1 Introdução
O Brasil viveu um movimento de significativa expansão das taxas de acesso à educação superior nas últimas décadas, possuindo, hoje, o quarto maior sistema do mundo em termos de matrículas, ficando atrás apenas da China, da Índia e dos EUA (UNESCO, 2022). Em 20 anos, o total de matrículas cresceu praticamente quatro vezes (INEP, 2022). Ao mesmo tempo, o país assistiu, a partir dos anos 2000, a implantação de políticas voltadas para a democratização do acesso a grupos sociais historicamente excluídos, tais como o Prouni (Programa Universidade Para Todos), criado em 2004 no âmbito das instituições privadas, e a Lei de Cotas, de 2012, para as instituições públicas federais.
Os processos de expansão e de democratização do acesso à educação superior trazem à tona a temática do protagonismo estudantil na universidade. Isto é, que papel é reservado aos acadêmicos dentro das instituições? Para além de conceber o estudante como cliente e consumidor, entendimento que ganha força em tempos de mercantilização (BROWN; CARASSO, 2013), como pensar seu protagonismo político e crítico na universidade? A preservação da ideia de educação superior como bem público (EAST; STOKES; WALKER, 2014) exige um olhar atento para essas questões.
As instituições comunitárias de educação superior (ICES) conformam um modelo institucional que se constitui pelo sentido que agregam para suas comunidades regionais, de onde provém a maior parte de seus estudantes. A natureza dessas instituições remete às ideias de democracia e participação coletiva (FRANTZ, 2002), o que faz com que, nesse modelo institucional, o tema do protagonismo estudantil ganhe ainda mais relevância.
Diante disso, o artigo visa refletir sobre o protagonismo estudantil na educação superior, em especial no modelo comunitário de universidade. Para tanto, toma como referência a experiência de construção de um documento, denominado Política dos Estudantes, no âmbito da Universidade de Passo Fundo (UPF)1, uma universidade comunitária localizada no estado do Rio Grande do Sul.
Em instituições de caráter público - embora sem fins lucrativos -, como as ICES, os documentos e políticas institucionais demarcam seu lugar e fortalecem a sua existência comunitária, tanto interna como externamente. A construção de uma política estudantil com a participação dos próprios estudantes desafia a universidade para a mobilização de processos coletivos que assegurem aos acadêmicos a sua inserção, desde o planejamento até a implementação do novo documento.
Até então nunca havia sido institucionalizada uma política estudantil na Universidade de Passo Fundo, embora fosse demanda dos acadêmicos há alguns anos. O processo de elaboração da política esteve metodologicamente estruturado em dez eixos: a) criação da Comissão de Construção da Política dos Estudantes; b) processo formativo da comissão; c) convite aos estudantes para participação no processo de construção da política; d) composição de Grupos de Trabalho (GTs) com a participação dos estudantes; e) escrita da minuta da política; f) elaboração gráfica e artística da minuta; g) apresentação do documento em instâncias colegiadas institucionais; h) apresentação da minuta para comunidade externa; i) construção do documento final da política; j) análise e aprovação do documento pelo Conselho Universitário, órgão colegiado superior da universidade.
A Política dos Estudantes, enquanto documento institucional, desenvolve-se a partir de cinco pilares, são eles: protagonismo estudantil, permanência estudantil, indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, pertencimento estudantil e formação crítica. A fim de materializar estes pilares na experiência universitária, o documento apresenta estratégias de implementação e os respectivos envolvidos no processo, articulando a organização estudantil com todas as instâncias universitárias e avançando na perspectiva do planejamento, da realização e da avaliação das ações.
A Política dos Estudantes da Universidade de Passo Fundo foi elaborada no ano de 2021, tornando-se “um documento para chamar de nosso”, como referenciam os estudantes que participaram do processo. Foi construída através de um conjunto de estudantes que protagonizaram o processo, desde a escrita do documento até a sua apresentação em instâncias institucionais. Ao todo, mais de 600 acadêmicos foram implicados na construção, através de Grupos de Trabalho (GTs) que, no contexto de pandemia da Covid-19, foram realizados através da plataforma Google Meet. O processo ocorreu por meio de encontros de discussão ampliados e abertos, conduzidos por estudantes, e capazes de comportar diversidades de origens, realidades e opiniões.
O processo potencializou um outro movimento, de fortalecimento do protagonismo estudantil. A construção da Política dos Estudantes da UPF foi uma possibilidade de vivenciar o protagonismo estudantil como uma experiência de tornar-se sujeito da própria universidade. Institucionalmente, documentos como esse marcam historicamente a instituição e, internamente, exercem força de legislação. Porém, é somente a partir do momento em que os acadêmicos se sentem pertencentes e produzem discursos sobre a vivência, que se torna possível compreender como eles percebem o processo do qual participaram e como percebem seu lugar na universidade.
Para isso, metodologicamente trabalha-se, nesse artigo, com as narrativas de estudantes que participaram do processo de elaboração do documento. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, a qual permite articular sentidos, aspirações, atitudes e valores, bem como apreender realidades que não podem ser reduzidas à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2009). Configura-se como pesquisa de campo, cujos dados foram coletados através de entrevistas realizadas por meio da aplicação de questionário, o qual seguiu um roteiro de perguntas abertas, em que o entrevistado tem a liberdade de responder com suas próprias palavras, sem restrições (GIL, 1987). Tendo em vista os objetivos da pesquisa, o roteiro contemplou questões relacionadas à experiência vivenciada pelo estudante na construção da política; à sua compreensão sobre universidade comunitária e as associações disso com o documento elaborado; e ao entendimento do participante sobre o papel dos estudantes na construção da universidade.
A definição da amostragem foi não probabilística, intencional (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008). Assim, foram convidados dez estudantes matriculados em cursos de graduação ou pós-graduação da UPF - garantindo-se variedade de cursos - e que integraram os Grupos de Trabalho de construção da política. Dentre os dez convidados, oito aceitaram participar da pesquisa, os quais são aqui identificados por letras, de A a H, para fins de preservação do sigilo. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UPF (Parecer 5.258.594) e todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os questionários foram aplicados ao longo do mês de março de 2022 e as respostas foram registradas por escrito pelo próprio participante.
Para sistematização e análise dos dados foi utilizada a análise de práticas discursivas de Spink e Medrado (2000), a partir da qual destacaram-se os eixos: a) O papel dos estudantes: do protagonismo individual ao protagonismo coletivo e b) Voltar-se para a comunidade como marca do protagonismo estudantil.
Assim, o artigo está estruturado em duas partes, além desta introdução e das considerações finais. Primeiramente apresenta-se o arcabouço conceitual e empírico que sustenta o artigo, abordando as universidades comunitárias com foco em suas características históricas e contemporâneas e seu lugar face às políticas públicas de educação superior, bem como a concepção de protagonismo estudantil que embasa a análise. Após, a partir dos dois eixos antes mencionados, são apresentadas as narrativas de estudantes que participaram do processo, bem como a análise e reflexão sobre as mesmas.
2 Universidade comunitária, políticas públicas e protagonismo estudantil
As instituições de educação superior (IES) comunitárias conformam um modelo peculiar no sul do Brasil. Representam o resultado da mobilização de suas comunidades regionais, com o apoio de lideranças e entidades locais, em prol da interiorização da educação superior em um cenário de ausência do poder público estatal (VANNUCCHI, 2013).
De vocação regional, as universidades comunitárias estão organizadas em estruturas multicampi e caracterizam-se pelo compromisso com o desenvolvimento social, econômico e cultural das comunidades nas quais estão inseridas (LONGHI, 1998). Em termos de arcabouço legal, são de propriedade privada, apesar de serem sem fins lucrativos e possuírem finalidades públicas. A base de financiamento das ICES é composta predominantemente por recursos privados, oriundos do pagamento de mensalidades. Sua gestão é colegiada e conta com a participação de representantes da comunidade em instâncias decisórias (FRANTZ, 2002; VANNUCCHI, 2013).
O modelo comunitário regional, aqui enfocado, é formado por instituições de caráter laico, que guardam diferenças em relação às IES comunitárias confessionais, tais como a forma de gestão, a participação da comunidade nas instâncias decisórias, o controle e propriedade do patrimônio e a escolha dos dirigentes (NEVES, 1995; FRANTZ, 2002).
O termo “comunitário” como adjetivo de um modelo de universidade tomou forma e ganhou força em meados da década de 1980, durante o debate constituinte (NEVES, 1995; BITTAR, 2011). O corolário disso foi o reconhecimento das instituições comunitárias no texto constitucional, que incorporou o termo em seu artigo 213, definindo que as escolas comunitárias (ao lado das confessionais e filantrópicas) poderão receber recursos públicos nas áreas de extensão e pesquisa, na medida em que comprovem fins não lucrativos, apliquem seus excedentes em educação e destinem seu patrimônio a congênere ou ao poder público em caso de extinção. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, também faz referência às instituições comunitárias. Recente alteração no texto da lei, em 2019, incluiu as comunitárias como uma categoria administrativa específica, diferenciando-as das instituições públicas e das privadas (BRASIL, 1996).
Ainda no que tange ao marco legal, em 2013 foi aprovada a Lei 12.881/2013, a “lei das comunitárias”. Ao definir as características das ICES, a lei prevê que essas instituições “ofertarão serviços gratuitos à população, proporcionais aos recursos obtidos do poder público, conforme previsto em instrumento específico” e, ainda, que as ICES “institucionalizarão programas permanentes de extensão e ação comunitária voltados à formação e desenvolvimento dos alunos e ao desenvolvimento da sociedade” (BRASIL, 2013). A lei estabelece, ainda, que as ICES contam com prerrogativas como acessar “editais de órgãos governamentais de fomento direcionados às instituições públicas” e “ser alternativa na oferta de serviços públicos nos casos em que não são proporcionados diretamente por entidades públicas estatais” (BRASIL, 2013).
Uma adequada compreensão das ICES, porém, requer sua contextualização no atual quadro da educação superior brasileira. Nesse sentido, nota-se que, a partir das políticas de expansão que abriram espaço para a emergência, consolidação e crescimento de um setor privado mercantil no país, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, as instituições comunitárias passaram a enfrentar um cenário de concorrência nunca antes visto, o qual contribui para uma realidade de crise sem precedentes. O novo contexto pressiona o modelo comunitário e o leva à adoção de novas práticas - muitas delas consideradas “de mercado” - para enxugar custos e sobreviver no ambiente competitivo que se configurou (FIOREZE, 2020; MOROSINI; FRANCO, 2006; SCHMIDT, 2014; BERTOLIN; DALMOLIN, 2014).
É uma conjuntura nova que, embora marcada pela crise, também se caracteriza pela introdução de novas políticas dentro das ICES, com destaque para o Prouni, uma medida não só de expansão, mas também de democratização do acesso à educação superior. Criado em 2004, o Prouni trata da oferta de bolsas de estudos (integrais e parciais de 50%) nos cursos de nível superior oferecidos pelas IES privadas, lucrativas ou sem fins lucrativos (BRASIL, 2005). Na proposta original, que vigorou até o final de 2021, o programa destina-se a estudantes com renda familiar per capita mensal de zero a três salários mínimos, que cursaram o ensino médio em escolas públicas ou em escolas privadas na condição de bolsistas. Na distribuição das bolsas, as instituições devem reservar percentual para estudantes portadores de deficiência e autodeclarados indígenas e negros, na mesma proporção de cidadãos assim autodeclarados no respectivo estado, segundo o último censo. Cabe mencionar que, por meio de Medida Provisória publicada em dezembro de 2021, o governo federal alterou a lei de modo a incluir, dentre os beneficiários do Prouni, estudantes que cursaram o ensino médio em escolas privadas sem a condição de bolsistas. As instituições que aderem ao Prouni devem disponibilizar bolsas em todos os cursos e turnos efetivamente instalados, o que significa que o acesso às graduações mais competitivas e prestigiosas também passa por um processo de democratização. No que toca às instituições filantrópicas - como a maior parte das ICES -, a concessão de bolsas com base nos critérios do Prouni foi compulsória, como forma de aplicação dos recursos referentes à gratuidade.
Outra política nacional que merece destaque, dentre aquelas criadas no escopo do processo de expansão e democratização, está associada à permanência dos estudantes. Em 2010 foi criado o Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), que busca melhorar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal, minimizando os efeitos das desigualdades sociais e regionais e ampliando as chances de conclusão da educação superior (BRASIL, 2010). Por meio desse programa são viabilizados auxílios como moradia e restaurante universitários, bem como bolsas que possibilitam a permanência.
O Pnaes é destinado às IES públicas federais. Muito embora a assistência estudantil figure como estratégia dentro da meta 12 do Plano Nacional de Educação (ALVES; BRITO, 2021), não há investimento por parte do governo federal em políticas desse tipo nas ICES. As instituições comunitárias, então, são desafiadas a construir, com recursos próprios, programas capazes de viabilizar a permanência de seus estudantes, o que se torna complexo no contexto da crise financeira pela qual passam. Assim, na perspectiva de mobilizar programas e ações institucionais em prol da permanência acadêmica, contribuindo com a permanência e a conclusão da educação superior, nasceu a política dos estudantes dentro da UPF, experiência que remete à discussão sobre protagonismo estudantil.
Refletindo sobre o lugar que o conceito de protagonismo estudantil ocupa, cabe retomar que a LDB estabelece, como finalidade da educação, “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Entre os seus princípios estão a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”, a “gestão democrática do ensino público” e a “garantia de padrão de qualidade” (BRASIL, 1996). Segundo a mesma lei, o ensino superior tem por finalidade desenvolver uma formação crítica, articulando o ensino, pesquisa e extensão, de forma a promover processos educativos que possibilitem liberdade de criação e pensamento, bem como desenvolver cada vez mais a compreensão e atuação dos estudantes sobre o meio em que vivem.
A concretização desses preceitos, no cotidiano de uma universidade, demanda a construção de um trabalho coletivo, de cooperação mútua no âmbito da gestão, do planejamento, do desenvolvimento e da avaliação da relação pedagógica no seu sentido mais amplo. A participação ativa dos estudantes é fundamental para esse processo.
Em análise da literatura sobre protagonismo estudantil, o mesmo é por vezes destacado como engajamento estudantil (MIORANDO; LEITE, 2018), como participação estudantil (VOLKWEISS et al., 2019) ou como protagonismo juvenil (COSTA, 2000). A palavra protagonismo é de origem grega. “Proto quer dizer o primeiro, o principal. Agon significa luta. Agonista, lutador. Protagonista, literalmente, quer dizer o lutador principal” (COSTA, 2000, p. 150). O termo pode ser analisado através de distintas realidades, da inserção dos estudantes protagonistas na escola, na comunidade, em movimentos sociais, na universidade, ou outros espaços.
Pensar o conceito na educação superior remete a um dos maiores movimentos estudantis da América Latina, ocorrido em Córdoba, em 1918, que culminou com o lançamento do “Manifesto de Córdoba”, que denunciava o caráter elitista da universidade enquanto instituição (PEREIRA, 2019). Numa perspectiva de universidade crítica, o movimento de 1918 foi um dos mais importantes da América Latina. Diante do reconhecimento da universidade como distante dos estudantes e do povo, demandava uma instituição capaz de se abrir para além dos seus muros e foi responsável pela realização de uma reforma universitária, significando “o triunfo do movimento universitário que se espalhou por toda América Latina e estabeleceu as bases para o funcionamento das universidades do continente” (FREITAS NETO, 2011, p. 67).
Os estudantes de Córdoba, ao reivindicarem uma universidade aberta ao povo e na qual pudessem ser atuantes desde o lugar das decisões institucionais, até a relação com os docentes, tornaram-se sujeitos de uma mobilização de formas de construir mais próximas do povo (FREITAS NETO, 2011; PEREIRA, 2019).
Numa perspectiva nacional, cabe destacar a importância do movimento estudantil brasileiro como expressão do protagonismo juvenil, cuja trajetória é marcada por contradições, mas também por um conquistas e contribuições para o processo de democratização da sociedade e, também, do próprio sistema de educação superior, historicamente elitista (LACERDA, 2019; ARAUJO, 2007). Azevedo, Braggio e Catani (2018, p. 42), discutindo a influência da experiência de Córdoba no Brasil, afirmam que o nível de organização alcançado pelo movimento estudantil argentino “impressionou os estudantes brasileiros, que se inspiraram para lutar pela fundação de instituições universitárias, desde o final da década de 1920”, criando a UNE em 1938 e, nos anos 1960, articulando forças em prol da reforma democrática da universidade. Também a partir de uma perspectiva histórica, Bittar e Bittar (2014) destacam o importante papel desempenhado pelo movimento estudantil brasileiro em momentos decisivos da história do país, como o enfrentamento à ditadura militar e o processo de redemocratização, e sublinham sua contribuição na construção de políticas voltadas à democratização da universidade brasileira.
Mesquita (2003), em sua pesquisa, demonstra o quanto o movimento estudantil vai se transformando ao longo do tempo, postulando, no período mais recente, uma participação estudantil mais direta e democrática, autônoma e horizontal. Concordando com Boutin e Flach (2021), assume-se que o processo de mobilização e organização é em si um ato educativo. A partir disso, depreende-se o potencial transformador que o movimento estudantil possui. Isto é, quando os estudantes se movimentam coletivamente e assumem seu protagonismo, podem vivenciar experiências que os permitem transcender o cotidiano imediato, o que possibilita a mobilização em direção a um novo modo de vida, perpassado pela justiça social, pela igualdade e pela liberdade (BOUTIN; FLACH, 2021).
Nessa perspectiva, cabe evocar a reflexão de Hooks (2020). Através de sua experiência como docente, a autora observa que, quando os estudantes chegam na universidade, “eles têm pavor de pensar” (p. 32). Argumenta que existe uma cultura educacional que, por vezes, coloca o estudante como alguém que deve receber um conhecimento pronto, sem a necessidade de discordar deste saber, de problematizá-lo, mas, sim, com a mera função de memorizar ou decorar determinado conteúdo. Na contramão dessa tendência, Hooks destaca que “pensar é uma ação [...] pensamentos são laboratórios onde se vai para formular perguntas e encontrar respostas, o lugar onde se unem visões de teoria e prática. O cerne do pensamento crítico é o anseio por saber - por compreender o funcionamento da vida” (p. 31). Este pensamento precisa encontrar espaços para ser proferido, para ser expresso. Destaca, assim, que “não podemos entrar na luta como objetos para depois sermos sujeitos. Falar, ser capaz de nomear, era uma forma de reclamar para si a posição de sujeitos” (p. 83).
Os movimentos de organização dos estudantes, atravessados pela busca de uma cultura educacional que valorize o pensamento e a criticidade, bem como pela construção de uma sociedade radicalmente democrática, jogam luzes no tema do protagonismo estudantil como uma organização desde a coletividade. Coletividade essa que evoca uma ideia de protagonismo que não compactua com a perspectiva posta pelo sistema neoliberal, que supervaloriza a individualidade como forma de alcançar uma vida melhor e concebe o estudante como mero cliente de serviços oferecidos e comprados no mercado. Assim, a concepção de protagonismo estudantil que embasa a discussão do artigo, especialmente através da construção da Política dos Estudantes da UPF, está atravessada pela ideia de participação ativa nos processos, a qual tem potencial para transformar os estudantes em sujeitos de construção de sua realidade e, nesse caso, como sujeitos que constroem a universidade e a própria sociedade.
3 A construção de “um documento para chamar de nosso”: a palavra dos estudantes
A experiência de construção de uma política que reconfigurasse o papel institucional dos estudantes e, ao mesmo tempo, lhes apontasse perspectivas de garantias de direitos, foi um importante movimento da Universidade de Passo Fundo. A escolha de como esse processo viria a realizar-se, bem como seu percurso metodológico, pautou-se em um movimento fora dos gabinetes ou salas fechadas, realizado de maneira aberta, em espaços de debates ampliados, em que se procurou contemplar a diversidade de perfis de estudantes que a UPF cada vez mais abriga.
Conhecer como os estudantes que participaram do processo percebem esse processo é fundamental para que se compreenda o lugar dos acadêmicos na universidade, pois uma instituição se faz pelos documentos que a edificam, mas igualmente pelos discursos que são produzidos sobre eles. Assim, a experiência de construção da Política dos Estudantes torna-se importante referência para analisar o tema do protagonismo estudantil.
Ao se trabalhar com o mapa de associação de ideias, proposto por Spink e Lima (2000, p. 63), o que interessa vai além dos conteúdos das narrativas. “Para fazer aflorar os sentidos, precisamos entender, também, o uso feito desses conteúdos”. Assim, o mapa de associação de ideias gerou os eixos de análise que estruturam os itens a seguir.
a) O papel dos estudantes: do protagonismo individual ao protagonismo coletivo
Costuma-se pensar os estudantes dentro de uma lógica institucional cujo papel é endereçado à sala de aula. Sabe-se que uma universidade se constrói a partir de uma dinâmica de forças entre seus segmentos em que pese os interesses de cada um desses. Imaginar o estudante como um mero usuário dos serviços da instituição (ou cliente, em tempos de mercantilização da educação superior), sejam eles com caráter de ensino, pesquisa ou extensão, é privá-los de um papel protagonista dentro da universidade; ao mesmo tempo, também é privar a própria instituição de experimentar uma dinâmica porosa de circulação de ideias e possibilidades outras no processo de ensino-aprendizagem, bem como de circulação de pautas e demandas que visem o recrudescimento da autonomia universitária.
A potência da postura dos estudantes fora da sala de aula fica explícita na fala de uma das entrevistadas, quando diz:
O papel dos estudantes na construção da universidade é exercer as atividades de forma ativa, indo além dos conteúdos abordados, ultrapassando a sala de aula. Ao integrar-se a outras questões que ocorrem na universidade, é possível contribuir para uma organização universitária que esteja alinhada com os objetivos e necessidades dos estudantes. (Estudante A).
Isso demonstra que a participação dos estudantes de forma protagonista na instituição é um desejo. Isto é, o corpo discente da instituição deseja fazer parte dos processos de decisão institucional que, não raras vezes, são decisões acerca de seu próprio futuro, direta ou indiretamente. Por isso, a construção de uma política dos estudantes exerce papel fundamental nesse processo pois, ao mesmo tempo que deixa claro o desejo dos estudantes de comporem os espaços de decisão institucional e de apresentarem pautas pertinentes para tanto, também lhes dá perspectivas da possibilidade de colocar em prática esse desejo por meio das instâncias colegiadas da instituição. Nesse sentido, uma estudante que participou ativamente do processo relata o seguinte:
Como aluna que fez parte das comissões que coordenaram todo este processo, destaco que ele vem para alterar alguns paradigmas criados há muitos anos em grande parte das universidades do Brasil, um deles o de que o estudante não quer estar ao lado da administração universitária para construir e discutir questões que importam em uma vivência universitária integral. No caso da Política dos Estudantes, nós (estudantes) atuamos como protagonistas, desde a escrita da minuta inicial, até a apresentação perante ao Conselho Universitário (CONSUN). (Estudante H).
A importância da sala de aula é inquestionável na formação do acadêmico. Mas quando se almeja um processo formativo que pretenda situar o estudante, crítica e autonomamente, na sociedade e no mundo do trabalho, é essencial que ele experimente o cotidiano universitário para além da sala de aula, daí a necessidade de participação na pesquisa, na extensão, nos espaços de representação estudantil, nas instâncias colegiadas da instituição, dentre outros. Assim, ir além dos conteúdos, ultrapassando a sala de aula, como manifestam os entrevistados, pode ser entendido como contraponto à cultura educacional mencionada por Hooks (2020), que coloca o estudante como alguém passivo diante do conhecimento pronto; pode ser entendido como a ação de pensar, de formular perguntas, de ocupar a posição de sujeito, como propõe a autora.
No caso das instituições comunitárias, cuja natureza pública - muito embora sejam instituições de direito privado - se expressa por seu caráter democrático e participativo, o estímulo a um papel protagonista por parte da comunidade acadêmica é ainda mais relevante, colocando-se como condição para a materialização do modelo institucional comunitário como tal, bem como para sua preservação e diferenciação face ao avanço dos processos de mercantilização da educação superior.
Ao discutir o papel dos estudantes, um ponto recorrente nos discursos dos entrevistados pode ser associado com a lógica de construção de espaços e dinâmicas coletivas de organização. A organização socioeconômica atual conduz, a partir da experiência pessoal e do contexto de vida que os sujeitos trazem consigo, à conservação de posturas individuais diante de determinados assuntos. Porém, quando as trajetórias individuais se reúnem e passam a falar sobre suas fragilidades e potencialidades, emerge um sem-número de pontos em comum de cada uma das trajetórias, fornecendo às mesmas um caráter coletivo, o que, consequentemente, pede providências da mesma ordem, coadunando assim com a reflexão de Boutin e Flach (2021) sobre a capacidade de transcender o imediato que é possibilitada ao estudante quando de sua participação na mobilização estudantil.
A experiência de construção da política dos estudantes mostrou o potencial do trabalho coletivo, que foi capaz de construir um documento de envergadura institucional e, mais que isso, sustentá-lo a partir de narrativas que consideram esse modo de organização. A fala de outra entrevistada, que destaca sua experiência na construção da política, chama atenção para esse ponto:
Em um sentido coletivo, a política do estudante demarca um início de ciclo, onde através do efeito multiplicador, os alunos passam a ter um papel protagonista dentro da universidade e através das concepções da política, a ter vez e voz em processos decisórios referentes à permanência estudantil, indissociabilidade real entre ensino, pesquisa e extensão, e através disso adquirirem o sentimento de pertencimento à universidade. (Estudante B).
O deslocamento de reivindicações individuais para o âmbito coletivo modifica também a dinâmica de poder em que os estudantes estão inseridos; faz com que, por exemplo, o sonho antigo de outros estudantes se concretize neste momento em uma política institucional, devido ao seu movimento do âmbito individual para o coletivo. Isso dá corpo a “um documento para chamar de nosso”, como disse um dos estudantes que participou do processo.
b) Voltar-se para a comunidade como marca do protagonismo estudantil
Os dados evidenciam também o deslizar de uma posição institucionalizada, que vê a universidade de maneira endógena, com dificuldade para deslocar-se da sala de aula para outros territórios, bem como de se perceber para além das margens que circundam seus limites geográficos. A cartografia onde está inserida uma universidade vinculada ao seu território nunca conseguirá localizar com precisão absoluta onde ‘está’ a universidade, pois ela se encontra em toda cidade, região e nos múltiplos territórios onde os sujeitos que com ela estabelecem algum vínculo também se encontram.
Essa compreensão é nítida nos discursos dos estudantes e os conduziu à construção de uma política que levasse em consideração os interesses da comunidade onde estão inseridos, o que também revela seu reconhecimento sobre a natureza da instituição comunitária. Observa-se, nas falas sobre a política construída, a capacidade de avaliar e buscar corrigir - naquilo que seja possível - os hiatos de desigualdade que separam corpos, etnias, gêneros e muitos outros sujeitos da universidade, demonstrando com isso um compromisso dos estudantes com a realidade social que os circunda. Fica nítido, em consonância com as finalidades dispostas na LDB (BRASIL, 1996), que a educação superior pode produzir crítica social por outras vias.
Não à toa, esse foi o ponto que mais se destacou na fala dos estudantes - ao menos cinco deles falaram diretamente sobre a relação da universidade com a comunidade. A vinculação dos estudantes com o modelo comunitário de instituição e de produção de conhecimento demonstra que eles esperam que a universidade desempenhe cada vez mais um papel próximo das comunidades, levando em consideração os múltiplos territórios e sujeitos que as compõem. A fala abaixo ilustra o interesse dos estudantes em construir uma universidade comunitária no sentido mais amplo que esse termo possa vir a tomar.
A universidade comunitária é um local onde todas as suas ações devem ser voltadas à comunidade. Um grande elo que fixa esta concepção, se dá a partir da própria construção [da Política dos Estudantes], onde segmentos sociais estiveram ativamente debatendo em conjunto com os estudantes, sobre todas as concepções e estratégias de implementação (Estudante B).
No processo de construção da política, os estudantes buscaram envolver as comunidades às quais pertencem, levando seu documento para debate, testemunhando, assim, uma forma de construir política que considera os sujeitos que serão seus usuários. A escuta da comunidade reverberou nos estudantes como uma escuta de si, afinal, eles também estão territorializados em bairros, comunidades, municípios da região, etcetera; isso fez com que contrastes fossem colocados em evidência, reposicionando os estudantes dentro da instituição, agora como sujeitos de um território e de uma cultura que possui saberes e concepções de mundo que não podem e nem devem estar excluídos do processo de produção do conhecimento acadêmico. Nos dizeres de um entrevistado, a construção da política:
buscou uma ampla participação da comunidade e dos estudantes, para reconhecer as principais demandas necessárias a melhorar o ensino da universidade. Participando do processo, os acadêmicos puderam enxergar-se dentro da UPF e conseguiram protagonizar o ensino (Estudante E).
Trata-se de um movimento que pode apontar críticas à tendência, própria de contextos de competição mercantil, de tão somente atender a demandas do mercado de trabalho. No âmbito das ICES, tal tendência acaba por afastá-las de sua natureza pública. A fala que segue representa bem essa questão:
Entendo por universidade comunitária uma universidade que nasce da, e funciona para a comunidade. Diferentemente de instituições de ensino que vendem educação, o processo de construção de conhecimento de uma universidade comunitária é visando a lógica de formar pessoas para que possa construir junto de quem está fora da universidade, esperando que essas também componham e estejam presentes nesse espaço (Estudante G).
Diante disso, pode-se refletir que os processos formativos, no modelo comunitário, têm a transformação no horizonte e tomam a comunidade como uma parceira nesse processo, empregando-lhe também um papel de protagonista. Nesse sentido, a vinculação que os estudantes procuraram estabelecer com a comunidade através da construção da política é um respirar a partir do fôlego dos estudantes cordobeses de 1918. Sua palavra nesta política representa a de muitos que não tiveram a oportunidade de acessar uma universidade e daqueles que, por diversas condições, circunstanciais ou não, temem perder o acesso que conquistaram, o que demarca o ideário transclassista que perpassa o movimento estudantil (MESQUITA, 2003).
Falar e sentir muitas vezes se confundem; e talvez essa seja uma boa forma de dar contorno a uma tentativa de descrever a construção da política a partir da palavra dos estudantes. Pode-se perceber isso quando um deles diz:
Sinto uma aproximação com desejo, algo que circula que não é para ajudar, ou fazer caridade, ou somente para aprendizado, mas uma troca mútua entre comunidade e universidade, afinal, a universidade não é também a comunidade? (Estudante A).
O conceito de protagonismo estudantil a partir do manifesto de Córdoba (FREITAS NETO, 2011; PEREIRA, 2019), bem como destacado por bell hooks (HOOKS, 2020) através da importância da expressão do pensamento dos estudantes, remete à análise de que, no processo de construção da Política dos Estudantes, há uma efetivação do que os estudantes em 1918 chamavam de uma aproximação com a comunidade. Isso não significa somente aproximação aos territórios com projetos de pesquisa e extensão, mas também uma aproximação democrática da instituição, com o estabelecimento de canais de diálogo horizontal, o que representa um grande desafio.
4 Considerações finais
Uma universidade comunitária se constrói a partir de uma dinâmica de circulação de interesses que levam em consideração o desejo de todos os segmentos que a compõem, entendendo como legítimas suas reivindicações e dinamizando constantemente seus papéis no processo formativo. Nesse sentido, uma política dos estudantes mobiliza e desafia formas institucionalizadas de perceber os estudantes, assim como o alcance de seu papel dentro da universidade.
A Política dos Estudantes da UPF é um documento que contempla as palavras e desejos dos mesmos, no contexto de uma instituição comunitária, caracterizada pelo tensionamento entre público e privado num cenário de acirramento da concorrência mercantil. O protagonismo revelado a partir da condução dos estudantes, desde o início do processo até a aprovação final da política, é uma demonstração de como sua capacidade de organização e a qualidade de suas reivindicações têm força suficiente para levar a universidade a aproximar-se cada vez mais de sua natureza, princípios e missão públicos.
A experiência de construção do documento também foi uma vivência de construção do papel dos estudantes, o qual foi se deslocando dentro do processo. Da mesma forma, também os entendimentos a respeito de universidade, comunidade e das relações entre ambas, deslizaram para lugares não percebidos de antemão, ou pelo menos não da forma cuidadosa e potente com que foi colocada pelos acadêmicos.
O processo revelou a transformação de uma posição individual para coletiva, bem como de uma posição endógena, presa aos muros institucionais, para aquela capaz de perceber e integrar-se à comunidade em sua volta, corroborando o entendimento de que a participação no movimento é, em si, ato educativo. O desencadeamento de um processo participativo, como o aqui analisado, gera variáveis que não podem ser dimensionadas, uma vez que seus efeitos se ramificam por toda a instituição e mesmo fora dela. Uma vez que o documento incide diretamente na formação dos estudantes, ele permeia a ação pedagógica, a assistência estudantil e se refletirá de maneira inequívoca na ação dos futuros profissionais formados a partir de suas concepções.