultado obtido não ter sido o esperado. O que era intuitivo foi discutido de uma forma diferente do que professores especialistas poderiam esperar. Os estudantes não perguntaram diretamente o porquê, mas criaram histórias para (re)interpretar os resultados inesperados. Assim sendo, nessa situação, a turma não estava participando de uma atividade de inventar uma história, mas sim discutindo e buscando uma explicação científica para aquilo que não combinava com o esperado, ou seja, o que era contraintuitivo. A estudante Karla, nesse sentido, trouxe justamente o resultado contraintuitivo, possibilitando que a turma participasse de discussões que geraram oportunidades de apropriação de formas de falar em Ciências. Essa foi uma forma importante de falar, de formular hipóteses e de discutir explicações, habilidades essenciais para a Educação em Ciências. Assim, estamos diante de uma situação em que as crianças desenvolvem experimentos que seguem “regras” que são adotadas pela própria vontade delas e, ao mesmo tempo, refletem sobre normas da ciência escolar, indicando uma forma de se apropriar dessas normas. Um aspecto fundamental em tal apropriação envolve a participação nas práticas discursivas da comunidade, ou seja, o que Duschl (2008) chama de dimensão social na aprendizagem de Ciências e que está intimamente relacionado às dimensões conceituais e epistêmicas. Compreender Ciências, portanto, é mais que saber explicações científicas, é saber usar e interpretar tais explicações, gerar e avaliar evidências, além de participar das práticas e dos discursos científicos.
Além disso, evidencia-se novamente o papel da professora. Fleer (2019b) apoia-se no conceito de “pedagogia de pares” (Kravtsov e Kravtsova, 2010)9 para apontar a importância da presença de dois professores em sala: um professor investigando junto com as crianças (presente como igual), enquanto outro pode sugerir formas de descobrir como resolver o problema da brincadeira (modelo para as crianças). Mortimer e Scott (2002) já sublinharam a importância de uma perspectiva dialógica na Educação em Ciências, apontando, até mesmo, que um único professor pode trazê-la para a sala de aula. Nossos resultados mostram que, também nos anos iniciais, a presença das duas professoras (a professora da turma e uma pesquisadora), que se contrapõem e têm papéis diferentes, apesar de não planejados, foi fundamental para que as crianças entendessem a contraposição de ideias como parte da participação em práticas sociais de aprendizagem de ciências, na medida em que isso gerou oportunidades de aprendizagem nesse sentido.
Concluindo, destacamos que é importante perceber que as crianças trazem para a sala de aula vivências de outros contextos. Alguns estudos sobre imaginação estão centrados em características do contexto escolar ou, no máximo, no contato de estudantes com atividades extracurriculares, como visitas a museus e participações em competições (Ren et al., 2012), ignorando a questão de contextos cotidianos menos diretamente relacionados à Educação em Ciências, como a casa. Tais contextos têm papel importante na aprendizagem, possibilitam uma participação mais ativa e ações de atividade criadora, que são mais consonantes com as visões de ciência escolar defendidas em nossa comunidade de pesquisa. Mesmo estudos que se voltam para essa interface casa-escola ilustram que pouco se sabe sobre como a compreensão de conceitos estaria relacionada à imaginação (Fleer, Fragkiadaki e Rai, 2020). Nesse sentido, o presente estudo traz uma contribuição significativa. Esses aspectos precisam ser considerados na formação inicial e continuada de professores de Ciências e também nas pesquisas em Educação em Ciências.