INTRODUÇÃO
A expressão “pessoa com deficiência” vem sendo incorporada ao discurso dos profissionais da Educação, fato este que evidencia os processos de criação e de atribuição da deficiência a alguns alunos na escola comum. Ao mesmo tempo que identificamos os estudantes que passam a ser considerados “com deficiência”, impomos a categoria “alunos sem deficiência” — normais — aos demais.
Entendemos que a deficiência convive com a normalidade e que ambas culminam na categorização dos alunos. Tanto a normalidade quanto a deficiência dificultam a consideração de cada aluno na sua diferença e singularidade, sendo essa consideração uma exigência à construção da escola para todos.
A deficiência descaracteriza os alunos e pode inferiorizá-los, o que não acontece com a normalidade, que os descaracteriza sem inferiorizá-los. Embora a categorização dos sujeitos no âmbito político, econômico e social possa ter como objetivo a garantia do direito à Educação, a manutenção do binarismo “com e sem deficiência” na escola tem resultado em uma diferenciação que exclui os alunos chamados “com deficiência”.
Recorrer às categorias pode ser necessário na formulação de políticas públicas, uma vez que elas comumente se destinam a pessoas que têm ou podem ter alguns de seus direitos humanos violados.
Concebemos que lançar mão de categorias para nomear um grupo de alunos pode ser uma estratégia que visa à inclusão quando constatamos, por exemplo, que os estudantes ditos “com deficiência” não tinham assegurado o direito à Educação em escolas comuns. Foi nesse sentido que a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI — MEC, 2008) definiu um público-alvo para a Educação Especial que compreende: os alunos considerados com deficiência intelectual, visual, motora e múltiplas, surdez, surdo-cegueira, alunos que têm o transtorno do espectro autista, altas habilidades e superdotação.
Entendemos que o ativismo dos movimentos sociais, a formulação de políticas públicas e algumas pesquisas ainda passam pela identificação das pessoas que acabam sendo inseridas em grupos identitários. Todavia, quando transpomos as identidades fixas para os processos de ensino, aprendizagem e convivência que acontecem na escola comum, a inclusão não se torna uma realidade.
Defendemos que o direito à Educação deveria ser assegurado a cada um dos alunos de maneira espontânea, o que dispensaria a formulação de políticas públicas que criam categorias para eles. No entanto, identificamos nessas políticas uma força motriz que tem impulsionado a inclusão escolar, que, por natureza, seria real e simples, caso nossa sociedade deixasse de produzir iniquidade, segregação e discriminação.
Entendemos que a formulação de políticas públicas e a construção de uma escola para todos são atividades que, embora relacionadas, são distintas e, portanto, têm caminhos diferentes para se concretizarem.
A primeira requer a categorização dos que têm alguns de seus direitos humanos violados, enquanto a segunda nos convoca à suspensão dessas categorias mesmo que momentaneamente, buscando considerar a diferença e a singularidade de cada aluno. Uma escola para todos é aquela que se dedica à categorização das situações inacessíveis que impedem os seus alunos de viverem uma trajetória escolar democrática e cidadã, na qual aprendem de acordo com as suas possibilidades. Essa escola dedica-se ainda à modificação dessas situações inacessíveis para que se tornem acessíveis.
A filosofia deleuziana aplicada à Educação permite-nos afirmar que uma pessoa “[…] não tem semelhante ou equivalente […]” por ser singular (Deleuze, 1988, p. 22). Por que, então, criamos categorias para os alunos na escola comum? Qual o sentido dessa prática quando identificamos arbitrariamente cada estudante e definimos o que eles são capazes de aprender nas atividades acadêmicas? O que tem sustentado a criação e a manutenção da expressão “pessoa com e sem deficiência” na escola comum?
Os alunos são singulares e têm uma diferença interior que, sendo compreendida (conceitualmente) e considerada pelos professores, pode levá-los à suspensão da imposição da deficiência e da normalidade aos seus alunos, incluindo-os.
Justificamos o nosso interesse pelo debate sobre as relações existentes na diversidade, enquanto produtora de categorias para as pessoas, e a diferença de cada aluno, porque identificamos na construção social da normalidade e da deficiência aspectos que nos afastam da construção de uma escola para todos.
Neste artigo, argumentamos em favor de uma suspensão nos processos em que a deficiência e a normalidade são produzidas na escola comum e atribuídas aos alunos, pois reconhecemos nessa prática uma insuficiência teórica, educacional e pedagógica que retém a inclusão escolar.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A NORMALIDADE NA ESCOLA QUE PRETENDE SER PARA TODOS
Nas escolas, são comuns discussões que pretendem estabelecer as diferentes formas de ser dos alunos que as compõem, tomando como referência um modelo padrão de aluno que é convencionalmente instituído. Professores estudam os comportamentos dos estudantes, avaliam o seu desenvolvimento cognitivo com base em metas previamente instauradas, comparam-nos entre si e com isso criam grupos que, por suposição, retratam suas semelhanças, equivalências e diferenças. Isso tudo acontece em uma lógica binária caracterizada pela oposição: os adequados e os inadequados; os aptos e não aptos; os habilitados e os incapazes; os “alunos com deficiência” e os “alunos sem deficiência”.
As possíveis definições desse “outro” que surgem da arbitrária nomeação de um ícone a ser copiado têm como base uma ideia de verdade única que, por imposição, deveria habitar cada pessoa e reger seus pensamentos e ações. Tal ideia é a normalidade.
Os nossos afetos e pensamentos fazem-nos percorrer, enquanto pesquisadores, um caminho oposto àquele que habitualmente vem sendo trilhado por alguns estudiosos da inclusão escolar. Em vez de pensarmos a deficiência enquanto emuladora da eficiência e em suas possibilidades de escalonamento, pela filosofia de Deleuze, fomos levados a problematizar a construção da norma para cada aluno, que é mutável, efêmero e singular.
Para pensarmos a respeito da normalidade enquanto verdade criada e imposta, tratamos da questão que, a nosso ver, justifica a sua perversa lógica: o método da divisão de Platão. Sobre esse método, Deleuze (2000, p. 259-260) afirmou que não se trata de “[…] dividir um gênero em espécies, mas de selecionar linhagens, distinguir os pretendentes, o puro e o impuro, o autêntico e o inautêntico”.
A essência dessa divisão está na seleção: trata-se de um modelo de filtragem que tem como meta a identificação dos bons pretendentes a um protótipo inventado, pretensiosamente, para pôr ordem em um mundo incontrolável e, portanto, caótico, que na concepção de Platão teria como causa a fluidez incontível da diferença de cada pessoa.
Deleuze, ao conceber a diferença como a expressão de cada ser, conforme apontou Schöpke (2012), substituiu a ideia de que ela é um atributo externo ou uma característica que pode ser observada, fixada, graduada e tomada como referência para designar quem a possui. A diferença, segundo a concepção deleuziana e com a qual nos alinhamos, é interna, de cada pessoa e, portanto, não pede uma definição, tampouco comparações. À diferença não se aplica qualquer tentativa de controle, uma vez que ela se atualiza ilimitadamente em um movimento próprio.
Quando criamos uma categoria para os nossos alunos, colocamos em evidência algumas de suas diferenças (características) que nos causam estranhamento. Com isso, na Educação Especial, as diferenças que são anônimas tornam-se deficiência, transtorno, altas habilidades ou superdotação, em uma dinâmica que substitui a palavra diferença pela palavra deficiência (e outras). A diferença quando ganha um nome possibilita a captura do aluno, que passa a sofrer tentativas de normalização. Essas tentativas consistem, basicamente, em forçar o outro a desenvolver uma habilidade e a manifestar um conhecimento que ele não demonstra possuir naquele instante.
Na consideração da diferença, não há como prever até onde um aluno poderá chegar em suas aprendizagens, desenvolvimento e participação social, porque as suas características se mantêm abertas a novas atualizações e evoluções.
A produção de categorias para os alunos assenta-se nos pressupostos da diversidade. Nela, essas mesmas características perdem a sua capacidade de se atualizar e evoluir, levando-nos ao equivocado entendimento de que os alunos da Educação Especial têm um limite para aprender, se desenvolver, se inserir e ser parte ativa da sociedade. Como dissemos, a categorização dos alunos que são público-alvo da Educação Especial pode ser necessária quando buscamos a eles assegurar o direito incondicional à Educação. Entretanto, ela não se aplica aos processos de ensino, aprendizagem e convivência na escola.
Retomando o método da divisão de Platão, consideramos que ele ainda está na base da organização do trabalho pedagógico das escolas comuns. Primeiramente, são definidas as formas de expressão que cada aluno deve ter conforme a sua idade cronológica; depois, são determinados os conteúdos que ele deve aprender segundo o ano escolar que frequenta; em seguida, são definidos os comportamentos tidos como adequados e o momento certo para que ele aprenda a ler e a escrever. Por fim, estabelecem-se instrumentos que avaliam o que foi aprendido com base na ideia de que a construção do conhecimento é linear e está sempre subordinada à explicação do professor. É, então, instituído o modelo de aluno normal.
Tal modelo vem sendo utilizado para classificar os alunos, o que leva o professor a concluir quais deles estão perto ou longe da normalidade por ele criada. Certos alunos vão sendo devidamente identificados e eleitos como bons representantes desse perfil preconcebido. Em contraposição, aqueles que se desviam desse padrão (considerado virtuoso, completo, estático e eficiente) são classificados como “pessoas com deficiência” por não corresponderem às aspirações dos sistemas de ensino.
Baseamo-nos em Mantoan (2017) para problematizarmos a equivocada “inclusão escolar” que parte da definição de uma categoria que inferioriza determinados alunos. Para essa autora (Mantoan, 2017, p. 38):
A inclusão caminha na contramão do conceito platônico de representação e de todo modelo e padrão identitário celebrados pelas escolas e demais instituições de caráter socioeducativo. Os casos que se afastam dessa idealização são os tidos como alunos com problemas, com deficiência, pessoas que se desviam dos padrões. Nas oposições binárias, desconhecem-se a natureza instável da identidade e a capacidade multiplicativa da diferença.
Os sistemas de ensino, portanto, não se baseiam no real público que compõe a escola. Carregam em suas intenções resquícios do pensamento platônico dedicado à divisão entre aqueles que, por conjectura, podem alcançar o conhecimento verdadeiro e aqueles que o refutam.
Nessa direção, verificamos que os alunos têm sido levados a se adequarem às normas escolares para terem assegurado o direito de fazer parte dela. Uma instituição que deveria acolher, sem distinções, todos que a ela chegam justifica o seu perfil excludente ao classificar como “pessoa com deficiência” o aluno que não corresponde aos seus quesitos selecionadores.
Quando determinamos o que é convencional, normal, por obedecer a um regulamento criado e imposto, a diferença de algumas pessoas, entendida de forma reduzida e distorcida, é tida como o oposto da normalidade pretendida, pois é subvertida em algo que admite contraste e objeção. Ela passa a ser associada à falta, à ausência de algo que impede o ser de ser capaz. Surge, em consequência, a categoria “pessoa com deficiência” em uma condição inferiorizada se comparada às pessoas consideradas “sem deficiência, normais”. Tanto a normalidade quanto a deficiência compõem grupos limitados, porém a normalidade parece evocar uma condição de “vantagem” sobre a deficiência.
A vida em sociedade leva-nos a identificar e a agrupar as pessoas em categorias bem definidas. Algumas delas são: criança e adulto, mulher e homem, jovem e idoso, aluno e professor, saudável e enfermo, rico e pobre, entre outras categorias. A inserção em determinada categoria pode se dar em dois movimentos: o primeiro diz respeito à inserção impositiva que alguém faz do outro em um dado grupo; o segundo tem a ver com a escolha de cada um que decide pertencer (ou não) a um grupo, por razões diversas. Fato é que certas categorias ou agrupamentos inserem as pessoas em experiências desprivilegiadas, como é o caso daquelas consideradas “com deficiência”. Dificilmente uma “pessoa sem deficiência” terá alguns de seus direitos comuns e fundamentais violados por corresponder ao padrão de sujeito normal.
A categorização das pessoas, por vezes necessária, dá-se na lógica da diversidade. No entanto, aqueles que são inseridos em dado grupo, ainda que tenham características em comum, não podem ser por ele representados por inteiro e concebidos como iguais. Os que não têm os atributos exigidos como condição para que o seu pertencimento aconteça em certo grupo são dele excluídos. Neste sentido, concebemos a diversidade como produtora de exclusão e entendemos que os agrupamentos que nos convêm certamente não são aqueles que, porventura, podem nos inferiorizar.
A diferença de Deleuze não deixa de existir e de se renovar quando uma pessoa pertence a um grupo específico, porém a fácil assimilação pelo outro e por nós mesmos dos atributos que dão forma a um agrupamento dificulta, quando não impede, a consideração de que toda pessoa é um constante e imprevisível devir. Em outras palavras, mesmo quando uma pessoa é submetida a uma categoria, ela segue se diferenciando internamente em relação a si mesma.
Na diversidade, a diferença é reduzida em sua potência de se diferenciar, pois a sua capacidade de se transformar é desconsiderada conforme as contingências de determinada situação, em dado momento. Quando isso acontece, aqueles que não correspondem à norma projetada pelos professores são tidos como elementos à parte em um sistema seletivo e, portanto, excludente.
Ríos (2002, p. 115) afirmou que
A instituição escolar, enquanto máquina sedentária, racionaliza e codifica de acordo com um modo de pensar dominante. Isso significa que ela elabora um modelo global e homogeneizador do social, que se institui com a onipotência do logos, exorcizando tudo aquilo que atrapalha, incomoda, ou seja, um cosmos que tenta ser coerente, organizado, homogêneo, frente a um caos, heterogêneo, incômodo, em certo sentido diluidor dessa única maneira de ser que implica estar subordinado a uma ordem.
A ideia é classificar para organizar os alunos em um sistema que não corresponde à realidade, por instituir “o diferente”, quando impõe a deficiência para alguns alunos e a normalidade para outros. A escola, ao assumir o papel de determinar a qual categoria cada um dos seus alunos deve pertencer, ignora o fato de que estar no grupo dos “sem deficiência” significa também ter a sua singularidade e a sua diferença anuladas.
Mantoan (2017) afirmou que qualquer grupo identitário que se possa criar para reunir pessoas, segundo atributos que escolhemos arbitrariamente para defini-lo, carrega, em razão da diferença de cada pessoa, a incapacidade, uma vez que nenhum dos sujeitos que compõem tal grupo pode ser representado na sua inteireza pelo atributo que os reúne.
Nessa direção, uma escola para todos é aquela que se abre à suspensão da produção e da atribuição de formas de identificar cada um dos seus alunos, que questiona o modo como concebe a deficiência e que se dedica à problematização da construção histórica, social e cultural da normalidade.
COMO É UMA ESCOLA PARA TODOS?
Na escola inclusiva todo e qualquer aluno é bem-vindo. Nas aulas, cada um compartilha o que sabe e o que deseja conhecer dos conteúdos que são selecionados democraticamente e estudados, compondo o currículo.
O ensino vai além dos momentos nos quais o professor expõe à turma o que preparou sobre o conteúdo que está em estudo. Nas atividades que acontecem em uma escola para todos, os alunos contam com a supervisão e apoio do professor, organizam-se para realizar experiências, investigações e pesquisas, acessam diferentes conteúdos nas exposições feitas pelo professor, no livro didático, em sites, aplicativos, revistas, jornais, filmes de curta e longa duração, obras de arte, entre outros meios.
Cada aluno é convidado a compartilhar as suas aprendizagens com a turma toda e a produzir algo que possa representar o que aprendeu. Ele pode criar textos, músicas, poesias, desenhos e outras formas de tornar conhecido o que construiu e lhe convém. É no compartilhamento diário do processo de aprendizagem vivido por cada aluno que o entendimento dos conteúdos vai se aperfeiçoando.
Na escola inclusiva, os professores compreendem que todos os alunos têm possibilidades de avançar em suas construções cognitivas e que eles têm diferentes pontos de partida e de chegada em suas aprendizagens. O processo de aprender que ocorre em cada aluno é considerado em sua imprevisibilidade e dinâmica constitutiva.
Para os professores de uma escola para todos, o conhecimento não é acumulativo e gradativo, mas associativo e tecido em espiral, o que torna todas as aulas possíveis para qualquer aluno de uma turma. Kuhn (1990, p. 21), quando retratou a estrutura das revoluções científicas, colocou-nos a possibilidade “[…] de a ciência não se desenvolver pela acumulação de descobertas e intervenções individuais”.
No cotidiano escolar, concluímos equivocadamente que um aluno não tem condições de aprender conteúdos relacionados à equação de primeiro grau, por exemplo, quando ele deixa transparecer que, naquela aula, não estabelece relações exatas entre os números e as quantidades que estes representam. Na Língua Portuguesa, associamos erroneamente o fato de um aluno não ler e escrever nesta língua à determinação de que ele não compreenderá o que é um predicativo do sujeito.
A interpretação de que a construção do conhecimento ocorre de forma linear diz respeito a uma tentativa da escola de controlar o que o aluno aprende, para afirmar o seu poder de dominação sobre a diferença do outro. Afinal, é mais fácil identificar aquele que “foge à regra” quando já foi determinado o ponto de partida e de chegada na aprendizagem do que acompanhar um aluno que, concebido como único, tem liberdade para trilhar quaisquer caminhos que o façam aprender segundo as suas capacidades e chegar aonde não foi previamente estipulado pelo professor.
Grande parte das escolas comuns ainda não se organizou com base na impossibilidade de controlar a aprendizagem de seus alunos. Em vez de reconstruir suas concepções, o que exige uma reinvenção do modo de entender e de considerar a diferença de cada aluno, reforça os mecanismos de controle impostos para identificá-los, selecioná-los e categorizá-los. Com isso, constatamos a forte influência da compreensão desacertada de que a construção do conhecimento é acumulativa e gradativa, compreensão esta que não impulsiona a construção de uma escola para todos.
Um professor na escola inclusiva, por saber que não pode controlar o que cada aluno vai aprender, reconhece que atividades avaliativas, nas quais todos de uma turma registram um mesmo conteúdo sobre o tema em estudo, são instrumentos que quase sempre não contêm aprendizagens criativas, e sim a reprodução do conhecimento tido como verdadeiro.
Na escola para todos o ensino não se reduz à legitimação do que já está comprovado e demonstrado nos livros didáticos e apostilas. O ensino nessa escola vai além do reconhecimento de “verdades”, pois valoriza os processos criativos de cada aluno, que constrói o que lhe é possível em dado momento da sua escolarização.
O corpo docente de uma escola para todos questiona a compreensão conservadora que tem sobre a avaliação. Nela, cada aluno autoavalia-se conforme pensa, reflete e pondera o que conhecia e o que passou a conhecer após ter compartilhado experiências de ensino com seu professor e colegas de turma e ter mobilizado o seu processo interno e singular de aprendizagem. Cada autoavaliação é compartilhada com o professor da sala, que define a maneira mais oportuna de trabalhar com os dados que acessou, por meio do registro individual dos alunos.
Arendt (2014, p. 23), quando trata do ato de pensar, conclui que “nada do que vemos, ouvimos ou tocamos pode ser expresso em palavras que se equiparem ao que é dado aos sentidos”. Diante disso, reconhecemos que as produções dos alunos que advêm das avaliações que aplicamos não representam por completo o que cada um sabe, pensa e sente quando em contato com determinado conteúdo.
Essa constatação reitera a relevância dos momentos de compartilhamento das produções de cada aluno na turma, momentos estes em que diferentes posicionamentos, questionamentos e indagações sobre um mesmo objeto de estudo se encontram, estranham, complementam, ajustam, revelam consistências e equívocos, tanto para os alunos quanto para o professor.
A CONSTRUÇÃO DE UMA ESCOLA PARA TODOS E A SUSPENSÃO DA PRODUÇÃO E DO USO DA EXPRESSÃO PESSOA “COM E SEM” DEFICIÊNCIA
A frequente atribuição das categorias “com e sem deficiência” aos alunos na escola comum faz-nos recorrer aos estudos sobre a generalidade de Deleuze (1988). Para ele (Deleuze, 1988, p. 23), “[…] a generalidade é da ordem das leis, mas a lei só determina a semelhança dos sujeitos que estão a ela submetidos e sua equivalência aos termos que ela designa”.
Quando um aluno público-alvo da Educação Especial já pertence a uma escola comum e, portanto, tem o seu direito à Educação assegurado, vemo-nos diante da possibilidade de não mais submetê-lo a condutas que nele fixam a deficiência, o transtorno, as altas habilidades e a superdotação, e que podem inferiorizá-lo diante de seus colegas e familiares.
Ao analisarmos o cotidiano de algumas escolas comuns com as quais trabalhamos, observamos a constante identificação dos alunos que têm direito aos serviços da Educação Especial como sendo aqueles que “têm uma deficiência, transtorno, altas habilidades e superdotação”. Constatamos que, por ora, a manutenção desse público específico faz-se necessária e pode somar ao desenvolvimento profissional de professores do ensino comum.
Alguns deles, quando trabalham de maneira articulada, colaborativa e cooperativa com o professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE) de sua escola, especializam-se no diagnóstico e na eliminação das barreiras que atingem os alunos que têm direito à Educação Especial. Esses professores das turmas comuns têm concluído que a Educação Especial pode impulsionar avanços na construção mais efetiva de uma perspectiva inclusiva em toda a escola, e que a deficiência não está em certos alunos, mas no meio.
Nesse cenário, verificamos que a perspectiva inclusiva da Educação Especial conta com um sistema educacional inclusivo, como previsto na PNEEPEI, e também o produz. Ao produzi-lo, contribui para que a escola suspenda, ainda que momentaneamente, os processos nos quais cria e atribui categorias para os alunos considerados “com deficiência”, passando a concebê-los em suas diferenciações internas e potencialidade criativa. A experiência profissional vivida pelo professor da sala comum que trabalha com o professor do AEE pode reverberar em outras situações, nas quais uma categoria que inferioriza um aluno e o submete a um ensino adaptado, facilitado e atípico deixa de ser praticada.
Acreditamos que cabe às escolas comuns implementar os serviços da Educação Especial, entre eles o AEE. Todavia, a tomada de consciência de que todo e qualquer aluno pode conviver com barreiras que dificultam o seu pleno desenvolvimento escolar, formação cidadã e inserção social não deve subsidiar a ampliação do público-alvo da Educação Especial.
Muitos alunos podem ter o desenvolvimento, a aprendizagem e a inserção social prejudicados quando convivem com diferentes tipos de barreiras. No entanto, nem toda barreira resulta na produção e na atribuição de uma deficiência que pode ser fixada em certo aluno. Existem barreiras de natureza econômica que resultam em pobreza, barreiras de natureza afetiva que geram agressividade, barreiras de natureza racial que produzem racismo, barreiras de natureza pedagógica que resultam em “alunos com dificuldade de aprendizagem”, entre muitos outros tipos de barreiras.
Os professores do ensino comum, quando se dirigem a um professor de AEE e afirmam que não são apenas os alunos contemplados pela PNEEPEI que convivem com barreiras, agem de maneira plausível. Esclarecemos que a Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva não deve ser o único meio pelo qual diferentes barreiras são devidamente estudadas, diagnosticadas e eliminadas na escola comum. O professor de AEE trabalha exclusivamente com as barreiras que sustentam a produção da deficiência, que vem sendo atribuída aos alunos que passam a ser considerados “com deficiência”, mesmo quando já pertencem a uma escola comum.
Diante disso, defendemos que a atuação do professor da Educação Especial seja cada vez mais centrada e delimitada. Caso o público-alvo da Educação Especial fosse ampliado, intensificaríamos o processo de categorização de outros alunos que não estão representados na PNEEPEI, movimento esse que caminharia na contramão do que apresentamos como proposta neste artigo.
Entendemos que o estudo das situações de deficiência que atingem o público-alvo da Educação Especial corresponde às demandas contemporâneas deste serviço, já que ele não se baseia na categorização generalizante do aluno, mas no diagnóstico e no rompimento das barreiras que se colocam na vida de alguns deles. Nesse sentido, a Educação Especial deve ser concebida como está previsto na PNEEPEI: um serviço cuja oferta é obrigatória e que deve acontecer sempre que seu público-alvo estiver convivendo com barreiras.
Defendemos que a presença do público-alvo da Educação Especial na escola comum, conforme definido na PNEEPEI, é um direito que precisa ser garantido. No entanto, essa presença não assegura a espontânea identificação e a eliminação das barreiras com as quais os alunos considerados “com deficiência” se deparam na escola e fora dela. Isso torna urgente e necessária a transferência, ainda que momentânea, da atribuição da deficiência, quase sempre fixada nos alunos, às situações de deficiência, que passam a ser reconhecidas na sua limitação e possibilidade de se tornarem acessíveis.
O Modelo Médico, que fixa a deficiência exclusivamente na pessoa, foi superado pelo Modelo Social (Palacios, 2008), que nos esclareceu sobre a presença da deficiência nas situações inacessíveis. Neste último, a deficiência tem sido interpretada como algo a ser compartilhado pelas pessoas ditas “com deficiência” e pelas situações marcadas pela presença de barreiras atitudinais, comunicacionais, arquitetônicas, entre outras.
A deficiência vem se localizando tanto nas pessoas consideradas “com deficiência” como no meio ou na situação da qual ela faz parte. Verificamos que o Modelo Social ainda não foi suficiente para que a deficiência deixe de ser atribuída a certos alunos. O entendimento de que ela está no meio possibilita a consideração da diferença e da singularidade de cada estudante. Nesse sentido, temos muito a avançar, e o caminho mais oportuno que avistamos é o que passa pela defesa incondicional dos direitos humanos de todos e todas.
As escolas brasileiras têm encontrado muita dificuldade para compreender a Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva descrita na PNEEPEI. Visualizamos que essa dificuldade tem sido mantida e cultivada quando professores insistem em identificar uma deficiência que possa ser atribuída a um aluno específico. Enquanto agem dessa forma, tais professores têm se desviado da sua real função, que consiste no diagnóstico de barreiras e na realização de um trabalho educacional que tenha potencial para eliminá-las.
Retomamos o que Deleuze (1988) teorizou sobre a generalidade para analisar como têm sido produzidas as expressões “pessoa com deficiência” e “pessoa sem deficiência” no ensino comum e na Educação Especial. Para esse filósofo, a generalidade comporta uma ordem qualitativa denominada semelhança e uma ordem quantitativa chamada equivalência. De acordo com a sua filosofia da diferença, não convém aplicá-las a pessoas.
Na trissomia do cromossomo 21, por exemplo, dois alunos (ou mais) têm sido recorrentemente denominados semelhantes quando apresentam essa característica genética qualitativa. Identificamos um equívoco teórico, educacional e pedagógico no uso da semelhança nessa situação na escola comum inclusiva, pois quando nos limitamos ao conteúdo do material genético presente no cromossomo 21 de dois ou mais alunos e produzimos uma generalidade, desconsideramos a infinita capacidade que essa característica comum entre eles, chamada por Deleuze de diferença, tem de se conectar a outras características existentes no corpo vivo de cada aluno, que se atualiza constantemente.
Em outras palavras, a interação ilimitada e dinâmica do terceiro cromossomo 21 com outras características do aluno que o hospeda não sustenta a conclusão de que dois ou mais alunos que tenham essa trissomia são semelhantes.
Sobre a equivalência, entendida como ordem quantitativa em Deleuze (1988), observamos que tal trissomia tem sido substituída pela expressão “pessoa com deficiência” na escola. Diante disso, um aluno que tenha a trissomia do cromossomo 21 identificada passa a ser automaticamente considerado um aluno “com deficiência”, o que compõe na nossa análise uma prática desnecessária na construção de uma educação escolar que aconteça no compartilhamento da vida entre alunos e professores.
Suspender o uso da expressão “com deficiência” para se referir a uma pessoa que tem a trissomia do cromossomo 21, por exemplo, não implica a desconsideração do material genético que nela se atualiza. A vantagem que essa suspensão traz consigo pode ser entendida com base no que Deleuze definiu como repetição. Repetimos quando recorremos à nossa própria diferença para atualizá-la, portanto a repetição refere-se ao movimento no qual a diferença de cada um se renova. Entendemos que a diferença, de acordo com os estudos desse filósofo, não pode ser substituída pelo termo deficiência. Nas suas palavras, “[…] a repetição concerne a uma singularidade não trocável, insubstituível. […] Repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente” (Deleuze, 1988, p. 22).
Optamos por trabalhar neste artigo com o exemplo da trissomia do cromossomo 21, porém esta discussão aplica-se a qualquer situação na qual uma característica que seja comum entre duas ou mais pessoas nos leve a defini-las inadequadamente como sendo semelhantes ou equivalentes.
Em uma escola para todos, o reconhecimento e a consideração de certas características, concebidas como uma diferença que tem capacidade multiplicativa, produz um novo sentido para o trabalho educacional e pedagógico, que passa a eliminar as barreiras que têm justificado a atribuição da deficiência a alguns alunos. A ausência de barreiras na escola inclusiva torna desnecessário o uso das expressões “com deficiência” e “sem deficiência” para nos reportarmos aos alunos.
Bauman (2001) nos fala sobre o desejo quase que incontrolável de ter “um nós a quem pertencer” que nos leva à identificação das pessoas. Diante disso, o fonoaudiólogo pode mapear a audição, o médico pode investigar detalhadamente um cromossomo e confirmar a existência de uma trissomia, outro médico pode ainda quantificar a acuidade visual, especialistas podem concluir após a análise de algumas condutas de seu paciente que este não dispõe de boa saúde emocional. Enfim, algumas características humanas podem ser categorizadas quando retiradas do intenso processo de atualização que cada uma delas (características) produz naquele que as possui.
Compreendemos um diagnóstico como um conjunto de constatações, algumas observáveis, outras comprováveis, que são produzidas em determinada situação, na qual um profissional que não seja o professor avalia certa característica de um aluno. Saber que uma criança “ouve melhor”, no momento do exame auditivo diagnóstico, alguns sons graves do que certos sons agudos, ou ainda tomar conhecimento de que um adolescente enxerga letras impressas em fonte tamanho 26, negrito, com espaçamento duplo, alinhadas à esquerda, sendo expostas a aproximadamente 30 centímetros dos seus olhos, pode ser uma das chaves que, quando acionada, impulsiona a criação de situações de ensino e de convivência mais acessíveis na escola comum e fora dela.
Para que os laudos contribuam para o estudo das situações inacessíveis colocadas em evidência pelo professor de AEE, teriam de ser redigidos em linguagem mais familiar aos profissionais da Educação. Os professores, por sua vez, não deveriam tomar o laudo como única diretriz norteadora do seu trabalho, mas como mais um instrumento que pode ajudá-los a diagnosticar as barreiras que impedem a inclusão. Convém a esses professores evitar os caminhos em que acabam produzindo diagnósticos para os seus alunos, o que consequentemente tem resultado na diferenciação do ensino para alguns deles.
Consideramos os pareceres diagnósticos na construção de uma escola para todos, mas destacamos que eles não definem o que um aluno pode aprender em cada atividade acadêmica. Em uma escola para todos importa conhecer um diagnóstico para tornar acessível o que até então é concebido como inacessível, e esse é o grande avanço que inclusão escolar traz consigo! Um avanço que tem encontrado muita resistência entre professores das salas comuns, da Educação Especial, bem como profissionais das áreas da Saúde, Assistência Social, do Direito, entre outras.
Quando um professor de Educação Especial passa a conhecer os sons que uma criança não escutou no momento em que foi avaliada, por exemplo, seu raciocínio, se alinhado a uma perspectiva inclusiva de Educação, deve se inclinar a criar procedimentos, estratégias e recursos que possam tornar esses sons acessíveis pela Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), sem normalizar e definir o aluno em questão. Ramos (2018) propôs esse tipo de atividade quando iniciou estudos sobre a acessibilidade sonora.
Para que o professor de AEE promova a acessibilidade é recomendável que ele compreenda e considere que toda e qualquer pessoa é um ser ativo cognitivamente, portanto saber que algumas delas não ouvem determinados sons não é suficiente para que as compreendamos em seus múltiplos e constantes processos interiores de mutação.
A dificuldade para escutar certos sons, enxergar determinado objeto, fluir “rápida ou lentamente” na construção cognitiva e produzir relações de afeto e amizade não faz com que uma pessoa tenha deficiência, transtorno, altas habilidades ou superdotação. Quando essa dificuldade (ou facilidade) é atribuída ao aluno, as questões de acessibilidade são distorcidas e acabam levando o professor a adaptar/individualizar o ensino a alguns deles em vez de torná-lo acessível, inclusivo e para todos.
Ao atribuirmos a deficiência aos estudantes, abrimos brecha para que eles ocupem espaços segregados como as classes e escolas especiais, ou acessem um ensino facilitado e com objetivos reduzidos, ainda que em uma turma comum. Tal atitude, para nós, caracteriza-se como uma violação irreparável do direito à Educação desses alunos. Quando a deficiência é entendida como pertencente ao meio, ela pode atingir não só os alunos considerados “com deficiência”, mas também aqueles considerados com transtorno do espectro autista, altas habilidades e superdotação.
Na perspectiva inclusiva da Educação, uma característica humana não deve ser definida com base em um diagnóstico e no consequente agrupamento de determinado aluno em uma categoria. Para isso é preciso que a escola aja com hospitalidade diante de todas as formas de habitar um corpo humano, sem que algumas delas sejam mais e outras menos bem-vindas.
Cremos que, ao viver situações acessíveis de ensino e de convivência na escola comum, cada aluno internamente se relaciona com os desafios que essas situações lhe apresentam e, no contato com tais desafios, por dispor de meios compatíveis com a sua forma particular de habitar o seu corpo, produz seus próprios pensamentos, conhecimentos, aprendizagens e sensibilidades.
Para que um professor de Educação Especial atue em consonância com os pressupostos de uma escola para todos, é preciso que ele busque identificar e compreender as barreiras que impedem alunos considerados “com deficiência”, professores das salas comuns e familiares de conversar, compartilhar seus pontos de vista, suas incertezas e convicções, a fim de que essas barreiras sejam eliminadas.
Em um ambiente acessível, o próprio aluno público-alvo da Educação Especial pode se localizar com relação às suas possibilidades e limitações, mas isso não acontece apenas com aqueles que têm sido considerados “com deficiência”; acontece com cada um dos alunos de uma turma comum.
Reconhecemos na Educação Especial uma legitimidade no diagnóstico das barreiras produzidas na escola e fora dela, barreiras estas que têm justificado a atribuição da deficiência a alguns alunos. A condução do estudo das situações de deficiência, bem como a condução e o acompanhamento das ações que dele emergem, são de responsabilidade do professor de Educação Especial que realiza o AEE. Quanto mais consolidadas se tornam as barreiras na escola, mais sentido ganha a atribuição da deficiência a certos alunos.
É no estudo de cada situação de deficiência que as barreiras produzidas e instaladas no ambiente escolar e para além dele são identificadas, portanto o diagnóstico que se faz no estudo conduzido pelo professor de Educação Especial é de barreiras e não de alunos. Hipotetizamos que a expressão “estudo de caso” pode induzir os professores de Educação Especial ao diagnóstico dos alunos, resultando na imposição da deficiência a alguns deles e da normalidade aos demais.
Em outras palavras, cremos que, quando se deparam com a expressão “estudo de caso”, os professores associam exclusivamente o “caso” ao aluno e não às barreiras com as quais ele tem convivido e que o mantêm em uma situação de deficiência. Essa maneira distorcida de realizar um “estudo de caso” tem trazido à tona, novamente, a discussão da deficiência baseada em pressupostos médicos, em fatores exclusivamente orgânicos/biológicos, descartando a questão central que apresentamos neste artigo para entender a deficiência: a produção de barreiras na escola comum que resultam em uma situação de deficiência caracterizada pela falta de acesso.
É fundamental que um professor de Educação Especial, ao estudar e trabalhar para que uma situação de deficiência se converta em uma situação acessível, identifique os impedimentos de natureza orgânica/biológica que são constituintes em alguns alunos e que serão referidos como diferença e não como deficiência, como transtorno, altas habilidades e superdotação; bem como os impedimentos de natureza social que são produzidos pela ausência ou insuficiência de acesso nas situações que esses alunos vivem na escola e na família.
A atuação do professor deve estar focada na eliminação dos impedimentos de natureza social, ou seja, das barreiras que resultam em deficiência. Os impedimentos de natureza orgânica/biológica serão diagnosticados por profissionais da área da Saúde, chegando à escola comum o parecer técnico que eles emitem e que não deverá ser utilizado para definir as atividades que esses alunos realizarão e o que eles serão capazes de aprender.
Ao professor de Educação Especial caberá considerar os impedimentos de natureza orgânica/biológica que compreendem a dificuldade para ouvir a fala e outros sons, enxergar as letras escritas na lousa ou impressas no livro didático, se adequar a um ritmo cognitivo incompatível às suas possibilidades internas de pensar e de construir conhecimentos, tecer relações de afeto e amizade, locomover-se andando, entre outros impedimentos de natureza orgânica/biológica.
A compreensão dos impedimentos de natureza biológica/orgânica e dos impedimentos de natureza social que ocorre no estudo das situações de deficiência faz com que o professor de Educação Especial se reúna com um professor da sala comum, a fim de que juntos formulem estratégias para tornar cada aula mais acessível. Eles podem criar, por exemplo, maneiras de organizar as cadeiras e carteiras da sala de aula, oportunizando o deslocamento independente de um aluno que faz uso de cadeira de rodas. O professor de AEE pode ainda ensinar um aluno que não fala a se comunicar por meio de figuras na Sala de Recursos Multifuncionais (SRM) e estender esse ensino ao professor da sala comum, aos colegas de turma e familiares, para que todos façam uso dos mesmos recursos, entre outras estratégias.
Após serem identificadas as barreiras, o professor da Educação Especial buscará criar ou adquirir não só estratégias, mas também procedimentos e recursos que têm potencial para converter uma situação de deficiência em uma situação acessível. Para isso, esse professor poderá identificar a necessidade de construir parcerias com profissionais de outros campos de atuação e a agir no sentido de impulsionar o trabalho multidisciplinar e intersetorial.
Assim sendo, um professor de Educação Especial atuará na eliminação de barreiras atitudinais produzidas pela equipe escolar, alunos e familiares, barreiras na comunicação, no acesso a recursos didático-pedagógicos, entre outras. Tal trabalho qualifica-se quando é realizado de maneira democrática, cooperativa e colaborativa, entre todos os envolvidos com a situação de deficiência em estudo.
Todas as ações realizadas pelo professor de Educação Especial serão registradas em um plano. Nele, as situações de deficiência serão identificadas, descritas, e as barreiras nelas produzidas, diagnosticadas. Além disso, cabe a esse professor redigir as ações que serão realizadas para que cada uma das barreiras seja eliminada, bem como definir os parceiros com os quais contará na realização do seu trabalho. Caso a situação de deficiência identificada aponte para a necessidade de determinado aluno frequentar uma SRM no período contrário ao das aulas, o professor de AEE deve registrar no Plano de AEE o dia e o horário em que os encontros acontecerão.
Ressaltamos que esse plano ao qual nos referimos não pode ser confundido com um plano de ensino individualizado, pois não diz respeito a conteúdos curriculares. Como já mencionamos, ele contempla o registro das barreiras que foram diagnosticadas durante o estudo das situações de deficiência e as ações que têm potencial para eliminá-las. Nunca é demais lembrar que em uma escola para todos não se realiza um ensino à parte, diferenciado para alguns alunos, mas se buscam meios acessíveis para que o ensino e a convivência sejam possíveis para cada um deles.
CONCLUSÃO
Os avanços teóricos, educacionais, pedagógicos e legais que vêm sendo construídos ao longo dos anos já não comportam o uso pouco reflexivo das expressões “pessoa com deficiência” e “pessoa sem deficiência” na escola comum. O entendimento equivocado de que tal uso assegura a consideração de certas características, próprias de alguns alunos, vê-se defasado e insuficiente na construção de uma escola para todos.
A transformação das escolas comuns em espaços efetivamente inclusivos requer que compreendamos a urgência de uma suspensão na imposição da deficiência a certos alunos e da normalidade aos demais. Como alternativa, sugerimos que a limitação e a deficiência sejam atribuídas às situações nas quais alunos que são público-alvo da Educação Especial se deparam com barreiras produzidas na escola e fora dela.
Tais barreiras impedem e/ou dificultam a comunicação entre os alunos, o reconhecimento de todos eles como pessoas capazes de produzir conhecimentos com um mesmo objeto de estudo, a locomoção com liberdade e independência, entre outras situações que denominamos situações de deficiência e que se caracterizam pela falta de acesso.
Quando agimos na escola comum para que a deficiência seja retirada do aluno e transferida a uma situação de deficiência, inacessível, intensificamos as exigências educacionais, pedagógicas, sociais e cidadãs do trabalho docente. Atitudes, modos de comunicar, de submeter cada aluno ao nosso jugo, de agir, ensinar e considerar os avanços que eles vão construindo em seu percurso acadêmico são colocados em xeque.
Além disso, a escola comum é convidada a se posicionar, de maneira mais consciente e comprometida, com relação aos documentos legais que estabelecem públicos específicos na busca por assegurar o direito à Educação de todos, sem que reproduza de maneira desnecessária procedimentos categorizadores ainda necessários na formulação das políticas públicas e na consolidação de movimentos sociais.
Convidamos essa escola a experimentar de forma mais livre as brechas nas quais a suspensão na produção e na atribuição da deficiência e da normalidade são possíveis. Sobre isso, Mantoan (2017, p. 40) afirmou que um país que se regula por uma visão excludente “[…] produz e mantém pessoas com deficiência pelos motivos os mais variados, replicando ideais ultrapassados, calcados no individualismo, nas maiorias e não em todos os seus membros indistintamente”.
Defendemos que a suspensão que propomos pode contribuir significativamente para que deixemos de fixar a deficiência em alguns alunos na escola comum, ainda que momentaneamente, o que não significa desconsiderar algumas de suas características, e sim deixar de substituí-las, sem necessidade, pela expressão “deficiência”. Ter três cromossomos 21, ouvir “poucos” sons, sinalizar na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), enxergar sombras ou letras grandes e espaçadas, ler e escrever em Braille, se comunicar sem falar, encontrar dificuldades para abraçar e receber o carinho de colegas, professores e familiares, ter interesses intensos por determinados conteúdos, entre outras características, é muito distinto de ter deficiência ou de ser “especial”.
Acreditamos que a abertura à suspensão por nós sugerida pode nos situar de maneira mais consciente quando agimos como produtores e sujeitos da diferença de Deleuze e da diversidade notada em Aristóteles. Para nós, não se trata de optar definitivamente por uma delas, ou de concebê-las de maneira oposta, mas de compreender a fundo os processos nos quais elas são construídas e o que tem sustentado essa construção para além da escola.
Alertamos que nossos argumentos e proposições não se alinham com uma possível ampliação do público-alvo na redação da PNEEEI, na qual nos apoiamos. Defendemos que a delimitação desse público-alvo ainda se faz necessária nessa política e esperamos que no futuro os conhecimentos sobre acessibilidade, hoje oriundos da Educação Especial no Brasil, contagiem cada escola comum que pretende ser para todos. A ampliação do público-alvo da Educação Especial caminharia justamente na contramão das proposições que explicitamos e defendemos neste artigo.