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Revista Brasileira de Educação Especial

Print version ISSN 1413-6538On-line version ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.29  Marília  2023  Epub May 15, 2023

https://doi.org/10.1590/1980-54702023v29e0237 

Entrevistas

ENTREVISTA COM A PROFESSORA MAURA CORCINI LOPES: A PRODUÇÃO DO SER SURDO NA EXPERIÊNCIA DA EDUCAÇÃO

INTERVIEW WITH PROFESSOR MAURA CORCINI LOPES: THE PRODUCTION OF THE DEAF SUBJECT IN THE EXPERIENCE OF EDUCATION

Maura Corcini LOPES2 
http://orcid.org/0000-0002-2419-9208

Eliana da Costa Pereira de MENEZES3 
http://orcid.org/0000-0002-5908-0039

Patrícia GRAFF4 
http://orcid.org/0000-0002-3315-2401

2Docente. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). São Leopoldo/Rio Grande do Sul/Brasil

3Docente. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria/Rio Grande do Sul/Brasil

4Docente. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Chapecó/Santa Catarina/Brasil


RESUMO

Ao longo da presente entrevista, a Professora Maura Corcini Lopes, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, desenvolve um conjunto de análises relativas à educação de surdos, a partir de uma retomada dos artigos publicados na Revista Brasileira de Educação Especial sobre a educação de surdos, ao longo das três décadas de existência desse periódico. Ela convida o leitor a refletir sobre os tipos de saberes produzidos sobre a surdez e as formas como os sujeitos com surdez foram sendo narrados nesse período. Ao voltar a olhar para os últimos 30 anos de proposição de políticas educacionais no Brasil, a Professora Maura problematiza os efeitos dessas políticas na organização de práticas escolares destinados aos alunos surdos e na forma como a sociedade se relaciona com a diferença, pós-políticas de inclusão.

PALAVRAS-CHAVE: Surdez; Diferença; Educação; Experiência; Inclusão

ABSTRACT

Throughout this interview, Professor Maura Corcini Lopes, from the Universidade do Vale do Rio dos Sinos, develops a range of analyzes related to the education of the deaf people, starting from a resumption of the articles published in the Revista Brasileira de Educação Especial on the education of the deaf, throughout the three decades of the existence of this journal. She invites the reader to reflect on the types of knowledge produced about deafness and the ways in which the subjects with deafness were being narrated during this period. When looking back at the last 30 years of proposing education policies in Brazil, Professor Maura problematizes the effects of these policies in the organization of school practices aimed at deaf students and the way in which the society relates to difference, after inclusion policies.

KEYWORDS: Deafness; Difference; Education; Experience; Inclusion

INTRODUÇÃO

A presente entrevista traz discussões sobre a educação de surdos ao longo das três décadas de existência da Revista Brasileira de Educação Especial (RBEE). Para isso, contou com a importante contribuição da Professora Doutora Maura Corcini Lopes, uma das referências em pesquisas sobre educação de surdos no Brasil, que atua como docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). A sua trajetória acadêmica está vinculada à educação de surdos desde a Graduação em Educação Especial, passando pelo Mestrado, pelo Doutorado e pelo trânsito entre diferentes grupos de pesquisa, o que possibilitou que ela contribuísse substancialmente com a educação de surdos, sob as diferentes ênfases que a ela têm sido dadas em nosso país.

Em meados da década de 1990, ela integrou o grupo que participou da fundação do Núcleo de Pesquisas em Políticas de Educação para Surdos (NUPPES), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As pesquisas do Núcleo impulsionaram a educação de surdos na região Sul do Brasil. Ao longo desse período, a Professora Maura construiu uma importante trajetória como pesquisadora que se envolve com as questões relacionadas à educação de surdos e à inclusão. Atualmente, ela é pesquisadora colaboradora do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação de Surdos (GIPES), Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão (GEPI) e Coordenadora da Rede de Investigação em Inclusão, Aprendizagem e Tecnologias Educacionais (RIIATE).

ENTREVISTA

Eliana Menezes e Patrícia Graff: Pergunta 1: Maura, em 2022, a Revista Brasileira de Educação Especial completa trinta anos de publicação. Em celebração a essa data, sentimo-nos convocadas a propor um momento de reflexão acerca de aspectos que consideramos determinantes nas últimas três décadas no país e que produzem as práticas contemporâneas em Educação, Educação Especial e educação de surdos. Feita essa apresentação, agradecemos a tua disponibilidade para dialogar e iniciamos te pedindo que faças uma contextualização sobre a educação de surdos ao longo das últimas três décadas no Brasil. Que mudanças percebeste nos modos de escolarizar os surdos? Quais conquistas podemos visualizar nesse período?

Maura Corcini Lopes: Inicio esta entrevista manifestando a minha satisfação e alegria em participar com vocês duas deste diálogo. Também afirmo o significado, para quem trabalha no campo da Educação Especial, da Revista Brasileira de Educação Especial (RBEE). Há trinta anos (1992-2022), a Revista tem feito circular a produção de pesquisadores e pesquisadoras nacionais e internacionais prestando um serviço fundamental para a socialização e a democratização do conhecimento.

Já que comemoramos o aniversário de trinta anos da revista, para essa contextualização da educação de surdos nas últimas três décadas, fiz uma mescla entre os títulos publicados na revista e uma analítica das práticas e das verdades em jogo no campo da Educação de Surdos. No site da revista, estão disponíveis todas as suas edições. Ao entrar em cada uma delas, comecei a separar os títulos que apresentavam enunciações aos surdos, à deficiência auditiva, à surdez, à língua de sinais, entre outros correlatos. Mesmo sem muitos aprofundamentos, tomei os títulos como portadores de enunciações a serem problematizadas. Antes de seguir nas análises, de acordo com o que está disponível no site da RBEE, ela publicou, ao longo de sua existência, novecentos e seis textos; deste total, aproximadamente, oitenta fazem alguma referência às enunciações apontadas anteriormente. Considerando o total de textos da RBEE, não são tantos os textos sobre educação de surdos publicados. Creio que o número de textos sobre o tema seja um indicativo interessante para a análise, pois pode dizer muito das disputas no campo em que a revista se inscreve.

Pelos títulos das publicações na RBEE é interessante perceber como as formas de nomear e de entender os sujeitos surdos se sobrepõem ao longo dos anos. A sobreposição chama atenção, pois ora os sujeitos com surdez são narrados como surdos, ora são narrados como deficientes auditivos, entre outras formas de nomear menos expressivas. Também, junto aos nomes atribuídos aos sujeitos, práticas variadas são associadas a eles, tais como: corretivas de fala, de ensino de língua de sinais, de escrita de português para surdos, de inclusão, de formação de intérpretes e de professores, de educação bilingue etc.

Focar as formas de nomear os sujeitos, associando-os às práticas de onde derivam tais narrativas, permite que enxerguemos os movimentos dos quais derivam as verdades sobre aqueles com surdez. Também permite que percebamos a história como conjuntos de práticas que podem ser muito semelhantes entre si, mas que estão inseridas em campos de sentidos muito distintos. Como exemplo, podemos pensar nas práticas corretivas aplicadas pela escola nos anos de 1990 e as práticas corretivas aplicadas na escola nos anos de 2000. Em ambos os tempos, vimos a presença de um atravessamento audista e a entrada de uma visão sociocultural na escola. Todavia, os discursos inclusivos que se fortalecem nas escolas a partir do ano de 2002 exigem que interpretemos de maneiras distintas os atravessamentos referidos anteriormente. Outro exemplo, em meados da primeira década dos anos 2000, um surdo, usuário de Libras [Língua Brasileira de Sinais], demandar do português escrito e de recursos sonoros para se comunicar seria lido como algo estranho pelos próprios surdos. No entanto, no final dos anos de 2010 e início dos anos de 2020, principalmente depois da pandemia da covid-19, devido ao atravessamento da digitalidade, um surdo demandar diferentes formas de se comunicar pode significar que ele esteja em busca de seguidores, não importa se esses são ou não são surdos.

Nessa linha, é interessante marcar que, no entendimento da história que tomo para problematizar a educação de surdos, não há “o” sujeito surdo, tampouco “a” surdez como grandes universais. Os universais são mobilizados por disputas pela verdade de decifrar o outro. Portanto, manter o distanciamento do sujeito e do objeto empírico para problematizá-los é condição para que possamos fazer uma história crítica das práticas, como nos inspirou Foucault (2011).

Seguindo o raciocínio, dependendo dos saberes em jogo, um sujeito pode ser isso ou aquilo. Não há um a priori natural que o determine. Ele é um resultante ativo na articulação entre dois tipos de práticas, quais sejam: as de objetivação - aquelas que o descrevem, posicionam, nomeiam, diagnosticam etc. -; e as de subjetivação - aquelas que o próprio sujeito, na relação com o outro, com os saberes e consigo, faz consigo mesmo. Não vou entrar nessas duas formas de articulação do sujeito, pois tenho receio de me afastar muito do propósito desta entrevista, mas penso que vale esclarecer o aparente paradoxo que usei para falar da constituição do sujeito. Disse que ele é um resultante ativo, isso significa que, no jogo das disputas pelas formas de narrar e de ser, o sujeito não somente sofre a ação do outro, mas também age sobre si mesmo e sobre os outros, modificando e constituindo verdades sobre si mesmo. Para mim, entender isso é fundamental antes de entrarmos nos últimos trinta anos da história da educação de surdos, mais ainda antes de entrar nas práticas escolares.

Encerrando essa parte introdutória de minha resposta, quero marcar que, para contextualizar a produção do conhecimento sobre a educação dos surdos, parto de um lugar interessado. Leio e interpreto as práticas que posicionam os sujeitos surdos a partir da experiência da radicalidade da surdez. Antes que vocês me perguntem o que quero dizer por experiência radical da surdez, adianto que, inspirada em Pagni (2017), estou entendendo que, uma vez declarada a condição de surdez, essa é geradora de movimentos intensos e transformadores de qualquer experiência.

Como prometi, volto para o que disse que faria, articular as discussões dos títulos dos textos publicados na RBEE com outras práticas que nos permitam interpretar os acontecimentos. A primeira edição da RBEE foi publicada em 1992, porém a primeira a trazer textos específicos sobre educação de surdos foi a edição de 1994. Dois textos foram publicados naquela edição, são eles:

Considerações sobre a reflexividade de alunos surdos frente à linguagem escrita, de Maria Cecília de Góes e Sonia Rodrigues de Andrade.

Orientações para ensinar o deficiente auditivo a se comunicar, de Maria da Piedade Resende de Costa.

Nos textos, chama atenção a presença de duas formas de nomear e de inventar os sujeitos com surdez: aluno surdo e deficiente auditivo. Entendo que, nos anos de 1990, acontecia, no Brasil, uma movimentação no Campo da Educação de Surdos daqueles profissionais que operavam na perspectiva do oralismo, do bimodalismo e, de forma bem modesta, do bilinguismo. As discussões eram acirradas, pois estavam em jogo mais do que mudanças nas formas de nomear aqueles indivíduos com surdez. Os nomes dados aos sujeitos - surdo e deficiente auditivo - expressavam correntes de pensamentos em disputas visivelmente presentes na formação de professores.

Na formação de professores, nos anos de 1990, aconteceram mudanças significativas nas formas de interpretar a surdez. Talvez um exemplo importante, devido a ser o único curso universitário em Educação Especial no Brasil, seja o da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O curso de Educação Especial tinha uma habilitação intitulada Deficientes da Audiocomunicação, que acolhia aqueles interessados em trabalhar com surdos. No currículo do curso, a tradição predominante era a clínica. Como movimento de resistência, discussões iniciais sobre língua de sinais e sobre a importância de os surdos estarem entre os surdos, eram vistas, por vezes, como uma provocação.

Pesquisadores argentinos e brasileiros, como Luiz Behares, Carlos Skliar, Maria Alzira Nobre, Lucinda Ferreira Brito, entre outros nomes expressivos, começavam a circular na literatura consumida na UFSM. Em meados dos anos de 1990, um grupo de formandas da Educação Especial ingressou no Mestrado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mobilizadas, elas trouxeram, para o Brasil, Carlos Skliar, o qual permaneceu em Porto Alegre por aproximadamente dez anos, tempo suficiente para a formação de um quadro de doutoras em Educação capazes de levar adiante, no Sul do país, o conhecimento sobre educação de surdos. As pesquisadoras desse grupo, conforme foram finalizando seus Doutorados, no início dos anos 2000, foram constituindo outros grupos e orientando novos pesquisadores em distintas universidades localizadas no Rio Grande do Sul.

No mesmo período em que começava a ganhar espessura a produção de conhecimento no Rio Grande do Sul, na RBEE foi publicado, em 1996, um texto que enunciava práticas alternativas na educação de surdos. O título do texto era Proposta alternativa para o ensino de surdos: experiência institucional no Estado da Paraíba, de Eleny Gianini, Delba Cruz Camelo Pessoa e Ana Dorziat.

Mais para o final dos anos de 1990, experiências de outros países passaram a circular com mais intensidade no Brasil. Esse fato intensificou as problematizações acerca das representações da deficiência fixadas nas formas de ler os sujeitos surdos. Os surdos, cada vez mais organizados, começaram a participar ativamente das discussões acadêmicas e políticas na UFRGS. Estes, engajados nos movimentos políticos dentro das associações de surdos e da Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS), diziam não às práticas audistas e rebatiam com propriedade o enquadramento de especial conferido a eles pela própria área de Educação e, dentro dela, de Educação Especial.

Pesquisadores do campo dos Estudos Surdos consideram que o marco de uma virada nas formas de ler a surdez se deu no ano de 1999. Nesse ano, Carlos Skliar, na coordenação do NUPPES, sediado na UFRGS, trouxe, para o Brasil, o Congresso Latino-americano de Educação Bilingue para Surdos. Naquele momento, conforme consta nos livros publicados com os textos do evento, compondo o NUPPES, estavam: Adriana da Silva Thoma, Gladis Perlin, Liliane Ferrari Giordani, Madalena Klein, Márcia Lise Lunardi, Maura Corcini Lopes, Monika Dusso de Oliveira, Ottmar Teske e Sérgio Lulkin. O NUPPES, junto à FENEIS, à Secretaria de Educação Especial do Estado do Rio Grande do Sul, entre outras instituições representativas, realizaram o III Congresso Latino-americano de Educação Bilingue para Surdos, no qual estiveram reunidas mais de duas mil pessoas, entre surdos e ouvintes.

Nos sumários dos dois livros nos quais estão publicadas as palestras proferidas no evento, estão presentes nomes significativos até hoje na produção de conhecimento sobre educação, cultura e língua surdas. Trata-se de pesquisadores vindos de diferentes partes do mundo, cito alguns deles: Jim Kyle (Inglaterra), Carme Triado (Espanha), Ana Dorziat (Brasil), Paulina Ramirez (Colômbia), Leonardo Peluso (Uruguai), Bárbara Gerner Garcia (Estados Unidos), Regina Maria de Souza (Brasil), Maria Cecília de Góes (Brasil), Monique Franco (Brasil), Maria Pilar Fernandez Viader (Espanha), Ximena Acuña (Chile), Carla Valentina (Brasil), Carlos Sanchez (Venezuela), Kristina Svarthlm (Suécia), Sueli Fernandes (Brasil), Eulália Fernandes (Brasil), Maria Cristina da Cunha Pereira (Brasil), Luis Behares (Argentina), Markku Jokinen (Finlândia), Paula Botelho (Brasil), Lodenir Karnopp (Brasil), Ronice Quadros (Brasil) etc. Lodenir Kanopp, embora sempre muito presente nos trabalhos do NUPPES desde o início, integrou-se ao Núcleo um pouco mais tarde. Em 2006, o GIPES foi criado dando sequência aos trabalhos iniciados pelo já extinto NUPPES. No início do GIPES, eu e Márcia Lunardi-Lazzarin liderávamos o grupo junto ao CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Quando o GIPES começou a ser sediado na UFRGS, Lodenir Karnopp e Madalena Klein passaram a liderá-lo.

Antes do III Congresso, estiveram reunidos em um pré-congresso - organizado pela FENEIS, pela Associação de Surdos de Porto Alegre, pelos pesquisadores do NUPPES, entre outros -, surdos brasileiros e estrangeiros, os quais discutiram e redigiram um documento intitulado A educação que nós surdos queremos. O documento foi entregue ao final de uma caminhada pelas ruas de Porto Alegre [no Rio Grande do Sul] ao Governador do Estado Olívio Dutra. Naquele documento, já sustentados em pesquisas, os surdos reafirmaram a necessidade do reconhecimento da Libras, da convivência entre surdos, da formação de professores de surdos, de legendas nos programas de televisão, e se posicionaram a favor de uma virada radical na forma de entender a surdez, não mais como deficiência ou como uma falta, mas como a presença do olhar.

Os anos 2000 foram de grande expansão nas pesquisas, nas políticas linguísticas e de educação de surdos. Grupos de pesquisa nasceram e se fortaleceram nesse período. Em meio a isso tudo, conquistas surdas foram feitas, pois, em 2002, tiveram reconhecida a Libras como língua nacional brasileira, além disso tiveram a Libras como disciplina nos cursos de formação de professores e na Fonoaudiologia. Toda a expansão das pesquisas no campo dos Estudos Surdos acontecia em paralelo à manutenção das investigações que buscavam conhecimentos novos para minimizar os efeitos da deficiência auditiva na educação e na vida dos deficientes auditivos. Nas escolas, nesse mesmo período, vimos crescer o interesse dos professores em aprender Libras, vimos a luta por escolas bilíngues para surdos, a busca de novas metodologias de ensino de escrita de português para surdos, em fazer contação de histórias em Libras, em promover a construção de currículos surdos etc. Par e passu a todas essas conquistas que partiam do reconhecimento da surdez como elemento de distinção cultural, também se observou o avanço de discursos integracionistas (até o início dos anos 2000) e, depois, inclusivistas (de 2002 em diante). Nunca os discursos e as práticas audistas desapareceram, pelo contrário, se mantiveram, por vezes, em uma zona esmaecida, mas latente no Brasil. Basta observar, ao longo dos anos da RBEE, o quanto se seguiu fazendo pesquisas e publicando sobre o ensino para deficientes auditivos.

Os resultados das pesquisas eram publicados em livros, capítulos e artigos. Os conhecimentos produzidos tanto sustentavam saberes significados a partir de uma perspectiva surda quanto saberes significados nas práticas audistas. Nas publicações dos anos 2000 a 2003, da RBEE, é possível perceber os conhecimentos postos em circulação.

Em 2000, nos diferentes volumes da Revista:

Filosofias educacionais em relação ao surdo: do oralismo à comunicação total ao bilingüismo, de Fernando Capovilla.

A mediação semiótica no processo de alfabetização de surdos, de Fatima Cader, Fátima Ali Abdalah Abdel e Maria Helena Fávero.

Em 2001:

Consciência fonológica: avaliação e intervenção dos distúrbios de escrita em crianças surdas, de Adriana de Souza Batista, Ana Elisa Noronha-Souza, Mariza Ribeiro Feniman e Patricia Pinheiro Crenitte.

Em 2002, nos diferentes volumes da Revista:

Um novo olhar sobre a singularidade: compreendendo a gênese da escrita de aprendizes surdos, de Dóris Anita Freire.

Educação da criança surda: o bilingüismo e o desafio da descontinuidade entre a língua de sinais e a escrita alfabética, de Fernando Capovilla e Alessandra Capovilla.

A visão de profissionais multiplicadores em um programa de capacitação com enfoque bilíngüe, de Tárcia Dias, Cristina Pedroso, Juliana Rocha, Patrícia Rocha, Roberta Cortez, Roberta Nishi e Jenainne de Paula.

Em 2003:

Abordagens comunicativas e os impasses na construção da escrita do português por crianças surdas, de Adriana de Souza Batista e Maria da Piedade Resende da Costa.

Formação de professores de Educação Física que atuam com alunos com necessidades educacionais especiais (deficiência auditiva): uma experiência no Ensino Fundamental da rede pública de Fortaleza, de Aluísio Lopes Wagner de Araújo e Maria Teresa Moreno Valdés.

Aprendizagem totalizante: propicia o aprender de crianças com deficiência visual, de crianças surdas e de crianças sem deficiências sensoriais?, de Elcie Salzano Masini.

Nesses textos destacados, as enunciações da surdez como deficiência e da surdez como experiência cultural se mesclam mostrando como a própria RBEE reagiu à produção de conhecimento que se intensificou naquele período. Os conhecimentos produzidos marcam a necessidade de maior produção sobre a escrita surda, o aprendizado do português e da língua de sinais. Além disso, seguem as discussões acerca das filosofias da educação de surdos -oralismo, comunicação total e bilinguismo. Aliás, até hoje, as filosofias são debatidas e parecem ser insuficientes para sustentar as necessidades do campo educacional e de uma cultura digital.

Com os avanços da pesquisa, o grupo de Lucyenne Vieira-Machado, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), tem mostrado que, em 1879, surdos debatiam metodologias de ensino e discutiam a diversificação das formas de se ensinar os surdos. Também investigam a presença de surdos no Congresso de Milão, ocorrido em 1888, fato até então não tão conhecido pela comunidade acadêmica.

Na mesma linha das pesquisas em História da Educação, destaco as pesquisas realizadas no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), especificamente as pesquisas realizadas no acervo do INES, por Solange Rocha. Ela tem organizado um universo documental que mostra a trajetória do INES e da educação de surdos no Brasil.

Além do exposto, circulando entre as pesquisas no campo da Educação, estão os conhecimentos sobre produção e circulação da cultura surda, desenvolvidos por Lodenir Karnopp, Madalena Klein, Márcia Lise Lunardi-Lazarin e Tatiana Lebedeff. Além das pesquisadoras citadas, junto a elas, vários outros pesquisadores desdobram o tema em distintas frentes de análises. Enfim, sei que cometerei uma injustiça em não citar todos aqueles que contribuem para os avanços do campo, mas não daria conta de citá-los. No entanto, quero marcar que a produção e a circulação dos saberes produzidos sobre a educação de surdos são intensas, principalmente nos últimos dez anos, pois vimos crescer, entre outros atravessamentos, o número de pesquisadores surdos.

Para citar mais um conjunto de pesquisas que tem contribuído com as discussões acerca da surdez, importante mencionar os estudos sobre identidade, comunidade surda, diferença, governamento e governamentalidade, entre outros fortemente inspirados nos estudos foucaultianos e deleuzianos desenvolvidos na UFSM, na UFRGS, na UNISINOS, na UFES, na Universidade de Campinas (UNICAMP), na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), entre outras instituições que acabaram se tornando referências em diferentes estados brasileiros para aqueles que buscam problematizar o tema pelas lentes dos Estudos Foucaultianos.

Resumindo, pois já me estendi muito nessa resposta, organizo os conhecimentos produzidos nos últimos trinta anos nos três eixos propostos por Foucault (2010), são eles: a) o das políticas e das normativas de comportamentos; b) o dos saberes; e, c) o das formas possíveis de ser dos sujeitos. Tais eixos são organizados por Foucault (2010) a partir da compreensão de matriz ou foco de experiência. Witchs (2022), em sua pesquisa, operou com a noção de matriz, transformando a surdez em um foco de experiência sobre o qual diferentes práticas se inscrevem. Os conhecimentos que compõem os dois primeiros eixos (o dos saberes e o das normativas) são bem mais expressivos no Brasil. No entanto, os conhecimentos que giram em torno do terceiro eixo, o das formas de ser dos sujeitos, não são tão expressivos. Witchs (2022) operou com o terceiro eixo trazendo para a discussão a figura do Surdus mundi - aquele sujeito que compartilha de uma forma de ser semelhante em diferentes países. A dificuldade de encontrarmos pesquisas que visualizem formas possíveis de ser dos sujeitos pode significar a dificuldade dos pesquisadores em tensionar o que está posto nas formas de descrever e identificar aqueles com surdez. Acredito que as pesquisas que focam nas experiências da surdez forjadas na cultura digital possam trazer elementos que nos coloquem a pensar constituições outras em meio a youtubers, influenciadores digitais, entre outras formas de expressão digital. Nesse sentido, entre outras pesquisas produzidas nas universidades citadas anteriormente, a pesquisa de Zilio (2020) nos provoca a pensar na geração de surdos não mais tão preocupados em se dizerem surdos, mas, sim, em poderem usar qualquer forma de expressão em suas lives.

Eliana Menezes e Patrícia Graff: Ao considerarmos o ano de criação da RBEE, em 1992, identificamos uma demarcação temporal pré-proposição de políticas de inclusão escolar no Brasil. Sabemos que tais políticas têm provocado mudanças na configuração das práticas escolares e na forma como a sociedade se relaciona com a diferença. Com relação à educação de surdos, que aspectos podem ser problematizados a partir de sua emergência?

Maura Corcini Lopes: Se na primeira resposta eu mostrei os saberes produzidos, bem como os tipos de sujeitos com surdez engendrados nas práticas do final do século XX e nas duas primeiras décadas do século XXI, passo agora a responder sobre os efeitos nas práticas escolares e na forma como a sociedade se relaciona com a diferença pós-políticas de inclusão.

Problematizar o conceito de inclusão nos tempos de hoje é algo perigoso. Digo perigoso porque qualquer crítica que se faça poderá ser lida como desmobilização de pautas muito caras para aqueles e aquelas que lutam por justiça social. Então, tentarei ser didática ao colocar a crítica e ao pontuar as necessidades que temos de reforçar a democracia a partir da construção de uma política para o comum.

No Brasil, simplificando, as políticas de inclusão datam do início dos anos 2000. Antes, tínhamos políticas de integração. Ambas fortemente influenciadas por movimentos internacionais que pautavam a necessidade de reverter históricos de exclusões. Quando me refiro a políticas de inclusão, estou entendendo que essa é uma pauta do Estado brasileiro, ou seja, não é uma pauta de governo. Trata-se de algo mais estrutural e sistêmico, algo com substância mais espessa e capaz de suportar ataques de governos fascistas e contrários a princípios de Estado. Diante do exposto, posso ter governantes que levam adiante a política de Estado - investindo em projetos que visem diminuir as desigualdades -, bem como posso ter governantes que ignorem tais políticas provocando a banalização das vidas daqueles que se veem desrespeitados e alijados de seus direitos básicos.

No Brasil atual, podemos encontrar um exemplo para a diferença de inclusão como política de Estado e inclusão como política de governo. Por termos tido governantes dispostos a criarem políticas de Estado mais sólidas e de defesa da diversidade da população brasileira, é que estamos resistindo a políticas de governo que fomentam a discriminação negativa e a violência. Resumindo, a política de inclusão do Estado brasileiro segue sendo imperativa, mesmo que ameaçada. Lembro aqui das discussões feitas por Wendy Brown (2019), quando a autora chama atenção para as formas de destruição da democracia, tornando-a uma das mais significativas ruínas do neoliberalismo. No Brasil, estamos vivendo o que se diz ser uma tempestade perfeita. Além da racionalidade neoliberal que nos envolve feito peixes no aquário, também sofremos com um governo que atenta contra a democracia, infringindo os direitos humanos.

Quando faço referência aos direitos humanos, estou inserindo a inclusão como um direito. Isso significa que o Estado brasileiro, ao reconhecer que há discriminação e exclusões históricas que precisam ser erradicadas das práticas sociais, passa a investir na construção de ações capazes de reverterem tal quadro. Em uma democracia representativa, a organização política de grupos sociais específicos é condição para que as condições de vida daquele grupo se modifiquem. A organização social faz aparecer a voz daqueles invisibilizados. Porém, aqueles que não são fortes suficientes para se organizarem ou que não possuem número suficiente para impactarem e provocarem ações que os contemplem, ou que não conseguem se organizar e falar por si, seguem não contemplados. Dito de outra maneira, a necessidade básica não atendida somada às condições competitivas dadas pela racionalidade neoliberal acabam gerando lutas de uns contra os outros, pois os atendimentos oriundos das ações de governo tendem a contemplar aqueles que impactam pela organização e pelo número de pessoas atendidas. Os grupos organizados e que vivem determinada condição demandam um nome para que sejam reconhecidos e contemplados pelas ações de governo. O nome dado a esse grupo de pessoas acaba funcionando como uma identidade social e política que inclui uns deixando de fora outros. Nesses processos, vimos se fortalecerem práticas divisórias, pois, em vez de termos um efeito atrativo entre as identidades em jogo, temos um efeito expulsivo e até, dependendo das forças, em tensão, excludente.

Seguindo o raciocínio com o qual finalizei o parágrafo anterior, quando o governamento das práticas de inclusão se dá pelo viés das identidades, corremos um sério risco de colocarmos grupos identitários uns contra os outros. Essa é a crítica difícil de ser feita e que alertei logo no início de minha resposta para vocês. Por isso, sempre repito que, ao fazer a crítica à inclusão, não significa dizer que sou contra ela, mas significa que chamo atenção para o risco de fazermos uma base social fundada em uma engrenagem identitária in/excludente em vez de andarmos na direção da construção de uma política econômica e social fundamentada no princípio político do comum.

Voltando para a pergunta de vocês, a qual foca na inclusão escolar, não é possível pensar a escola sem entender que ela mantém uma relação de imanência com a sociedade. Aqueles que ingressam na escola chegam trazendo consigo os referentes que orientam os grupos que integram. Entre as tarefas que cabem à escola desenvolver, está o acesso ao conhecimento para todos e a promoção do encontro com o outro. Ambas as tarefas exigem orientar cada indivíduo a negociar suas diferenças e seus desejos, permanentemente, com o outro, bem como refletir sobre os limites e as possibilidades quando se vive em sociedade. Nessa linha, a escola está sendo tomada como um espaço plural. Porém, devido aos processos históricos de discriminação negativa e de exclusões, a escola segue sendo para poucos no Brasil. Um exemplo extremo disso é o que vivemos durante e agora no pós-pandemia. Crianças com deficiência e/ou que vivem em condições de vulnerabilidade extrema seguem sendo não atendidas ou minimamente atendidas pela escola.

A política de inclusão, que prima por promover o encontro com qualquer um, demanda da escola mais abertura para as diferenças. Vejam que aqui não usei a palavra “diversidade”, mas, sim, “diferença”. Mesmo que seja uma discussão já feita, talvez valha distinguir diversidade e diferença. Diversidade é o que marca o corpo, é o que pode ser quantificado em censos demográficos, pois são condições visíveis no corpo e na vida da população. A diversidade, devido à sua visibilidade e possibilidade de ser nomeada, pode ser desdobrada em políticas de inclusão. A diferença é aquela que pode ser sentida, experienciada e até entendida, mas não nomeada, visibilizada ou falada. Não há palavras que deem conta da diferença, portanto não há possibilidade de a diferença ser garantida pelas políticas. Assim, quando falamos de políticas de inclusão, estamos falando em políticas de Estado que se mobilizam para corrigir problemas detectados na população.

Voltando à conversa para a inclusão escolar, ao percebermos que crianças e jovens surdos não estão na escola, estratégias são construídas para que estes sejam localizados e matriculados. Também estratégias de formação de professores podem ser mobilizadas para que a inclusão desses alunos seja viabilizada. Entretanto, uma vez garantidos os direitos de estar na escola e de terem respeitadas as condições individuais dos sujeitos, o professor deve ocupar-se do encontro entre a Maria, o João, o Pedro, a Silvia, bem como de suas aprendizagens. Para aqueles que aprendem, importa a experiência do encontro. Essa experiência é sempre tensa, pois trata-se de uma negociação permanente entre formas de vida e de acessar o conhecimento. Para a escola como instituição de Estado que responde às políticas, importa a inclusão, mas, para aqueles que nela estão operando por dentro de suas engrenagens, o que importa é a experiência.

Cada vez mais, devido à pressão dos rankings, das avaliações de larga-escala, do posicionamento dos municípios, do cognitivismo, dos diagnósticos, da precarização das instalações, da competitividade, entre outros atravessamentos, a escola se vê premida em responder a demandas específicas, tendendo a ignorar as condições de todos para acessarem o conhecimento que é disponibilizado. Nesse cenário, ter uma pessoa com deficiência na sala de aula perturba a ordem, pois sua presença radical é desafiadora. Isso significa que ela exige deslocamentos de todos os que participam do contexto, bem como exige fala franca e compromisso ético acordado permanentemente por todos. Quando a escola consegue fazer isso, ela provoca mudanças na sociedade, porém, para que essas mudanças sejam sentidas, é necessário continuidade e investimentos nas escolas, nos professores e nas condições de vida de todos os envolvidos na experiência.

Uma das questões que vocês me fizeram pedia para desdobrar a relação das políticas de inclusão, da diferença na escola e a relação disso tudo com a educação de surdos. Tudo o que escrevi até o momento tem a ver com educação de surdos. Afinal, a diferença não é algo específico dos surdos, viso que ele não é diferente porque é surdo, mas, por ser surdo, é que ele vive a experiência de maneiras distintas. Não sei se me fiz entender, pois é difícil expressar o que estou pensando. O fato é que a surdez não carrega em si a diferença, nem mesmo encerra as possibilidades de ser dos sujeitos. Mais do que a surdez em si, a diferença é o resultado vivo e vibrante das conjugações das experiências. Assim, deve ter algo de surdo na subjetividade daquele que vive a experiência radical da surdez, e isso tudo deve compor a experiência surda.

A experiência da surdez radicaliza-se quando o contexto impõe certas barreiras que ignoram as condições individuais. Por exemplo, a inclusão escolar promovida oficialmente nas escolas parte de um clima desfavorável para o desenvolvimento do aluno surdo. Desfavorável porque todos precisamos de pares para nos reconhecer e nos distinguir na experiência com o outro. Geralmente, surdos são filhos de ouvintes, portanto é na escola que, na maioria das vezes, aquele com surdez se reconhece como surdo e se vê semelhante a alguém. Não temos uma estrutura no Brasil que encaminhe crianças surdas para a convivência com outros surdos antes da entrada na escola. Quando a escola não possui outros surdos para que trocas entre eles e destes com os demais aconteçam, vimos a surdez se impor como problema a ser vencido. É a partir dessa experiência que a subjetividade daqueles com surdez se constitui até que outros acontecimentos aproximem a outros surdos. Resulta, desse encontro, uma infinidade de sentimentos, entre eles o de revolta e o de afastamento daqueles que vivem experiências audistas. Tal afastamento, ao mesmo tempo em que fortalece a cultura e a identidade surda, também carrega a identidade como algo que seleciona as pessoas posicionando-as como amigos e inimigos ou amigos e ouvintes. Dessa maneira, caímos naquilo que me referia anteriormente, nos identitarismos que protegem os integrantes de um grupo pelo afastamento de outros.

Resumindo, pensar as políticas de inclusão não é algo simples, mas é algo necessário em um país com tantas desigualdades como o nosso. Entretanto, faz-se necessário problematizar os limites da inclusão quando nos referimos à especificidade da educação de surdos. Sem dúvida, a inclusão escolar deve acontecer, pois todos devem ir para a escola. Todavia, vale perguntar para qual escola. Para contribuir com essa discussão, penso que a RBEE tem publicado textos interessantes. Igualmente os grupos de pesquisa, cadastrados no CNPq, também podem acrescentar muito nas discussões trazidas para a entrevista.

Eliana Menezes e Patrícia Graff: No atual contexto político, quando visualizamos um movimento que propõe alteração nas políticas de inclusão escolar que podem ser significativas e que indicam posicionamentos contrários às orientações legais já existentes, que efeitos percebes se desdobrando sobre as práticas escolares bilíngues para surdos?

Maura Corcini Lopes: De certa maneira, penso que já respondi essa questão, embora não tenha entrado nas práticas bilíngues para surdos. Avaliando as escolas que temos hoje, é difícil falar de bilinguismo, pois não temos as condições humanas e nem materiais para isso. Mais difícil ainda se partimos de uma realidade de inclusão de surdos em escolas em que a maioria é composta por ouvintes que ignoram os surdos. Tenho visto que algumas escolas querem ensinar Libras para os professores, porém nem mesmo os alunos desenvolveram a língua de sinais, pois estes são privados do encontro com semelhantes.

Estamos em um momento muito delicado para os surdos. Sua educação está em meio a disputas religiosas e partidárias. Não há ganhos com isso. O que estamos vendo é uma divisão da comunidade, alimentada pela mesma política de revolta e de ódio que assistimos no Brasil. A língua de sinais ganhou visibilidade, isso é muito bom, porém isso não resultou em mudanças na qualidade da educação de surdos.

Temos tratado a educação bilíngue como uma superação da educação construída sob bases oralistas e de comunicação total. Não se trata disso; cada vez mais, as discussões vão na linha do uso de muitas formas, muitas metodologias de comunicação para ensinar aos surdos. Vejo isso com bons olhos. Tenho uma orientanda, Virgínia Zilio, investigando práticas de translinguagem na educação de surdos. Tais práticas não são novas, basta ver as publicações do grupo de pesquisa de Lucyenne Vieira Machado. Lógico que, ao dizer isso, não estou defendendo métodos mistos. Trata-se de algo bem mais complexo do que isso. Uma sólida formação e constituição de uma estrutura bilíngue deve ser criada para que as crianças surdas se desenvolvam em língua de sinais. Da mesma maneira, uma forte e sólida formação deve acontecer para os professores surdos e ouvintes, pois não basta dominar a Libras e ser surdo para termos uma escola bilíngue. Na escola, deve haver uma intencionalidade pedagógica que vai em outras direções que não o ensino em si de uma língua ou outra.

Estamos caminhando muito lentamente na direção de uma escola bilíngue. É lamentável que tenhamos tantas pesquisas sobre o tema, mas que, na prática, não tenhamos avançado tanto quanto poderíamos. Complicando ainda mais a situação da escolarização dos surdos no Brasil, temos, como já disse, o uso político da comunidade associada ao descaso com as condições de vida da população. No pós-pandemia, estamos vivendo uma crise sem precedentes, pois nossos alunos voltaram a níveis de desenvolvimento que tínhamos ao final dos anos de 1990. Isso é triste para nós que trabalhamos com a educação. Nos sentimos desacreditados e sem forças de luta, pois os encontros surdos foram, em grande parte, dispersados.

REFERÊNCIAS

Brown, W. (2019). Nas ruínas do neoliberalismo: a ascenção da política antidemocrática no ocidente. Politeia. [ Links ]

Foucault, M. (2010). O governo de si e dos outros (1982-1983). Martins Fontes. [ Links ]

Foucault, M. (2011). Do governo dos vivos: curso do Collège de France, 1979-1980. Achiamé. [ Links ]

Pagni, P. (2017). A deficiência em sua radicalidade ontológica e suas implicações éticas para as políticas de inclusão escolar. Educação e Filosofia, 31(63), 1443-1474. https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.issn.0102-6801.v31n63a2017-08Links ]

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Zilio, V. M. (2020). Digitalidade e educação de surdos: a condição da exposição como possibilidade de uma educação linguística [Dissertação de Mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Faculdade de Educação]. Repositório da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/9255Links ]

Recebido: 05 de Dezembro de 2022; Revisado: 19 de Dezembro de 2022; Aceito: 20 de Dezembro de 2022

Doutora em Educação.

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