Introdução
Este artigo comunica resultados da primeira fase da pesquisa “Dimensões educacionais das Jornadas de 2013: Pautas educacionais, experiências escolares e formação política de jovens em protesto”. Essa fase tem natureza bibliográfica e explora os produtos a respeito das Jornadas de Junho de 2013 (artigos, livros, capítulos, teses e dissertações), que guardam relação direta ou indireta com o que temos chamado de “dimensões educacionais” desse ciclo de protestos no Brasil.
Nosso trabalho aceita o desafio de dialogar com o tema deste dossiê, para o qual a pesquisa bibliográfica citada contribui para pensar os temas educação, estudantes, juventude, subjetividades e identidades. Conceito central para nossa pesquisa tem sido o de subjetivação política, de Jacques Rancière (1996), o qual nos tem levado a pensar as continuidades e descontinuidades nos processos de formação política de jovens em movimentos sociais, assim como em suas trajetórias educacionais e políticas. A subjetivação política permite analisar ao menos em parte o que os produtos selecionados da pesquisa bibliográfica trazem sobre a participação de jovens nas Jornadas e suas trajetórias – conceito que dialoga com o de “itinerários”.
O artigo, após esta introdução, divide-se em 6 partes: a primeira descreve brevemente o que foi Junho de 2013 e apresenta dados gerais sobre a pesquisa bibliográfica, destacando o bloco temático aqui analisado; a segunda apresenta uma breve discussão sobre as noções de itinerários e trajetórias; a terceira traz o conceito de subjetivação política de Rancière, já em diálogo com os produtos da pesquisa bibliográfica que tratam de subjetividade e identidade. Este mesmo diálogo se repete nas partes seguintes, agora com os produtos a respeito do tema educação (quarta parte) e juventude e estudantes (quinta parte); ao final, são feitas considerações que, menos do que conclusões, delineiam roteiros para os próximos passos da pesquisa.
As Jornadas e a pesquisa bibliográfica
As Jornadas de Junho de 2013 no Brasil estão inscritas no ciclo global de protestos ao longo dos anos 2010, denominado por Gerbaudo (2017) como “revoltas das praças”, por se caracterizarem pela tática da ocupação de espaços públicos, destacadamente as praças. A origem desse ciclo estaria na crise econômica mundial iniciada em 2007-2008, que, apesar de ter marcado o declínio do capitalismo global, tem sido enfrentada pelas elites políticas e econômicas com os mesmos instrumentos oriundos do repertório neoliberal que provavelmente causaram essa crise. Entre os principais eventos, a Primavera Árabe (iniciada em 2010), o movimento dos Indignados na Espanha (2011), o Ocupe Wall Street (2011), as Jornadas de 2013 e o Nuit Debuit na França (2016).
No Brasil, a latência das Jornadas reside, principalmente, na constituição do Movimento Passe Livre (MPL) e suas campanhas contra o aumento das tarifas dos transportes públicos – tendo como marco a Revolta do Buzu, em Salvador, em 2003 – e na criação dos Comitês Populares da Copa (CPC), a partir de 2010, que mantiveram a pauta de denúncia dos impactos das obras para os megaeventos esportivos (Copa do Mundo e Olimpíadas) para além do ano de 2013 ( DOWBOR; SZWAKO, 2013).
Antes mesmo de junho, iniciam-se os protestos de 2013 em torno das tarifas do transporte público: o bem-sucedido e largamente autonomista Bloco de Luta pelo Transporte Público em Porto Alegre, em março. ( GONÇALVES, 2019). O processo ocorrido na capital paulistana, entretanto, tem sido usado como marco na cronologia e na compreensão das Jornadas: um início aguerrido, mas com menor número de participantes em manifestações e bloqueios pelo MPL, fortemente reprimidos pela polícia; uma onda de apoio da opinião pública que engrossou e legitimou os protestos, vitoriosos na pauta de revogação do aumento das tarifas dos transportes; e uma terceira fase de contínua ampliação de manifestantes e de multiplicação das pautas, em que ganha força, inclusive com apoio da grande mídia, um discurso anticorrupção, nacionalista e antipartido. Com dinâmicas semelhantes, as Jornadas repercutiram nacionalmente e se interiorizaram, no conjunto de ações coletivas com a maior adesão popular da história do Brasil. Nesta fase, entretanto, a caracterização do movimento como essencialmente de esquerda perde força, tendo em vista a vinda para as ruas de sujeitos e organizações de ideologias liberais e conservadores ( SINGER, 2013).
O auge dos protestos foi marcado pela coabitação entre manifestantes progressistas e conservadores nas ruas. Após junho, ainda que tenham voltado a ser menos massivas, as mobilizações progressistas tiveram sobrevida, como as do CPC, greves, ocupações por movimentos dos sem-teto e, em 2015 e 2016, também as ocupações estudantis contra políticas neoliberais na educação ( BRAGA, 2017). Mas a ambígua expressão nacionalista e direitista nas Jornadas ganha organicidade e força, especialmente em 2015, no movimento de impeachment de Dilma Rousseff, vitorioso em 2016 com um golpe parlamentar.
A pesquisa teve uma primeira fase de caráter bibliográfico. Em maio de 2021, por meio do uso dos descritores “Jornadas de 2013” e “Junho de 2013”, nas bases da Scientific Electronic Library Online (Scielo), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Google Acadêmico, foram levantados 142 produtos, entre teses, dissertações, artigos, livros e capítulos sobre as Jornadas, conforme Tabela 1. Os produtos foram divididos em 5 blocos temáticos, sendo que o quinto bloco (“Outros”) se referia a produtos que não tinham relação direta ou indireta com o tema “dimensões educacionais”.
Tema | n. | % |
---|---|---|
Bloco 1: Educação, juventude e estudantes, identidade e subjetivação | 26 | 18,3 |
Bloco 2: Coletivos e experiências ativistas/militantes | 28 | 19,7 |
Bloco 3: Redes sociais e mídias | 29 | 20,4 |
Bloco 4: Análises gerais relevantes | 25 | 17,6 |
Bloco 5: Outros | 34 | 23,9 |
Totais | 142 | 100 |
Fonte: Levantamento no Scielo, Portal de Teses e Dissertações da Capes e Google Acadêmico, em maio de 2021.
Em um primeiro momento, todos os produtos descritos na Tabela 1 foram fichados pela equipe de pesquisa. Para o fichamento, foram consultados os resumos e, em caso de ausência de resumo ou insuficiência de informações, também se consultaram as introduções e considerações finais.
No momento posterior, os produtos selecionados para a documentação foram lidos e “documentados” pela equipe. O formulário de documentação continha os dados básicos do produto, assim como os principais resultados, comentários a respeito das principais contribuições para a pesquisa e trechos selecionados.
Neste artigo, analisamos especialmente os produtos selecionados para o Bloco 1, com o amplo tema “Educação, juventude e estudantes, identidade e subjetivação”. Dos 26 produtos levantados pela pesquisa bibliográfica, 19 foram selecionados para a documentação. Para fins de análise, esses produtos foram divididos em três subtemas: “Educação”, “Juventude e Estudantes” e “Identidade e subjetivações”, conforme a Tabela 2.
Subtema | n. | Descrição |
---|---|---|
Identidade e subjetivação 7 | 7 |
Andrade (2016) Araújo (2015) Mendonça (2017) Chick (2016) Portugal (2016) Ritter (2016) Venera (2017) |
Educação | 7 |
Keys (2015) Haddad (2016) Estácio Jr. (2015) Martins, J. (2013) Martins, M. (2013) Menis (2015) Rose (2015) |
Juventude e estudantes | 5 |
Eusebios Filho; Guzzo (2018) Gohn (2018) Pereira (2016) Singer (2013) Almeida; Corrochano; Sposito (2020) |
Total | 19 |
Fonte: Dados da pesquisa “Dimensões educacionais das Jornadas de 2013”.
Itinerários e trajetórias
O termo itinerário, a princípio, nos parece denotar um trajeto pré-determinado, tal qual um roteiro de viagem ou um percurso pré-definido em etapas de escolarização. Itinerário estaria ligado, portanto, à rota prevista, algo que precede o ato de ir. Trajetória, por sua vez, refere-se ao trajeto efetivamente vivido pelo sujeito, que pode coincidir com o itinerário socialmente esperado, acompanhar esse itinerário com mais ou menos desvios ou tomar sentido inesperado.
No encontro com a literatura acadêmica em Educação e Sociologia, entretanto, os significados dos termos parecem se confundir ou ser apresentados como sinônimos. Por exemplo, em pesquisas em Educação de Jovens e Adultos (EJA) que buscam conhecer a vida anterior e para além da escola de jovens e adultos educandos:
Como itinerários formativos e curriculares estamos compreendendo os processos constituintes de um percurso de formação presentes nas práticas educativas, envolvendo professores, adultos, jovens, instituições e sistema escolar, no processo de transmitir ou mesmo de produzir conhecimentos novos para os sujeitos que se colocam em relação. ( FAZZI, 2007, p. 17).
A noção de itinerário ainda está na pesquisa de formação de professores, por exemplo no esforço de “[…] trabalhar os acontecimentos histórico-pessoais relacionados ao trabalho docente, analisando como a subjetividade compõe itinerários de vida e formação na carreira de professor” ( BEZERRA; BRAGA; GONÇALVES, 2018, p. 42).
Finalmente, Pinheiro (2017) faz uso do termo itinerário em sentido lato, incluindo o de trajetória percorrida ou narrada postumamente, para além de roteiro com marcos pré-estabelecidos. Na verdade, ele parece cotejar os itinerários efetivos dos sujeitos das periferias de Porto Alegre – distinguidos por coortes etários – do itinerário previsto “oficialmente” por pessoas mais velhas e militantes dos movimentos urbanos. Assim, Pinheiro (2017, p. 4) narra certa discrepância entre, de um lado, ideais, vínculos comunitários e identidade local unitária (como agenciadores dos itinerários esperados) e, de outro, as efetivas inflexões nos modos de identificação dos sujeitos em “contextos de significativa diversificação social e ampla circulação informacional”.
Nossa pesquisa partiu da noção de trajetórias, em especial a de trajetórias escolares, que são definidas como “os percursos percorridos pelos indivíduos ao longo da sua vida escolar” ( BITTAR, 2015, p. 49). As concepções sobre trajetórias escolares oscilam entre a perspectiva mais estrutural de Pierre Bourdieu e aquela mais interacionista de Bernard Lahire. Por exemplo, Senkevics e Carvalho (2020) perguntam sobre velhas e novas formas de estratificação educacional da juventude brasileira, após anos de massificação do ensino médio e a chegada de significativo número de jovens à educação superior, as primeiras e primeiros de suas famílias: apesar da ampliação do acesso, funcionam novas e velhas barreiras marcadas por classe, gênero e raça. Já estudos como os de Brandão (2007) trataram das práticas das famílias das elites para reproduzir os privilégios educacionais e suas posições superiores na hierarquia social, como o investimento em escolas de elite.
Entretanto, nosso estudo sobre as Jornadas, com base nos achados da pesquisa sobre as ocupações secundaristas de 2015 e 2016 e sobre os coletivos juvenis na universidade, tem buscado considerar o impacto de uma experiência juvenil extracotidiana – no caso, a participação em protesto ou ação coletiva de caráter político – nas trajetórias escolares e, na verdade, nos próprios itinerários de vida.
As pesquisas que temos realizado, tanto sobre jovens das universidades quanto secundaristas das ocupações, revelam que há um complexo imbricamento entre tendências acumulativas da socialização política 6 e os impactos contingentes da experiência na ação coletiva, assim como o peso do contexto sociopolítico – que, no retorno à “normalidade” do cotidiano, tende a atuar de modo desfavorável para a manutenção do engajamento ativista ou militante de adolescentes e jovens que se inseriram nas ações coletivas ( GROPPO et al., 2020 ). Em relação às trajetórias escolares, a participação nas ocupações secundaristas tem sido decisiva para a decisão de dar continuidade aos estudos na educação superior, assim como o tipo de universidade (em geral, pública), o tipo de curso e o sentido da decisão (que tende a se politizar) ( GROPPO, OLIVEIRA, 2021).
A noção de itinerário biográfico na composição das identidades sociais, presente no trabalho de Pinheiro (2017), parece dialogar muito bem com essa concepção de trajetória escolar e política de jovens. O itinerário biográfico efetivo tanto considera acontecimentos, condições, pertenças e instituições socializadoras comuns (como família, trabalho e escola), quanto se abre para analisar a pluralidade de roteiros, influenciados por coortes geracionais e outras formas de estratificação social. ( PINHEIRO, 2017). Além da possibilidade de, no limite, tratar de singularidades com tal noção de itinerário, nosso enfoque sobre as trajetórias educacionais e políticas estão abertas ainda para a contingência. E as Jornadas de 2013, mesmo que tenham sido um evento compreensível em sua latência e ao menos em parte explicável por causas concretas, trouxe consequências imprevisíveis para a vida coletiva e as biografias individuais.
Nosso texto, na sequência, busca dialogar com essas considerações preliminares sobre itinerários e trajetórias.
Identidade e subjetivações
A noção de subjetivação política de Jacques Rancière (1996) trata da constituição de sujeitos políticos durante o que chama de dissenso. Dessa forma, tanto desafia os sentidos usuais de política e político quanto parece propor um deslocamento no tema das identidades e suas relações com os movimentos sociais. O dissenso é o momento da “verdadeira” política para Rancière: quando pessoas vistas como inferiores, incapazes ou excluídas da comunidade política demonstram a igualdade fundamental entre todas as pessoas, construindo, ainda que de forma provisória e breve, “sujeitos políticos”, ao desafiar as fronteiras artificiais estabelecidas entre “cidadãs” e “cidadãos” e quem está de fora. Essas fronteiras, por sua vez, são defendidas pelos poderes “policiais” da repressão, gestão e legitimação (a institucionalidade que nos acostumamos a associar com a política).
Há, a princípio, uma limitação do conceito de subjetivação política de Rancière para tratar de junho de 2013: justamente o fato de que, em junho, em sua fase mais massiva, houve a mobilização de sujeitos do campo da direita. Subjetivação política pressupõe uma política vivida como afirmação da igualdade, que o filósofo considera como fundamental entre todas as pessoas. Segundo Norberto Bobbio (2001), a afirmação da igualdade é algo que marcaria a posição das esquerdas. Tratando do movimento estudantil francês de 1968, Rancière (2014) comenta algo que parece valer para o início progressista de junho e seus rebentos, como o movimento das ocupações secundaristas: “Contra as hierarquias do consenso e as paixões da exclusão, a ocupação da rua pela multiplicidade anônima reafirmava a comunidade da partilha. E ela só podia reafirmá-la revisitando os traços da inscrição violenta que tornara a ‘questão escolar e universitária’ num palco de verificação da igualdade” ( RANCIÉRE, 2014, p. 65).
Assim, a princípio, subjetivação política não se aplica às experiências e aprendizados políticos que são classificados como de direita; com base em Rancière (1996), pode-se afirmar que tais experiências e aprendizados seriam parte dos recursos da “polícia” (o político como força, controle e criação do consenso para a manutenção da ordem social desigual) e, portanto, avessa à política como dissenso e momento da subjetivação política.
Como visto, em sua latência e origem, as manifestações de 2013 são progressistas, de um campo à esquerda do próprio Partido dos Trabalhadores (PT). Os produtos consultados para este artigo não elaboram com profundidade a entrada de sujeitos, grupos e pautas liberais e da direita, mas é necessário considerar que outras experiências políticas se deram nas ruas em 2013, especialmente na segunda e mais massiva fase das Jornadas. Do ponto de vista da subjetivação política, essas experiências políticas de direita se opõem aos dissensos produzidos pelos movimentos autonomistas e negam suas afirmações da igualdade – paradoxalmente, também por meio da ocupação das ruas e, em muitos casos, compartilhando as ruas com sujeitos e organizações da esquerda autonomista. Manifestantes de direita vão reafirmar as classificações da ordem social e as divisões na partilha do sensível, sob as vestes da justa revolta contra a corrupção e o patriotismo. E, significativamente, vão tomar posse do sentido de “povo”, como se demonstra a seguir.
Na esteira de Gerbaudo (2017), as identidades parecem compor o fermento do movimento antiglobalização (do final do século passado e início do atual), na forma de uma coalizão em torno de um adversário comum, o capitalismo global, coalizão que coube relativamente bem no conceito de multidão de Hardt e Negri (2001). Entretanto, ainda segundo Gerbaudo (2017), as revoltas das praças dos anos 2010, nas quais as Jornadas de 2013 estão inscritas, reconstroem a noção de povo e popular, como uma unidade dos “99%” contra as elites do poder e das finanças, como bem expressou o movimento Ocupe Wall Street. Parece fazer mais sentido agora a noção de subjetivação política de Rancière. Se a multidão remete à coalizão das múltiplas identidades, a subjetivação política referenda a igualdade primordial entre todas e todos, revelada sobretudo pelo dissenso promovido por quem o poder “policial” deseja manter fora da comunidade política. Há, aqui, a recriação da ideia de povo, que é uma das grandes marcas dos movimentos das praças, segundo Gerbaudo (2017).
Entretanto, no Brasil assistimos a uma tomada pelos movimentos de direita da própria noção de “povo”, mascarada como “pátria” e deslocada do populismo democrático radical. Isso é uma marca da fase massiva de junho e que se explicitaria nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2015 e 2016, na forma do hino, da bandeira e do verde e amarelo.
Enfim, é preciso comentar que, como vimos em recente pesquisa sobre as ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016 – um rebento progressista das Jornadas –, o processo de subjetivação política não é necessariamente oposto ao da assunção de identidades – lá, em especial, de gênero e orientação sexual e, secundariamente, étnico-racial. ( GROPPO; SILVA, 2022). A assunção de sujeitos políticos abre uma oportunidade no espaço-tempo da política – como a escola ocupada, ou os protestos nas ruas –, assim como nas trajetórias de adolescentes, para repensarem sua condição de mulher e até mesmo de homem, por meio de um potente feminismo secundarista, e sua orientação sexual – seja LGBTQIA+ seja a de heterossexual que desconstrói preconceitos.
Os sete produtos selecionados para a documentação no sub-bloco “Identidade e subjetivações” são os que melhor dialogam com o conceito de subjetivação política, primordial para a pesquisa “Dimensões educacionais das Jornadas de 2013”. Os sete produtos podem ser divididos em dois grupos: o primeiro, em torno da identidade; o segundo, em torno da subjetividade/subjetivação.
Sobre os três produtos que tematizam a identidade, a dissertação em letras de Araújo (2015) se destaca, por um lado, por sua qualificada análise de discurso, em uma relevante contribuição metodológica para compreender as narrativas a respeito das Jornadas; de outro, mais relevante para este artigo, por seu empenho em trazer o conceito de multidão de Hardt e Negri (2001) justamente para tematizar a identidade social nas Jornadas. A identidade social, em Araújo (2015), citando teorias sociológicas como as de Bauman, revela-se no protesto como fluida, processual e constituída por meio da diferença: nas Jornadas, destaca-se o contraponto entre a multidão e a repressão policial na constituição dessa identidade de manifestantes. Mendonça (2017) também trata do tema da identidade social na modernidade tardia, fazendo dialogar o conceito de multidão de Hardt e Negri com teorias sociológicas contemporâneas, em especial a do reconhecimento de Axel Honneth – igualmente mobilizada por Pinto (2016). Para Mendonça (2017), a noção de multidão era capaz de explicar a conectividade e a valorização da singularidade nos protestos, em que indivíduos singulares teriam se unido em torno da construção de um projeto comum. Pinto (2016) mobiliza teorias do reconhecimento de Honneth, Nancy Fraser e Judith Butler para chegar a uma conclusão menos otimista sobre as Jornadas: ainda que elas sejam uma expressão do desejo de reconhecimento daquela amplitude de indivíduos que vão às ruas, “a ausência de sujeitos coletivos organizados caracterizou uma condição de dispersão e fragmentação, resultando em uma demanda por reconhecimento antipolítica e individualizada”. ( PINTO, 2016, p. 1071).
O segundo grupo de produtos enfatiza o tema da subjetividade e subjetivações para a compreensão dos sentidos de junho. Mas apenas Portugal (2016) faz isso do mesmo modo que nossa pesquisa, recorrendo a Rancière. Andrade (2016), Ritter (2016) e Venera (2017) preferem usar como base as teorias pós-estruturalistas de Michel Foucault e Gilles Deleuze, oferecendo um interessante contraponto à nossa pesquisa sobre as Jornadas.
Tendo como tema as narrativas da grande mídia e de manifestantes sobre as Jornadas, a dissertação de Portugal (2016) destaca o conceito de partilha do sensível, de Rancière, conceito com dimensões tanto políticas quanto estéticas que se refere ao modo como, por meio de ficções, estabelecem-se fronteiras a respeito de quem pode participar legitimamente dos debates públicos e dos processos decisórios e do que pode figurar como tema desses debates e decisões. O dissenso promovido por manifestantes possibilita uma nova partilha do sensível, potencialmente mais plural e inclusiva, não apenas pela ampliação dos sujeitos que teriam o direito de participar dos processos decisórios, mas também pelos temas a serem tratados publicamente, como o “direito à cidade”. A grande mídia rebate na defesa da ordem social e política preexistente, exercendo assim também uma ação “policial”, inclusive quando, a partir de certo momento, passa a distinguir manifestantes entre “legítimos” (que protestam pacificamente e tematizam a corrupção e o antipartidarismo) e “vândalos” (que resistem aos ataques da polícia e tematizam a ampliação dos direitos).
A dissertação de Andrade (2016) é exemplar na busca de aproximação entre o pós-estruturalismo de Michel Foucault e o conceito de multidão de Hardt e Negri. Andrade (2016) afirma que, efetivamente, teria se formado uma “multidão” nas Jornadas – opondo-se ao sujeito mais homogêneo “povo” – como resistência aos poderes instituídos, tendo como resultados menos a vitória contra esses poderes, e mais a abertura para a criação de novos modos de subjetivação. Assim, por meio da análise discursiva das Jornadas, o trabalho busca associar os múltiplos processos de subjetivação (como a construção de identidades heterogêneas, plurais e mutantes) com a resistência política (de nova forma, mais horizontal, participativa e informal) contra o capitalismo neoliberal.
Assim como Portugal (2016), o artigo de Ritter (2016) e a tese de Venera (2017) analisam os discursos da grande mídia durante as Jornadas, bem como o contraponto das e dos manifestantes. Ritter (2016) faz uso da análise de discurso de Foucault para demonstrar a autocriação de canais alternativos de comunicação pelos sujeitos da manifestação. Venera (2017) recorre à noção de virtual de Gilles Deleuze (o espaço potencial da diversidade para a materialização do real), ao lado da noção de real de Jacques Lacan (para se referir àquilo que escapa da simbolização), para chegar à conclusão de que as Jornadas escapam das representações sociais e simbolizações estabelecidas.
Multidão (como coalizão de identidades) e subjetivação política não são conceitos necessariamente excludentes nem contraditórios. Têm em comum uma origem marxista herética – a recriação do conceito de classe para-si – em diálogo com correntes pós-estruturalistas (algo mais assumido por Hardt e Negri). Suas ênfases são diferentes: a multidão destaca a mobilização e a constituição das identidades e das diferenças, bem como a expressão de individualidades singulares; a subjetivação política destaca o processo político do dissenso, a revelação da igualdade humana fundante da política e as contingências históricas. Se o conceito de multidão combinou melhor com o espírito neoanarquista e pluri-identitário do movimento antiglobalização e sua luta contra o capitalismo global, o conceito de subjetivação política parece se ajustar melhor ao populismo democrático radical que inspirou as revoltas das praças dos anos 2010 e que foi preponderante ao menos na latência e nos protestos iniciais das Jornadas de 2013 – antes da profusão de pautas, sujeitos e protestos na segunda fase das Jornadas.
Ambos os conceitos revelam-se úteis para perguntar a respeito dos itinerários dos sujeitos ativistas e militantes das organizações e coletivos que deram origem às Jornadas, durante e após 2013. Como se flagrou na pesquisa sobre as ocupações secundaristas, nesse movimento estudantil houve um processo potente de subjetivação política, no qual adolescentes estudantes do ensino médio, em especial mulheres, constituíram o sujeito político “secundaristas” – que transfigurou o grupo de pessoas tidas como pré-políticas em defensoras dos direitos sociais e da própria democracia. Mas, em decorrência desse processo, houve a reconstituição de identidades no cotidiano das ocupações das escolas, em especial do ponto de vista do gênero, mas também na orientação sexual e na identidade étnico-racial. Quanto aos itinerários escolares e políticos, a subjetivação política deixou marcas poderosas, que foram decisivas nos projetos escolares e profissionais e na adesão duradoura a valores políticos progressistas. Cabe perguntar como se deram esses processos com ativistas e militantes de 2013, se guardam semelhanças ou diferenças com secundaristas de 2015 e 2016.
Educação
No levantamento bibliográfico, sete trabalhos abordaram as questões educacionais. Duas perspectivas foram mais ressaltadas: o processo de formação dos participantes das mobilizações e a importância das redes sociais como meios de comunicação e de formação dos sujeitos.
José Martins (2013) citou que a pauta educacional não se mostrou efetiva nas Jornadas, pois não tinha um foco concreto e objetivo, já que se expressou de forma vaga, como nas demandas por ensino superior e educação de qualidade.
Rosa (2015) analisou, por meio de entrevistas individuais, roda de conversa e etnografia, o processo formativo de militantes do Bloco de Luta de Porto Alegre. A autora destaca o processo de educação não formal desenvolvido pelo Bloco, que estaria mobilizado antes mesmo do início das manifestações de 2013. Na perspectiva do grupo, era importante educar “os reclusos” ou “os adormecidos” sobre o caráter opressor e excludente do sistema capitalista:
Para o “gigante” que acabava de acordar era necessária uma ação educativa que orientasse ou desse subsídio para que construísse respostas fortes, politizadas e propositivas, evitando que se tornassem massa de manobra das grandes mídias ou presas fáceis para movimentos de extrema direita fascistas e nazi-fascistas. ( ROSA, 2015, p. 31).
Para orientar e formar as e os ativistas, segundo Rosa (2015, p. 32), o Bloco de Lutas desenvolveu aulas públicas, fez uso da internet e realizou assembleias horizontais em espaços públicos. A autora concluiu que “o Bloco de Lutas proporciona espaços de formação intencionais como aulas públicas, no entanto, os sujeitos identificam como principal espaço de formação a vivência de militância nos protestos de rua, assembleias e ocupações”.
Marcos Martins (2013) destacou os impactos políticos e educacionais das Jornadas. Para o autor, elas permitiram a criação de uma nova forma de comunicação, possibilitada pela internet e redes sociais, distanciando-se dos grandes meios de divulgação, elementos que auxiliaram na formação de jovens sem experiência política anterior.
Segundo o autor (p. 51), ao se utilizarem da frase “¡Usted que grita y que despertó hace poco, no rechace a quien nunca durmió!” 7 , desenvolveu-se um princípio educativo que indicava que as lutas seriam fruto de lutas passadas de diversos movimentos sociais. Tal mecanismo fez com que indivíduos e grupos sociais passassem a debater, refletir e questionar a estrutura social, econômica e política do país. Tal impacto, sugere o autor, talvez tenha sido mais significativo do que as conquistas efetivas acerca da revogação do aumento das passagens ou da verba do pré-sal destinada à educação pública: “Mediante este proceso se ha inducido a la sociedad brasileña a una reflexión colectiva, productora de nuevos aprendizajes” ( MARTINS, M., 2013, p. 51).
Haddad (2016) pesquisou, por meio de documentos e entrevistas, o processo formativo efetuado pelo Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo e sua relação com a educação popular. Para o autor (2016, p. 22), o movimento sentiu a necessidade de formar politicamente e de maneira permanente as e os ativistas. Levou-se em consideração que as e os participantes aprendem pela prática, por meio da militância, como na organização dos atos. Para tanto, utilizaram-se das estratégias contidas nos movimentos de educação popular.
Estácio Junior (2015) se direcionou ao processo de autoformação da multidão realizado pelas Jornadas nos espaços virtuais. O método utilizado foi o da cartografia, que leva em consideração a pesquisa no e com o outro. Para ele, as experiências virtuais colaborativas permitiram a formação em si. O caráter formativo teria se dado na convivência:
Cabe destacar que essa formação não é encarada sob uma perspectiva formal, disciplinar ou de controle – em que algo é ensinado ao outro, e sim como uma formação profundamente colaborativa, na qual aquele que a experimenta é convidado a formar sentidos com o outro. ( ESTÁCIO JUNIOR, 2015, p. 7, grifo do autor).
Chaves (2015) analisou as relações entre juventude, cidades e redes, por meio do método histórico-cultural, voltado às narrativas dos sujeitos. Teve como objetivo investigar as aprendizagens construídas pela experiência de participar do movimento Ocupa Niterói. Houve, novamente, destaque para o papel das redes sociais na organização das ações e nos processos de formação dos sujeitos. A autora destacou o caráter educativo das práticas envolvidas nas relações cotidianas entre as e os participantes: “fica evidente uma transformação – ou, para nos aproximar do campo da educação, uma formação – que acontece quando a experiência nos acontece” ( CHAVES, 2015, p. 177).
Esses elementos formativos se distanciam da aprendizagem efetuada no espaço escolar, onde parece ser negligenciada a importância formativa do convívio entre as diferentes pessoas.
Nas principais aprendizagens destacadas pelos ocupantes, a interdependência estabelecida na rede de relações tecida entre eles é uma das chaves para compreender a instauração de um espaço-tempo educativo potente em sua simplicidade: um espaço liberado do tempo produtivo, com pessoas disponíveis ao encontro com o outro e à convivência entre diferentes, onde não há necessidade de instituições ou lideranças mediando os processos educativos. No “aprender convivendo com o diferente”, crescemos como seres humanos, aceitamos as diferenças, nos tornamos mais tolerantes, pois ganhamos um “olhar mais humano” para “olhar mais as pessoas. ( CHAVES, 2015, p. 203).
Menis (2015) desenvolveu sua pesquisa em torno de como jovens estudantes da educação superior do município de Imperatriz, no Maranhão, perceberam e vivenciaram os atos, por meio de entrevistas e questionários. O autor não se direcionou aos aspectos educacionais em si, mas destacou a importância das redes sociais, as formas de organização dos movimentos e as diferenças na atuação das e dos participantes de acordo com sua posição social.
Na visão de Menis (2015, p. 22), as redes sociais permitem às e aos jovens novas formas de se organizar em que, apesar de os vínculos serem instáveis, não há comando hierárquico e a adesão é uma decisão individual. Apesar desse aspecto, o autor concluiu (2015, p. 131) que havia lideranças nos movimentos, como coordenações que organizaram as mobilizações, ainda que não tenham tido o controle total sobre a multidão.
Em linhas gerais, há que se destacar que houve desdobramentos da pauta educacional ao longo das Jornadas, a respeito das políticas públicas, como a discussão sobre os gastos públicos com a educação. Destaca-se também a problematização desses textos a respeito do próprio sentido de formação, dos modos de aprender, já que chamaram a atenção sobre a importância na formação política de espaços para além do escolar, reconhecendo o valor da educação não formal, do aprendizado na convivência e das redes sociais da internet.
Este último aspecto se aproxima mais do tema dos itinerários biográficos de jovens ativistas e militantes atuantes nas Jornadas. A maioria dos textos aborda a influência intensa das redes sociais, as quais constituem importantes mecanismos de formação política e social ao longo das diversas fases das Jornadas. Mas também se destacou a importância do aprendizado por meio da convivência presencial, constituindo experiências relevantes propiciadas nas práticas de participação, organização e mobilização das ações – assim como durante as discussões político-sociais – e, principalmente, através do convívio com sujeitos com diferentes perspectivas de vida e de pensamento. Trata-se, esse último aspecto, do aprendizado com o outro: nas relações com o outro é possível vislumbrar as possibilidades de mudança de itinerários de vida dos sujeitos envolvidos, afetando aspectos de subjetivação e de construção de identidades, permitindo se repensar social e politicamente, inclusive em função daquela imersão nas perspectivas de outros sujeitos.
Essas novas formas de organização e aprendizado político indicam a importância formativa dos espaços das lutas sociais, dentro de um novo contexto em que também é forte a presença das redes sociais. Para as entrevistas a serem desenvolvidas pela pesquisa, cabe questionar os ativistas mais diretamente sobre a formação política desenvolvida nos movimentos, de maneira a caracterizar o significado dessa formação para elas e eles.
Juventude e estudantes
Nesta seção, analisamos os produtos elencados no subtema “Juventude e estudantes”. Iniciamos esse expediente considerando o influente artigo de André Singer (2013), “Classes e ideologias cruzadas”. O pesquisador, ainda no calor das manifestações e considerando o movimento como predominantemente juvenil, via o que acontecia tanto como expressão de uma classe média tradicional inconformada com diferentes aspectos da realidade nacional, quanto como reflexo daquilo que denomina de jovens do “novo proletariado”. Estes últimos conseguiram emprego com carteira assinada nos anos dos governos petistas (2003-2013), mas sofriam com condições precarizadas de trabalho – como baixa remuneração, alta rotatividade e más condições de trabalho.
Para Singer (2013), tratava-se, à época, de um movimento multifacetado no plano das propostas, com sentidos ideológicos que ecoavam tanto o socialismo quanto impulsos fascistas, mas veio a predominar o reformismo e o liberalismo em diversas gradações. Nesse sentido, recusou ao processo a caracterização como “jornadas”, já que não considerou que essa ação coletiva viveu a política como projeto de reestruturação da ordem social e política. Assim, as juventudes das Jornadas de 2013 não repetiam a práxis revolucionária de outros eventos, em especial as Jornadas proletárias de 1848 na França.
Tal aspecto nos leva a focalizar o trabalho de Pereira (2016), que traz importantes críticas à forma como pessoas adultas percebem e avaliam a realidade e o fazer das juventudes. Ela focaliza a representação social dos jovens de 1968, 1988-1992 e 2013 em dois veículos de comunicação de notícias de grande circulação, a revista Veja e o jornal O Globo. Embora o trabalho destaque diferentes aspectos sobre as revoltas e manifestações de jovens nas diferentes épocas, permanece, segundo Pereira (2016), um modelo de construção da realidade das manifestações que responde à necessidade de produção de uma representação juvenil reconhecível para as pessoas adultas. Ou seja, embora quase meio século separe 1968 de 2013, os diferentes meios de comunicação sustentam representações sociais já sedimentadas, para apresentar e explicar as manifestações do início do século XXI. Segundo a autora, esse procedimento que torna acontecimentos atuais mais familiares – e, portanto, menos ameaçadores, porque conhecidos –, além de não explicar a realidade, contribui para deslegitimar politicamente os protestos juvenis contemporâneos.
Num caminho contrário à deslegitimação de uma representação social limitadora, Maria da Glória Gohn (2018), a partir de uma pesquisa realizada em sites da internet em redes de jovens e também em dados da mídia impressa paulista, constata as diversificadas e múltiplas ações coletivas e identifica um novo contexto de atuação e de reivindicação de jovens no Brasil. Para a autora, trata-se de um renovado movimento juvenil, composto por jovens pertencentes a diferentes camadas sociais, com ideologias e princípios filosóficos diversificados. Dessa pesquisa, Gohn destacava, dentre as características desses “novos movimentos”, como chamou, a importância do protagonismo de jovens nas redes sociais, uma organização interna mais horizontalizada e postura crítica em relação ao modelo organizacional dos partidos políticos e movimentos sociais.
Nessa mesma linha, Euzébios Filho e Antônio Guzzo (2018), focalizando o que pensavam estudantes de um cursinho popular e de uma universidade pública do interior de São Paulo, todos jovens no contexto pós manifestações de junho de 2013, corroboram muitas das indicações de Gohn (2018), ao adotarem o conceito de consciência política reinterpretado no plano da individualidade, ou seja, manifesta no plano da singularidade dos sujeitos. Os autores afirmam que, mesmo identificando à época um vazio de alternativas perante a retirada de direitos sociais que se impunha – e ainda se impõe – ou a onda política conservadora que emergia, tais jovens sustentavam a pouca confiança na participação em partidos políticos ou movimentos sociais reivindicatórios, ou outro caminho participativo, como meio para superação das consequências de tal processo.
Considerando tanto as alterações conjunturais quanto as diversas nuances políticas que situam o contexto das manifestações de 2013, Almeida, Corrochano e Sposito (2020) analisaram textos acadêmicos elaborados entre 2006 e 2018 que tratavam jovens como atores coletivos. Identificam que diversas características das ações coletivas juvenis já se apresentavam desde o início dos anos 2000, mas, ganharam maior intensidade nos últimos anos.
Confronto político; confronto no espaço público; novo modelo de organização interna; renovação do movimento estudantil; novas modalidades de ação, de produções culturais e de expressão dos autodenominados “coletivos” são aspectos que se apresentam como marcas contemporâneas dos movimentos juvenis e estão presentes em todos os artigos analisados.
Nesse contexto, as pautas educacionais sempre estiveram presentes. Contudo, como indica o conjunto dos trabalhos consultados, as mobilizações de 2013 podem ser consideradas representativas de um novo ciclo de lutas no campo da educação, mais até que as ocupações secundaristas de 2015 e 2016. Isso porque 2013 marca, no itinerário biográfico das e dos participantes, a convergência de mudanças advindas de diferentes lutas sociais que apontam, sinteticamente, para uma tentativa de enfrentamento das nefastas consequências do capitalismo neoliberal e de sua crise.
Considerando tanto as alterações conjunturais quanto as diversas temporalidades dos processos de mobilização estudados pelas autoras e autores, ressalta-se que as movimentações juvenis têm afetado de formas provavelmente inéditas os itinerários de jovens, marcados pela ascensão das redes sociais da internet, preferência por formas participativas de atuação – na qual jovens se percebem contribuindo com a organização e a ação – e desconfiança em relação às formas representativas tradicionais.
Considerações finais
Este artigo partiu de um debate sobre os itinerários e/ou trajetórias juvenis, tratando de suas construções e reconstruções. Flagram-se as tensões entre, de um lado, expectativas e projetos individuais e singulares; de outro, contextos e processos sociais, econômicos e políticos gerais, mas que em certos momentos têm percorrido o signo do contingente, do indeterminado, do imprevisível e da ambiguidade, como nas Jornadas de Junho de 2013.
Esse conjunto de protestos sociais e políticos, as Jornadas de 2013, na verdade se caracterizou durante sua latência e em suas primeiras fases como um ciclo de manifestações progressistas e autonomistas, à esquerda do espectro político do próprio governo de coalizão petista. Mas os seus desenvolvimentos se demonstraram complexos e imprevisíveis. Em parte, constituem os roteiros de movimentos progressistas nos anos seguintes. Esses movimentos, inclusive, vão servir de resistência ao que vai se caracterizar como o outro legado das Jornadas, a saber, um campo de direita e extrema-direita muito ativo politicamente, que vai se mobilizar em prol do impeachment de Dilma Rousseff e vencer as eleições presidenciais de 2018.
Quanto ao debate feito no artigo sobre o subtema educação, os sete trabalhos tratam-na de forma ampla, para além da escola, em especial como formação política, seja incidental, durante o próprio protesto, seja de modo mais ou menos consciente e organizado, como dispositivo educativo. Encontramos coletivos autonomistas, como o MPL de São Paulo e o Bloco de Lutas no Rio Grande do Sul, com grande preocupação a respeito da formação política de jovens que se juntavam aos protestos ou que desejavam se mobilizar (como o “trabalho de base” do MPL nas escolas públicas, que teria inclusive servido de latência ao movimento das ocupações paulistas em 2015).
Sobre as práticas políticas, Gohn (2018) traz uma leitura mais otimista, focada na horizontalidade e na valorização da participação e da diversidade, que marcaram o autonomismo da primeira fase de 2013, enquanto as redes sociais pareciam prometer uma produção mais democrática de informações. Outros trabalhos, favorecidos inclusive pela perspectiva temporal mais larga, como os de Euzébios Filho e Guzzo (2018) e Almeida, Corrochano e Spósito (2020), trazem elementos que caracterizam o cenário das práticas políticas e do uso das redes sociais como mais ambíguo e contraditório.
Os trabalhos analisados no subtema juventude e estudantes retomam assuntos do subtema educação, a saber, participação política e formação política. Mas a análise se inicia questionando a posição de André Singer (2013) a respeito do sentido dos eventos de junho – que ele se nega a denominar de “jornadas” – e, portanto, das formas de atuação das juventudes brasileiras de então, tão diferentes daquelas do movimento estudantil de 1968.
Por um lado, parece haver por Singer uma deslegitimação das juventudes de 2013 – tanto do precariado quanto da classe média –, que se choca com os impactos decisivos desses sujeitos atuantes em 2013 na história pregressa do país e nas trajetórias de vida dessas próprias juventudes. Por outro lado, Singer parece ter razão ao menos em parte ao negar ao evento o nome “jornadas”, dado que o termo faz ressoar os protestos populares revolucionários do século XIX; porém, temos diante de nós um ciclo de protestos que abrigou, em seu principal momento, sujeitos e pautas da direita. Também, o sentido “vencedor” desses impactos potentes foi ficando mais evidente nos anos seguintes, com a deriva do país à extrema-direita como resultado do golpe de 2016 e do moralismo banal oriundo do apoio à Operação Lava Jato. Ainda assim, movimentos progressistas continuaram atuantes: mesmo que incapazes de deter aquela onda conservadora, foram muito relevantes na mobilização social que ajudou a definir a eleição presidencial de 2022.
É sobre esta última conclusão que se abrem as primeiras questões, que visam a contribuir para a pesquisa de campo da investigação “Dimensões educacionais das Jornadas de 2013”, a respeito de como as pessoas que participaram das Jornadas tiveram suas trajetórias – especialmente educacionais e políticas – afetadas por essa experiência repleta de lances e continuidades inesperadas, complexas e ambíguas. Como foi possível a convivência nas ruas e manifestações – ainda que quase sempre com tensões, e, por vezes, conflitos – entre sujeitos, organizações e pautas progressistas e conservadoras? Como essa convivência marcou a experiência de jovens ativistas, militantes e manifestantes em 2013 e influenciou suas trajetórias políticas?
Ainda a respeito das influências nas trajetórias de vida de jovens ativistas e militantes do campo progressista – que deram início a este ciclo e continuaram atuantes após junho –, fazem parte do tema da pesquisa “Dimensões educacionais das Jornadas de 2013” as perguntas: como tais jovens incorporaram – ou não – as práticas políticas inéditas e as pautas cada vez mais ambíguas em suas trajetórias políticas? Como absorveram, desde então, a relação entre redes sociais e vida social, política e pessoal?
Outra linha de questionamento deriva da discussão feita neste artigo a respeito das identidades e subjetivações.
Acerca das identidades: há influências da participação nas Jornadas nas constituições de identidades sociais como classe, gênero, orientação sexual e identidade étnico-racial? Essas influências seriam mais notáveis em situações de interações com convivência mais íntima e duradoura, como no interior de coletivos e organizações, bem como ocupações, de modo similar ao observado na pesquisa sobre as ocupações secundaristas de 2015 e 2016?
Acerca das subjetivações: que sujeitos políticos as Jornadas construíram, esboçaram ou ao menos vislumbraram em suas experiências de dissenso e instauração momentânea da igualdade política? É possível concluir, como se fez a respeito das ocupações secundaristas, que o processo de subjetivação política foi o mais importante ou potente nas Jornadas de 2013, acima dos processos identitários? O processo de subjetivação teria igualmente aberto espaços e oportunidades para a reconstrução de identidades sociais?
Em relação à educação, as questões ensejadas tratam das trajetórias educacionais tanto quanto da formação política e nos estimulam a interrogar o quanto as experiências políticas de 2013 se apresentaram em projetos educacionais e profissionais. Ou seja, haveria impacto semelhante ao que flagramos no movimento das ocupações secundaristas, que levou a grande maioria de suas e seus protagonistas à educação superior?
Nosso artigo, como anunciado, termina mais com interrogações do que respostas, neste mergulho em parte da produção acadêmica a respeito da atuação das juventudes nas Jornadas de 2013. Espera-se que tais perguntas contribuam para a compreensão não apenas das trajetórias juvenis de ativistas e militantes, que nossa pesquisa pretende conhecer, mas também de outras pesquisas sobre as ações coletivas juvenis.