Introdução
Este artigo traz resultados de parte de uma ampla pesquisa transnacional derivada de um Convênio de Cooperação Internacional Científico e Tecnológico entre uma universidade federal brasileira, localizada em São Carlos, e uma universidade pública italiana, localizada em Roma. O estudo internacional trata da “didática a distância”, ou atendimento não presencial na educação infantil3, considerando o SARS-CoV-2 (covid-19) e a partir da perspectiva de profissionais – educadores(as), professores(as) e equipe de gestão escolar – desta etapa educativa. Este material assume como objetivo a identificação e a análise de alguns elementos de organização pedagógica constituintes dos fazeres de professoras da educação infantil brasileiras na implementação do atendimento não presencial nas instituições relacionada à pandemia de covid-19. Os elementos de organização pedagógica na análise investigativa são: objetivos ou intencionalidades educacionais, recursos, tempo e estratégias. Pretende, dessa forma, evidenciar um panorama da forma como professoras(es) de educação infantil se organizaram pedagogicamente para desenvolver as práticas remotas ou as ações a distância (não presenciais) na interrupção do atendimento presencial nas instituições, diante da crise da pandemia no ano de 2020.
No contexto mundial da pandemia de covid-19 e desde o primeiro foco na China, ao final de 2019, muitos países de diferentes continentes foram desafiados no início de 2020, de forma abrupta e emergencial, a desencadearem políticas e estratégias em diversas esferas (social, econômica e sanitária) como medidas de combate à disseminação do vírus. Definiram múltiplas ações como medidas de contenção do vírus, incluindo a restrição em diversos graus de interações sociais, ou mesmo de isolamento social, proibição de deslocamentos dentro e/ou fora do território nacional, estabelecimento de lockdown em países como a Itália e interrupção de atividades não essenciais, como o fechamento de atendimento presencial de escolas de todos os níveis de ensino, incluindo a educação infantil (ESTRELLA; LIMA, 2020).
Considerando-se a situação da pandemia em nível mundial, em aproximadamente um ano foram infectadas quase 130 milhões de pessoas, resultando em cerca de 3 milhões de mortes (CLARKE; MAJEED; BEANEY, 2021). Como forma de contenção da pandemia, diferente da Itália, que estabeleceu uma ação nacional de medidas de combate ao vírus, com lockdown e políticas de apoio socioeconômico estabelecidas no início do problema, no Brasil assistiu-se a subida desenfreada da curva epidêmica em 2020, com anúncio diário de um gigantesco número de contaminados e de óbitos, que ultrapassaram 450 mil pessoas (CLARKE; MAJEED; BEANEY, 2021).
No contexto brasileiro, tais acontecimentos caracterizaram uma realidade que demandaria de forma urgente a compreensão do estabelecimento de uma drástica redução de contato social (DIAS; MARTINS, 2020), mas associadas a estratégias socioeconômicas de proteção compensatórias à população brasileira. A disseminação da doença afeta, de forma mais acentuada, a população residente em periferias e as mais vulneráveis, que possuem precárias condições de habitação e higiene, comprometimento de renda básica e outros aspectos de direitos humanos fragilizados ou negados.
No conjunto das diferenças de estratégias e ações de contenção do vírus entre estes dois países, no Brasil houve a falta de coordenação geral do governo federal, assim como do Ministério da Saúde, e como parte deste problema incluíram-se: ausência de diretrizes comuns; informações cruzadas e contraditórias que serviram de estímulo à sociedade para desistência do isolamento; e restrição das possibilidades de controle do vírus (CAPONI, 2020). De acordo com Caponi (2020, p. 209), há ainda três aspectos necessários à compreensão do problema da pandemia no Brasil: “questões epistemológicas vinculadas ao negacionismo científico; questões ético-políticas vinculadas aos direitos humanos e estratégias biopolíticas vinculadas à razão neoliberal”.
No que tange à interrupção do atendimento presencial nas escolas da rede básica de ensino (públicas e particulares), segundo dados da Unesco (2021) entre os meses de março e maio de 2020 mais de 1 bilhão de crianças e jovens no mundo tiveram suas atividades escolares suspensas em decorrência da covid-19 atingindo mais de 170 países, incluindo o Brasil. Portanto, seguindo a lógica mundial, o governo brasileiro anunciou pela Portaria MEC nº 343, de 17 de março de 2020, a suspensão das atividades presenciais nas escolas em função da crescente propagação do vírus SARS-CoV-2 (BRASIL, 2020).
O Conselho Nacional de Educação (CNE), em 28 de abril de 2020, emitiu um parecer com o objetivo de regulamentar as ações escolares durante o período da pandemia, de modo a minimizar a necessidade de reposição presencial de dias letivos, buscando manter as atividades escolares remotamente aos estudantes enquanto durar a pandemia. O Conselho “recomenda que as atividades sejam ofertadas, desde a educação infantil, para que as famílias e os estudantes não percam o contato com a escola e não tenham retrocessos no seu desenvolvimento” (ESTRELLA; LIMA, 2020).
Nesse contexto de decisões sobre o funcionamento das escolas durante a pandemia no Brasil, a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) dirigiu uma carta aberta ao presidente do CNE para indicar a inadequação de propostas de educação a distância ou atendimento não presencial (de forma remota ou a distância) à educação infantil, uma vez que a “educação das crianças de até cinco anos e onze meses é de natureza essencialmente interacional, como reconhecido e afirmado nas normas postas pelo próprio CNE” (CORDEIRO, 2020, p. 6).
É preciso considerar que o CNE conferiu atribuições diferenciadas à docência na educação infantil, que, ao partilhar com as famílias a educação e os cuidados destinados às crianças de até 5 anos e 11 meses, proporciona a meninos e meninas interações e brincadeiras por meio de ações mediadoras que instigam a criatividade e provocam questões para ampliar a visão da criança, possibilitando formas de descoberta do mundo social e cultural em seu entorno. Esse processo de mediação cultural diferencia o brincar e as demais interações vivenciadas pelas crianças no contexto da instituição de educação infantil daquelas realizadas no contexto familiar (CORDEIRO, 2020).
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), também em abril de 2020, publicou um manifesto contra a educação infantil a distância, realizada por meio de atividades não presenciais ou de forma remota, reafirmando a especificidade de práticas educativas com bebês e crianças bem pequenas em contextos institucionais coletivos (ANPED, 2020). A ANPEd argumenta, com base na Lei nº 9.394/1996, ou Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que não há previsão de utilização da educação a distância, didática a distância, ensino remoto ou atividades não presenciais com suporte de plataformas tecnológicas na educação infantil, mesmo mediante contextos emergenciais, da forma como pode ser realizada para outras etapas da educação básica, com seus níveis de ensino.
A educação infantil brasileira se beneficia das conquistas dos anos de 1990, nas esferas legal e pedagógica, destacando-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1999, 2009). Além disso, beneficia-se dos avanços proporcionados pelas pesquisas educacionais e pelo desenvolvimento científico, atuantes na produção de conhecimentos e regulamentações que trouxeram a essa etapa da educação básica o reconhecimento de uma especificidade de identidade e de trabalho, que engloba uma prática educativa e uma docência diferenciada de outras etapas da educação básica.
Diante da realidade abrupta da pandemia, o que se evidencia é uma mudança nos fazeres docentes de forma emergencial, mediante a interrupção de atendimento presencial nas escolas (REDONDO, 2020). Essa remodelagem inclui, obrigatoriamente, a colocação de demandas aos professores das escolas (públicas e privadas), como gravação de vídeos, produção de materiais didáticos e uso de redes sociais e/ou plataformas digitais para interações, de modo a contabilizar a carga horária de trabalho. De forma solitária ou como iniciativa pessoal, as(os) professoras(es) precisaram disponibilizar materiais e atividades em páginas da internet (como Facebook®) e grupos de WhatsApp® com os familiares de seus estudantes. Essas ações, muitas vezes executadas de forma solitária, pouco reflexivas ou intencionais, na articulação com o planejamento educacional demonstrou a desconexão entre os envolvidos nesse processo educativo (como secretarias de educação, gestores escolares, corpo docente, crianças e famílias).
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2020), a partir de julho de 2020 alguns países decidiram pela retomada das atividades presenciais nas escolas, ainda que de forma parcial (ensino híbrido, por exemplo), o que representou algo em torno de 800 milhões de crianças e jovens frequentando parcialmente a escola, enquanto cerca de 200 milhões ainda continuaram com o atendimento presencial suspenso em todas as etapas e níveis de ensino. No Brasil, o atendimento presencial nas escolas foi retomado, de modo lento e parcial, a partir de outubro de 2020 e com limitação de 35 por cento da capacidade das salas de aulas.
Houve autonomia dos estados e municípios para deliberação do ensino híbrido (parte presencial e parte a distância) e de tomada de decisão sobre este retorno considerando as condições epidemiológicas dos municípios. Essa realidade brasileira implica a continuidade de atividades remotas ou a distância inclusive na educação infantil, uma vez que nem todas as crianças retornaram ao atendimento presencial, seja por opção das famílias, seja por opção dos governos estaduais e municipais.
Atualmente, aproximadamente 39 milhões de estudantes brasileiros frequentam as redes públicas municipais e estaduais de ensino, o que corresponde a 81 por cento das crianças e jovens do país (REDE CONHECIMENTO SOCIAL, 2020). No entanto, considerando a educação infantil, sabe-se que uma parcela muito significativa de crianças se encontra excluída do direito ao acesso à educação escolar, especialmente aquelas de até 3 anos de idade. Deve-se lembrar que a creche não é oferta obrigatória e gratuita pelo Estado, sendo que a obrigatoriedade da matrícula se inicia aos 4 anos. Os dados de 2018 mostram que mesmo na zona urbana, a taxa de atendimento em creche somava apenas 38,9 por cento de crianças brasileiras na faixa etária indicada (GUEDES, 2020). Isso significa que, em termos históricos e de políticas educacionais, a realidade brasileira anuncia um profundo processo de exclusão de crianças da educação infantil que, em razão da pandemia de covid-19 e da manutenção da ausência de atendimento presencial nas instituições, se aprofunda e se alarga pela dimensão geográfica do país.
A argumentação a favor do ensino híbrido, de um fazer pedagógico mediado por tecnologias ou de atividades remotas a distância (mesmo que em forma impressa), sem a presença das crianças em contextos de instituições de educação infantil, conflita drasticamente com a própria natureza dessa etapa educativa, que é coletiva, interacional, socializadora e com propostas curriculares sustentadas em experiências. Cabe destacar ainda o reconhecimento de encaminhamentos pedagógicos fincados nas ações e nas experimentações infantis (concretude do aprender), em que as práticas de educar e de cuidar se realizam em integração, por meio de brincadeiras. Ou seja, distancia-se por completo da implementação, mesmo que emergencial, de uma forma de fazer sustentada na permanência da criança diante de telas (celulares, TVs, computadores, tablets) ou folhas impressas contendo conhecimentos abstratos, em que a ação, a experimentação, a autoria do representar simbolicamente e, assim, do pensar são indeterminados ou inexistentes. Desmoronam-se ainda as necessárias interações, o direito às brincadeiras entre pares e o envolver-se em relações sociais com outros adultos não familiares em coletivos sociais, como na instituição de educação infantil.
A permanência da suspensão do atendimento presencial das instituições de educação infantil ou a sustentação de uma proposta híbrida por um longo período precisam ser debatidas com urgência, especialmente na educação infantil. Tal fato relaciona-se aos prejuízos de ordem educacional, social e de saúde aos bebês e às crianças muito pequenas, principalmente aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade e pobreza, dadas as condições precárias de acesso aos direitos básicos, além do aumento das desigualdades sociais e educacionais e da vulnerabilidade em diversas esferas (HEAVEY et al., 2020; MARCHETTI; GUIDUCCI, 2020; SAVIANI; GALVÃO, 2021; TAMBURLINI; MARCHETTI, 2020).
Esta problemática desencadeou a construção de estudos científicos sobre, por exemplo, desdobramentos e impactos desse modo de fazer pedagógico não presencial, mas emergencial, na educação escolar (ARAÚJO, 2020; CAMPOS; VIEIRA, 2021; GUIZZO; MARCELLO; MÜLLER, 2020; OLIVEIRA; MARINHO, 2020). Em especial, no âmbito da educação infantil, são poucos os estudos empíricos que discutem os impactos do ensino remoto ou das implicações da ausência de atendimento presencial, híbrida ou por meio de atividades a distância aos processos de aprendizagem e desenvolvimento global nas infâncias. Os estudos encontrados são, em sua maior parte, ensaios teóricos que demonstram como lacuna a necessidade de estudos empíricos, a fim de tentar lançar luz sobre os contextos e desafios que afetam a educação infantil.
Percurso metodológico
A pesquisa de natureza qualitativa e quantitativa realizou-se por meio de um desenho metodológico de survey (FOWLER JUNIOR, 2011), com uso de instrumento misto (questionário estruturado aberto e fechado) e de e-surveys, com participação de profissionais de educação infantil de diferentes estados brasileiros. Survey é uma forma de levantamento que busca produzir descrições sobre um tema ou determinado aspecto (BABBIE, 1999). Segundo Mineiro (2020), pode ser compreendido como um conjunto de operações que visam determinar características de um fenômeno de massa ou um tipo de investigação que busca fornecer descrições estatísticas de pessoas por meio de perguntas, normalmente aplicadas em uma amostra.
Neste estudo o e-survey foi utilizado, dada a necessidade de a coleta de dados ser realizada a distância, devido ao distanciamento social implementado pela covid-19, assim como da rapidez de execução e de rompimento de barreiras geográficas, o que permitiu em um país de dimensão continental, como o Brasil, a expansão do processo de recrutamento de participantes. O recrutamento foi realizado considerando categoria profissional e campo de atuação profissional associados, além de habilidades para usar os dispositivos eletrônicos, com completo preenchimento do questionário somente uma vez.
Elaborado originalmente em italiano, o questionário em versão on-line contendo 44 questões foi traduzido, sem modificações na estrutura das questões, para a língua portuguesa. A tradução foi realizada na parceria da rede de trabalho científico entre pesquisadores brasileiros e italianos, das duas universidades públicas que coordenaram o estudo matriz. Foi aplicado primeiramente um piloto para validação e, após a avaliação dessa etapa, utilizou-se de recurso de divulgação da internet, por meio de link com acesso a um formulário do Google Forms, para ampla divulgação do recrutamento de participantes. O link com a pesquisa em websites e redes sociais foi enviado, por meio de listas de cadastro de e-mails, aos profissionais de educação infantil dos dois países, simultaneamente, durante os meses de março a julho de 2020. Este artigo apresenta uma parte dos resultados e da análise obtidos por meio dos dados brasileiros e da participação das(os) professoras(es) da educação infantil. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE – Parecer nº 4.683.194).
O critério de inclusão dos participantes da ampla pesquisa, cujo material ora apresentado se deriva, foi estar em exercício na educação infantil, no período do estudo, na condição de professor(a), educador(a), coordenador(a) pedagógico(a) ou diretor(a), e responder ao questionário (o que condiciona a existência de acesso a uma rede de internet). No artigo em questão apresentam-se os resultados da participação de professores(as) da educação infantil, totalizando 97 participantes em exercício.
Os dados categóricos selecionados para este artigo são apresentados como frequência absoluta (relativa). As análises estatísticas descritivas foram conduzidas usando o software R versão 4.0.3 (The R Foundation for Statistical Computing, Vienna, Austria) na plataforma R-Studio 1.3.1093 (RStudio Inc., Boston, USA). Em relação às perguntas abertas, as respostas foram organizadas em categorias e subcategorias de análises a partir dos moldes propostos por Bardin (1995), por meio de categorização a posteriori. São apresentados os resultados referentes ao eixo estruturante: os fazeres profissionais redesenhados, com a apresentação da caracterização sociodemográficas das(os) participantes e da (re)organização pedagógica: sobre intencionalidades pedagógicas; e a (re)organização pedagógica: sobre estratégias, tempo e recursos.
Resultados e discussão: os fazeres profissionais redesenhados4
Caracterização sociodemográfica das(os) participantes
O estudo contou com a participação de 97 professores(as) da educação infantil em exercício profissional nas redes públicas de ensino, sendo que 47 (48,5 por cento) atuavam com crianças de idade entre 0 e 3 anos (creche) e 50 (51,5 por cento) com crianças de idade entre 4 e 6 anos incompletos (pré-escola). A maioria desses docentes eram mulheres (91,8 por cento) com idade entre 31 e 50 anos (72 por cento), com especialização lato sensu (62 por cento) e tempo de experiência profissional entre 5 e 15 anos (50 por cento). A Tabela 1 apresenta a caracterização demográfica detalhada dos participantes do estudo.
Característica | Global (N=97) | Creche (n=47) | Pré-escola (n=50) |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Masculino | 6 (8,2) | 4 (8,5) | 4 (8) |
Feminino | 89 (91,8) | 43 (91,5) | 46 (92) |
Faixa etária | |||
<30 anos | 14 (15) | 7 (15) | 7 (15) |
31 a 40 anos | 33 (35) | 16 (35) | 17 (34) |
41 a 50 anos | 35 (37) | 15 (32) | 20 (40) |
51 a 60 anos | 14 (15) | 8 (18) | 6 (12) |
61 a 65 anos | 1 (2) | 1 (3) | 0 (0) |
Experiência profissional | |||
<5 anos | 24 (25) | 14 (30) | 10 (20) |
5 a 15 anos | 48 (50) | 20 (43) | 28 (57) |
16 a 25 anos | 20 (21) | 11 (24) | 9 (18) |
26 a 35 anos | 5 (6) | 2 (5) | 3 (6) |
Nível de formação | |||
Magistério | 3 (4) | 3 (7) | 0 (0) |
Graduação | 25 (26) | 10 (22) | 15 (30) |
Especialização lato sensu | 60 (62) | 31 (66) | 29 (58) |
Mestrado | 9 (10) | 3 (7) | 6 (12) |
Fonte: Elaboração própria.
Os dados estão apresentados na forma de frequência absoluta (relativa).
A prática profissional docente é constituída por um longo período de formação e, mais do que isso, de imersão diante dos desafios cotidianos que a experiência profissional impõe permanentemente, fazendo ampliar escolhas, concepções e estratégias que promovam os processos de ensino e de aprendizagem. É na relação indissociável entre formação (que tem como fonte mobilizadora o pensamento teórico) e a prática profissional (derivada da experiência prática/empírica) que a práxis docente se constitui e se estabelece permanentemente (ABRANTES; MARTINS, 2007). A maior parte das(os) participantes relatou ter entre 5 e 15 anos de prática docente, o que se considera um tempo significativamente expressivo e revelador de experiência profissional. É durante estes anos de formação e experiência que se constituem ideias, concepções, rotinas e práticas, que são amadurecidas em um processo contínuo e histórico.
No entanto, a instalação de um contexto de pandemia impôs às(aos) professoras(es) o desafio de repensar todo este saber constituído em uma pedagogia pautada pela presença, pelo coletivo, pela convivência e pelas interações na educação infantil, exigindo a construção de uma nova forma de planejar e de desenvolver a prática educativa adotada, a partir da implementação de atividades não presenciais, remotas ou de atividades a distância.
Uma porcentagem significativa de professoras(es) (37 por cento) relatou idade entre 41 e 50 anos, pertencendo a uma geração em que a tecnologia nem sempre fez parte do cotidiano de vida pessoal e da formação inicial ou exercício profissional, em especial no âmbito do exercício de trabalho docente na educação infantil. As(os) professoras(es) se depararam com uma significativa sobrecarga de trabalho, na medida em que tiveram que se apropriar de ferramentas tecnológicas e aplicá-las nos fazeres profissionais cotidianos de forma emergencial, estando na maior parte do tempo “abarrotados de trabalhos para corrigir, mensagens de e-mails e aplicativos, fóruns de ambientes virtuais e outros para dar conta” (SAVIANI; GALVÃO, 2021, p. 43). Isso, sem dúvida, favorece a intensificação do adoecimento docente, que é bastante discutido pela literatura no campo educacional e no magistério (CHARLOT, 2008).
Portanto, o contexto da pandemia e a suspensão do funcionamento presencial das escolas impuseram às(aos) professoras(es) a necessidade de desenvolver formas e estratégias para a continuidade do processo de ensino e de aprendizagem. O fato é que as(os) professoras(es) se encontraram em uma situação-limite, conceito desenvolvido por Freire (1987) ao referir-se às experiências cotidianas que nos colocam diante de incertezas, dificuldades e desafios. Para Freire (1987), a situação-limite exige do sujeito a construção do que chamou de “atos-limites”, que se referem às estratégias e caminhos que buscam a superação. Ainda, o autor alerta para o cuidado que, diante de uma situação-limite, não pode ser tomado por uma ideologia fatalista que, inserida no contexto escolar, propicia aos educandos e professores a concepção de que a situação-limite não pode ser superada, restando apenas a adaptação. Também é necessário compreender que a superação da situação-limite somente ocorre a partir de contextos colaborativos e dialógicos, que favorecem o processo de emancipação humana (FREIRE, 1996).
A (re)organização pedagógica: sobre intencionalidades pedagógicas
Sobre as intencionalidades pedagógicas da implementação do atendimento não presencial (a distância) ou remoto na educação infantil, os resultados oriundos de questões abertas evidenciaram que essa adoção teve como principais intencionalidades a manutenção da lembrança ou da proximidade da escola no cotidiano doméstico das crianças e a manutenção do vínculo com as crianças e as famílias. A seguir, apresentam-se algumas das respostas dadas pelas(os) professoras(es):
“Proximidade escola/casa”; “Fortalecimento de vínculos com os pais”; “Aproximação e integração com as famílias”; “Apenas manter o vínculo”; “Maior vínculo entre criança e família”; “Não perder o vínculo da escola”; “Criança lembrará da rotina escolar e estabelecerá vínculo com a família”; “Somente saber que estávamos tentando manter contato”; “Manter vínculo entre alunos, pais e professores”; “Não perder vínculos”; “Manter o vínculo crianças, pais, professores e escola”; “Afetividade e vínculo afetivo”.
Os fazeres profissionais, de forma remota ou não presenciais realizados nesse contexto de interrupção do atendimento presencial nas instituições de educação infantil, não apresentaram como primeira intenção pedagógica a promoção do desenvolvimento global das crianças e aprofundamento ou apresentação de novas conquistas de aprendizagem. O ponto central das práticas, das ações e das atividades realizadas de modo remoto, a distância ou não presencial ancorava-se na manutenção da lembrança escolar e do laço afetivo com a professora.
As(os) professoras(es) assumiram a adoção de estratégias não focalizando como objetivo central os processos de aprendizagens ou os progressos de desenvolvimento infantil, mas um desenho metodológico que intencionava a permanência da memória da rotina cotidiana na educação infantil e das relações humanas com a profissional. Esse resultado reforça o que Saviani e Galvão (2021, p. 39) defendem sobre a falácia do “ensino” remoto: “deve-se ter presente que, pela sua própria natureza, a educação não pode não ser presencial”. Para os autores, além de uma certa “frieza” que perpetua o ensino remoto, típico das ferramentas tecnológicas, também existe a impossibilidade de realizar uma abordagem crítica dos conteúdos escolares, pautada pelo diálogo e reflexão na relação humana.
Os resultados reforçam o urgente redesenho da organização pedagógica no que tange às intencionalidades ou objetivos. Neste sentido, Saviani e Galvão (2021) ressaltam inúmeras possibilidades que poderiam ter sido adotadas no âmbito da educação que não comprometessem o processo de desenvolvimento de crianças e das finalidades educativas dos professores e da etapa de ensino. Alertam ainda para os riscos que estamos correndo, em especial à educação, no sentido de se adaptar ao que vem sendo chamado de “nova modalidade de ensino”, bastante desejada no sistema capitalista que vivemos.
Desta forma, se a intencionalidade central dos professores é a manutenção de uma espécie de memória escolar, ou seja, apenas um contato com as crianças e famílias, as ferramentas ou recursos tecnológicos não precisam ser didáticos em sua gênese. Portanto, a partir da implementação das ações remotas ou a distância perde-se a especificidade da docência nessa etapa educativa, assim como a especificidade do trabalho pedagógico a ser desenvolvido com as crianças na educação infantil, como já apontado na seção introdutória. Esses aspectos alimentam o desencadeamento de uma crise de desigualdade educacional, além de revelar também uma crise identitária docente.
Há vários anos, os fazeres docentes voltados à creche e à pré-escola vêm buscando superar a concepção pautada na prática assistencialista, no espontaneísmo, nas distorções entre as práticas de educar e de cuidar com equívocos profundos na compreensão dos cuidados infantis. Somado a esses elementos problemáticos, há ainda uma acentuada organização pedagógica focada na antecipação de conhecimentos dos anos iniciais do ensino fundamental à educação infantil, com apostilamento de materiais didáticos, realização de exames de aprovação e fragilidades de escolhas metodológicas em processos de aquisição de leitura e de escrita.
Se a formação e constituição identitária da(o) professor(a) da educação infantil se deu para a compreensão e desenvolvimento de profissional pautada(o) pela presença, pelo convívio, pelo reconhecimento das interações, do brincar como eixo estruturante do cuidar e do educar e pela necessária ação concreta da criança sobre os objetos do conhecimento, tomando seu desenvolvimento e cotidiano como prerrogativas às ações, o redesenho necessário dessa organização pedagógica é revelador de uma implicação de transformação da identidade profissional?
Os resultados indicam que as(os) professoras(es) tiveram que reconfigurar o elemento da presencialidade como uma das intencionalidades pedagógicas, assim como o elemento nodal da ação concreta das crianças sobre os conhecimentos, de modo que a experimentação desses conhecimentos fizesse sentido a elas na qualificação das aprendizagens e em seu progresso de desenvolvimento. As tecnologias foram assumidas como recursos mediadores para a sustentação de um vínculo e de uma lembrança das experiências e da instituição escolar.
A (re)organização pedagógica: sobre estratégias, tempo e recursos
Muitas foram as incertezas diante da suspensão do atendimento presencial nas instituições escolares, incluindo incertezas referentes à educação infantil e à emergência de ações para implementação do ensino remoto ou de atividades não presenciais (a distância), sendo que o contato remoto e mesmo as interações síncronas com as crianças e as famílias foram um processo que, no Brasil, não contou com sólido investimento em termos de financiamento ou de ações organizadas nacional e politicamente que visavam dar suporte à implementação e qualificar as práticas realizadas.
No que se refere aos aspectos metodológicos, as(os) professoras(os) indicaram contatos síncronos e assíncronos. Sobre estratégias educativas e tempo, a maioria das participantes (71 por cento) destacou que os contatos síncronos ou “momentos de aulas ou atividades on-line” foram planejados para acontecerem uma vez por semana. Nos outros dias da semana, as atividades eram enviadas de forma assíncrona, para que as crianças pudessem desenvolvê-las em casa sendo orientadas pelas famílias.
Quanto ao tempo de duração destes momentos de contato, entre as(os) professoras(es) que realizaram videochamadas on-line com as crianças e famílias, a maioria relatou duração entre 5 e 10 minutos (43,3 por cento), sem diferença significativa entre os grupos de professoras(es) atuantes em pré-escolas e em creches. Contudo, vale destacar que um maior número de professoras(es) de pré-escola (42 por cento) relatou que os contatos on-line tiveram duração acima de 10 minutos.
Em relação a estratégias e recursos utilizados para os contatos remotos (assíncronos), uma porcentagem significativa de professoras(es) (65 por cento) afirmou que o contato com as crianças e com as famílias ocorreu por meio de gravação, utilizando recursos de áudio e de vídeo. Somente uma minoria (20,6 por cento) referiu-se à utilização de áudio e vídeo ao vivo (na forma síncrona).
Ainda sobre os recursos, a maior parte das professoras(es) (82,5 por cento) indicou o uso de WhatsApp® como uma plataforma digital para contatos, interação e envio de arquivos às famílias e às crianças. O Facebook® (40,2 por cento) foi a segunda plataforma mais utilizada. Diante da suspensão do atendimento presencial, as(os) professoras(es) recorreram a instrumentos tecnológicos de seu próprio uso cotidiano, não didáticos em sua natureza, argumentando como principal objetivo ou intencionalidade educativa a manutenção do contato com as crianças e suas famílias.
Quando questionadas sobre as bases de domínio ou de conhecimento para a utilização desses recursos tecnológicos, a maior parte das(os) professoras(es) (65 por cento) indicou ter recorrido a um conhecimento pessoal prévio para viabilizar a continuidade deste contato e uso por iniciativa pessoal, aplicados na forma remota (criando grupos de transmissão para registros de mensagens ou envio de arquivos gravados ou de atividades, por exemplo). Uma porcentagem de professoras(es) (44 por cento) manifestou ter recorrido a tutoriais para auxiliar na utilização de recursos tecnológicos para o contato remoto (assíncrono) com as crianças e as famílias. O contato remoto das(os) professoras(es) com as crianças e com suas famílias foi escolha e condução pessoal, pautando-se em um conhecimento e experiência cotidiana prévia e pessoal, ou seja, sem apoio ou orientação institucional ou organização coletiva ou gestora da instituição de educação infantil, assim como desconectado de uma análise didática dos recursos de plataformas para atendimento das intencionalidades ou objetivos educacionais esperados. Somente 18 por cento das(os) professoras(es) teve apoio e disponibilidade de suporte técnico para esse fazer profissional e 26 por cento teve suporte de fontes teóricas ou científicas.
Com base nos dados, tanto as estratégias quanto a seleção dos recursos foram adotadas com base no pensamento empírico, ou seja, a partir da experiência cotidiana ou, nas palavras de Freire (1987, p. 34), um saber da “experiência feito” destas(es) professoras(es). Neste sentido, existe uma ênfase pragmática na organização do “ensino” remoto, absolutizando o empírico na construção do fazer pedagógico. Abrantes e Martins (2007) alertam para o perigo das práticas ou dos fazeres pedagógicos pautados pela experiência empírica isoladamente:
[…] um indivíduo imerso na realidade imediata, sem apoio de conceitos que sintetizam a experiência histórica do ser humano, corre o risco de se afogar numa imensidão de informações caóticas ou, no melhor dos casos, realizar avanços lentos e insignificantes à custa de muito se debater, como aquele que não foi ensinado a nadar e é atirado na água. (ABRANTES; MARTINS, 2007, p. 321).
A metáfora pode ser pensada para este grupo de participantes da pesquisa: “foram atiradas na água sem saber nadar”. Isso, certamente, não favorece a superação do que Freire (1987) chamou de situação-limite, já destacado neste artigo. Ao contrário, o sujeito é colocado na permanência de uma situação pautada pela incerteza, insegurança, medo, desesperança e desespero.
Tal argumentação sustenta-se na medida em que 83,5 por cento das(os) professoras(es) relataram não terem participado de qualquer curso ou processo de formação profissional de preparo e oferta de atividades educativas de forma remota, a distância ou não presencial, com ou sem a mediação de tecnologias. Evidencia-se a complexidade que a interrupção do atendimento presencial nas instituições de educação infantil implica não somente na vida de crianças e de suas famílias, mas também nos fazeres profissionais de professoras(es), uma vez que a maioria não teve formação profissional para implementar estratégias remotas para o desenvolvimento de seus fazeres docentes. Os resultados mostram ainda que as escolhas realizadas pelas(os) professoras(es) no contato com as crianças e suas famílias ocorreu a partir de um conhecimento cotidiano prévio, com base em tecnologias já utilizadas na vida pessoal e como meios para comunicação social.
A Tabela 2 sistematiza os principais resultados em relação a estratégias, tempo e recursos.
Característica | Global (N=97) | Creche (n=47) | Pré-escola (n=50) |
---|---|---|---|
Frequência dos contatos ou interações | |||
Não especificado | 6 (6,2) | 3 (6,4) | 3 (6) |
Diária | 7 (7,2) | 3 (6,4) | 4 8) |
Semanal | 69 (71) | 34 (72,4) | 35 (70) |
Quinzenal | 15 (15,6) | 7 (14,8) | 8 (16) |
Duração – tempo | |||
Não especificado | 14 (14,4) | 8 (17) | 6 (12) |
<5 minutos | 7 (7,2) | 5 (10,6) | 2 (4) |
5 a 10 minutos | 42 (43,3) | 21 (44,7) | 21 (42) |
>10 minutos | 34 (35,1) | 13 (27,7) | 21 (42) |
Metodologias, recursos e estratégias | |||
Gravação de áudio | 48 (49,5) | 23 (48,9) | 25 (50) |
Áudio ao vivo | 18 (18,5) | 7 (14,9) | 11 (22) |
Gravação de áudio e vídeo | 63 (65) | 33 (70,2) | 30 (60) |
Áudio e vídeo ao vivo | 20 (20,6) | 10 (21,2) | 10 (20) |
Outros | 33 (34) | 15 (31,9) | 18 (36) |
Plataformas digitais utilizadas | |||
Facebook® | 39 (40,2) | 15 (31,9) | 24 (48) |
WhatsApp® | 80 (82,5) | 38 (80,9) | 42 (84) |
Skype® | 2 (2) | 2 (4,2) | 0 (0) |
Zoom® | 16 (16,5) | 8 (17) | 8 (16) |
Microsoft Teams® | 1 (1) | 4 (4,1) | 1 (2) |
Google Hangouts® | 8 (8,2) | 0 (0) | 4 (8) |
Outros | 24 (24,7) | 14 (29,8) | 10 (20) |
Base de domínio/conhecimento da prática adotada | |||
Aproveitando conhecimento tecnológico anterior | 65 (67) | 30 (63,8) | 35 (70) |
Poderia contar com a disponibilidade de suporte técnico | 18 (18,6) | 6 (12,8) | 12 (24) |
Tutoriais consultados | 44 (45,4) | 21 (44,7) | 23 (46) |
Fontes teóricas/científicas consultadas | 26 (26,8) | 15 (31,9) | 11 (22) |
Ajuda das pessoas de casa | 4 (4,1) | 2 (4,2) | 2 (4) |
Nenhuma | 1 (1) | 1 (2,1) | 0 (0) |
Todas as opções anteriores | 1 (1) | 1 (2,1) | 0 (0) |
Fonte: Elaboração própria.
Os dados estão apresentados na forma de frequência absoluta (relativa).
Ao comparar os resultados de professoras(es) de creches e de pré-escolas, evidencia-se que não existiu diferenças significativas em relação aos dois grupos de atuação profissional, com a exceção do tempo de duração do contato com as crianças e suas famílias, sendo que 44,7 por cento das(os) profissionais da creche indicaram um tempo entre 5 e 10 minutos (44,7 por cento), enquanto na pré-escola esse tempo foi maior. Com isso, nota-se que a implementação do chamado “ensino remoto” emergencial, atividades remotas, atividades a distância ou não presenciais, não considera as demandas, o modo de aprender de bebês e de crianças da educação infantil e as necessidades de cada etapa de desenvolvimento infantil.
Em relação aos materiais e atividades propostas a partir da suspensão do atendimento presencial nas instituições de educação infantil, a maioria (80 por cento) das(os) professoras(es) indicou que novos materiais e atividades foram construídos para essa circunstância ou, para 75 por cento dos profissionais, os materiais e atividades anteriormente existentes foram adaptados para atender às demandas ou objetivos do ensino remoto.
Os resultados revelaram que as(os) professoras(es) compreendem a necessidade de implementar outras estratégias para o desenvolvimento das ações ou atividades de forma remota ou não presencial, sendo necessário realizar adaptações nos materiais utilizados. Ainda, expressaram que essa (re)organização pedagógica precisaria ser articulada a partir de um trabalho de grupo de professoras(es), ou seja, de um coletivo de professores com o apoio e a mediação da equipe pedagógica (como coordenação pedagógica). Esse elemento, sem dúvida, constitui-se como um desafio ainda maior às instituições de educação infantil, reforçando os estudos científicos que apontam as dificuldades na constituição de uma organização coletiva da escola, em especial no contexto público de ensino (SOUZA et al., 2014).
Considerações finais
Neste artigo, evidenciou-se que, para as(os) professoras(es), a implementação de ações remotas ou não presenciais com famílias e crianças se constitui em uma tarefa bastante desafiadora e exigente, especialmente porque muitos não tiveram uma formação específica para usar as tecnologias como recursos centrais da organização pedagógica no âmbito da educação infantil. Neste sentido, as(os) professoras(es) buscaram recursos em suas próprias experiências cotidianas anteriores, a partir de ferramentas tecnológicas utilizadas em sua vida pessoal, por exemplo, WhatsApp® e Facebook®.
Sobre os objetivos ou intencionalidades em relação aos fazeres docentes na forma remota, os eixos estruturantes foram a sustentação de uma lembrança da vida nas instituições de educação infantil e do vínculo com as(os) professoras(es). Houve predomínio pela manutenção de uma espécie de memória escolar com as crianças ou de laço afetivo construído na relação professora-criança, não sendo assumido como centralidade as aprendizagens infantis ou o progresso do desenvolvimento global das crianças.
Os resultados permitem refletir sobre uma possível pausa ou mesmo retrocesso vivido no âmbito das especificidades do trabalho na educação infantil, da função social assumida por esta instituição e dos direitos de aprendizagem das crianças, uma vez que coloca em xeque o avanço das últimas décadas de luta e defesa de uma educação infantil pautada em teorias pedagógicas ativas ou participantes e no reconhecimento da centralidade da criança nas práticas educativas, visando o desenvolvimento integral, a autonomia e a formação crítica cidadã. Assim, questiona-se: o contexto da pandemia se coloca como alimento para uma transferência de responsabilidade pedagógica e de formação científica das crianças das escolas às famílias? Estaríamos retrocedendo de uma pedagogia pautada pela concretude das aprendizagens, pelas experimentações e ações infantis diante dos conhecimentos, pela real participação da criança, com conhecimento em conexão com seu cotidiano, pela autonomia e formação crítica emancipadora, para uma proposta ou projeto político educacional de mera transmissão de saberes (e de responsabilidades)? Quais serão os impactos da interrupção do atendimento presencial na educação infantil sobre as crianças no que tange à desigualdade educacional, especialmente as mais pobres que frequentavam as instituições públicas de educação infantil?
Estas questões convocam a pensar na complexidade envolvida a partir do fechamento das escolas e a implementação do que vem sendo chamado de ensino remoto emergencial ou atividade não presencial (a distância). Ainda, é importante sempre reforçar as implicações destas estratégias remotas na educação de crianças, especialmente de crianças na primeira infância, dado que a especificidade da prática educativa em contextos institucionais de educação infantil se difere dos demais níveis de ensino ou etapas educativas. Além disso, Saviani e Galvão (2021) alertam que o discurso da excepcionalidade, a partir da implementação do ensino remoto emergencial ou atividades não presenciais, serve muito bem aos interesses de ampliação dos preceitos da educação a distância ou mesmo de regulamentação do homeschooling na educação básica brasileira. Neste sentido, ressalta-se a importância de novos estudos capazes de discutir a continuidade da problemática devido à pandemia em curso no Brasil ao longo do ano de 2021 e as implicações desta permanência na organização pedagógica da educação infantil pública.