1 INTRODUÇÃO
A Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) é uma perturbação do neurodesenvolvimento, caracterizada por défices persistentes na comunicação e na interação social e por padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, que estão presentes desde a primeira infância e limitam ou prejudicam o seu funcionamento (American Psychiatric Association [APA], 2013). A sua gravidade não se restringe apenas às características da perturbação, sendo influenciada pelas comorbilidades associadas. A PEA apresenta uma heterogeneidade multinível que influência o planeamento de uma intervenção adequada (Leung et al., 2016).
A intervenção deverá ser individualizada (Hyman et al., 2020) e poderá assentar em diferentes modelos, como modelos compreensivos/abrangentes ou focalizados (Wong et al., 2015). São recomendados modelos de base relacional que incluam uma componente terapêutica e pedagógica, bem como a promoção da autonomia e de socialização em contexto ambiental e comunitário (Direção Geral da Saúde - [DGS], 2019). As intervenções psicossociais são recomendadas com o objetivo de intervir especificamente na comunicação e na interação social, devendo incluir estratégias baseadas no jogo para promover a atenção conjunta, o envolvimento e a comunicação recíproca, que recorram à modelação e à mediação pelo adulto e pelos pares (Hyman et al., 2020; Weitlauf et al., 2014). Essas intervenções, normalmente, pretendem também diminuir os comportamentos repetitivos e restritos por meio de estratégias comportamentais (National Institute for Health and Care Excellence - [NICE], 2020). Nesse sentido, a intervenção deve incluir uma avaliação funcional do comportamento do seu impacto na qualidade de vida, a avaliação e modificação de fatores ambientais que poderão desencadear ou manter o comportamento, tal como a implementação de estratégias claras, de acordo com o nível de desenvolvimento e comorbilidades e adequadas aos diferentes contextos e a avaliação sistemática dos comportamentos a modificar (NICE, 2020; Turner-Brown & Sandercock, 2020). Além de centrar-se nos comportamentos específicos da PEA, deverá ter em conta as competências neurocognitivas que poderão justificá-los (Grove et al., 2014), como é o caso das funções executivas (FE) e da empatia.
O funcionamento executivo (Hill, 2004) e os processos empáticos (Grove et al., 2014) têm sido estudados em diversas teorias que tentam explicar os sintomas sociais e não sociais da PEA. Durante alguns anos, considerou-se que as FE poderiam explicar apenas os comportamentos restritos e repetitivos na PEA (Boyd et al., 2009; Kenworthy et al., 2009), mas evidências mais recentes apontam a sua influência também no domínio da comunicação e interação social (Chouinard et al., 2019). Na intervenção na PEA tem sido considerado importante o desenvolvimento das FE, nomeadamente a regulação comportamental (Peterson et al., 2015) e a metacognição (Pugliese et al., 2015; Torske et al., 2018), dadas as correlações encontradas entre esses domínios. Além disso, outros consideram que é crucial incluir no plano de intervenção objetivos para a melhoria da capacidade de iniciação, da memória de trabalho e flexibilidade cognitiva social (Freeman et al., 2017; Leung et al., 2016), da capacidade de inibição (Hutchison et al., 2019), do controlo emocional (Kouklari et al., 2018), da planificação (Geurts et al., 2014) e da monitorização (Pugliese et al., 2016). Para os comportamentos repetitivos, considera-se importante a intervenção na regulação comportamental e, principalmente, na flexibilidade cognitiva (Varanda & Fernandes, 2017) e inibição (Faja & Nelson Darling, 2019), devendo também ter-se em conta a memória de trabalho (Rabiee et al., 2020), o controlo emocional (Samson et al., 2014) e a planificação (Lopez et al., 2005).
Na PEA, a teoria da mente encontra-se associada ao funcionamento executivo (Pellicano, 2007), tendo a intervenção nas FE e nos processos de mentalização um impacto mútuo pela partilha de regiões cerebrais envolvidas (Wade et al., 2018). Os défices na empatia na PEA têm vindo a ser demonstrados por défices na teoria da mente, pelas dificuldades na leitura de falsas crenças e das intenções dos outros. Alguns estudos consideraram que os indivíduos com PEA apresentam défices na componente cognitiva e afetiva da empatia (Grove et al., 2014), outros apenas na empatia cognitiva (Mazza et al., 2014), sendo os défices na empatia afetiva ou emocional mais inconsistentes (Gökçen et al., 2016). O desenvolvimento da empatia, de acordo com a teoria da mente, tem sido considerado importante para a melhoria da comunicação e da interação social (Marraffa & Araba, 2016) e nos comportamentos restritos e repetitivos (Jones et al., 2018).
A intervenção na PEA deve centrar-se nos seus sintomas específicos, nos processos da empatia, no funcionamento executivo, nomeadamente na regulação comportamental e na metacognição (Berenguer et al., 2018). Nesse contexto, o objetivo deste estudo centrou-se na análise e na compreensão das correlações entre os comportamentos típicos da PEA com as funções executivas e a empatia, de forma a serem estabelecidas orientações para a intervenção. Fundamentadas pela literatura, colocou-se a hipótese da existência de correlações entre os comportamentos típicos da PEA, o funcionamento executivo e a empatia, quer no domínio da comunicação social e interação, quer nos padrões restritos e repetitivos do comportamento, interesses e atividades. A literatura refere que défices nas funções executivas podem explicar difficuldades no domínio da comunicação e da interação social, bem como nos comportamentos repetitivos. Assim, colocou-se como primeira hipótese que os défices no funcionamento executivo estão positivamente associados à maior frequência de comportamentos típicos da PEA. A empatia também influencia a comunicação e a interação social e os comportamentos restritos e repetitivos, colocando-se como segunda hipótese que a capacidade de empatia está negativamente associada à maior frequência de comportamentos típicos da PEA. Por fim, dado que o funcionamento executivo influencia as capacidades empáticas, levantou-se como terceira hipótese que os défices no funcionamento executivo estão negativamente associados à maior capacidade de empatia. A compreensão dessas relações permite desenhar intervenções direcionadas às dimensões cognitiva e emocional que, por hipótese, estão na base do comportamento, o que possibilitará metodologias mais integrativas e abrangentes dos domínios comunicativo, social, comportamental e emocional e um melhor desenvolvimento do comportamento adaptativo.
2 MÉTODO
Nesta seção, tratamos dos participantes, dos instrumentos e dos procedimentos utilizados nesta pesquisa.
2.1 PARTICIPANTES
A amostra total foi constituída por 75 crianças, entre os 8 e os 12 anos (9,67 ± 1,29), 65 rapazes e 10 raparigas, com diagnóstico5 de PEA, tendo sido excluídos os casos com perturbação do desenvolvimento intelectual em comorbilidade. Da amostra, 59 (79%) não apresentam cormorbilidades diagnósticas, 9 (12%) apresentam comorbilidade com perturbação de hiperatividade e défice de atenção, 4 (5%) com perturbação da linguagem e três (4%) com outras perturbações. As crianças frequentam estabelecimentos de ensino regular, entre o 2º e 7º ano de escolaridade e beneficiam de Educação Especial e/ou apoio terapêutico.
2.2 INSTRUMENTOS
Foram aplicados os seguintes instrumentos:
Questionário de Comportamentos Típicos na Perturbação do Espetro do Autismo (QCT-PEA): Esse questionário foi construído com o objetivo de compreender a frequência dos comportamentos que constituem critério para o diagnóstico de PEA, de acordo com os comportamentos inventariados nos critérios de diagnóstico do DSM-5: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (APA, 2014) completado com exemplos de comportamentos referidos na escala de diagnóstico Childhood Autism Rating Scale (CARS de Schopler et al., 1988), para facilitar a compreensão dos pais. O questionário foi organizado nos dois domínios que caracterizam a PEA: Comunicação Social e Interação Social (CSIS) e Padrões Restritos e Repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades (PRRCIA), que correspondem respetivamente, ao critério de diagnóstico A e B. Em cada domínio, os comportamentos foram organizados pelos subdomínios referidos no DSM 5 (APA, 2014). Na Comunicação Social e Interação Social (A), os comportamentos foram organizados: reciprocidade social – emocional (A1); comportamentos comunicativos não-verbais usados na interação (A2); e desenvolver, manter e compreender relacionamentos (A3). Nos Padrões Restritos e Repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades (B) foram organizados nos seguintes subdomínios: movimentos motores, uso de objetos, falas estereotipadas ou repetitivas (B1); insistência na monotonia, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento (B2); interesses altamente restritos e fixos (B3); e hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspetos sensoriais dos comportamentos (B4). No questionário, foram discriminados os problemas mais comuns da PEA, sendo a cotação realizada em escala de Likert (0- Nunca, 1- Raramente, 2- Algumas vezes, 3 - Frequentemente, 4 -Muito frequentemente), avaliando a frequência do comportamento da criança pelos pais. A validade de conteúdo desse questionário, baseado na tradução portuguesa do DSM- 5 (APA, 2014), foi analisada por um comité de 10 peritos com experiência, quer na área profissional de prestação de apoio a pessoas com PEA, quer na metodologia de investigação/validação de instrumentos, e respeitou todos os procedimentos recomendados pela International Test Commission (ITC, 2010). Assim, a cada especialista foi fornecida uma cópia do questionário e foi solicitado que se avaliasse a relevância, clareza/ambiguidade e simplicidade de cada item por uma escala tipo Likert com quatro opções de resposta que variavam entre 1 (muito irrelevante) até 4 (muito relevante). Todos os itens foram considerados representativos e todos os índices de validade de conteúdo foram superiores a .90, com índices de acordo entre peritos elevados. O Kappa de Cohen, com valores entre .82 e 1, mostrou uma excelente concordância entre os peritos. Os valores de consistência interna (Alfa Cronbach) indicam boa a excelente consistência, variando de .88 (B) a .92 (A), com um valor nos comportamentos típicos totais de .93. Nos subdomínios verificou-se: .79 (A3), .84 (A1) e .88 (A2); .56 (B1), .74 (B2), .81 (B4) e .88 (B3).
Inventário Comportamental de Avaliação das Funções Executivas – Pais (ICAFEP) (Rodrigues et al., 2015): O instrumento utilizado consiste em uma tradução de Behavior Rating Inventory of Executive Function (Gioia et al., 2000). Esse questionário não se encontra validado para a população portuguesa, estando as suas propriedades métricas, neste momento, em análise. O seu objetivo é perceber a visão dos pais face a diferentes domínios do funcionamento executivo, como Inibição/Controlo Inibitório, Alternância, Controlo Emocional, Iniciativa, Memória de Trabalho, Planificação/Organização, Organização de Materiais e Monitorização (Rodrigues et al., 2015). Essas oito subescalas compreendem dois índices: Índice de Regulação Comportamental (IRC, constituído pelo somatório das três primeiras subescalas referidas) e o Índice de Metacognição (IM, constituído pelo somatório das restantes subescalas). O somatório desses dois índices constitui o Composto Executivo Global (CEG) (Gioia et al., 2000). O instrumento apresenta uma elevada consistência interna quer na sua versão original (0.82>α<0.98) (Gioia et al., 2000) quer na versão portuguesa (α = 0.73 − 0.95, excepto no subdomínio da iniciação 0.67) (Gomes, 2017). No presente estudo, a consistência mantém-se elevada ao nível dos índices e composto: CEG (.87), IRC (.72) e IM (.86), e nas subescalas: inibição (.88), alternância (.84), controlo emocional (.89), iniciação (.77), memória de trabalho (.89), planificação/organização (.87), organização de materiais (.89) e monitorização (.75).
Escala de Avaliação de Empatia (EAE), adaptada por Veiga e Santos (2011): Essa escala é a adaptação portuguesa do Questionnaire to Assess Affective and Cognitive Empathy in Children II (QACEC), de (Zoll & Enz, 2010), que avalia a empatia nas suas dimensões cognitiva (implica o colocar-se no lugar do outro) e afetiva, em que é pedida a perceção dos estados internos do outro. A versão utilizada foi adaptada para a população portuguesa por Veiga e Santos (2011) para ser utilizado em crianças e adolescentes, e mantém a estrutura multidimensional avaliando, também, as componentes cognitivas e afetivas da empatia. As respostas aos respetivos itens são apresentadas segundo uma escala tipo Likert, com cinco possibilidades de respostas (1- Discordo totalmente, 2- Discordo um pouco, 3- Não concordo nem discordo; 4- Concordo um pouco, 5- Concordo totalmente). A fiabilidade foi analisada com base na consistência interna (Alfa de Cronbach) com a dimensão cognitiva e afetiva a apresentarem valores de .72 e .85, respetivamente (Veiga & Santos, 2011). No presente estudo, verificou-se uma boa consistência interna na empatia (.82) e nas duas dimensões: cognitiva (0.74) e afetiva (0.84).
2.3 PROCEDIMENTOS
Para o recrutamento da amostra, foi solicitada a colaboração de centros de desenvolvimento públicos e privados de várias zonas do país, solicitando-se aos técnicos superiores (psicólogos, técnicos superiores de Educação Especial e reabilitação, terapeutas da fala, terapeutas ocupacionais e professores de Educação Especial, entre outros) que acompanham a criança, a colaboração na aplicação da Escala de Avaliação da Empatia, para que o facto da criança não conhecer o investigador não influenciasse as suas respostas. Antes da sua aplicação, foram explicados, pelo investigador, os procedimentos de aplicação aos técnicos. O Questionário de Comportamentos Típicos na Perturbação do Espetro do Autismo e Inventário Comportamental de Avaliação das Funções Executivas foi respondido pelos pais.
O estudo foi aprovado por uma Comissão de Ética, em conformidade com as diretrizes nacionais e internacionais para a investigação científica que envolve seres humanos, incluindo a Declaração de Helsínquia sobre os Princípios Éticos para a Investigação Médica em Seres Humanos (2013) e a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina. Todos os participantes assinaram um Consentimento Informado, Livre e Esclarecido. Os dados recolhidos foram analisados com o recurso à estatística descritiva e inferencial, por meio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 25.0 para Windows. Com o objetivo de estudar as diferentes variáveis de estudo, realizou-se uma estatística descritiva de acordo com os resultados obtidos nos três instrumentos, bem como o estudo de correlação entre as variáveis, através do Coeficiente de correlação de Pearson.
3 RESULTADOS
Na Tabela 1 é apresentada a estatística descritiva (média e desvio padrão) das variáveis em estudo. Os valores correspondem à média dos valores obtidos em cada um dos domínios e subdomínios avaliados. As médias superiores indicam a maior frequência de comportamentos típicos da PEA. Nas funções executivas, as médias superiores indicam maiores défices nesse domínio e na empatia os valores superiores indicam maior capacidade de empatia.
Amostra Total n= 75 | ||
---|---|---|
M | SD | |
Comportamentos Típicos PEA totais (CT PEA) | 1.60 | .67 |
A - Comunicação Social e Interação Social (CSIS) | 1.77 | .65 |
A1- Reciprocidade social – emocional | 1.77 | .74 |
A2- Comportamentos comunicativos não-verbais | 1.59 | .93 |
A3- Desenvolver, manter e compreender relacionamentos | 1.88 | .66 |
B- Padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades (PRRCIA) | 1.50 | .80 |
B1- Movimentos motores, uso de objetos, fala estereotipados ou repetitivos | 1.52 | .98 |
B2- Insistência na monotonia, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento | 1.69 | .96 |
B3- Interesses altamente restritos e fixos | 1.17 | 1.11 |
B4- Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspetos sensoriais dos comportamentos. | 1.58 | .99 |
Funções Executivas | ||
Composto Executivo Global (CEG) | 2.08 | .35 |
Índice de Regulação Comportamental (IRC) | 2.07 | .38 |
Índice de Metacognição (IM) | 2.09 | .39 |
Inibição | 1.99 | .48 |
Alternância | 2.14 | .47 |
Controlo Emocional | 2.07 | .46 |
Iniciação | 2.00 | .46 |
Memória de Trabalho | 2.16 | .48 |
Planificação/Organização | 2.12 | .47 |
Organização de Materiais | 1.99 | .59 |
Monitorização | 2.20 | .43 |
Empatia | 3.59 | .61 |
Empatia cognitiva (EC) | 3.20 | .75 |
Empatia afetiva (EA) | 3.97 | .76 |
Nota: M – media SD – desvio padrão
Ao analisarmos os comportamentos típicos na PEA (Tabela 1), a maior frequência de comportamentos encontrou-se no domínio da Comunicação Social e Interação Social (A). Nesse domínio, a maior frequência encontrou-se nos défices em desenvolver, manter e compreender relacionamentos (A3) e menor nos comportamentos comunicativos não verbais (A2). Nos Padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades (B), a maior frequência de comportamento encontrou-se na insistência na monotonia e adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento (B2), sendo a menor frequência nos Interesses altamente restritos e fixos (B3). Nas funções executivas, pelas respostas dos pais ao ICAFEP, a amostra apresentou um perfil de frequência de comportamentos semelhante no IRC e IM. Nas diferentes subesca-las os valores médios de frequência também foram semelhantes, destacando-se ligeiramente a monitorização, memória de trabalho, alternância e planificação. Na empatia, verificou-se um valor superior na empatia afetiva comparativamente à empatia cognitiva.
De modo a perceber a relação entre os vários domínios avaliados, foram estudadas as correlações entre as variáveis anteriores (Tabela 2).
CT PEA | A-CSIS | A1 | A2 | A3 | B- PRRCIA | B1 | B2 | B3 | B4 | Empatia | EC | EA | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Composto Executivo Global (CEG) | .534** | .456** | .367** | .293* | .504** | .497** | .331** | .437** | .442** | .384** | -.128 | -.246* | .036 |
Índice de Regulação Comportamental (IRC) | .494** | .445** | .365** | .274* | .493** | .438** | .276* | .455** | .415** | .289* | -.222 | -.283* | -.078 |
Índice de Metacognição (IM) | .475** | .394** | .311* | .260* | .434** | .456** | .312** | .360** | .390** | .381** | -.054 | -.187 | .097 |
Inibição | .184 | .237* | .100 | .117 | .374** | .126 | .081 | .108 | .163 | .066 | -.135 | -.187 | -.033 |
Alternância | .660** | .536** | .546** | .374** | .461** | .617** | .387** | .665** | .506** | .449** | -.149 | -.165 | -.077 |
Controlo Emocional | .343** | .295** | .230* | .167 | .350** | .309** | .195 | .321** | .331** | .179 | -.252* | -.331** | -.078 |
Iniciação | .519** | .476** | .417** | .251* | .537** | .471** | .444** | .369** | .339** | .366** | -.120 | -.163 | -.033 |
Memória de Trabalho | .481** | .379** | .373** | .214 | .377** | .480** | .222 | .396** | .448** | .366** | -.054 | -.130 | .041 |
Planificação/organização | .455** | .388** | .361** | .255* | .380** | .434** | .257* | .344** | .357** | .396** | .021 | -.136 | .167 |
Organização de Materiais | .140 | .053 | -.077 | .047 | .161 | .173 | .133 | .110 | .175 | .133 | -.023 | -.148 | .108 |
Monitorização | .371** | .352** | .261* | .325** | .333** | .313** | .226 | .266* | .273* | .240* | -.046 | -.174 | .096 |
Empatia | -.108 | -.093 | -.044 | -.027 | -.156 | -.074 | -.081 | -.215 | -.136 | .096 | - | .806** | .813** |
Empatia cognitiva (EC) | -.044 | -.046 | .025 | .002 | -.133 | -.013 | -.013 | -.145 | -.106 | .134 | .806** | - | .312** |
Empatia Afetiva (EA) | -.130 | -.104 | -.095 | -.045 | -.120 | -.106 | -.118 | -.203 | -.114 | .023 | .813** | .312** | - |
Nota: CT PEA – Comportamentos típicos da PEA, A- CSIS- comunicação social e interação social, Al- Reciprocidade social – emocional, A2- Comportamentos comunicativos não-verbais , A3- Desenvolver, manter e compreender relacionamentos, B- PRRCIA - Padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades, B1- Movimentos motores, uso de objetos, fala estereotipados ou repetitivos, B2- Insistência na monotonia, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento, B3- Interesses altamente restritos e fixos, B4- Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais, EC- empatia cognitiva, EA- empatia afetiva *p < .05. **p ≤ .01 indicam valores significativos (valores significativos encontram-se a negrito)
Na análise dos resultados da Tabela 2, verificaram-se correlações positivas estatisticamente significativas entre todos os domínios e subdomínios dos comportamentos típicos da PEA (CT-PEA) com o CEG, IRC e IM, tal como com as subescalas da alternância, iniciação e planificação. As correlações mais fortes foram encontradas com a subescala da alternância. A monitorização apresentou também correlações significativas com o domínio CSIS, bem como os seus subdomínios. O controlo emocional e memória de trabalho também apresentaram correlações semelhantes, excepto com os comportamentos comunicativos não verbais (A2) e a inibição apenas com a CSIS e défices em desenvolver, manter e compreender relacionamentos (A3). No domínio e subdomínios dos PRRCIA (B), as subescalas memória de trabalho e monitorização também se relacionaram com o domínio B e subdomínios, excepto com movimentos motores, uso de objetos, falas estereotipadas ou repetitivas (B1). O controlo emocional correlacionou-se apenas com B, B2 e B3. Não foram encontradas correlações entre esse domínio e a inibição. A organização de materiais não apresentou correlações com nenhum dos domínios e subdomínios dos comportamentos típicos da PEA.
Não se verificaram correlações entre a sintomatologia da PEA e a empatia, apenas com alguns comportamentos específicos do questionário. A empatia cognitiva apresentou uma correlação negativa com a preferência por atividades solitárias ou interações com pessoas muito mais novas e muito mais velhas (r= -.293, p< .05), e a empatia afetiva apresentou também correlações negativas com os comportamentos: linguagem unilateral, deficiente em reciprocidade social, usada mais para pedir ou rotular do que para comentar, partilhar sentimentos ou conversar (r=-.278, p< .05), insistência em brincar com regras muito rígidas (r=-.231, p <.05), discurso repetitivo (r=-.258, p< 0.05) e adesão excessiva a rotinas (r=-.266, p< .05). A empatia cognitiva apresentou, ainda, correlações negativas com o CEG, IRC e controlo emocional. O controlo emocional também se correlacionou com a empatia geral.
4 DISCUSSÃO
A PEA é uma perturbação do neurodesenvolvimento marcada por dificuldades na comunicação e interação social bem como nos padrões restritos e repetitivos, sendo o seu perfil comportamental considerado um fenótipo decorrente de défices em algumas funções neurocognitivas como as executivas e a empatia. Esta pesquisa centrou-se no estudo das correlações entre a frequência de comportamentos característicos da sintomatologia da PEA, o funcionamento executivo e a empatia, com o objetivo estabelecer linhas de orientação para a intervenção em crianças com PEA. Os resultados foram ao encontro das hipóteses colocadas, tendo sido encontradas correlações entre a comunicação social e interação social e os padrões restritos e repetitivos do comportamento, interesses e atividades e as funções executivas e empatia. Assim, corroborando com outros autores (Leung et al., 2016) consideramos que, face às correlações encontradas, a descrição do perfil social, comportamental e neurocognitivo das crianças é essencial para o planeamento de uma intervenção adequada.
Confirmando a primeira hipótese, verificaram-se correlações entre o perfil comportamental nos domínios que caracterizam a PEA pelo DSM-5 (APA, 2013) com o funcionamento executivo. Os maiores défices no funcionamento executivo estão positivamente associados à maior frequência de comportamentos típicos da PEA. Essas correlações foram ao encontro de outros estudos e evidenciam a necessidade de planear intervenções individualizadas, centradas quer nas características (áreas fortes e fracas das crianças), no domínio comportamental, quer nas competências neurocognitivas que poderão estar na base de alguns comportamentos e que influenciam a regulação do comportamento social e não social (Kenworthy et al., 2009). Dados recentes, consideraram que os objetivos principais de intervenção na PEA são a redução dos principais sintomas (comunicação e interação social e padrões restritos e repetitivos do comportamento, interesses e atividades) e a melhoria das comorbilidades; a promoção da autonomia funcional e do comportamento adaptativo e a eliminação ou redução de comportamentos problemáticos, que possam interferir nas competências funcionais e académicas (Hyman et al., 2020). No caso do funcionamento executivo, alguns estudos consideraram a importância da regulação comportamental e metacognição no desenvolvimento da comunicação e interação social (Leung et al., 2016; Peterson et al., 2015), e outros consideraram que os processos me-tacognitivos têm maior associação com o domínio social (Chouinard et al., 2019; Torske et al., 2018). No domínio dos padrões restritos e repetitivos do comportamento, alguns estudos consideraram apenas a regulação comportamental (Boyd et al., 2009; Kenworthy et al., 2009). Na mesma linha desses estudos, os resultados desta investigação evidenciaram a associação entre regulação comportamental e metacognição com ambos os domínios dos comportamentos típicos da PEA, permitindo considerar a importância da intervenção no funcionamento executivo como forma de desenvolver competências cognitivas de base para a melhoria da comunicação e interação social e dos padrões restritos e repetitivos do comportamento.
Esses dados vão ao encontro da teoria da disfunção executiva, que considera que as dificuldades na comunicação e interação social e nos padrões restritos e repetitivos de comportamentos podem ser explicados por inadequadas funções executivas, nomeadamente a planificação, a memória de trabalho, a inibição e a flexibilidade cognitiva (Hill, 2004; Lopez et al., 2005) e que a intervenção no funcionamento executivo poderá desencadear melhorias dessas dificuldades. Ao analisarmos os nossos dados, as correlações com essas áreas do funcionamento executivo foram evidentes, sugerindo também uma intervenção individualizada e centrada nos comportamentos e nos processos executivos que se relacionam, de acordo com uma avaliação funcional da sintomatologia da PEA e das funções executivas, de forma a planear a intervenção, delimitar os objetivos de intervenção e as estratégias a implementar (Hyman et al., 2020; NICE, 2020).
Relativamente à empatia, a nossa amostra apresentou melhores competências na empatia afetiva comparativamente à cognitiva, tal como em outros estudos (Gökçen et al., 2016; Mazza et al., 2014) que consideraram maiores dificuldades na empatia cognitiva, nomeadamente, na capacidade de mentalização. Os resultados apenas confirmaram parcialmente a segunda hipótese colocada, uma vez que não foram encontradas correlações entre a empatia e os domínios e subdomínios dos comportamentos típicos da PEA, contrariamente a Jones et al. (2018). Contudo foram encontradas correlações negativas entre a empatia e alguns comportamentos específicos. Esses resultados relacionaram-se à preferência por atividades solitárias, dificuldades na comunicação recíproca, inflexibilidade nas brincadeiras e na dependência de rotinas e apontam para a necessidade de intervir nos processos cognitivos responsáveis pelo comportamento empático como forma de melhorar as relações sociais (Marraffa & Araba, 2016).
Além disso, os resultados confirmaram a terceira hipótese, tendo sido encontradas correlações negativas entre funções executivas e empatia cognitiva, corroborando com estudos anteriores (Jones et al., 2018; Pellicano, 2007), nomeadamente com a regulação comportamental e controlo emocional, demonstrando que menores défices no funcionamento executivo estão associados a uma melhor capacidade de empatia cognitiva. Os nossos dados sugeriram a intervenção nesses dois domínios, encontrando-se em linha com Wade et al. (2018) que consideraram que a intervenção com foco no desenvolvimento da empatia cognitiva/teoria da mente poderá ter impacto nas funções executivas e vice-versa. Adicionalmente, outros autores consideraram que o desenvolvimento da flexibilidade cognitiva é importante para melhorar a capacidade de mentalização, comunicação e comportamentos desajustados (Varanda & Fernandes, 2017).
No presente estudo, salientaram-se as correlações entre o funcionamento executivo e todos os domínios e subdomínios dos comportamentos típicos da PEA, nomeadamente a regulação comportamental, os processos metacognitivos, a alternância/flexibilidade, a iniciação e a planificação. Face às relações que foram encontradas, que vão ao encontro de outros estudos (Berenguer et al., 2018), considera-se que intervenção deverá ser diferenciada tendo em conta o perfil comportamental da criança e o funcionamento executivo e empático. De acordo com as correlações encontradas e o papel do funcionamento executivo na melhoria nos domínios sociais e comportamentais na PEA, tal como referido nos estudos anteriormente citados, destaca-se a importância na intervenção do desenvolvimento da flexibilidade cognitiva e comportamental pela sua influência no comportamento adaptativo em diferentes contextos (Pugliese et al., 2015) e interferência na comunicação, interação social e padrões repetitivos de comportamento (Varanda & Fernandes, 2017). O desenvolvimento da capacidade de pla-nificação e de organização associado a estratégias de flexibilidade proporcionará uma maior adaptação às situações do quotidiano (Hill, 2004). Estimular a capacidade de iniciativa terá impacto na comunicação social e na socialização e, consequentemente, no comportamento adaptativo (Pugliese et al., 2015). Além disso, destaca-se o controlo emocional pela sua influência nas relações sociais e, também, na capacidade de regulação emocional e, consequentemente, dos comportamentos restritos e repetitivos (Samson et al., 2014), e a memória de trabalho sendo fundamental para o desenvolvimento da comunicação e interação social (Freeman et al., 2017; Leung et al., 2016) e na redução dos comportamentos restritos e repetitivos (Rabiee et al., 2020). O desenvolvimento da monitorização será essencial para autorregulação face às exigências sociais bem como para a capacidade de auto-gestão (Pugliese et al., 2016). O aumento da capacidade de inibição poderá promover melhorias na comunicação verbal, na pragmática, bem como na interpretação de situações sociais (Hutchison et al., 2019).
Considera-se ainda que, face às correlações encontradas e tendo em conta os diferentes modelos de intervenção existentes para a PEA, os dados da nossa investigação sugerem a importância de intervenções centradas em modelos compreensivos, com foco nos sintomas de forma mais abrangente, centrando-se não apenas no desenvolvimento da comunicação e interação social e redução dos comportamentos repetitivos, mas também no desenvolvimento de competências de funcionamento executivo e empatia, tendo em conta que cada intervenção deve ser individualizada, flexível, adequada ao nível de desenvolvimento, com estratégias de acordo com a idade, áreas fortes e fracas da criança (Hyman et al., 2020). A utilização de instrumentos de medida que possam inventariar as capacidades e necessidades da criança permitirá uma avaliação funcional da criança, uma planificação individualizada da intervenção, estabelecimento de estratégias potenciadoras do desenvolvimento e da aprendizagem, bem como uma monitorização da própria intervenção e de avaliação dos seus efeitos. Além disso, é importante que a intervenção possa ocorrer em diferentes contextos (e.g.: casa, sala de aula, ambiente naturalista ou comunidade), por diferentes terapeutas (e.g.: especialista em desenvolvimento, terapeuta comportamental, educador ou pais treinados), individualmente ou em grupo (Wong et al., 2015), podendo utilizar estratégias de diferentes modelos desenvolvimentistas, comportamentalistas, cognitivo-comportamentais e educacionais para responder às necessidades das crianças, das famílias e das escolas.
5 LIMITAÇÕES
O nosso estudo apresentou algumas limitações. A amostra utilizada foi uma amostra de conveniência e diagnosticada por diferentes médicos e equipas multidisciplinares, o que pode condicionar a generalização dos resultados. A recolha de dados também apresentou limitações, dada a escassez de instrumentos com dados normativos para a população portuguesa. Por esse motivo, a frequência dos comportamentos típicos de PEA foi recolhida a partir de um questionário construído para este estudo, baseado nos critérios de diagnóstico do DSM-5 e utilizando a mesma linguagem, apesar da atenção ao nível da validade de conteúdo e da sua fabilidade (consistência interna). Além disso, tal como as funções executivas, os dados foram recolhidos de acordo com a perceção dos pais. Na empatia, foi utilizado um instrumento de autorrelato em parceria com o técnico de intervenção e, segundo a sua opinião, por vezes, a criança deu respostas hipotéticas ao questionário, mas em contexto real nem sempre age em conformidade. Apesar dessas limitações, os resultados obtidos encontraram-se em concordância com outros estudos e mostraram a importância de incluir o desenvolvimento das funções executivas e da empatia nos programas de intervenção das crianças com PEA, com foco nas diferenças individuais. Considera-se importante, para investigações futuras, a replicação do estudo com uma amostra de maior dimensão e a utilização complementar de tarefas de avaliação das funções executivas e empatia que complementem a perceção dos pais e que visem a recolha da perceção dos professores.
6 CONCLUSÕES
A frequência de comportamentos típicos da PEA nos domínios da comunicação e interação social e padrões restritos e repetitivos do comportamento apresentou associações com as diferentes áreas do funcionamento executivo, sendo menos significativas as associações encontradas com a empatia. Na generalidade, os resultados encontraram-se em conformidade com outros estudos no âmbito da PEA e indicaram a importância de uma intervenção individualizada que, além de se focar nos comportamentos específicos da PEA, deverá incluir a intervenção na empatia e nas funções executivas, nomeadamente, a regulação comportamental e de metacognição, bem como a alternância, iniciação e planificação, como forma de melhorar os défices sociais e não sociais da PEA.
Assim, acreditamos que os resultados alcançados neste estudo terão impacto na Educação Especial e nos programas terapêuticos propostos pela Direção Geral da Saúde no âmbito da PEA, ao considerarmos que as funções executivas e a empatia deverão fazer parte integrante dos planos educativos nas crianças com PEA, não se centrando apenas no tratamento terapêutico dos sintomas específicos e nas dificuldades relacionadas com as competências académicas, como acontece atualmente. A intervenção nas competências e capacidades que estão na origem de alguns sintomas da PEA possibilitará uma intervenção ao nível dos processos e não apenas dos sintomas em si, podendo promover uma melhoria em diferentes comportamentos e uma maior adaptação a diferentes contextos e situações. Além disso, proporcionará uma maior adaptação das estratégias educativas potenciadoras da aprendizagem académica, bem como a melhoria da adaptação, integração, inclusão e funcionalidade das crianças ao contexto escolar, familiar e comunitário. Finalmente, constituirá também uma mais valia para a construção de objetivos terapêuticos na área do neurodesenvolvimento que poderão ser essenciais para a adaptabilidade das crianças aos diferentes contextos.