Introdução4
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto provocado pela covid-19 como uma emergência de saúde pública de relevância internacional em 30 de janeiro de 2020 (PAHO, 2020). Essa doença, causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), iniciou-se em Wuhan, na China, e logo chegou em todos os continentes (GUY et al., 2020). No dia 11 de março de 2020, data em que a OMS considerou a covid-19 como uma pandemia, o Brasil já tinha dezenas de casos confirmados, apresentando um crescimento desenfreado do número de infectados nos meses subsequentes, de forma que, em 10 de janeiro de 2021, eram 22.184.824 casos confirmados e 616.691 óbitos acumulados (BRASIL, 2021b; PAHO, 2020).
Com a rápida propagação dos contágios, adotou-se o isolamento social na tentativa de minimizar o número de contaminados e, consequentemente, houve a suspensão do ensino presencial nas escolas e universidades públicas e privadas no mundo. No Brasil, esse processo foi determinado pela Lei nº 13.979/2020, cujo artigo 3º estabelecia o isolamento, a quarentena e outras medidas “[…] para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” (BRASIL, 2020).
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) estimou que cerca de 70 por cento da comunidade escolar mundial tenha sido afetada pelos efeitos negativos da covid-19, o que significa que no Brasil o quantitativo de alunos prejudicados supera 52 milhões. Essa situação mobilizou a Unesco, em março de 2021, segundo ano da pandemia, a reunir 160 países para discutir o contexto educacional, uma vez que a crise de saúde ainda gerava reflexos negativos sobre mais da metade dos estudantes que tiveram suas aulas abruptamente alteradas dos moldes habituais da presencialidade para conseguir prosseguir com a escolarização5.
Como medida paliativa para não paralisar o ensino nas escolas e universidades que adotavam o modelo presencial de educação formal, buscou-se retomar as atividades educativas por meio do ensino remoto emergencial (ERE). Diferentemente da educação a distância, última forma de ensino prevista no Decreto nº 9.057/2017 (BRASIL, 2017), que regulamenta o artigo 80 da Lei nº 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação, cuja oferta, a cargo de equipe previamente capacitada, cabe às instituições educativas legalmente credenciadas –, o ERE não dispunha de ampla discussão nacional, não apresentava uma padronização nas atividades nem contava com plataforma específica para o fim educativo, sendo viabilizado de maneira emergencial e improvisada, inclusive por meio de redes sociais, a exemplo do WhatsApp, aplicativos de reuniões, como o Google Meet, dentre outras ferramentas não usuais para assegurar o ensino-aprendizagem (NEVES; FIALHO; MACHADO, 2021). Todavia, diante da conjuntura sanitária excepcional, o Ministério da Educação (MEC), mediante a Portaria nº 343/2020, divulgou a substituição das aulas presenciais por virtuais durante a crise da covid-19, inicialmente, para o ensino superior. Em seguimento, com as atualizações condizentes à situação pandêmica, o Conselho Nacional de Educação (CNE), por intermédio do Conselho Pleno (CP), passou a orientar as atividades pedagógicas em todas etapas e níveis do sistema de ensino, inclusive veiculando o diagnóstico da implementação do ensino remoto e híbrido na educação brasileira e os possíveis reflexos na aprendizagem dos alunos. A simetria foi observada pelos conselhos dos demais entes federados (BRASIL, 2021a).
Diante deste contexto complexo, emergiu o seguinte questionamento: como os professores brasileiros perceberam e enfrentaram os desafios da pandemia da covid-19, considerando as mudanças abruptas no trabalho docente e no processo de ensino-aprendizagem em decorrência do isolamento social? Na tentativa de responder a essa inquietação, desenvolveu-se um estudo científico com o objetivo de compreender como os professores se mobilizaram e como o isolamento social reverberou na práxis docente modificada para viabilizar a continuidade do ensino-aprendizagem por intermédio do ERE. Para tanto, desenvolveu-se um estudo qualitativo, mais bem descrito na seção subsequente, cuja coleta de dados se deu por meio de questionário elaborado no Google Forms. A organização dos resultados foi efetivada com a utilização do programa Iramuteq, e a análise do conteúdo seguiu os ensinamentos de Bardin (2016).
Interessa destacar que se entende por ensino-aprendizagem um sistema complexo de interações comportamentais entre alunos e professores, decorrentes das intenções e ações do homem, de maneira interdependente e indissociável, resultando em processos de desenvolvimento pessoal, em que competências, comportamentos e habilidades são mobilizados com o mote de agregar novos conhecimentos aos saberes previamente assimilados (TARDIF, 2012). Com efeito, a práxis docente é dinâmica e temporal, pois a articulação dos conhecimentos teóricos à prática pedagógica diversifica-se de acordo com os saberes de professores e alunos e a cultura em que eles se inserem (ABU-EL-HAJ; FIALHO, 2019).
A relevância do estudo consiste no fato de que ele permite refletir uma realidade atual de crise sanitária em decorrência da pandemia da covid-19, concernente às novas maneiras de os professores viabilizarem a continuidade do ensino-aprendizagem. Afinal, como o ERE foi implementado subitamente no contexto brasileiro, marcado pela desigualdade de ingresso e de permanência na escola e de acesso às tecnologias digitais da informação e comunicação (TDICs)6, importa conhecer melhor como os professores brasileiros perceberam e enfrentaram os desafios no trabalho na tentativa de minimizar os prejuízos causados pela suspensão das aulas presenciais.
Metodologia
Fundamentando-se na concepção de que os estudos qualitativos tornam factível a problematização de teorias e hipóteses, a compreensão, a interpretação e a discussão das vivências, dos valores e das atitudes humanas e sociais (MINAYO, 2012), realizou-se uma pesquisa qualitativa com 146 professores brasileiros que atuavam na educação básica ou no ensino superior, em rede privada ou pública de ensino, nas esferas federal, estadual e/ou municipal, durante a pandemia da covid-19.
A coleta de dados se deu por intermédio de um questionário on-line, elaborado no Google Forms, divulgado em redes sociais – WhatsApp e Facebook – e disponibilizado individualmente via e-mail pessoal ou institucional no período de 31 de março de 2021 a 28 de maio de 2021. O instrumento foi constituído por dezesseis questões, das quais sete eram objetivas, com respostas de múltipla escolha, e nove subjetivas. As primeiras integraram o bloco sociodemográfico e buscaram traçar o perfil dos professores: 1) idade; 2) gênero; 3) tempo de docência; 4) esfera administrativa de lotação profissional, se pública (federal, estadual ou municipal) ou privada; 5) nível, etapa e modalidade da educação formal em que lecionavam; 6) natureza do vínculo laboral, se efetivo ou temporário, em rede pública ou privada; e 7) faixa remuneratória mensal. As últimas indagações permitiam aos professores se posicionarem acerca da docência durante a crise da covid-19: 1) se passaram a ministrar aulas remotas em substituição às aulas presenciais; 2) majoração, ou não, da jornada de trabalho; 3) experiência prévia com aulas remotas; 4) formação ou capacitação antes da pandemia para aulas remotas; 5) formação ou capacitação após o início da pandemia para aulas remotas; 6) percepção de si mesmos quanto aos conhecimentos e habilidades para aulas remotas; 7) vulnerabilidades que identificam em seus alunos para estudarem remotamente; 8) impactos da pandemia no processo de ensino-aprendizagem; e 9) espaço aberto para reflexões e acréscimos sobre o próprio trabalho durante a pandemia. As perguntas se referiam às experiências docentes dos professores ocasionadas pela implementação do ERE, não comportando um tempo específico, já que alguns estavam desde o início das suspensões das aulas presenciais praticando o ERE e outros iniciaram essa atividade mais tardiamente.
Na intenção de validar o questionário, atenderam-se às recomendações de Gil (2017), ou seja, o instrumento foi aplicado previamente com sujeitos pertencentes ao mesmo universo dos investigados, três professores atuando com ERE durante a pandemia, cujas considerações permitiram a reformulação do enunciado de duas perguntas. Somente após a validação, o questionário foi respondido pelos demais participantes.
Para o processamento dos dados, empregou-se o software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Iramuteq), versão 0.7 alpha 2, por ser de acesso livre. Esse programa, ancorado no software R e na linguagem python, propicia estatísticas textuais, pesquisa de especificidades de grupos, classificação hierárquica descendente (CHD), análise de similitude e nuvem de palavras. Além disso, nos estudos qualitativos, incluindo os de ciências humanas e sociais, esse software não elide o pesquisador do seu papel de dominar a literatura acerca do objeto de estudo e de analisar os dados coletados (CAMARGO; JUSTO, 2013). Mesmo com a análise lexical viabilizada pelo Iramuteq, a técnica de análise do conteúdo de Bardin (2016) permitiu a interpretação do corpus construído pelo agrupamento das respostas subjetivas.
Vale esclarecer que, em razão da profusão dos dados obtidos com a aplicação do questionário, este estudo circunscreveu dois blocos temáticos: o primeiro constituído pelo perfil dos participantes; e o segundo subdividido em quatro sub-blocos conforme as respostas apresentadas para as perguntas correlatas, que versavam sobre: os maiores desafios para realizarem remotamente uma aula qualificada; vulnerabilidades relacionadas ao ensino remoto identificadas nos alunos; percepção a respeito dos efeitos da pandemia da covid-19 sobre o processo de ensino-aprendizagem; e impactos da pandemia sobre o próprio trabalho.
Como as respostas que compunham o segundo bloco eram abertas, utilizou-se para esse segmento o método de análise de conteúdo de Bardin (2016), que prevê a exploração dos dados a partir da inferência ou da dedução seguindo as etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, e inferência e interpretação. Dessa maneira, na aba “Perfis” do Iramuteq, acessou-se o tipical text segment e analisou-se o conteúdo de cada classe. Delas, extraíram-se os núcleos de sentido representativos das categorias submetidas ao método de Bardin (2016).
A apresentação dos resultados consistiu em tabelas, figuras e recortes textuais com a intenção de se demonstrar a síntese dos dados do perfil dos participantes e as formulações do Iramuteq em confluência com a análise de conteúdo assente no diálogo transversal com o referencial teórico nacional e internacional sobre a temática.
Cabe destacar que todo o procedimento de pesquisa respeitou a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), bem como as “Orientações para procedimentos em pesquisas com qualquer etapa em ambiente virtual” da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, de 24 de fevereiro de 2021 (BRASIL, 2016, 2021c). O projeto de pesquisa recebeu parecer favorável de nº 4.740.147 e seguiu com primazia as diretrizes éticas e legais, inclusive constando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) na parte inicial do questionário e sendo garantido o direito dos participantes de não responder a qualquer questão e entrar em contato com os pesquisadores para esclarecimentos a qualquer momento.
Resultados
Para traçar o perfil dos participantes do estudo, tomaram-se as respostas atribuídas aos quesitos de um a sete: gênero; idade; tempo de docência; esfera administrativa de lotação profissional; natureza do vínculo trabalhista; nível, etapa e modalidade em que atua; e faixa remuneratória mensal.
Nesse ponto, explicita-se que nenhuma das indagações do instrumento de coleta de dados, exceto a anuência manifesta no TCLE, teve carácter obrigatório. Por conseguinte, escassas abstenções foram constatadas em respostas isoladas, devidamente assinaladas pela variável “não informou” na Tabela 1. Além da especificação das variáveis obtidas, optou-se por apresentar o número absoluto e o percentual de cada uma delas, tendo por referência o total de respostas (146). Também se designou a expressão “Educação de Jovens e Adultos” pela sigla “EJA”, e convencionou-se “SM” para o termo “salário-mínimo”, cujo valor de referência para as respostas foi R$ 1.100,00, por ser o SM vigente na época da coleta de dados.
VARIÁVEIS | N | % |
---|---|---|
Gênero | ||
Feminino | 114 | 78,1 |
Masculino | 32 | 21,9 |
Outros | 0 | 0,0 |
Não informou | 0 | 0,0 |
Total | 146 | 100,0 |
Faixa etária (em anos) | N | % |
20 a 29 | 9 | 6,0 |
30 a 39 | 37 | 25,0 |
40 a 49 | 45 | 31,0 |
50 a 59 | 42 | 29,0 |
60 ou mais | 10 | 7,0 |
Não informou | 3 | 2,0 |
Total | 146 | 100,0 |
Tempo de docência (em anos) | N | % |
Menos de 1 | 4 | 2,7 |
De 1 a 10 | 56 | 38,4 |
De 11 a 20 | 58 | 39,7 |
De 21 a 30 | 23 | 15,8 |
Mais de 31 | 5 | 3,4 |
Não informou | 0 | 0,0 |
Total | 146 | 100,0 |
Esfera administrativa de lotação profissional (rede de ensino) | N | % |
Federal | 33 | 20,5 |
Estadual | 56 | 34,8 |
Municipal | 52 | 32,3 |
Privada | 20 | 12,4 |
Não informou | 0 | 0,0 |
Total* | 161 | 100,0 |
Natureza do vínculo trabalhista | N | % |
Vínculo efetivo com a administração pública | 110 | 71,4 |
Contrato temporário com a administração pública | 22 | 14,3 |
Contrato com carteira assinada na rede privada | 19 | 12,3 |
Não informou | 3 | 1,9 |
Total* | 154 | 100,0 |
Nível/etapa/modalidade em que atua | N | % |
Educação superior | 65 | 44,5 |
Ensino médio e educação superior | 2 | 1,4 |
Ensino fundamental do 1º ao 9º ano | 2 | 1,4 |
Ensino fundamental do 1º ao 5º ano | 19 | 13,0 |
Ensino fundamental do 6º ao 9º ano | 9 | 6,2 |
Ensino médio | 10 | 6,8 |
EJA | 1 | 0,7 |
Ensino fundamental do 1º ao 5º ano e educação especial | 1 | 0,7 |
Ensino médio e educação especial | 1 | 0,7 |
Educação infantil | 14 | 9,6 |
Ensino fundamental do 1º ao 5º ano e educação superior | 2 | 1,4 |
Ensino médio, EJA e educação superior | 2 | 1,4 |
Ensino fundamental do 6º ao 9º ano e ensino médio | 4 | 2,7 |
Ensino fundamental do 6º ao 9º ano, ensino médio e EJA | 2 | 1,4 |
Educação infantil e ensino fundamental do 1º ao 5º ano | 3 | 2,1 |
EJA e educação superior | 2 | 1,4 |
Educação infantil e educação superior | 1 | 0,7 |
Ensino fundamental do 6º ao 9º ano, ensino médio e educação superior | 1 | 0,7 |
Ensino fundamental do 6º ao 9º ano, ensino médio e educação especial | 1 | 0,7 |
Não informou | 4 | 2,7 |
Total | 146 | 100,0 |
Faixa remuneratória mensal (referência: salário-mínimo vigente em 2021) | N | % |
Menos de um SM | 4 | 2,7 |
Um SM | 1 | 0,7 |
Acima de um SM até dois SM | 14 | 9,6 |
Acima de dois SM até quatro SM | 44 | 30,1 |
Acima de quatro SM até dez SM | 50 | 34,2 |
Acima de dez SM | 28 | 19,2 |
Não informou | 5 | 3,4 |
Total | 146 | 100,0 |
Fonte: Elaboração própria com base nos dados do questionário (2021).
*O N dessas dimensões sociodemográficas ultrapassam o número total de 146 porque há professores vinculados a mais de uma esfera administrativa e lotados em efetivo exercício em mais de um nível/etapa/modalidade da educação.
Participaram do estudo 146 professores, dos quais 114 eram do sexo feminino e 32 do masculino, predominando as mulheres em todas as etapas e níveis da educação. Na variável faixa etária, a idade variou de 23 a 73 anos, sendo a faixa dos 40 a 49 anos a mais proeminente, com 45 professores. Na sequência, tem-se a de 50 a 59 anos, com 42 educadores, e de 30 a 39 anos, com 37.
Quanto ao tempo de atuação docente, em se tratando de vínculos cumulativos, considerou-se o mais antigo. Dessa forma, o menor tempo na docência foi de três meses e o maior de 37 anos. Somente 4 professores tinham menos de um ano de experiência; 56 tinham de 1 a 10 anos; e 58 tinham de 11 a 20 anos de atuação.
No quesito esfera administrativa de vinculação do docente, constatou-se que muitos professores atuam simultaneamente em mais de uma instância. O mesmo ocorre em relação à natureza desses vínculos e às etapas ou modalidades de exercício profissional, nas quais os professores combinavam vínculos públicos e privados em várias etapas da educação formal.
Acerca da faixa remuneratória mensal, verificaram-se distorções, porque quatro professores recebiam menos de um SM e quatorze, um número considerável, recebiam apenas de um a dois SM, com remunerações abaixo do piso salarial da categoria. Ainda, cinquenta recebiam de quatro a dez SM e, ultrapassando a faixa dos dez SM, identificaram-se 28 participantes. Destaca-se que os mais baixos salários eram de professores da educação infantil e da primeira etapa do ensino fundamental, enquanto os mais altos eram de professores da educação superior.
O corpus geral submetido ao software Iramuteq constituiu-se de quatro textos – conjunto de segmentos de textos (STs) –, separados por 362 STs, com aproveitamento de 304 STs (83,98 por cento). Cada texto correspondeu ao conjunto de respostas apresentadas pelos 146 participantes às quatro perguntas: 1) “Descreva seus maiores desafios para realizar remotamente uma aula qualificada”; 2) “Em relação aos seus alunos, você identifica alguma vulnerabilidade relacionada ao ensino remoto (a distância)? Se sim, descreva quais são elas”; 3) “O que mais você tem a dizer a respeito dos impactos da pandemia da covid-19 sobre o processo de ensino-aprendizagem?”; e 4) “O que você tem a dizer acerca dos impactos da pandemia da covid-19 sobre seu trabalho como professor?”. De tal maneira, emergiram 12.839 ocorrências – palavras, formas ou vocábulos –, sendo 2.659 palavras distintas e 1.569 com uma única ocorrência.
Importa mencionar que as ocorrências, num primeiro momento, foram compiladas considerando o total de professores. Em seguida, para evitar viés na análise por preponderarem as respostas dos docentes do ensino superior, que eram a maioria, o procedimento foi repetido separando as ocorrências por etapa da educação, todavia, obtiveram-se as mesmas classes e categorias temáticas. Como os problemas apontados pelos professores para dar prosseguimento ao ensino de maneira remota eram semelhantes, independentemente do nível e da etapa da educação, optou-se por desenvolver uma análise macro, destacando-se, porém, as etapas da educação em que cada categoria foi mais preponderante.
As formas ativas de uso mais recorrente pelos respondentes foram: não (f=218), aluno (f=165), aula (f=138), internet (f=91), professor (f=89), trabalho (f=80), muito (f=78), falta (f=75), ensino (f=72), acesso (f=71), dificuldade (f=67), aprendizagem (f=63), atividade (f=48), processo (f=48), recurso (f=46), remoto (f=44), tempo (f=44), celular (f=42) e criança (f=42). A Figura 1 destaca visualmente as palavras mais frequentes.
A ligação entre essas palavras foi constada na análise de similitude, auxiliando na identificação da estrutura do conteúdo do corpus textual. Constam, na Figura 2, as formas mais destacadas no conjunto de respostas obtidas. A palavra não se realça em halo, agrupando as formas muito, pandemia, impacto, e outras que ocupam o centro da árvore. As cinco ramificações principais se organizam no sentido horário em: 1) trabalho, docente e aumentar; 2) internet, acesso, falta, dificuldade, equipamento, adequado e computador; 3) processo ensino-aprendizagem; 4) aula, dar, assistir e difícil; 5) aluno, professor, educação e precisar.
A CHD, em razão da similaridade léxica, categorizou o conteúdo em sete classes: classe 1, com 55 STs (18,1 por cento); classe 2, com 37 STs (12,2 por cento); classe 3, com 45 STs (14,8 por cento); classe 4, com 45 STs (14,8 por cento); classe 5, com 37 STs (12,2 por cento); classe 6, com 46 STs (15,1 por cento); e classe 7, com 39 STs (12,8 por cento).
No Diagrama 1, ilustram-se as relações e as divisões entre as classes mediante o dendrograma, adaptado daquele fornecido pelo Iramuteq. Nele, observam-se as classes formadas das partições do conteúdo na mesma ordem hierárquica apresentada pelo programa: 6, 1, 7, 5, 2, 4 e 3. Ressalta-se que todas as subdivisões estão inter-relacionadas. Ao lê-las da esquerda para a direita, as classes 6 e 1, ao nível superior, conectam-se entre si e, na sequência, associam-se à classe 7, que se ramifica para as classes 5, 2, 4 e 3. Essas últimas são ocupantes da mesma posição hierárquica. Ainda, dentro de cada classe, em ordem de importância relativa, inscreveram-se as formas lexicais com P<0,0001, por serem as de maior significância.
Os dados que constavam na aba “Perfis”, na guia Typical text segments, de cada classe processada pelo Iramuteq, propiciaram a idealização de cinco categorias temáticas submetidas ao método de Bardin (2016):
Categoria 1 (exclusão digital dos alunos): retratada pelas respostas incorporadas à classe 1: “muitos alunos não possuem os equipamentos e meios necessários”; “a maioria assiste aula pelo celular”; “a maior parte dos alunos possui apenas celular, muitas vezes é um aparelho compartilhado com os irmãos e com pouca memória”; e “não possuem ambiente adequado em casa para assistir as aulas” (dados da classe 1).
Categoria 2 (consequências para a saúde dos professores): reproduzida nas respostas ordenadas na classe 2: “o atual cenário está comprometido; nossa saúde física e mental tem nos incomodado e desmotivado, revelando um país que despreza a educação” (dados da classe 2).
Categoria 3 (dificuldades verificadas no processo de ensino-aprendizagem): caracterizada pelas respostas classificadas na classe 3: “a distância física da escola fragilizou significativamente o processo de ensino-aprendizagem”; e “na educação pública, o processo de ensino-aprendizagem se transformou num escancarado faz de conta” (dados da classe 3).
Categoria 4 (exigências pedagógicas de enfrentamento): expressada nas respostas congregadas nas classes 4 e 6: “estudantes e gestores tiveram que ressignificar os processos de ensino e aprendizagem”; “tivemos que nos reinventar como professores”; “temos que preencher vários relatórios adicionais e repensar a maneira de apresentar o conteúdo”; “exercícios, relatórios, […] toda uma burocracia infinita”; e “não temos o suporte pedagógico necessário, incluindo informações que efetivem o nosso trabalho com o ensino remoto” (dados da classe 4). “Sou tímida e fico insegura”; “faço tudo de forma intuitiva”; “[…] me sinto insegura e não domino bem os instrumentos utilizados”; e “existem inúmeros recursos disponíveis, mas infelizmente ainda não temos acesso […]” (dados da classe 6).
Categoria 5 (precarização do trabalho docente): constituída pelas respostas compiladas nas classes 5 e 7: “o trabalho ficou mais difícil, estou trabalhando mais que antes”; “senti que estava trabalhando sem retorno, isso é frustrante”; “já sinto os efeitos na minha visão”; “tive que fazer algumas aquisições de suporte e equipamentos”; “há a exigência de trabalhar sentado, que traz danos físicos, além dos danos emocionais trazidos pelas respostas imediatas no WhatsApp” (dados da classe 5). “Aumentou barbaramente minha carga horária, moro no meu ambiente de trabalho”; e “adentra no fim de semana e feriado, não há mais limites entre estar no trabalho e estar na sua vida pessoal” (dados da classe 7).
Cabe salientar que as narrativas dos professores no tocante aos problemas enfrentados, ainda que muito semelhantes, diferenciaram-se da seguinte maneira: as categorias 1 (exclusão digital dos alunos), 2 (consequências para a saúde dos professores) e 5 (precarização do trabalho docente) foram unânimes entre os professores, independentemente da etapa e do nível de ensino, porém sendo mais preponderantes nas narrativas dos docentes do ensino superior. Em contrapartida, as categorias 3 (dificuldades verificadas no processo de ensino-aprendizagem) e 4 (exigências pedagógicas de enfrentamento) estiveram mais presentes nos comentários dos professores da educação básica, especialmente daqueles que atuavam na educação infantil.
Discussão
A associação da ferramenta Google Forms e do programa Iramuteq à técnica de análise de conteúdo conforme Bardin (2016) dinamizou a coleta, o tratamento e a análise de dados, configurando-se numa interessante experiência investigativa. Não se constataram incongruências entre essas técnicas de coleta e análise, pelo contrário, as operações do programa não eximiram os pesquisadores do raciocínio interpretativo para a construção e a interpretação das categorias temáticas do conteúdo, mas se complementaram. Aliás, o corpus textual obteve a retenção de 83,98 por cento dos STs, quando o mínimo recomendado, segundo Camargo e Justo (2013), é de 75 por cento. Igualmente, as funções, as frequências e as conexões apontadas pelo software também foram constatadas na leitura atenta do conjunto de respostas ao questionário on-line, nas inferências e nas interpretações procedidas pelos investigadores.
A nuvem de palavras deu a conhecer o panorama dos dados, em que o vocábulo não, sendo o mais evocado, alude à escassez dos meios apropriados ao ERE qualificado. Nas inquietações dos professores, os alunos ocupam lugar central, perceptível pelo realce dos termos aluno e aula. Da mesma forma, a interdependência de todas essas questões é verificada nas principais ramificações da análise de similitude, quais sejam: aumento do trabalho docente; falta de acesso à internet e a equipamentos adequados; e dificuldade em dar e assistir aula. Tudo isso, perpassa o processo de ensino-aprendizagem e influencia diretamente o trabalho docente, a saúde dos professores e a aprendizagem dos alunos, como se constata nas categorias do estudo.
A categoria 1 (exclusão digital dos alunos), individualmente, é a mais expressiva do conteúdo, por corresponder a 18,09 por cento dos 304 STs. Nela, notabiliza-se a carência dos estudantes e de seus familiares quanto ao acesso às TDICs para as aulas remotas. Nesse tema, também vale ressaltar os dados do perfil dos professores: o fato de alguns receberem abaixo de um SM e outros auferirem pouco mais que o mínimo sugere uma provável insuficiência de recursos para suprir as necessidades materiais mais elementares, sem exclusão da conectividade imprescindível às aulas remotas. A queixa dos professores acerca do precário acesso à internet e às ferramentas digitais foi a dificuldade mais frequente apontada por todos os professores independentemente da etapa e do nível da educação.
No Brasil, a pandemia da covid-19 majorou as desigualdades sociais resultantes do legado neoliberal. Nessa conjuntura, inobstante o ERE ter se apresentado como uma solução para o problema da interrupção das aulas presenciais, sua implementação excluí aqueles com poucos recursos apropriados ao acesso digital (NEVES; FIALHO; MACHADO, 2021), porque classes sociais, grupos raciais, moradores de certas regiões geográficas – rurais e urbanas –, famílias, professores e alunos estão vivenciando a pandemia em condições heterógenas (CAMPOS; VIEIRA, 2021). Um estudo comparativo de como as universidades brasileiras, espanholas e italianas mais bem colocadas na classificação da Times Higher Education 2020 conduziram suas atividades na pandemia demonstrou que as instituições estrangeiras de ensino superior migraram para o ERE com maior celeridade, enquanto o Brasil não ofereceu resposta rápida para essa problemática (CASTIONI; MELO, 2020).
Decerto, antes mesmo da pandemia, as desigualdades educacionais no cenário mundial já se caracterizavam por profundas distorções ao nível dos discentes, mas também de muitos docentes (PEREIRA, 2021). No Brasil, rupturas e imprecisões são observadas nas sucessivas reformas educacionais, que não se consubstanciam no suprimento das carências educacionais, pelos exíguos investimentos e/ou pelas disputas ideológicas em todos os níveis da federação (SAVIANI, 2008). Aqui, a educação usufrui de um abundante rol de normas, desde a Constituição Federal vigente até os atos normativos de instâncias inferiores, que, no entanto, diante de governos omissos, carecem de efetividade social. Tais constatações permitem inferir que tais problemáticas se contrapõem ao alcance das metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação (PNE) vigente, em especial a meta 7, cujas estratégias dispõem sobre o incremento da utilização das TDICs em atenção à diversidade de métodos e de propostas pedagógicas. Ainda determinavam, para todas as escolas da educação básica, até 2019, garantir o acesso à internet banda larga de alta velocidade e, até 2020, triplicar a razão computador/aluno (BRASIL, 2014). No mesmo sentido, antagonizam-se as competências gerais delineadas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), especificamente as de número 1, 2, 4 e 5, que inserem na agenda de compromissos para com a educação integral dos alunos as categorias “cultural digital”, “soluções tecnológicas”, “linguagem digital” e “tecnologias digitais” (BRASIL, 2018).
Como se conjectura, tal contexto não é exclusivo do Brasil. Em um estudo realizado por Abarca (2021), observou-se que professores chilenos do ensino fundamental, médio e da pré-escola, nos meses iniciais da pandemia, obtiveram diferentes níveis de participação nas aulas, a depender das condições socioeconômicas dos alunos e do perfil da escola: quanto mais vulneráveis eram, menos participavam das aulas. Por seu turno, a investigação de Uwizeyimana (2021) noticiou que faltou treinamento na Universidade de Ruanda, bem como equipamentos e programas informáticos para professores e alunos. No ensino superior da Turquia, a pesquisa de Özüdoğru (2021) atestou a preexistência de problemas na educação a distância que se avolumaram com a pandemia.
A categoria 2 (consequências para a saúde dos professores) alude ao adoecimento físico, emocional e mental reportado pelos professores diante do agravamento dos antigos problemas que assombravam o trabalho docente e dos novos contornos impostos em razão da crise sanitária atual. Da educação infantil ao ensino superior, os professores foram unânimes em mencionar, com igual preocupação, os problemas físicos e psicológicos que o contexto pandêmico e a exigência do ERE estavam ocasionando. Entre as respostas catalogadas nesta categoria, nota-se que os docentes atribuem os incômodos sofridos ao descaso político-administrativo para com a educação, muitas vezes tendo que contornar cenários adversos de maneira improvisada, individual e sem apoio público, somando-se ao fato de já possuírem uma extensa jornada de trabalho. Santos e Oliveira (2021, p. 1) destacam que, na rede pública do Rio de Janeiro, foi comum os professores do ensino médio, dos anos iniciais e finais do ensino fundamental da educação infantil “[…] que continuaram atuando, [que] realizaram atividades de maneira autônoma, sem direcionamento e sem ações coordenadas”.
Ademais, os malefícios à saúde dos docentes associam-se à maneira como o Estado se manifesta no local de aplicação das políticas educacionais, em que, não raramente, o discurso democratizante diverge das práticas e, por isso, não se verificam os resultados desejados nos setores operacionais. Desse modo, não parece prudente atribuir à pandemia a culpabilidade por todas as omissões que, em instância derradeira, fustigam a saúde dos docentes. Contudo, é possível afirmar que, indubitavelmente, a situação foi agravada durante a crise. Destaca-se, inclusive, que o estudo de Souza et al. (2022) ampara essas considerações ao elucidar que as mudanças no trabalho docente, apesar de terem se tornado mais enfáticas na pandemia, são oriundas das transformações estruturais em andamento prévio e que imprimem nos professores diversas novas obrigações, causando-lhes sinais e sintomas de adoecimento.
Outro estudo sobre a saúde e o trabalho de docentes nas universidades públicas do Rio de Janeiro, realizado por Rodrigues et al. (2020) anteriormente à pandemia, descobriu que as novas formas de organização e controle, regidas pelo aumento da demanda e pelas cobranças de metas de produtividade, anulam os limites do tempo-espaço do trabalho e reverberam na saúde, causando depressão, distúrbios do sono e outros males. Campos e Vieira (2021), Souza et al. (2021) e Troitinho et al. (2021) endossam tais achados ao lembrarem que não se pode desconsiderar que, na pandemia, o espaço-tempo escolar está desagregado, produzindo adoecimento mental nos professores, e que, em todos os níveis/etapas, as dificuldades concernentes ao ERE ampliam o estresse, a ansiedade e a depressão.
No cenário internacional, a realidade é semelhante. Como exemplo, cabe mencionar o estudo transversal, realizado por Klapproth et al. (2020) na Alemanha, que avaliou professores do ensino primário, fundamental e médio durante o ensino remoto no isolamento social, identificando que a maioria deles havia experenciado barreiras técnicas e aumento do nível de estresse. Nos Estados Unidos, a pesquisa de Pressley, Ha e Learn (2021), com professores do ensino fundamental, identificou maior nível de estresse e de ansiedade naqueles responsáveis pela instrução virtual, indicando que as escolas deveriam oferecer o suporte necessário ao refrigério desses agravos. Nas Filipinas, Oducado et al. (2020) identificaram nível moderado de estresse associado à autoavaliação de saúde em metade dos professores participantes do estudo, os quais eram licenciados atuantes em escolas públicas e privadas, com maior predileção para o sexo feminino. No Peru, Estrada Araoz e Gallegos Ramos (2022) chamam a atenção para o esgotamento emocional dos universitários peruanos do curso de educação asseverado no contexto da covid-19.
A categoria 3 (dificuldades verificadas no processo de ensino-aprendizagem) trata da experiência dos participantes do estudo quanto aos obstáculos projetados pelo cenário pandêmico sobre o processo de ensino-aprendizagem, mais enfaticamente mencionada por professores da educação básica. Apontam-se as desigualdades dos alunos e a possível ineficácia das medidas educativas de promoção ao ensino igualitário com o modelo remoto. Os participantes da pesquisa vislumbram que o acesso ao ensino superior, durante ou logo após a pandemia, provavelmente será mais dificultoso para os alunos egressos das classes sociais menos favorecidas, por estarem apartados dos recursos essenciais ao ensino remoto de qualidade. Esse fator, a propósito, acarretou maior defasagem na aprendizagem dos discentes. De acordo com Neves et al. (2021), o sistema educacional brasileiro apresenta profundas dessemelhanças entre o público e o privado perceptíveis na maneira como a problemática da suspensão das aulas presenciais tem sido conduzida nas duas esferas, em todos os níveis de educação.
De modo análogo, na educação básica, Dusseault, Pitts e Lake (2021), em pesquisa apresentada pelo Center on Reinventing Public Education (CRPE), estimam que os efeitos cumulativos da pandemia sobre o desempenho educacional provavelmente repercutirão por décadas, até porque as novas variantes virais ainda ameaçam subtrair mais um ano letivo de aulas presenciais. Em 25 de novembro de 2021, a Unesco ([2022]) atualizou a situação da educação no Brasil por região e estado, comprovando as dissonâncias entre os entes federados, ainda no âmbito destes, entre as instituições de ensino públicas e privadas. Nas públicas, algumas escolas figuram com retorno gradual, mas outras adotaram o modelo híbrido, aulas presenciais facultativas, a critério do aluno, ou aulas 100 por cento presenciais.
Outra barreira elencada pelos professores deste estudo, especialmente da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, é o rompimento das rotinas familiar e escolar, que impõem aos pais não só o dever de cumprir seus próprios afazeres, mas também orientar o processo de ensino-aprendizagem, quando, na maioria das vezes, não são qualificados ou não dispõem de meios para esse novo papel. Outrossim, para os pais de alunos de menor faixa etária ou em condição especial, a exemplo da educação infantil, os percalços são avolumados e o acompanhamento é ainda mais débil. Corroborando esses achados, um estudo canadense realizado por Timmons et al. (2021) com professores e pais da educação primária revelou que os pais e as famílias foram impactados pela nova conjuntura, além de estarem estressados e sobrecarregados por terem que ensinar os conteúdos e as tarefas escolares em conjunto com seus diversos outros papéis e por carecerem de compreensão no que se refere ao desenvolvimento da aprendizagem nas crianças.
No mais, os dados apreendidos mostram que as carências materiais e/ou a inabilitação para o manejo das ferramentas digitais perpetuam as lacunas formativas. Do mesmo modo, estudos internacionais documentam barreiras semelhantes às identificadas nesta pesquisa, como é o caso das precárias condições de habitação, baixa motivação dos alunos e dos pais, dificuldade de conectividade e falta de equipamentos com acesso à internet (KLAPPROTH et al., 2020; ÖZÜDOĞRU, 2021).
Em determinadas disciplinas, os óbices são ainda maiores. À vista disso, um estudo que explorou a maneira como os professores de matemática da França, de Israel, da Itália e da Alemanha, de todos os níveis de escolaridade, gerenciaram o processo de ensino-aprendizagem durante o fechamento das escolas desvelou que esses docentes vivenciaram o conflito entre o anseio ao retorno presencial e a decepção de não poder fazê-lo, agravado pelas dificuldades verificadas na criação virtual de uma aprendizagem interativa e efetiva, principalmente nas aplicações das avaliações dessa disciplina (ALDON et al., 2021).
A categoria 4 (exigências pedagógicas de enfrentamento) remete à reformulação das maneiras de aprender e ensinar em suprimento às aulas presenciais suspensas. Nela, os professores identificaram as próprias lacunas formativas no que diz respeito a ensinar de maneira remota e consideraram o caráter impositivo das novas demandas, pois foram forçados a aprender como enfrentar as circunstâncias relacionadas à pandemia. No tocante aos professores da educação básica, eles asseveram que houve aumento das demandas burocráticas, entendido como excesso de procedimentos, de relatórios, entre outros. Ainda afirmaram que, a despeito das novas exigências emergenciais para a continuidade das aulas remotas, carecem de apoio pedagógico e de acesso às TDICs. Observou-se que a exigência de relatórios e as demandas das coordenações e gestões escolares recaíram sobremaneira nos docentes da educação básica, em vez de nos professores da educação superior, ganhando maior ênfase nas duas etapas do ensino fundamental.
Notadamente a formação dos professores para o ensino remoto é ponto essencial, visto que, não obstante as dificuldades de acesso às TDICs, o contato com as ferramentas digitais não garante as competências digitais para sua boa utilização na mediação pedagógica, por esta exigir conhecimentos mais amplos e habilidades e atitudes diferenciadas para atuar por meio dessas tecnologias (SILVA; BEHAR, 2019). Portanto, implica a aquisição de materiais – equipamentos apropriados, programas e provedor de rede – e a compreensão para utilizá-los. Nesse sentido, recomenda-se considerar o entendimento de Benini et al. (2020), de que o valor da força de trabalho dos professores se vincula às despesas de formação e aperfeiçoamento profissional, mas a redução proposital do custo com a educação representa o aumento do lucro capitalista em detrimento das necessidades de alunos e professores. A categoria 5 (precarização do trabalho docente) apresenta uma extensa problemática que dificulta e deprecia o trabalho dos professores. Os dados qualitativos que respaldam tal inferência se observam pelos STs representativos das respostas auferidas e agrupadas nas classes 5 e 7, na seção de resultados, em que os professores mencionam que o grau de dificuldade e a jornada de trabalho foram acentuadas, não havendo limites entre trabalho e descanso semanal remunerado. Outra questão evidenciada no estudo é que, apesar de 44,6 por cento dos docentes investigados estarem inseridos no ensino superior, 16,5 por cento deles declaram atuar, cumulativamente, em outras etapas e níveis da educação formal. Dessa maneira, pode-se inferir que essa categoria foi frequentemente relatada por todos os professores, independentemente da etapa ou nível da educação.
Nesse tema, Araújo e Mourão (2021) recordam que, na docência, precarização é um termo político representativo das inseguranças e incertezas resultantes das transformações neoliberais nas políticas educacionais do sistema capitalista, que flexibilizam as regras trabalhistas e subtraem os direitos do trabalhador. Ademais, no Brasil não há o devido reconhecimento do trabalho do professor, seja no âmbito da remuneração, seja no âmbito da valorização da profissão, especialmente daqueles que atuam nos anos iniciais da escolarização, trabalho historicamente considerado uma extensão do lar, feminino, para o qual se acreditava erroneamente que não era necessária uma formação ou qualificação específica para exercê-lo.
Mesmo antes da pandemia, a precarização do trabalho docente já desafiava os educadores brasileiros, como atesta o estudo realizado por Barbosa et al. (2021), entre 2014 e 2018, com professores dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio vinculados à rede escolar pública do estado de São Paulo. Nele, constatou-se jornada de trabalho que extrapolava a carga horária contratual, em razão das atividades extraclasses essenciais ao desempenho em sala de aula, sem o acréscimo remuneratório correspondente, ou mesmo a recorrência a outros vínculos empregatícios para a complementação dos baixos salários. Somando-se a essa querela, Neves, Fialho e Machado (2021), em estudo do tipo estado da arte sobre todos os níveis e etapas de ensino, identificaram que os estudos brasileiros, no primeiro ano de vigência da pandemia da covid-19, revelaram que a precarização do trabalho docente, apesar de ser estrutural no Brasil, foi potencializada com a crise sanitária. Ao encontro desses estudos, as expressões escritas nas respostas aos questionários deste estudo sinalizam: aumento das dificuldades, falta de reconhecimento, aquisição dos meios de produção, aumento da jornada de trabalho, ausência de limites entre trabalho e descanso, entre outras afrontas que salientam a acentuação de tal problemática. Essa realidade também se verifica nos demais países latino-americanos, como no Chile, onde os docentes, para ensinar remotamente nos meses iniciais da pandemia, utilizaram seus próprios recursos e aumentaram suas jornadas de trabalho (ABARCA, 2021).
Esmiuçando as causas do agravamento da precarização do trabalho na pandemia, um estudo realizado com professores da educação básica, domiciliados nas zonas urbana e rural das cinco regiões brasileiras, sugere que tal fenômeno é repercussão da telepresença, do acúmulo com o trabalho doméstico e da perda da identificação dos professores (TROITINHO et al., 2021). Notadamente, apesar de o restrito número de participantes, a maioria atuante na região Nordeste e com vínculos efetivos na administração pública, não permitir a generalização, o perfil levantado corrobora as distorções entre salário/remuneração e jornada de trabalho, denunciando a precariedade do vínculo laboral experienciada por muitos professores do Brasil, que não se restringe à realidade nordestina, mas perpassa as demais regiões do país.
Diante disso, a correção de rotas certamente compreenderá reformulações profundas na forma como o Estado tem se posicionado ante as demandas educacionais, devido à primazia neoliberal de investimentos mínimos que caminha na contramão do fortalecimento da capacidade estatal de cumprir as prescrições constitucionais para a educação (PEREIRA, 2021). No entanto, há de se considerar que, ao desafio do ERE, soma-se o compromisso assumido pelos professores de contribuírem para a equidade educacional, por enquanto, bastante comprometida, sobretudo para os alunos com baixo desempenho escolar (ALDON et al., 2021). Assim, cabe ao Estado prover a respectiva parcela, porquanto a superação demanda a capacitação para o manuseio dos recursos necessários ao ensino remoto e maior investimentos para equipar escolas e alunos nesse sentido (KLAPPROTH et al., 2020).
Considerações finais
Este estudo versou sobre a educação formal brasileira desenvolvida durante a suspensão das aulas presencias em razão da pandemia da covid-19, com o objetivo de compreender como o isolamento social reverberou na práxis docente, que buscava viabilizar a continuidade do ensino-aprendizagem por meio do ERE.
Entre os resultados, percebeu-se que as palavras mais evocadas nas respostas em cada halo – trabalho, aluno, aula, aprendizagem, internet – estavam correlacionadas com o advérbio de negação não. Isso sugere que as fragilidades inerentes ao ensino remoto, ao acesso às TDICs e ao seu manuseio interferem na qualidade do ensino-aprendizagem e na saúde dos professores, além de fustigarem ainda mais o trabalho docente no Brasil.
Verificou-se congruência na associação do programa Iramuteq à técnica de análise de conteúdo, pois, ao aplicar essa técnica aos dados agrupados pelo referido software, cinco categorias analíticas representativas emergiram: 1) exclusão digital dos alunos; 2) consequências para a saúde dos professores; 3) dificuldades verificadas no processo de ensino-aprendizagem; 4) exigências pedagógicas de enfrentamento; e 5) precarização do trabalho docente.
A primeira categoria denuncia as diversas carências pelas quais passam os alunos – de acesso a equipamentos e provedor de internet adequados –, que interferem na eficácia do ERE. A segunda revela o adoecimento dos professores devido às novas e crescentes demandas relacionadas à suspensão das aulas presencias e à implementação do ERE em condições domiciliares inadequadas, sem capacitação específica para o uso das tecnologias e com precário ou nenhum apoio governamental. A terceira especifica os múltiplos aspectos que obstaculizam o processo de ensino-aprendizagem, inclusive aqueles de cunho familiar, como é o caso da inaptidão dos pais ou responsáveis para a orientação dos alunos em suas habitações. A quarta compreende as exigências postas para os professores, em especial, as concernentes à formação para o ensino remoto, para as quais boa parte dos docentes não se sentiam preparados. A quinta indica a precarização do trabalho docente, que, no Brasil, é um problema estrutural e multifatorial, atualmente acentuado pela pandemia da covid-19.
Assim como em outros países, a adoção abrupta do ERE interferiu negativamente na qualidade do ensino-aprendizagem tanto na educação básica como na superior, especialmente na primeira, por compreender crianças e adolescentes que necessitam de maior apoio dos pais ou familiares, que também tinham limitações tecnológicas. Todavia, no Brasil, os baixos salários de alguns professores somados à desvalorização profissional, à desigualdade social refletida no precário acesso às TDICs e à responsabilização individual do professor para suprir as demandas do ERE sem a devida qualificação e acesso aos recursos tecnológicos necessários majoraram a precarização laboral desses profissionais.
O estudo proporcionou a expressão da proficiência dos respondentes quanto ao objeto de pesquisa, ou seja, possibilitou ouvir as percepções dos docentes. Nele, as vozes dos professores ecoaram de todos os níveis da educação e etapas de ensino diante das dificuldades vivenciadas no processo de ensino-aprendizagem nesses dias inóspitos para a educação, com a exigência do isolamento como medida para conter a pandemia de covid-19 e o ERE como praticamente única alternativa para manter as aulas sem o contato físico. Observou-se também que, apesar de os problemas salientados nas discussões categóricas se mostrarem semelhantes entre os níveis e etapas da educação, na educação infantil e na primeira etapa do ensino fundamental, os professores mencionam um ensino de faz de conta, sem utilidade real para a criança, implicando que quanto mais jovens eram os alunos, mais a qualidade do ensino foi prejudicada com a utilização do ERE.
Percebeu-se, ao discutir os resultados considerando estudos internacionais sobre a temática, que os problemas enfrentados por docentes brasileiros não eram tão distintos dos enfrentados por professores de outros países, a exemplo do Chile, Peru, Estados Unidos, Filipinas, França, Alemanha etc. No entanto, evidenciou-se a percepção de que no Brasil o poder público demorou a investir na formação dos professores para uso das TDICs e na democratização do seu acesso, o que acentuou ainda mais as desigualdades sociais históricas, refletidas nas dificuldades de acesso e permanência na escola e universidade.
Sabe-se que a pesquisa em relato não possui cunho quantitativo e, em decorrência disso, seus dados não devem ser generalizados para todas as realidades brasileiras. Ainda assim, é possível inferir, em congruência com os demais estudos nacionais e internacionais correlacionados, que a exclusão digital dos alunos, aditada à falta de qualificação profissional e à precarização do trabalho docente, gerou não apenas malefícios à saúde dos professores, como também barreiras no ensino-aprendizagem, não sendo possível medir com precisão as consequências negativas à educação. Sugere-se, para estudos futuros, a comparação entre o recorte temporal desta coleta dos dados e o período após o transcurso da pandemia da covid-19, na tentativa de mensurar os prejuízos e as possíveis intervenções para minimizá-los.