Introdução
Nas últimas décadas, governos de diversos países têm envidado esforços a fim de aumentar o acesso à educação superior, tornando a massificação (ALTBACH, 2016) (BALBACHEVSKY; SAMPAIO, 2017) e a ampliação das taxas de atendimento nesse nível em tendências globais (UNESCO, 2009). No ano de 2010, existiam aproximadamente 150 milhões de matrículas na educação superior do mundo todo. Há estimativas que indicam que no ano de 2025 serão aproximadamente 250 milhões de estudantes. No âmbito dos países em desenvolvimento, a expansão da educação superior tem sido ainda mais significativa. Na primeira década deste século, por exemplo, o crescimento das matrículas na China, Brasil e Índia foi, em média, três vezes maior que a média mundial (MORCHE, 2012). Não obstante tal crescimento, alguns sistemas de educação superior ainda apresentam graves problemas de iniquidades.
No caso específico do Brasil, o ingresso de estudantes provenientes dos meios populares6 aumentou especialmente por meio de cursos de instituições privadas. No ano de 2000, eram 6,5 mil cursos privados e, em 2015, 22,7 mil, ou seja, um crescimento em números absolutos superior a 16 mil novos cursos. No mesmo período, no âmbito das instituições estatais federais, a criação de novos cursos presenciais de graduação foi de apenas 4 mil. No ano de 2015, mais de três quartos dos estudantes estavam matriculados em instituições privadas (BRASIL, 2017).
O problema é que no Brasil as instituições estatais, que não cobram mensalidades, são consideradas mais qualificadas, assim os estudantes mais preparados, geralmente aqueles com capital cultural e background mais elevados, buscam acessar cursos com status social nessas instituições, enquanto, por outro lado, os menos preparados, principalmente os provenientes de meios populares, tendem a ingressar em cursos menos disputados nas instituições privadas com fins lucrativos, que cobram mensalidades (BERTOLIN, 2014). Desta forma, na prática, para parcela significativa dos estudantes provenientes de meios populares o acesso à educação superior restringe-se a cursos de graduação pouco disputados em instituições consideradas menos qualificadas.
Entretanto, no contexto de desafios políticos, econômicos e sociais, para além do aspecto quantitativo do acesso à educação superior, a melhoria da qualidade e da aprendizagem é fundamental. Destacados intelectuais têm alertado para a relevância da formação integral para a ampliação da justiça social e o fortalecimento das democracias (NUSSBAUM, 2010), bem como trabalhos recentes têm demonstrado a importância da qualidade da educação para o crescimento econômico dos países e regiões (HANUSHEK; WÖßMANN, 2007). Segundo Schendel e McCowan (2015), o equívoco de ampliar a quantidade sem a devida atenção para a qualidade já ocorreu em processos de ampliação da educação básica e que, portanto, no âmbito da educação superior, faz-se necessário dar atenção à qualidade e a formação com vistas a garantir que as organizações acadêmicas contribuam mais do que com mera emissão de diplomas.
Assim, não basta que os jovens acessem a educação superior, é preciso que as instituições e os cursos de graduação proporcionem desenvolvimento e aprendizagem adequada (DIAS et al., 2011). Entretanto, como alertaram MacBeath e Mortimore (2001), ao chegarmos ao século XXI, ao mesmo tempo em que desenvolvemos uma ciência sofisticada e uma tecnologia espetacular, tais como a inteligência artificial e a nanotecnologia, ainda não sabemos exatamente como educar da melhor forma a todos.
Desde que, em meados dos anos 1960, Bourdieu (1966) formulou a teoria do capital cultural e revelou o caráter reprodutivista das escolas e que o Coleman Study evidenciou a importância do background dos estudantes, diversas e variadas investigações têm procurado compreender as condicionantes da aprendizagem e desempenho dos estudantes. Não obstante, depois de décadas, ainda restam muitas dúvidas tanto em nível de educação básica como de educação superior.
Nesse contexto, de demanda por acesso e qualidade, a situação dos graduandos brasileiros provenientes de contextos socioeconômicos desfavorecidos, ou seja, dos jovens dos meios populares, é crítica, visto que, na grande maioria, trata-se de estudantes que frequentaram escolas estatais na educação básica com problemas, que, provavelmente, experimentaram na infância e na adolescência alguma restrição de acesso à cultural e, até mesmo, falta de serviços básicos de saúde.
Publicação recente da subárea da neurociência evidenciou que viver na pobreza coloca em risco o desenvolvimento do cérebro das crianças. De acordo com o estudo, a associação entre renda familiar e volume é verificada em várias partes do cérebro, mas é mais pronunciada nos centros que governam a linguagem e o controle de impulsos. Em idade mais avançada, como a adequada para frequentar a educação superior, tais indivíduos terão desvantagem nos testes, mais dificuldade de intelecção de textos, de concentração e de autocontrole (NOBLE, 2015).
Não obstante o reconhecimento das poderosas implicações de limitações socioeconômicas que não auxiliam em trajetórias escolares, neste trabalho, procuramos prospectar cursos que atendem preponderantemente estudantes de meios populares e obtêm desempenho além do esperado em exames. Dessa forma, objetiva-se verificar a possibilidade de cursos de graduação poderem, em alguma medida, compensar dificuldades decorrentes do capital cultural e do background dos estudantes. Investigações dessa natureza, em contextos como o brasileiro, podem contribuir na elaboração de políticas de educação superior que reduzam as inequidades existentes nos sistemas.
Os fatores condicionantes do desempenho dos estudantes
Na década de 1960, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, ao propor um novo modo de interpretação da escola e da educação, definiu o conceito de capital cultural com base em evidências da forte relação entre desempenho escolar e a origem socioeconômica e cultural dos estudantes. Tomando por base a frustração dos jovens de classe média e dos meios populares de falsas promessas dos sistemas de ensino, bem como pesquisas quantitativas que começavam a indicar significativas relações entre a origem social e os destinos escolares, Bourdieu argumentou que existem importantes elementos constitutivos do acúmulo cultural que é transmitido através da educação informal, especialmente no espaço familiar. Assim, afirmou o autor, há um:
[...] sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar. A herança cultural, que difere, sob os dois aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e, consequentemente, pelas taxas de êxito (BOURDIEU, 1966, p. 326).
Paralelamente a tal reflexão de sociologia da educação, dois estudos encomendados por governos tornaram-se precursores da emergência da pesquisa sobre a relação entre o desempenho e o contexto socioeconômico e cultural dos estudantes: o Coleman Study, nos Estados Unidos, e o The Plowden Report, na Inglaterra. O Coleman Study, publicado em 1966, transformou-se em um marco da pesquisa sociológica, derrubando mitos e alterando o curso da pesquisa acerca de fatores determinantes da educação.
Redigido com base em uma grande pesquisa survey, realizada com aproximadamente 640 mil alunos e quatro mil escolas, tal relatório foi encomendado por exigência da Lei dos Direitos Civis, que pressupunha significativa desigualdade qualitativa entre as escolas de negros e brancos e entre as escolas do Norte e do Sul dos Estados Unidos. Na época, acreditava-se que os insumos das escolas (equipamentos e outras condições de funcionamento) eram os principais fatores condicionantes do desempenho dos estudantes. Entretanto, os resultados divulgados da pesquisa surpreenderam, visto que demonstraram que outra variável era mais importante: o background, ou seja, o contexto familiar, social, econômico e cultural dos estudantes (COLEMAN et al., 1966).
Outros estudos acerca da relação background e desempenho foram realizados na Europa, como, por exemplo, o The Plowden Report, elaborado em 1967 pelo Central Advisory Council for Education da Inglaterra. Tal relatório também evidenciou que a escola tem um impacto menor na explicação do desempenho dos estudantes comparativamente às condições socioeconômicas. Os resultados apresentados após levantamento realizado junto a mais de cem escolas de ensino fundamental da Inglaterra indicaram que a porcentagem da variação em desempenho que podia ser explicada pelas condições do background dos estudantes era de quase 50%, enquanto que os fatores que descreviam as condições das escolas explicavam pouco menos de 20% (DEPARTMENT...; PLOWDEN, 1967).
Esses estudos pioneiros subsidiaram discussões sociológicas amplas sobre o efeito do meio social nos percursos escolares, bem como fomentaram investigações sobre eficácia escolar que trataram os fatores associados ao desempenho dos estudantes com base em dois principais grupos: (i) efeito escola e (ii) background. A discussão central ficou relacionada ao poder de impacto de cada grupo e dos respectivos fatores condicionantes na performance. O efeito escola considera os atributos relacionados ao ambiente escolar, tais como infraestrutura física, recursos e ferramentas educacionais, projeto pedagógico, gestão e corpo docente, o que, no âmbito da educação superior, está relacionado aos atributos de qualidade dos cursos de graduação. O background, por sua vez, inclui, fundamentalmente, o contexto familiar, social e econômico dos estudantes, que também pode ser entendido como condicionante do capital cultural dos mesmos.
Nas últimas décadas a pesquisa baseada em métodos quantitativos acerca desses fatores condicionantes do desempenho saiu da quase completa insignificância para o centro das atenções das investigações educacionais. Desde a ideia inicial, provavelmente uma interpretação um tanto radical dos estudos Coleman e Plowden, de que a escola não faz a diferença, até os dias atuais, muitas outras linhas de investigação e interpretação foram desenvolvidas, com importantes contribuições e avanços observados em diferentes países, especialmente em países desenvolvidos como, por exemplo, Estados Unidos, Reino Unido, Holanda e Austrália.
Nessa trajetória, um conjunto significativo de estudos buscou demonstrar que, de alguma forma, a escola pode influenciar no desempenho (BROOKOVER et al., 1979; MORTIMORE, 1997), que existem características que podem tornar uma escola mais eficaz (MACGILCHRIST; REED; MYERS, 2004) e, inclusive, que a escola pode contribuir em contextos exclusivamente de atendimento a estudantes de meios populares (EDMONDS, 1979). Atualmente, a opinião de que a escola da educação básica não importa está praticamente ultrapassada e existe uma ideia generalizada, em nível internacional, de que, apesar do background ser o principal fator condicionante, a escola pode fazer a diferença (SAMMON; HILLMAN; MORTIMORE, 1995), impactar positivamente o desenvolvimento das crianças, agregar valor e que, por conseguinte, um importante desafio das políticas educativas é melhorar de forma generalizada todas as escolas (REYNOLDS et al., 2000).
No âmbito da educação superior, os estudos acerca de fatores condicionantes do desempenho dos estudantes foram menos frequentes do que na educação básica. Não obstante, atualmente existe uma quantidade considerável de trabalhos que abordam a relação entre background e desempenho dos graduandos (PARK; KERR, 1990; ANDERSON; BENJAMIN; FUSS, 1994; SMITH; NAYLOR, 2001), bem como a relação entre aspectos dos cursos de graduação e seus atributos, tais como formação docente e qualidade de ensino, e a performance dos estudantes (BEEKHOVEN; DE JONG; VAN HOUT, 2003; BRUINSMA, 2003). Nos Estados Unidos, por exemplo, o desempenho dos graduandos e seus condicionantes vêm sendo analisados por meio do Grade Point Average - GPA (BETTS; MORRELL, 1999; COHN et al., 2004). Em geral, esses estudos coadunam com as pesquisas da educação básica, ou seja, eles indicam que o background é o principal fator condicionante do desempenho, mas que aspectos e atributos dos cursos também podem influenciar nas notas obtidas pelos estudantes.
Em países em desenvolvimento, tais estudos são incipientes. Nesses contextos existem especificidades sociais e problemas educacionais, tais como atraso no processo de universalização da educação básica e grande desigualdade econômica, que podem impactar significativamente o background e o desempenho dos estudantes na educação superior. No Brasil, além de estudos qualitativos (MASSI; VILLANI, 2015), com a construção de grandes bases de dados sobre avaliações de larga escala como o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), trabalhos acerca de fatores condicionantes do desempenho de graduandos começaram a surgir nos últimos anos (BERTOLIN; MARCON, 2015).
Assim, investigações acerca dos resultados do Enade em nível de curso e a respeito dos fatores condicionantes ou atributos de qualidade do desempenho de estudantes podem contribuir na construção do conhecimento sobre os jovens oriundos de meios populares e a equidade dos sistemas educacionais.
O capital cultural, o background e o desempenho dos estudantes no Enade
Desde o ano de 1996, com o Exame Nacional de Cursos - ENC, conhecido também como Provão, os estudantes de graduação do Brasil são avaliados por meio de testes padronizados aplicados em escala nacional. Em 2004, com a implementação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Sinaes, o ENC foi substituído pela Enade.
O exame Enade é um instrumento que avalia o desempenho dos estudantes dos cursos de graduação por meio da aplicação de um exame com perguntas divididas em dois componentes: (i) componente específico, que aborda conteúdo de cada carreira / profissão e (ii) formação geral, que aborda conhecimentos gerais e temas exteriores ao âmbito específico da profissão a ser exercida pelo graduando. As questões do componente de formação geral, que são as mesmas para todos os cursos, representam 25% da nota final do estudante, e as questões do componente específico, relacionadas ao conteúdo de cada carreira, representam 75%.
Não obstante a alternância de carreiras participantes em cada edição (visto que os cursos participam uma vez a cada três anos), no ano de 2014, quase 500 mil estudantes que estavam concluindo seus cursos participaram do exame, dentro de um universo, naquele momento, de mais de 7 milhões de matrículas em todo o sistema nacional. Além do exame, o Enade também tem dois questionários, um para os estudantes e outro para os coordenadores de curso. O questionário dos estudantes contém questões diversas acerca da condição socioeconômica e cultural dos mesmos e das impressões qualitativas dos cursos frequentados. Aspectos relativos a cor da pele, condições de vida, renda familiar, condições de estudo, a educação básica cursada e o nível de formação dos pais, bem como opiniões subjetivas a respeito da infraestrutura (laboratórios e biblioteca) e a qualidade dos cursos, são abordados em mais de cinquenta questões. As análises das respostas registradas pelos estudantes no questionário socioeconômico permitem inferir o capital cultural e o background dos mesmos e a percepção de qualidade que eles têm dos seus cursos.
O desempenho e as notas obtidas pelos estudantes geram importantes conceitos que são utilizados na regulação do sistema e como indicadores de qualidade das instituições e cursos. Um dos índices calculados a partir do Enade é o Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD), que avalia conceito análogo às ideias de valor agregado e de efeito escola. Por meio do uso de métodos estatísticos7, que procuram isolar os efeitos de diferenças prévias de background entre os estudantes, o IDD demonstra quanto cada curso se destaca da média, podendo ficar acima ou abaixo do que seria esperado para ele. O conceito IDD dos cursos varia de 1 (um), o mais baixo, até 5 (cinco), o mais alto.
As análises estatísticas das notas obtidas pelos estudantes nas diversas edições do Enade têm demonstrado, sob distintas perspectivas, que os estudantes provenientes de contextos socioeconômicos mais elevados tendem a obter notas mais altas, independentemente de áreas do conhecimento e do tipo de instituição (SOUZA, 2008; SILVA, 2011; SANTOS, 2012). De fato, a realização de cálculos a respeito dos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep – da edição 2015 evidencia que, quase como uma regra, a média geral dos concluintes na nota do conteúdo de formação geral aumenta conforme a renda mensal da família também aumenta (Tabela 1), conforme o grau de escolaridade da mãe do concluinte se qualifica e conforme a cor da pele do aluno fica mais clara.
Indicador social | Quantidade de alunos | Média da formação geral | Mediana da formação geral |
---|---|---|---|
Até 1,5 SM | 45975 | 51,16 | 51,60 |
1,5 a 3 SM | 110544 | 52,55 | 53,10 |
3 a 4,5 SM | 93765 | 53,82 | 54,40 |
4,5 a 6 SM | 64114 | 55,07 | 55,80 |
6 a 10 SM | 62122 | 56,89 | 57,80 |
10 a 30 SM | 49160 | 59,71 | 61,20 |
Mais de 30 SM | 11875 | 60,61 | 62,70 |
Fonte: Autores, baseado em Brasil (2017).
*Obs: SM - salário mínimo.
Da mesma forma, quanto melhor for a condição socioeconômica, maior o valor agregado pelos graduandos durante o curso. A diferença das médias no componente específico entre ingressantes e concluintes aumentaram para as diferentes condições de background dos estudantes na edição do Enade do ano 2007, independentemente da categoria administrativa das instituições. Por exemplo, quanto melhor a escolaridade da mãe, maior a melhora percentual do desempenho dos concluintes em relação aos ingressantes (Tabela 2).
Indicador social | Instituições privadas | IFES | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ingressantes | Concluintes | Melhora % | Ingressantes | Concluintes | Melhora % | |
Nenhuma | 31,24 | 36,27 | 16 | 33,07 | 40,12 | 21 |
Até 4º | 32,98 | 40,61 | 23 | 35,29 | 45,53 | 29 |
Até 8º | 32,45 | 42,69 | 32 | 36,56 | 46,57 | 27 |
Médio | 32,02 | 44,05 | 38 | 35,24 | 48,72 | 38 |
Superior | 31,91 | 46,17 | 45 | 35,75 | 53,14 | 49 |
Fonte: Autores, baseado em Brasil (2017).
*Obs: IFES - Instituições Federais de Educação Superior.
Em síntese, pode-se dizer, com considerável margem de confiança, que o desempenho dos estudantes da educação superior brasileira no Enade tende, da mesma forma que demonstrado pela literatura internacional, a ser condicionado pelo capital cultural e background. Diante de tal constatação e da ampliação do acesso de estudantes de meios populares, torna-se pertinente questionar: mesmo que não possam recuperar completamente as deficiências de uma educação básica frágil e de um passado familiar e social de dificuldades, os cursos de graduação podem ou não fazer alguma diferença para estudantes de meios populares? Alguns cursos de graduação conseguem compensar dificuldades prévias dos estudantes provenientes de contextos vulneráveis e proporcionar um desempenho melhor que o esperado?
A diferença de desempenho entre os cursos
Apesar de acontecerem principalmente em países desenvolvidos (SMITH, 2015), os estudos sobre as possibilidades de compensação do capital cultural e background se tornam ainda mais pertinentes para nações em desenvolvimento, visto que a desigualdade social e a massificação acelerada, que são características dessas sociedades, configuram tal questão como crítica. No caso do Brasil, que tem um dos maiores bancos de dados do mundo contendo relevantes informações sobre estudantes e o desempenho dos mesmos em exames aplicados em larga escala, investigações com tal objetivo podem ser desenvolvidas com prospecções nos dados do exame Enade.
A partir da experiência internacional, que apresenta como principais fatores condicionantes do desempenho dos estudantes o background e o efeito escola, pode-se, então, deduzir que, quando o capital cultural não explica (em função, por exemplo, da semelhança de perfil dos estudantes), são os atributos do curso, potenciais causadores do efeito escola, que devem ser os prováveis condicionadores das diferenças de performance. Logo, ao se realizar uma análise do desempenho de um grupo de cursos participantes de uma edição específica do Enade, de uma mesma carreira e com estudantes com um mesmo perfil de meios populares, é plausível considerar que, quando forem constatadas notas superiores para um curso em específico, tal diferença de desempenho deve decorrer, provavelmente, das especificidades e atributos desse curso.
Nesse sentido, no presente trabalho, com o objetivo de se obter uma amostra do sistema, em um primeiro momento realizou-se uma seleção com os cursos das carreiras com maior quantidade de matrículas na educação superior brasileira, quais sejam, Administração e Direito8, nas edições dos anos 2009 e 2012 do exame Enade9, que atenderam preponderantemente estudantes de meios populares10. Formaram-se, assim, quatro grandes grupos de cursos, um grupo para cada carreira em cada uma das edições do Enade consideradas, sendo que todos cursos selecionados tinham estudantes com perfil de capital cultural e background semelhantes.
Na sequência, foi realizada uma prospecção de cursos dentro de cada um dos grandes grupos com base no critério de desempenho, selecionando de forma desagregada, por um lado, cursos com performance superior e, por outro lado, cursos com performance inferior. Tal procedimento consubstanciou, portanto, oito subgrupos de cursos11. Como critério de desempenho dos cursos para a formação de tais subgrupos foi utilizado o IDD contínuo, que varia dentro de uma escala de 0,0 a 5,0 e que busca indicar o valor agregado pelos cursos. Tal procedimento gerou uma seleção total de 87 cursos, sendo 26 cursos de Administração em um universo de 1.663 no Enade de 2009, 17 cursos de Administração em um universo de 1.554 no Enade de 2012, 28 cursos de Direito em um universo de 968 no Enade de 2009 e 16 cursos de Direito em um universo de 951 no Enade de 2012.
Como indicador para avaliação da diferença de desempenho entre os subgrupos de cursos12 foi utilizada a média da nota bruta no componente específico obtida pelos estudantes concluintes dos cursos no exame – que varia de 0,0 a 100,0. Assim, na comparação limitada aos cursos que atendem preponderantemente jovens de meios populares, separados em subgrupos compostos por conjuntos com performance superior e por conjuntos com performance inferior, foi possível observar que as médias das notas obtidas pelos estudantes concluintes no componente específico foi significativamente diferente entre os distintos subgrupos, em ambas as edições e para ambas as carreiras (Tabela 3).
Carreira | Ano | Grupo por performance | Quantidade de cursos | Quantidade de estudantes | Média do IDD | Média das notas no CE |
---|---|---|---|---|---|---|
Administração | 2009 | Inferior | 13 | 593 | 0,91 | 29,54 |
Superior | 13 | 559 | 3,75 | 40,69 | ||
2012 | Inferior | 6 | 255 | 0,82 | 23,62 | |
Superior | 11 | 396 | 3,53 | 36,75 | ||
Direito | 2009 | Inferior | 13 | 938 | 0,86 | 43,15 |
Superior | 15 | 672 | 4,01 | 56,27 | ||
2012 | Inferior | 9 | 734 | 1,32 | 33,86 | |
Superior | 7 | 304 | 3,89 | 43,88 |
Fonte: Os autores, com base em microdados do Enade disponíveis em Brasil (2017).
*Obs: IDD – Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado contínuo.
CE – Componente Específico do Enade da carreira.
Nas comparações realizadas foram consideradas as notas de 4.451 estudantes de 87 curso de graduação, sendo 41 pertencentes aos grupos dos cursos com performance inferior e 46 aos grupos com performance superior. Nas quatro comparações realizadas, os estudantes dos subgrupos dos cursos com melhor desempenho obtiveram, em média, mais de 10,0 pontos na nota do componente específico do que os estudantes dos outros subgrupos. Em um dos casos, na edição do ano de 2012, na carreira de Administração, os cursos com performance superior alcançaram médias de notas 13,13 pontos mais altas do que os cursos com performance inferior. Cálculos estatísticos13 realizados sobre tal base evidenciam que as notas obtidas pelos estudantes dos cursos com melhores desempenho foram significativamente maiores que as notas dos estudantes do subgrupo de cursos com performance inferior.
Na comparação com as médias obtidas por todos os cursos de cada carreira, considerando nessas médias gerais, inclusive, as notas dos estudantes com alto capital cultural (presentes, em sua maioria, nas melhores instituições estatais e privadas sem fins lucrativos do país), as médias das notas dos estudantes concluintes de meios populares do subgrupo de cursos com performance superior foi sempre maior. Na edição de 2009, por exemplo, para a carreira de Administração, enquanto a média nacional foi 37,5, a média dos estudantes de meios populares foi 40,69, e, para a carreira de Direito, enquanto a média nacional foi 52,02, a média dos estudantes de meios populares foi 56,27.
Tais constatações indicam que, não obstante as implicações de condições econômicas e culturais desfavoráveis que não auxiliam em trajetórias escolares, é possível, no âmbito da educação superior brasileira, encontrar cursos que atendem preponderantemente estudantes de meios populares e obtêm desempenho no Enade além do esperado. Por conseguinte, considerando a literatura internacional que indica o background e o efeito escola (ou atributos dos cursos) como principais condicionantes do desempenho dos estudantes, bem como as comparações que demonstraram diferenças de performance entre subgrupos de cursos com estudantes de perfis semelhantes, torna-se plausível deduzir que cursos podem fazer a diferença e compensarem, em alguma medida, o capital cultural dos estudantes provenientes de meios populares.
Diante de tal constatação, surgem novas questões como, por exemplo: será que além da diferença de performance existem diferenças nos atributos de qualidade entre os cursos dos distintos subgrupos? Ou então, será que a percepção e a opinião dos estudantes sobre os atributos dos seus cursos são coerentes com os resultados obtidos pelos mesmos no Enade? Buscar respostas para tais questionamentos é importante na medida em que podem ratificar o apontamento de que cursos podem fazem a diferença para estudantes de meios populares.
A percepção dos estudantes e os atributos dos cursos
Não obstante a inexistência de consensos na área da educação, atualmente existe um amplo reconhecimento acerca da relevância da opinião dos estudantes nos processos de avaliação (MARSH, 2007) e sobre a importância de alguns atributos específicos para o processo de aprendizagem. Nesse sentido, atributos relacionados aos aspectos (i) qualidade de ensino, (ii) aspectos pedagógicos, (iii) ambiente, (iv) infraestrutura e (v) tamanho de turma frequentemente são empregados em avaliações com estudantes e em investigações sobre eficácia escolar na educação superior (BETTS; MORELL, 1999; BEEKHOVEN; DE JONG; VAN HOUT, 2003; BRUINSMA, 2003). Os questionários aplicados aos estudantes no Enade também abordam atributos relacionados a esses aspectos, possibilitando assim o desenvolvimento de análises sobre características e especificidades dos cursos participantes.
Nas edições dos anos de 2009 e 2012 do Enade, de um total de 54 itens presentes no questionário – que contêm questões diversas para os estudantes sobre as suas condições socioeconômica e cultural e suas impressões qualitativas sobre os cursos –, 34 abordaram atributos relacionados aos aspectos de qualidade de ensino, aspectos pedagógicos e infraestrutura. Apenas atributos relacionados ao aspecto ambiente não foram identificados no questionário ou nos dados do Enade (Tabela 4).
Aspecto | Atributos | Número da questão no questionário |
---|---|---|
Qualidade de Ensino | Experiência no ensino | 42 |
Titulação e Regime de trabalho | - | |
Didática | 51, 52, 53, 54 | |
Aspectos pedagógicos | Organização curricular: sequência do ensino | 34, 35, 37, 38, 39, 44 |
Políticas acadêmicas para o ensino | 40, 43, 49 | |
Avaliação da aprendizagem | 50 | |
Uso do tempo acadêmico (com estágio, pesquisa e ações comunitárias) | 21, 29, 36, 41, 45, 46, 47, 48 | |
Infraestrutura | Ambiente adequado para as aulas teóricas e práticas | 22, 23, 25, 26 |
Equipamentos | 24, 27, 28 | |
Acervo bibliográfico | 30, 31, 32, 33 | |
Tamanho de turma | Turma reduzida | [Base de dados] |
Fonte: Os autores, com base em Brasil (2017), Betts; Morell (1999), Beekhoven; De Jong; Van Hout (2003) e Bruinsma (2003).
Assim, com o objetivo de avaliar a coerência entre o desempenho dos estudantes e a percepção dos mesmos sobre os atributos, foi realizada uma comparação entre as opiniões dos graduandos concluintes, contrastando os subgrupos de performance superior com de performance inferior, no contexto de cada carreira / ano do exame Enade. Nesse sentido, foram computadas as percepções dos 4.451 estudantes da amostra que resultaram em um total de 136 comparações realizadas sobre 34 questões – 5 de qualidade de ensino, 18 de aspectos pedagógicos e 11 de infraestrutura. Dentre todas as comparações realizadas, em apenas 4 casos os estudantes dos subgrupos com performance inferior avaliaram melhor um atributo. Nas demais 132 comparações, os estudantes dos subgrupos com performance superior avaliaram os atributos de seus cursos de forma mais positiva.
Nos três aspectos considerados (qualidade de ensino, aspectos pedagógicos e infraestrutura) pelos questionários, a parcela de estudantes que avaliaram positivamente os atributos dos seus cursos foi, proporcionalmente, sempre maior nos subgrupos de cursos com performance superior. Por exemplo, nas cinco questões que abordaram qualidade de ensino, a vantagem percentual dos cursos dos subgrupos com performance superior foram respectivamente de 10,2% para a questão número 42; 4,7% para a 51; 4,5% para a 52; 6,1% para a 53; e 11% para a número 54 (Tabela 5), resultando em uma média geral de 7% a mais de avaliações positivas.
Número da questão | 42 | 51 | 52 | 53 | 54 | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Adm | 2009 | Inferior | 86,5 | 92,6 | 91,7 | 90,6 | 84,4 |
Superior | 89,1 | 94,1 | 95,7 | 95,6 | 91,4 | ||
2012 | Inferior | 86,2 | 94,1 | 95,9 | 94,7 | 90,4 | |
Superior | 95,1 | 96,5 | 96,8 | 96,0 | 95,5 | ||
Dir | 2009 | Inferior | 73,0 | 86,1 | 89,4 | 80,5 | 70,0 |
Superior | 92,4 | 97,0 | 98,2 | 94,5 | 91,0 | ||
2012 | Inferior | 85,7 | 92,9 | 92,9 | 91,9 | 84,8 | |
Superior | 95,7 | 96,9 | 97,2 | 96,0 | 95,5 | ||
Diferença média entre subgrupos | 10,2 | 4,7 | 4,5 | 6,1 | 11,0 |
Fonte: Os autores, com base em microdados do Enade em Brasil (2017).
*Obs: Adm – Cursos da carreira de Administração. Dir – Cursos da carreira de Direito.
Da mesma forma, no que se refere às questões sobre aspectos pedagógicos e infraestrutura, as avaliações dos estudantes foram, em geral, mais positivas nos cursos com performance superior. Quase 10% a mais de estudantes pertencentes aos cursos com melhores desempenhos avaliaram positivamente os 18 atributos dos aspectos pedagógicos, em cada carreira / ano do exame Enade considerados. Nas 11 questões sobre infraestrutura, enquanto, por um lado, em média, quase 90% dos estudantes dos subgrupos com performance superior responderam positivamente às questões, por outro, aproximadamente 70% dos estudantes do subgrupo com performance inferior retornaram avaliações positivas.
Logo, as opiniões e percepções dos estudantes acerca dos atributos dos seus cursos foram coerentes com o desempenho obtidos pelos mesmos no Enade, ou seja, estudantes pertencentes aos subgrupos de melhor desempenho avaliaram mais positivamente os atributos dos seus cursos do que os estudantes dos subgrupos com desempenho inferior.
Tal coerência também foi observada em relação ao que a literatura propugna acerca do tamanho de turma e o desempenho dos estudantes, ou seja, quanto menor for a turma, melhor a tendência de desempenho. Em todas as comparações realizadas, o tamanho médio das turmas dos cursos dos subgrupos com performance inferior sempre foi maior que o tamanho médio das turmas dos cursos dos subgrupos com performance superior (Tabela 6).
Carreira | Ano | Grupo | Quantidade de cursos | Quantidade de estudantes | Média do tamanho das turmas |
---|---|---|---|---|---|
Administração | 2009 | Inferior | 13 | 593 | 46 |
Superior | 13 | 559 | 43 | ||
2012 | Inferior | 6 | 255 | 43 | |
Superior | 11 | 396 | 36 | ||
Direito | 2009 | Inferior | 13 | 938 | 72 |
Superior | 15 | 672 | 45 | ||
2012 | Inferior | 9 | 734 | 82 | |
Superior | 7 | 304 | 43 |
Fonte: Os autores, com base em microdados do Enade disponíveis em Brasil (2017).
A carreira de Direito, na edição do ano de 2012 do Enade, foi um exemplo notório de tal relação: o tamanho médio das turmas do subgrupo com melhor desempenho foi de 43 estudantes/turma, enquanto no subgrupo com desempenho inferior foi quase o dobro, com 82 estudantes/turma.
Desta forma, é plausível afirmar que, no contexto do Enade, os cursos com performance superior são percebidos pelos seus graduandos concluintes como tendo melhores atributos que os cursos com performance inferior, bem como que os tamanhos das turmas apresentam relação inversa com o desempenho dos estudantes. Tais associações entre médias e atributos não provam nexo causal, mas são consistentes com a sugestão de que os cursos considerados na amostra deste estudo podem condicionar um melhor resultado no Enade, ratificando, assim, a literatura que indica os aspectos analisados como importantes para a aprendizagem e o desempenho.
Mesmo reconhecendo as características exploratórias e as limitações para estabelecimento de relações de causa e efeito no presente estudo, as evidências geradas permitem indicar a existência de cursos que podem, em alguma medida, compensar o capital cultural e o background e, por conseguinte, proporcionar uma aprendizagem e um desempenho para além do esperado para o perfil dos seus estudantes. Pois, de fato, quando existem diferenças observáveis de performance entre cursos que atendem estudantes de um mesmo perfil socioeconômico e cultural e que um conjunto de atributos de qualidade são melhores avaliados justamente pelos estudantes dos cursos com desempenho superior, parece pertinente considerar que cursos de graduação podem estar fazendo alguma diferença.
Conclusão
A significativa expansão do acesso à educação superior das últimas décadas, além dos aspectos positivos, também tem gerado novas demandas em termos de políticas educacionais. Em países em desenvolvimento como o Brasil, a massificação dos sistemas tornou-se especialmente desafiadora visto que as desigualdades sociais e seus consequentes atrasos educacionais complexificam o acesso dos estudantes sem formação básica adequada para o nível superior de ensino. Nesses contextos, apesar de não serem únicos, o fato dos principais fatores condicionantes do desempenho serem o capital cultural e o background dos estudantes, amplia consideravelmente a importância de melhorar a equidade dos sistemas nacionais.
Diante de tal cenário, o presente trabalho procurou investigar se os cursos de graduação brasileiros podem compensar as fragilidades dos estudantes de meios populares. Fazendo uso de uma das maiores bases de dados do mundo sobre educação superior, procedemos a prospecção da existência de cursos que apresentam desempenho além do esperado e a análise das percepções dos estudantes sobre os atributos de qualidade desses mesmos cursos. Pela própria característica de estudo exploratório, não se teve a pretensão de encontrar nexos causais, mas apontamentos de associações entre cursos de estudantes com o mesmo perfil, atributos dos cursos e bom desempenho em exames.
Nos casos analisados, independente da carreira e da edição do Enade, não obstante a amostra se restringir a cursos frequentados por estudantes de meios populares, foi possível constatar desempenhos significativamente superiores para grupos de cursos específicos, bem como coerência entre as percepções dos estudantes acerca da qualidade dos seus cursos e a performance dos mesmos. Assim, as análises desenvolvidas da dimensão de processo (aspectos da qualidade dos cursos) e da dimensão de saída (resultados nos exames) permitem argumentar em favor da possibilidade de graduações conseguirem compensar, em alguma medida, defasagem de capital cultural e de background de estudantes menos favorecidos.
Mesmo não ignorando a complexidade da mente humana e as incontáveis possibilidades de variações ambientais em que cada um dos bilhões de homens e mulheres podem nascer e crescer, o que praticamente impossibilita generalizações e indicações de padrões universais para a educação, destacamos a importância do desenvolvimento de investigações que envolvam estudantes de meios populares e cursos que podem fazer a diferença para tal perfil. Afinal, como evidenciado, podem existir possibilidades, especialmente no contexto de países em desenvolvimento, para que as políticas de educação superior ampliem a qualidade e equidade dos sistemas e, por conseguinte, contribuam mais efetivamente com a redução da exclusão e das desigualdades, infelizmente ainda presentes em dimensões não civilizatórias nesses países.