Introdução
Compreender a formação de qualquer campo disciplinar é compreender também as hierarquizações e relações de poder nele existentes, de modo que para entendermos o lugar que a educação ocupa na antropologia é necessário levarmos em consideração as complexas teias de relações estabelecidas, bem como os elementos extra-acadêmicos que adentram no jogo acadêmico. É a partir de tais questões que determinados objetos tornam-se mais ou menos prestigiados simbolicamente ( BOURDIEU, 2011 ), o que me parece ser especialmente relevante no caso que será analisado neste artigo.
Aquilo que convencionamos denominar de antropologia da educação2 é algo bastante heterogêneo e encontra-se em diferentes graus de desenvolvimento nos diversos contextos nacionais. Países como Argentina, Brasil, México, Estados Unidos, França etc. têm histórias e arranjos institucionais diversos em torno da formação da reflexão antropológica sobre a educação, de tal modo que dificilmente poderíamos compreender uma antropologia da educação que não fosse no plural, falando-se assim em antropologias da educação. Considerando tais aspectos, neste trabalho será utilizada a categoria antropologia da educação, uma vez que me interessa, nesse momento, visibilizar uma reflexão desde a antropologia acerca da realidade educacional, sem com isso negar outras possibilidades de diálogos e interfaces.
Soma-se a isso o fato de que há realmente um norte e um sul global em termos de geopolítica do conhecimento, havendo assim antropologias hegemônicas e outras periféricas, que se relacionam de forma assimétrica ( RIBEIRO; ESCOBAR, 2012 ). Recorrentemente, conhecemos muito acerca da produção acadêmica dos países do norte global, tais como Estados Unidos, França e Reino Unido, e pouco, ou quase nada, sobre o que vem sendo elaborado em África, América Latina, Ásia etc.
Neste sentido, o presente trabalho visa a contribuir para a discussão sobre a antropologia da educação na América Latina partindo de um caso particular: a antropologia brasileira. Reconhece-se o fato de que eventos como a Reunião de Antropologia do Mercosul e o Congresso Latino-Americano de Antropologia têm propiciado uma maior aproximação entre as diversas antropologias produzidas nessa região geopolítica e cultural, possibilitando a circulação de autores, teorias, agendas de pesquisa etc. Porém, é evidente que ainda perdura um profundo desconhecimento recíproco acerca de como determinadas temáticas vêm sendo debatidas em cada contexto nacional.
Haveria inúmeras possibilidades de analisar a educação na antropologia brasileira, seja a partir das linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação em antropologia ( OLIVEIRA, 2015 ), ou mesmo da atuação de antropólogos na pesquisa educacional junto a programas de antropologia (OLIVEIRA; BÚRIGO; BOIN, 2016), ou de educação (OLIVEIRA, 2017a). Neste trabalho, proponho-me a pensar a antropologia da educação no Brasil em período mais recente, debruçando-me sobre a produção antropológica em educação divulgada nas Reuniões Brasileiras de Antropologia (RBA) a partir dos anos 2000, mapeando as atividades voltadas especificamente para as discussões desenvolvidas na interface entre a antropologia e a educação. Apesar do recorte metodológico adotado, não se nega aqui o fato de que a produção antropológica não circula apenas por esse espaço acadêmico-institucional3 , porém, deve-se reconhecer a centralidade e a relevância que esse Congresso tem na delimitação disciplinar e na hierarquização simbólica dos objetos de pesquisa na antropologia brasileira.
Partirei da análise dos anais das RBA disponibilizados no site da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)4 , mapeando as atividades específicas desenvolvidas na interface entre a antropologia e a educação, buscando refletir acerca do lugar que a questão educacional ocupa nesse espaço institucional, as tensões, disputas e hierarquias acadêmicas que se estabelecem nesse contexto. Para que haja uma melhor compreensão por parte do leitor das questões que estou trazendo, realizarei uma breve contextualização acerca da antropologia da educação no Brasil, para em seguida analisar a educação nas RBA. Como será explorado mais adiante, a escolha pelas reuniões promovidas pela ABA dá-se devido à centralidade que tal espaço tem de pautar o debate da antropologia, sendo um dos principais espaços de consagração acadêmica nesse campo. Desse modo, interessa-me analisar como a educação vem sendo debatida nesse espaço específico.
Algumas pistas para uma história da antropologia da educação no Brasil
Realizar um exercício autorreflexivo acerca do próprio campo tem sido uma constante na antropologia, de modo que tem havido no Brasil uma contínua revisita à história e desafios institucionais dessa ciência ( RUBIM, 1996 ; TRAJANO FILHO; RIBEIRO, 2004 ; FELDMAN-BIANCO, 2013 ; SCOTT; CAMPOS; PEREIRA, 2014). Porém, ainda é incipiente o esforço para a compreensão dos contornos históricos e institucionais de uma possível antropologia da educação no Brasil, o que pode se dever em grande medida, como veremos mais adiante, à própria fragmentação institucional que caracteriza esse campo.
Para uma melhor compreensão das tensões e clivagens postas, creio que é interessante retomar sucintamente alguns pontos referentes à história da antropologia no Brasil de forma mais ampla, buscando elucidar como a questão educacional insere-se nesse contexto5 .
Recorrentemente, assume-se como marco institucional da história da antropologia no Brasil a criação dos primeiros cursos de ciências sociais na década de 19306 , o que tem sido cada vez mais debatido e problematizado ( REESINK; CAMPOS, 2014 ), reconhecendo-se também a existência de pesquisas antropológicas em período anterior, destacando-se nomes como Edgard Roquette-Pinto (18884-1954), Heloisa Alberto Torres (1895-1977), Gilberto Freyre (1900-1987) dentre outros, porém, esses pesquisadores eram, via de regra, autodidatas no campo da antropologia7 .
Nesse sentido, é importante destacar que a antropologia não se constituiu inicialmente como uma carreira autônoma no Brasil, integrando os cursos de graduação em ciências sociais em um momento em que a divisão disciplina era bem menos marcada que hoje, especialmente no que diz respeito à relação entre a antropologia e a sociologia ( CORRÊA, 2013 ). É a partir dos cursos de ciências sociais que o conhecimento antropológico passa a ser rotinizado, com a criação de cátedras específicas tais como antropologia, etnografia do Brasil; a defesa de teses de livre-docência na área; a outorga de títulos acadêmicos em antropologia8 etc.
Ainda em relação ao modelo institucional que passa a ser adotado nesse período, é importante lembrar que a formação de professores estava bastante ligada às escolas normais, apartada, portanto, da estrutura universitária. Mesmo nos primeiros cursos superiores voltados para a formação docente, havia uma ampla difusão do modelo no qual deveria se obter primeiramente o título de bacharel e, posteriormente, realizar uma formação pedagógica complementar. Essa conjuntura histórico-institucional no âmbito da formação docente tem algumas implicações diretas sobre a delimitação do campo que estamos aqui analisando, uma vez que separa a formação própria das ciências sociais da pedagógica.
Em todo caso, é importante salientar que as categorias antropológicas circulavam para além do espaço institucional da universidade. Em algumas escolas normais havia, inclusive, a cátedra de antropologia pedagógica9 . Porém, os diálogos produzidos nesses espaços eram distintos dos realizados nas universidades, uma vez que havia uma aproximação maior com a psicologia e com a antropologia física, em oposição à aproximação com a sociologia e a perspectiva social e cultural, modelo que veio a prevalecer na antropologia brasileira (OLIVEIRA, 2013a).
Os anos que se seguem são de crescente institucionalização da antropologia no Brasil, com a criação em 1941 da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, fundada pelos auspícios de Arthur Ramos (1903-1949), mas que teve breve duração, sendo extinta em 1949. A ABA teve sua primeira reunião realizada em 1953, no Museu Nacional, tendo sido fundada oficialmente durante sua segunda reunião realizada em 1955, em Salvador10 , sendo atualmente a sociedade científica no campo das ciências sociais brasileiras mais longeva.
Também é significativo o advento em 1955 do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), idealizado por Anísio Teixeira (1900-1971), cujos centros regionais passaram a atuar a partir do ano seguinte em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Porto Alegre. Nesta proposta havia a ideia de que seria possível articular o conhecimento das ciências sociais para o desenvolvimento de pesquisas que lastreassem a elaboração de políticas educacionais, tendo integrado nesse centro importantes antropólogos, tais como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro (1922-1997).
Um dado interessante que aponta para a relevância desse centro para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil é que já na II Reunião Brasileira de Antropologia, na qual foi fundada a ABA, ele envia uma representação oficial (CBPE/MEC) para participar do evento, formada por Charles Wagley, Bertram Hutchison e Josildeth S. Gomes.
Ainda que suas atividades tenham se encerrado na década de 1970 sem cumprir plenamente seus objetivos, é importante salientar que o centro possibilitou o desenvolvimento de pesquisas relevantes para o campo das ciências sociais e da educação neste período, chegando a editar entre 1956 e 1959 a revista Educação & Ciências Sociais para a divulgação dos resultados de tais investigações.
É a partir da década de 1960, com a chamada Reforma Universitária, que se inicia o que Cardoso de Oliveira (2003) denominou de período burocrático da antropologia brasileira, com o advento da pós-graduação no modelo próximo ao que conhecemos hoje. Os primeiros cursos de mestrado em antropologia criados no Brasil foram os do Museu Nacional (1968), Universidade Estadual de Campinas (1971), Universidade de Brasília (1972), Universidade de São Paulo (1972), Universidade Federal de Pernambuco (1977) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1979).
Outra consequência da Reforma Universitária foi o advento das Faculdades de Educação, que acaba por separar institucionalmente as pesquisas educacionais daquelas desenvolvidas pelas demais ciências humanas. Com base na ideia de autonomização dos campos científicos de Bourdieu (2004) , podemos indicar que esse é um marco decisório no processo de maior delimitação disciplinar entre as ciências sociais (e a antropologia em particular) e a educação. Porém, é impossível negar o caráter interdisciplinar do campo educacional no Brasil, formado epistemologicamente a partir das contribuições de diversas ciências, tais como a sociologia, história, psicologia, filosofia, antropologia etc.
Isso significa que longe de negar a existência de uma antropologia da educação junto às Faculdades de Educação, observa-se no Brasil a organização de um diálogo entre a antropologia e a educação tanto junto a programas de pós-graduação em antropologia/ciências sociais quanto em educação, ainda que nem sempre esses sejam diálogos fáceis, havendo inúmeras tensões e disputas postas ( GUSMÃO, 2006 ). Isso também propicia uma profunda fragmentação institucional, situando os agentes engajados nesse campo em posições distintas, assim como o desenvolvimento de agendas de pesquisa com preocupações diferenciadas.
Esse breve itinerário traçado aqui busca demonstrar a forma pela qual a antropologia e a educação foram se constituindo como campos autônomos no Brasil, permanecendo na maior parte do tempo um parco diálogo entre estas áreas, porém nunca inexistente.
Não houve no Brasil o desenvolvimento de experiências similares ao que ocorreu no México com a criação do Departamento de Investigações Educativas (DIE) do Centro de Investigação e Estudos Avançados (CINVESTAV) do Instituto Politécnico Nacional (IPN) nos anos de 1970, ou na Argentina com o Programa de Antropologia e Educação, criado em 1992 na Universidade de Buenos Aires. O mais próximo disso foi a experiência do CBPE, que não conseguiu consolidar uma agenda de pesquisa na interface entre as ciências sociais e a educação, e teve curta duração. O que caracteriza o desenvolvimento da antropologia da educação no Brasil, portanto, é sua fragmentação institucional, junto aos programas de antropologia, mas também de educação e de ciências sociais.
A educação é algo novo nas Reuniões Brasileiras de Antropologia?
Como anunciado desde o princípio, entende-se aqui que a produção acadêmica antropológica, e mais especificamente da antropologia da educação, não se restringe aos espaços institucionalmente ligados à antropologia, através dos departamentos, programas de pós-graduação e eventos específicos da área. Todavia, há de se reconhecer a relevância e centralidade que tais espaços acabam por ocupar no campo acadêmico, de modo que as RBA acabam por se tornar um dos principais espaços de divulgação de pesquisas antropológicas. Ademais, a própria ABA é um dos principais agentes desse campo, cujas ações refletem diretamente sobre os demais agentes engajados no campo da antropologia brasileira.
Ainda que não me proponha aqui a realizar uma retomada histórica acerca de como a questão educacional figurou em todas as reuniões, é interessante chamar atenção para certos aspectos que tangenciam essa questão, principalmente com relação às mudanças que vão sendo vivenciadas na antropologia brasileira e nas RBA.
Notadamente entre a década de 1950 e os anos 2000, ocorreram profundas transformações e “No ambiente da antropologia no Brasil, nos últimos 30 anos, a alteridade deslizou, territorial e ideologicamente, em um processo dominado pela incorporação de novas temáticas e ampliação do universo pesquisado.” ( PEIRANO, 2006 , p. 53). Ainda segundo Peirano (2006) , a antropologia brasileira sai de uma alteridade radical, na qual os estudos etnológicos de grupos indígenas representavam o modelo canônico, para uma alteridade mínima, pesquisando temas por muito tempo considerados sociológicos. A inserção da educação na agenda da antropologia brasileira parece seguir esta tendência, dada a centralidade que o debate sobre educação indígena ainda tem nesse contexto (OLIVEIRA; BÚRIGO; BOIN, 2016). As RBA acompanharam essas mudanças e passaram a incorporar cada vez mais novas temáticas, muitas vezes sob a rubrica de antropologia urbana.
Como já apontado, criaram-se também os cursos de pós-graduação nesse meio tempo, profissionalizando a formação em antropologia no Brasil, historicamente realizada em cursos de mestrado e doutorado. Mas, em todo o caso, houve para além disso uma expansão significativa de novos cursos de pós-graduação em antropologia no começo do século XXI, pois, se em 2000 havia quatro programas que ofertavam apenas curso de mestrado, e seis que ofertavam cursos de mestrado e doutorado, em 2017 esse número saltou para dez e dezoito, respectivamente. Soma-se a isso a criação das primeiras graduações em antropologia no Brasil11 , ainda que predomine a formação inicial nos cursos de ciências sociais.
Ademais, também ocorreram mudanças no campo educacional, com a ampliação do acesso à formação às populações indígenas e quilombola, e a garantia de direito à educação diferenciada. O advento das ações afirmativas, principalmente por meio das chamadas cotas raciais nas universidades públicas, também é um marco relevante, principalmente por ter implicado o engajamento de inúmeros antropólogos brasileiros em seu debate e implementação ( CARVALHO, 2005 ).
Quero argumentar com isso que a análise realizada se volta para um período de expansão concomitante da antropologia e do sistema educacional, e que, portanto, impactou o desenvolvimento de uma antropologia da educação no Brasil. No entanto, argumento também que o debate antropológico acerca da questão educacional não chega a ser algo novo nas RBA e que está pleno de tensões e disputas.
Já na II RBA12 , reunião na qual é fundada a ABA, estavam presentes trabalhos que versavam a respeito dessa temática. Segundo a programação do evento, foram apresentados os seguintes trabalhos nessa interface entre a antropologia e a educação: Adaptações do folclore para uso escolar, de Galvão Krébs (Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul)13 ; Um programa de ensino da cadeira de língua tupi, de Darcy Ribeiro (Universidade do Brasil e Serviço de Proteção do Índio)14 ; Problemas de ensino em antropologia, de Egon Schaden (Universidade de São Paulo)15 ; A antropologia nos cursos da Fundação Getúlio Vargas, de Maria Alice Pessôa; Antropologia e educação popular, de Margarida Sinay Neves (Pró-Matre da Bahia). Apesar de haver pesquisadores ligados ao CBPE no evento nenhum deles apresentou pesquisa relacionada à educação, apenas investigações que tangenciavam problemas mais amplos de antropologia.
Não há como negar que predominava naquela reunião outras questões relativas à etnologia indígena, arqueologia, folclore e problemas de aculturação, porém, quero destacar que de certo modo as preocupações acerca da educação e do ensino sempre estiveram presentes nas RBA, e de forma mais enfática, o ensino de antropologia ( GROSSI, 2006 ; OLIVEIRA, 2017b), ainda que de forma periférica.
A Educação nas RBA a partir dos anos 2000
O período no qual se circunscreve a análise aqui realizada vai da 22ª RBA (2000) até a 32ª RBA (2020). Apesar de não haver uma total homogeneidade com relação à terminologia das atividades acadêmicas, esta análise centrar-se-á nos simpósios, bem como nos chamados Fóruns de Pesquisa, que cederam espaço a partir da 26ª RBA para os Grupos de Pesquisa, quando também surgiram as mesas-redondas.
Essas atividades têm naturezas distintas, uma vez que os simpósios normalmente são promovidos pela própria diretoria da ABA, especialmente através de suas comissões científicas, já as mesas-redondas surgem a partir de propostas elaboradas pelos membros da associação. Em ambos os casos há um ou mais coordenadores e um limitado número de expositores, todos doutores e filiados à ABA. No caso dos Fóruns de Pesquisa e dos Grupos de Trabalho, há normalmente dois coordenadores, sendo uma atividade proposta pelos filiados à ABA com título de doutorado através de chamada pública. Uma vez aprovado o Fórum ou Grupo abre-se uma nova chamada para submissão de trabalhos. Essas são as atividades que têm maior número de trabalhos, normalmente funcionando durante quase todo o evento, não sendo necessário ser filiado à ABA para apresentar trabalho, exigindo-se apenas a titulação mínima de mestrando para apresentação oral ou graduando para pôster.
Apesar da estrutura das RBA não prever grupos fixos, observa-se que muitos perduram ao longo das diversas edições, ainda que eventualmente os coordenadores sejam trocados, ou que haja pequenas modificações nos títulos. Em todo o caso, no que concerne às questões que são foco deste trabalho, é interessante perceber que em todas as edições houve alguma atividade voltada para a discussão acerca da antropologia e educação, através das mais diversas aproximações.
Para uma melhor compreensão da distribuição destas atividades, segue-se um quadro demonstrativo, produzido a partir do mapeamento de fóruns, grupos, mesas e simpósios relacionados à educação nos anais das RBA (2000-2020):
Ano | Local do Evento | Grupo/Fórum | Simpósio | Mesa Redonda |
---|---|---|---|---|
2000 | Brasília/Unb | Antropologia e Educação | Antropologia, universidade, sociedade. | – |
2002 | Gramado | Educação Diferenciada (Comunicações coordenadas) | Formação do Antropólogo | – |
2004 | Recife/UFPE | Antropologia e Educação | – | – |
2006 | Goiânia/UFG | Antropologia e Educação | – | – |
2008 | Porto Seguro | Desafios Contemporâneos para uma Antropologia da Educação: ensino, pesquisa e políticas de igualdade. | Nação, Igualdade e Diferença no Brasil do Século XXI – O Caso do Ensino Básico. | |
2010 | Belém/UFPA | Antropologia e educação: entre saberes, práticas e aprendizagens | – | Antropologia e educação: um panorama do ensino e da pesquisa no Brasil |
2012 | São Paulo/ PUC-SP | Antropologia Visual história, ensino e perspectivas de pesquisa | – | |
2014 | Natal/UFRN | O ensino de Antropologia: expandindo fronteiras no século XXI | Antropologia Etnografia e Educação: debates em torno de categorias e experiências | |
2016 | João Pessoa/ UFPB | Ensinar e Aprender Antropologia | Políticas de formação e produção de conhecimento: cenários e desafios para a antropologia e educação | Etnografias na educação: desafios, limites e possibilidades |
2018 | Brasília/Unb | Ensinar e Aprender Antropologia | Estudos Etnográficos em Educação | Novas universidades, novos campi, novas antropologias: docência, alteridades e expansão do ensino superior no Brasil. |
2020 | Rio de Janeiro/UERJ | A educação em tempos sombrios (e para além deles) | O Ensino da Antropologia Biológica/Física no Brasil: Desafios do Presente e Perspectivas para o Futuro |
Fonte: Oliveira (2019).
Observa-se com isso que há certa estabilidade da presença dessa temática na RBA, havendo momentos em que ela se faz sentir de forma mais ou menos evidente. Nas reuniões de 2004 e 2006, houve apenas um tipo de atividade relacionada ao tema, no caso um fórum de pesquisa intitulado Antropologia e Educação, ao passo que na reunião de 2014 houve dois Grupos de Trabalho, uma mesa-redonda e um simpósio especial, e na de 2020 houve três Grupos de Trabalho, uma mesa-redonda e um simpósio especial.
A partir dos dados apresentados poderíamos observar a existência de uma divisão em dois grandes blocos nas discussões desenvolvidas nas RBA: a) um debate mais geral sobre a interface entre antropologia e educação, que incluiria o debate sobre pesquisas etnográficas em contextos educativos, educação escolar indígena, educação e multiculturalismo etc.; b) outro voltado especificamente para o ensino de antropologia, considerando-se tanto o ensino de antropologia na formação de antropólogos (em nível de graduação e pós-graduação), quanto na formação de não-antropólogos. Essa divisão torna-se mais evidente a partir das duas últimas edições do evento, uma vez que se criam dois grupos de trabalho distintos para essas temáticas.
Pode-se ainda indicar que, aparentemente, as discussões acerca do ensino de antropologia/formação antropológica têm se estabelecido ao longo dessas reuniões principalmente junto aos simpósios especiais. Essa questão é significativa na medida em que demarca questões relacionadas às tensões e disputas no campo, uma vez que os simpósios são atividades normalmente propostas pela própria diretoria da ABA. Certamente a expansão do ensino superior, com a consequente expansão da atuação de antropólogos nesse setor, assim como o advento das primeiras graduações em antropologia no Brasil, e o crescimento exponencial da pós-graduação nestas últimas décadas, fez com que o debate acerca do ensino de antropologia ganhasse mais visibilidade na ABA, como pode-se perceber também a partir de publicações organizadas por esta instituição (GROSSI; RIAL; TASSINARI, 2006; TAVARES; GUEDES; CARUSO, 2010). Outro indicativo significativo é a criação em 2006 da Comissão de Ensino de Antropologia entre os comitês científicos da ABA, posteriormente transformada em uma comissão de Educação, Ciência e Tecnologia.
Compreendo, desse modo, que mesmo agregando menos pesquisadores, as discussões a respeito do ensino de antropologia têm ocupado um espaço privilegiado nas RBA, devido, em grande medida, à relevância que esse tema passa a assumir, aproximando-se das preocupações acadêmicas e políticas da ABA. Há uma clara clivagem também entre os agentes que mobilizam esse campo, uma vez que nas discussões ligadas ao ensino de antropologia há uma presença predominante de pesquisadores ligados a departamentos, cursos e programas de pós-graduação em antropologia/ciências sociais, ao passo em que as discussões mais amplas envolvendo a pesquisa antropológica em espaços escolares tende a apresentar uma maior participação de pesquisadores vinculados às Faculdades de Educação.
Essa clivagem também pode ser compreendida a partir da própria inserção desses diversos agentes no campo educativo e de como os diferentes espaços de institucionalização da interface entre a antropologia e a educação têm agendas próprias de pesquisa. Isso fica evidente ao compararmos os antropólogos que atuam em programas de antropologia pesquisando educação (OLIVEIRA; BÚRIGO; BOIN, 2016), e aqueles que estão inseridos em programas de educação (OLIVEIRA, 2017a), pois, em que pesem as convergências existentes, há uma formulação sensivelmente distinta de trajetórias acadêmicas e de inserções no campo.
Por outro lado, as discussões mais amplas sobre antropologia e educação, apesar de também conseguir espaços junto a simpósios e mesas-redondas, têm gravitado principalmente a partir dos Fóruns de Pesquisa/Grupos de Trabalho. Concernente a essa questão, são significativas as questões postas por Neusa Gusmão, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e que teve papel fundamental na abertura e manutenção deste espaço nas RBA, tendo estado presente em quase todas as atividades apontadas no quadro acima, seja na condição de coordenadora, expositora ou debatedora:
O debate continua em aberto e o que aqui se apresenta dos fóruns e GTs de 2000 a 2008 corrobora a afirmação de Lopes (2001, p. 9): “são raros, no Brasil, os estudos antropológicos sobre a educação. São, porém, numerosas e significativas as participações de antropólogos em projetos educacionais que envolvem diferentes setores da população”. Se a educação indígena foi a que historicamente mais se consolidou como área de estudos em termos de uma Antropologia da Educação, percebe-se, pelos múltiplos temas e abordagens, pelos projetos, pelas pesquisas, e pelas experiências de ensino, que a questão continua posta para além da questão indígena. No entanto, são ainda pequenos os esforços para se pensar criticamente as relações entre antropologia e educação, em razão das formas de apropriação da ciência antropológica pelos outros campos e em razão de um humanismo que, por vezes, embota a visão e gera uma banalização do fazer antropológico, de seus conceitos centrais e respectivos suportes teóricos. ( GUSMÃO, 2009 , p. 42).
Na avaliação da pesquisadora, podemos perceber que há uma interpretação de que a antropologia da educação ainda é um campo em formação no Brasil, perspectiva que compartilho com ela. Porém, volto a pensar aqui mais uma vez nas disputas existentes no campo acadêmico, pois acredito que apesar da discussão mais ampla acerca da antropologia e educação congregar um maior número de pesquisadores, em minha percepção essa discussão acaba por ocupar um lugar mais periférico na RBA, o que se justificaria por algumas questões: a) a fragmentação institucional dos pesquisadores que se dedicam a esse tema é maior que entre aqueles que se dedicam ao ensino de antropologia, estando os primeiros mais fortemente vinculados às Faculdades de Educação, como se pode perceber pelo fato de que nenhum Fórum ou Grupo sobre esta temática ter sido coordenado por um pesquisador vinculado a um Programa de Pós-Graduação em Antropologia/Ciências Sociais, contando de forma mais incisiva com a liderança de antropólogos vinculados a Faculdades de Educação16 ; b) por se voltar para uma discussão bem mais ampla, esse tema acaba por abarcar não apenas discussões produzidas exclusivamente por antropólogos, ainda que a produção do conhecimento antropológico não seja realizada apenas por antropólogos no sentido estrito, e a produção no campo da antropologia da educação tenha uma marca profundamente interdisciplinar ( DAUSTER, 2015 ).
O que quero chamar a atenção aqui é para o fato de que não apenas os temas relacionados à educação ocupam um lugar menor na agenda da antropologia brasileira – em que pesem seus avanços recentes – como também há hierarquizações nesse campo, havendo em período uma tendência a estabelecer certo privilégio acerca da discussão sobre ensino, compreendido especialmente a partir da ideia de formação antropológica. Tal cenário concretiza-se no contexto de expansão dos cursos de graduação e pós-graduação em antropologia, cujo debate tem sido capitaneado quase exclusivamente por pesquisadores vinculados institucionalmente a departamentos, cursos e programas de antropologia/ciências sociais. Voltando aos anais da II RBA, na qual a ABA foi fundada, chama a atenção o fato de que em sua organização seja apontada uma seção sobre ensino de antropologia, mas nenhuma sobre antropologia da educação.
Não nego com isso que haja também um incremento no debate em torno da pesquisa antropológica em espaços educacionais, privilegiando-se a educação indígena, o que deve ser compreendido no cenário da expansão do acesso aos sistemas de ensino por parte das populações que historicamente têm sido objeto de reflexão por parte da antropologia brasileira, como já argumentado. Retomando a análise de Gusmão (2009 , p. 40):
De modo significativo, as populações-alvo para formação, pesquisa e intervenção são ainda as chamadas minorias representadas por negros, indígenas e outros segmentos pobres e periféricos, tal como camponeses, mulheres e portadores de necessidades especiais, mas também e, sobretudo, o aluno do ensino superior. Questões de cor, raça e etnia e conceitos de identidade, identidade étnica, cultura, sociabilidade e cidadania são recorrentes. Aparecem ainda noções relativas à multiculturalidade, interculturalidade, educação e interdisciplinaridade. O conjunto assim formado coloca em jogo a convergência/ divergência teórica e metodológica entre antropologia e educação como campo ainda a ser desbravado e a exigir esforços de reflexão crítica.
Percebe-se assim uma tensão interna que se produz em meio às demandas resultantes, de um lado, dos dilemas institucionais da antropologia brasileira, da qual emerge uma reflexão acerca do ensino dessa ciência, de outro, das demandas sociais acerca das quais os antropólogos têm sido instados a se posicionar. São demandas distintas e que têm pesos diferentes no campo acadêmico, especialmente se considerarmos o lugar de fala dos agentes envolvidos, alguns deles vinculados institucionalmente à antropologia e outros à educação.
Observa-se, a partir desse balanço, uma divisão que tende a aproximar pesquisadores ligados às Faculdades de Educação das pesquisas que envolvam a educação básica e espaços de educação não escolar, e os ligados aos departamentos e cursos de antropologia/ciências sociais de pesquisas ligadas ao ensino superior e à formação de antropólogos, o que se desdobra em uma dicotomia aparente entre uma discussão própria sobre o ensino de antropologia e outra mais ampla sobre uma antropologia da educação.
A análise aqui empreendida longe de buscar esgotar o tema, almeja lançar luz sobre os dilemas que estão postos na construção de uma antropologia da educação no Brasil, que tem encontrado nas RBA um importante espaço institucional de articulação, no qual as tensões e hierarquizações são transparecidas.
Considerações finais
Uma análise da antropologia da educação no Brasil certamente pode ser realizada a partir de diversas aproximações, como enfatizei no começo deste artigo, porém o recorte adotado possibilita-nos pensar a questão a partir de um dos principais espaços de discussão da antropologia brasileira, captando assim o movimento nesse campo em período mais recente.
A continuidade das atividades, praticamente de forma ininterrupta no período analisado, aponta para a constituição de uma comunidade de pesquisadores que vem se solidificando ao longo dos anos. É evidente ainda a presença de algumas lideranças consolidadas neste campo, que vêm atuando na interface entre a antropologia e a educação ao menos desde os anos de 1980 e 1990, principalmente a partir das Faculdades de Educação; entretanto, novas lideranças têm surgido, atuando constantemente em parceria com esses agentes já estabelecidos no campo.
A clivagem observada entre as questões ligadas ao ensino de antropologia, e as ligadas a uma reflexão antropológica sobre a educação de modo mais amplo, reflete as disputas e tensões existentes na própria antropologia brasileira, e de modo mais particular na antropologia da educação. Há ainda outras tensões e disputas, como no que diz respeito ao uso da etnografia em pesquisas educacionais (VALENTE, 1996; OLIVEIRA, 2013b), que também se desdobram, em algum grau, em disputas institucionais.
O que é relevante ressaltar das questões aqui trazidas é que elas convergem para o processo de consolidação do campo da antropologia da educação no Brasil que, como qualquer campo, é marcado por disputas. O campo da antropologia da educação no Brasil vem se formando, ainda que a partir das margens, porém continua pulsante e em expansão.