Introdução
Embora haja na historiografia vários estudos que já tematizaram a história do Collegio de Pedro II2 , assim como da gymnastica lá constituída3 , nenhum deles teve como enfoque o processo de sistematização dessa prática corporal, tendo como eixo condutor a circulação destes três professores: Paulo Vidal, Vicente Casali e Arthur Higgins. Diante disso, nosso objetivo é compreender qual gymnastica foi forjada e compartilhada por esses mestres no Collegio de Pedro II, a partir de suas trajetórias4 dentro e fora dessa instituição modelar de ensino secundário. Pretendemos, com isso, conferir outros contornos à história da gymnastica no Collegio de Pedro II, trazendo à cena as experiências desses três professores. Dizendo de outra forma, nossa intenção é ressaltar a possibilidade de se contar uma história da instituição/disciplina escolar a partir da trajetória de sujeitos, demonstrando que a história dos sujeitos pode contribuir para a história das instituições e das disciplinas escolares. Assim, temos como hipótese que a circulação e a atuação desses mestres em variadas e distintas instituições, escolares e não escolares, contribuíram com o processo de sistematização da gymnastica no Pedro II.
Como perspectiva teórico-metodológica, ao nos depararmos com as fontes e o que elas nos “diziam”, fomos estimuladas a pensar sobre as trajetórias desses professores, os múltiplos lugares que ocuparam e transitaram e as redes de sociabilidade que mantinham, com forte inspiração na micro-história de Revel (1998) . O autor, ao discutir características de uma micro-história, diz que é fundamental perceber os indivíduos nas suas relações com outros sujeitos. A análise individual permite uma análise particular do social e possibilita tomar o “fio de um destino particular – de um homem, de um grupo de homens – e, com ele, a multiplicidade dos espaços e dos tempos, a meada das relações nas quais ele se inscreve” ( REVEL, 1998 , p. 21). Esse caminho pareceu-nos indispensável e inseparável, como escreve o autor, para uma “reconstrução do vivido” e para uma análise que identifique múltiplas experiências, complexificando, dessa forma, o social. Trata-se de “enriquecer o real, […] levando em consideração os aspectos mais diversificados da experiência social” (p. 22). Sabemos que um dos principais traços da microanálise é o grande investimento na empiria, e que só é possível tomar como fio da meada da história sujeitos que foram fartamente documentados. Perceber cada sujeito e sua movimentação sem deslocá-lo do social em que está inserido foi o guia metodológico da pesquisa.
O Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, almejando estabelecer-se como uma cidade moderna e civilizada, propiciava a manifestação de diversas formas de divertimento, que passavam também pelo exercitar e disciplinar dos corpos. Nesse sentido, diversos clubes e sociedades foram criados, por exemplo, a Sociedade Franceza de Gymnastica, fundada em agosto de 1863 ( BRASIL, 1871 ); o Club Gymnastico Portuguez, criado em outubro de 1868 (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1873); e o Congresso Gymnastico Portuguez, aberto em maio de 1874 ( BRASIL, 1875 ).
Esses três lugares se constituíram como espaços de divertimento familiar e, ao mesmo tempo, educativos. Mesmo suas práticas sendo previamente determinadas e as formas de divertimento reguladas, os momentos de encontro e sociabilidade não eram desconsiderados (ALMANAK…, 1874). Nessa ambiência também se pensava na “necessária” constituição de um “novo homem”: civilizado, saudável e educado (inclusive, corporalmente).
Para tanto, na Sociedade Franceza, no Club e no Congresso Gymnastico Portuguez, forjou-se uma determinada gymnastica, que, contando com as contribuições de alguns professores – entre eles, Paulo Vidal e Vicente Casali –, trazia à cena uma prática corporal festiva e desafiadora, mas também controlada e racionalizada. As “exhibições gymnasticas” pautavam-se na execução de “exercicios difficeis”, alguns, inclusive, “bastante perigosos”, os quais eram realizados na “barra fixa” (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1874, p. 2) e “horizontal” (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1871a, p. 1), nas “escadas perigosa” e “milagrosa” (DIARIO DE NOTICIAS, 1886, p. 1), no “trapezio” (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1873, p. 1), no “trampolim” (DIARIO DE NOTICIAS, 1885, p. 2), nas “argolas” (DIARIO DE NOTICIAS, 1887, p. 1), no “arame” e no “bambu japonês” (GAZETA DE NOTICIAS, 1885b, p. 2). Compostas por “acrobacias” e “voos” (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1871b, p. 2), tais exibições demandavam “arriscadas posições de equilibrio”, “força”, “agilidade” (GAZETA DE NOTICIAS, 1884, p. 1), sendo sempre executadas com muita “perfeição”, “pericia” e “coragem” (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1874, p. 2). Esse conjunto de elementos revela um saber-fazer que se relacionava às rotinas adquiridas, na maior parte das vezes, por meio do trabalho cotidiano das escolas de gymnastica que cada um desses estabelecimentos possuía.
Além dos clubes, essa gymnastica adentrou também o contexto escolar, no qual, para se legitimar, lançou mão de diferentes argumentos. A prática foi compreendida como possibilidade para que corpos debilitados – acometidos por doenças recorrentes no período, tal como a “anemia”, a “escrophulose” e a “tuberculisação”5 –, se fortalecessem e, consequentemente, se tornassem saudáveis. Representou também um momento de “descanso” atrelado ao divertimento, mesmo que controlado6 , entre as demais matérias, tidas como tradicionais. Devido à seleção prévia dos exercícios e dos jogos ginásticos que compunham a sua prática, proporcionava um exercitar corporal sequenciado, harmônico e que contemplava o corpo integralmente, constituindo outro fator legitimador de sua presença nas instituições escolares: sistematizar os exercícios ginásticos tinha como objetivo desenvolver o corpo de maneira harmoniosa e integral.
Somando-se a isso, os sujeitos vinculados às instituições escolares, e que eram defensores de sua prática, começaram a atribuir à gymnastica a noção de cientificidade que, respaldada pelas ciências biológicas, era recomendada, inclusive por vários médicos e pelos “mais notaveis pedagogistas”7 . Vale ressaltar que, segundo Gondra (2004) , para o pensamento médico, a educação deveria se preocupar com o desenvolvimento tanto da mente quanto do físico e da moral. Nesse sentido, conforme Soares (1994 , p. 114-115), a gymnastica tornava-se “um importante canal de veiculação da moral burguesa através de um exacerbado cuidado higiênico com o corpo”. Contudo, foi somente no final da década de 1870 que esta prática corporal passou a ser considerada obrigatória, tanto nas escolas primárias quanto nas secundárias do Município da Corte, a partir do Decreto nº 7.247 , de 19 de abril de 1879 ( BRASIL, 1880 ).
Ao analisarmos algumas fontes8 , por exemplo, as cartas escritas por Paulo Vidal, Vicente Casali e, posteriormente, Arthur Higgins, enviadas ao diretor do Collegio de Pedro II, reivindicando alteração nos quadros de horários, reparos e compras de aparelhos ginásticos específicos, ou mesmo analisando seus programas de ensino, percebemos que esses elementos legitimadores também se faziam presentes lá, justificando, inclusive, a forma como esses professores sistematizavam o ensino da gymnastica e, consequentemente, asseguravam sua permanência e continuidade naquele Colégio.
Antes de abordarmos essa instituição escolar, apresentaremos, brevemente, a circulação empreendida por esses três professores pela sociedade da Corte, uma vez que também ela contribuiu para que eles se forjassem mestres de gymnastica.
Experiências e circulação dos professores pelo Rio de Janeiro
Paulo Vidal foi professor na Sociedade Franceza de Gymnastica, em 1869 (ALMANAK…, 1869, p. 450), e no Club Gymnastico Portuguez, entre 1872 e 1874 (ALMANAK…, 1873, p. 484). No ano seguinte, após desligar-se do clube, tornou-se mestre de gymnastica no Collegio de Pedro II, onde permaneceu até 1884 (O PAIZ, 1884b, p. 1). Entre os anos de 1876 e 1879, atuou simultaneamente no Pedro II e no externato do Collegio Aquino9 . De 1877 a 1878, além dessas duas instituições escolares, também lecionou no Collegio Abilio (DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1877, p. 4). Já na década de 1880, dividia-se como mestre de gymnastica entre os Colégios Queiroz (GAZETA DE NOTICIAS, 1881), Menezes Vieira10 , Pedro II (GAZETA DE NOTICIAS, 1882) e a Escola Normal da Côrte11 .
Na Escola Normal da Côrte, Paulo Vidal vivenciou seus últimos anos como professor de gymnastica, já que faleceu em janeiro de 1885 (GAZETA DE NOTICIAS, 1885a). Todavia, dois anos antes de seu falecimento, foi convidado a assumir as aulas de gymnastica destinadas às normalistas, após a exoneração da professora responsável, Maria Carolina de Almeida Gouvêa12 . Esse, em especial, é um dado relevante e que corrobora o fato de ele ter se tornado um professor referência no ensino da gymnastica no contexto escolar, visto que não era comum, no período, homens assumirem as aulas de gymnastica destinadas às alunas.
Vicente Casali, por sua vez, esteve em duas ocasiões na Sociedade Franceza de Gymnastica como artista circense. Na primeira, apresentando-se junto aos alunos da Sociedade em sua 21ª festa de aniversário, o que lhe rendeu uma medalha de ouro em reconhecimento de sua performance (BRAZIL, 1884), e depois em 1890. No Club Gymnastico Portuguez foi professor de 1879 a 1884 (ALMANAK…, 1885); e no Congresso Gymnastico Portuguez, em 1882 ( MELO; PERES, 2014 ).
Diferentemente de Paulo Vidal, além das sociedades ginásticas e instituições escolares, para Vicente Casali o universo circense também foi um importante espaço de circulação13 . Como artista do Circo Casali e da Companhia Vicente Casali (GAZETA DA NOITE, 1879), entre 1874 e 1876, destacava-se pela sua habilidade física, sendo reconhecido e denominado pelos jornais da época como “Hercules” (GAZETA DE NOTICIAS, 1879, p. 4), o “sem rival” (O GLOBO, 1875, p. 3), um “celebre na gymnastica” (MERCANTIL, 1876, p. 1).
Já no contexto escolar, Casali foi responsável pelo ensino da gymnastica em diversas escolas. Para citar algumas: o internato do Collegio de Pedro II, entre 1881 e 1889 (até meados de 1881, em parceria com Paulo Vidal e, nos anos posteriores, como mestre regente); o Collegio Alberto Brandão, em 1883 e 1887 (GAZETA DE NOTICIAS, 1883; NOVIDADES, 1887); a Escola Normal da Côrte, de 1882 a 1884 (enquanto regia as aulas de gymnastica do sexo masculino, Paulo Vidal assumia as do sexo feminino, como visto anteriormente) (O PHAROL, 1884); e, entre 1885 e 1893, o Collegio Abilio (O PAIZ, 1885), onde Vidal também foi professor em 1877.
Além desses espaços, Vicente Casali, como mestre de gymnastica, também circulou por instituições assistenciais: de 1884 a 1886, no Asylo Agricola (ALMANAK…, 1884); em 1888, na Sociedade Recreativa S. José (GAZETA DE NOTICIAS, 1888); em 1890, no Instituto Nacional dos Cegos (DIARIO DE NOTICIAS, 1890); e, em 1897, no Instituto dos Surdos-Mudos (ALMANAK…, 1897).
No que se refere a Arthur Higgins, antes de se estabelecer mestre de gymnastica, atuou como jornalista, até que, por questões de doenças decorrentes de seu ofício, foi orientado pelo médico Torres Homem à prática de ginástica na Escola Normal da Côrte, em 1888 (VELHO SOBRINHO, 1937). Nessa instituição teve aulas com Ataliba Manuel Fernandes, um mestre de gymnastica reconhecido pelo órgão de instrução da Corte que foi convidado a encabeçar a comissão que sancionou a gymnastica como uma das cadeiras para os estabelecimentos de instrução14 . Higgins foi aprovado por Ataliba, em 1884, com “distinção”, avaliação que não tinha sido designada a nenhum outro aluno da escola ( SOUZA, 2011 ). Mas, mesmo antes de sua aprovação, Higgins iniciou seu trabalho como mestre de gymnastica no ano de 1883, no Collegio Froebel ( AVELAR, 2018 ; AVELAR; MORENO, 2020 ).
Em 1884, ano de sua formação na Escola Normal, Higgins foi contratado pelo Collegio de Pedro II para trabalhar no externato, substituindo Paulo Vidal, que havia sido afastado em razão de uma doença15 . Nesse colégio, Higgins permaneceu em caráter de contratação até 1885. Posteriormente, em decorrência do falecimento de Vidal, assumiu de vez a cadeira de gymnastica até se aposentar em 1924. Também por ocasião do falecimento de Vidal, em 1885, Higgins foi convidado a assumir as aulas de gymnastica do sexo masculino na Escola Normal da Côrte16 .
Como professor, trabalhou também no Asylo dos Meninos Desvalidos e nos colégios Alipio, Diocesano São José e Atheneu Philomatico (ALMANAK…, 1891). Fora do ambiente escolar, montou seu próprio gabinete de ginástica e atuou na organização de jogos ginásticos na Praça da República, no Rio de Janeiro (A NOTICIA, 1898). Higgins escreveu o Compendio de gymnastica escolar , livro direcionado aos seus alunos da Escola Normal, que teve três edições, datadas de 1886, 1909 e 1934, e duas reimpressões, em 1899 e 1921. Elaborou também o Manual de Gymnastica Hygienica , em edição única de 1902, que se destinava a leigos ( SOUZA, 2011 ).
Estes três sujeitos – Vidal, Casali e Higgins –, embora tenham vivido experiências e percursos diferenciados, encontraram na gymnastica um ponto em comum. Paulo Vidal foi professor em diversas instituições escolares e não escolares e se tornou professor referência no ensino da prática. Vicente Casali, do mesmo modo que Vidal, também foi professor de gymnastica em muitas e distintas instituições no Rio de Janeiro. No entanto, o fato peculiar de Casali, além de professor, ter sido artista circense trouxe outros contornos à sistematização de sua prática ginástica17 . Arthur Higgins com toda a sua pluralidade e diversas atividades, tanto atuando como professor quanto desenvolvendo outras atividades e, assim, ocupando outros espaços na sociedade fluminense, também forjou uma determinada gymnastica que, embora tenha sido construída em instituições em que também se fizeram presentes Paulo Vidal e Vicente Casali, apresentava elementos diferenciados.
Desse modo, cabe questionarmos: diante dessas trajetórias, qual ou quais gymnasticas foram forjadas no Collegio de Pedro II, considerando que foi nessa instituição que os três professores compartilharam o seu ensino? Mesmo sendo desenvolvida no âmbito escolar, tal prática sofreu influência das demais instituições pelas quais esses três professores circularam? Quais os seus elementos constitutivos?
O Collegio de Pedro II e seus professores de gymnastica
Criado em 1837, o Collegio de Pedro II18 foi, desde o início, associado à ideia de modernização e desenvolvimento da capital do Império. Cunha Junior (2008a) enfatiza que sua fundação foi um importante marco na história do ensino secundário brasileiro, visto que, até aquele momento, a instrução secundária disponível, tanto no município da Corte quanto nas demais províncias brasileiras, concentrava-se na oferta de aulas avulsas em instituições particulares e seminários religiosos.
Como primeiro estabelecimento de ensino secundário organizado pelo governo central, o Collegio de Pedro II tinha como finalidade capacitar os jovens da elite oitocentista, visando seu ingresso nos cursos superiores. Servindo como referência para as demais escolas, seus valores e princípios disseminavam-se pelo Rio de Janeiro (CUNHA JUNIOR, 2008a; VECHIA; LORENZ, 2015 ). Somando-se a isso, conforme Mendonça et al . (2013a), esse colégio serviu também de exemplo para a formação de professores que atuassem nas escolas secundárias, já que essa foi a primeira experiência nesse nível de ensino no Brasil.
Enfatizando o conhecimento das Lettras, seu ensino priorizava a aprendizagem das línguas clássicas e modernas, porém, paralelamente, desenvolvia também o curso de Belas Artes, composto pelas cadeiras de música, desenho e gymnastica.
Art. 1º. Tanto no Externato quanto no Internato do Imperial Collegio de Pedro II o curso de estudos continuará a ser de sete annos, seguindo-se em ambos os Estabelecimentos o mesmo systema de ensino.
Constará o referido curso de
Ensino Religioso
Portuguez
Latim
Francez
Inglez
Grego
Geographia descriptiva, moderna e antiga, cosmographia
Historia sagrada, antiga, média e moderna
Historia e chorographia do Brasil
Mathematicas
Sciencias naturaes
Philosophia
Rhetorica e poetica, historia da litteratura em geral, e em particular da portugueza e nacional
Desenho
Musica vocal
Gymnastica.19
A história do ensino de gymnastica nessa instituição teve início com a nomeação de Guilherme Luiz de Taube como seu primeiro mestre, em 1841. Na sequência, quem assumiu a cadeira foi Frederico Hoppe, em 1846. Posteriormente, no ano de 1849, Antônio Francisco da Gama foi quem assumiu a posição, permanecendo no cargo por dez anos20 .
No ano de 1855, o então ministro do Império, Couto Ferraz, destacou em seu relatório a importância da gymnastica na formação dos alunos do Collegio de Pedro II e estabeleceu a criação de outro espaço, além do externato, que facilitaria a prática dos exercícios. Surgiu, então, o internato do Collegio. Fundado em 1857, esse espaço abrigou a prática ginástica ( BRASIL, 1857 ).
Entre as décadas de 1860 e 1870, Pedro Guilherme Meyer21 ocupou o cargo de mestre de gymnastica de ambos os estabelecimentos. Todavia, em março de 1870, pediu exoneração do externato, alegando incompatibilidade de horários22 . Valeriano Ramos da Fonseca, então, assumiu essas aulas e, no externato, permaneceu até fevereiro de 187323 . Em março de 1874, Paulino Francisco Paes Barreto assumiu essa função24 , porém, em novembro do mesmo ano, foi suspenso de seu cargo. A partir de maio de 1875, por ainda estar suspenso, Paes Barreto foi substituído por Paulo Vidal25 , que, em abril do seguinte ano, foi definitivamente contratado como mestre de gymnastica do externato do Collegio de Pedro II26 .
Até novembro de 1876, Pedro Guilherme Meyer, no internato, e Paulo Vidal, no externato, compartilharam o ensino da gymnastica no Collegio de Pedro II. Nesse período, conforme Goellner (1992) , a chamada “classe militar” conquistava diversos espaços na sociedade. No Exército brasileiro e nas escolas militares, o Método Ginástico Alemão27 se consolidava e, rapidamente, se difundia nas escolas civis, nas quais a prática ginástica tornava-se sua aliada. Fundamentada na tradução do documento intitulado Novo guia para o ensino da gymnastica nas escolas publicas da Prussia 28 , a gymnastica tinha no método alemão a sua base. Pedro Guilherme Meyer chegou adotá-lo como guia orientador de suas aulas, evidenciando aí uma das características da gymnastica desenvolvida no Collegio de Pedro II naquele período. Como ambos dividiam o cargo de mestres de gymnastica, é possível que Paulo Vidal também tenha se inspirado nesse mesmo método29 .
A partir de 1877, com a saída de Meyer, Paulo Vidal tornou-se o único responsável pelo ensino da gymnastica30 .
Julgo-me embaraçado, por falta de pessoal habilitado, para obter um Mestre de Gymnastica, e por isso peço permissão á V. Excia. para contractar o Cidadão Paulo Vidal, por ser Mestre de Gymnastica no Externato, conhecido por sua pericia e dedicação, já provadas com seus alumnos na Augusta Presença de Sua Magestade o Imperador e ultimamente de Sua Altesa Imperial no Collegio Abilio.
Creio que posso fazer o contracto para este servir interinamente, permitindo-me V. Excia. ate particularmente, que eu [autere] os dias de exercicio, o que me será facil sem quebra da disciplina, entre os Mestres de Musica e de Desenho.
Aguardo as ordens de V. Excia, como é de meu dever.
Deos Guarde a V. Excia.
Illmo. Exmo. Senhor Conselheiro Dr. Antonio da Costa Pinto e Silva
Dignissimo Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Imperio
O Reitor interino, Dr. Cesar Augusto Marques.31
Segundo Paulo Vidal, para que suas aulas fossem mais atrativas, o trabalho prático era desenvolvido com o auxílio de aparelhos ginásticos32 , evidenciando mais um elemento característico da sistematização de sua gymnastica, inspirada no método de ginástica alemão.
Relação da conta de apparelhos novos e reparos feitos em outros, para a aula de gymnastica do Externato do Imperial Collegio de Pedro Segundo, conforme a authorização dada do Exmo. Snr. Dr. Reitor, em Aviso do Ministerio dos Negocios do Imperio n. 3970 de [19] de Outubro de 1881.
A José Dias Ferreira Pacheco 650$260
Externato do Imperial Collegio de Pedro Segundo, em 21 de Abril de 1882. […].
Rio de Janeiro, 31 de Março de 1882
O Externato do Imperial Collegio de Pedro 2º a José Dias Pacheco = Deve = Importancia de diversas peças feitas para a aula de gymnastica; mudanças de outras, altterações, accrescimos e pintura geral em todos os apparelhos da mesma aula = a saber =:
Portico: assentamento, accrescimos e reparos 110$000
1 barra fixa e uma parallela (novas) 90$000
1 escada horizontal (nova) 35$000
1 dita dita (beneficiada) 12$000
4 graduadores de pulos 35$000
3 peças novas diversas, segundo o desenho, e uma escada orthopedica 65$000
1 escada de [savilhas] 35$000
1 mastro de ditas 30$000
3 taboas para tornos das mesmas peças 9$000
Mudança de uma peça horizontal para equilibrio 25$000
Accrescimo de 2 peças na barra circular 10$000
Mudança da barra fixa velha e desenterar as parallelas 30$000
Pintura geral em todos os apparelhos 50$000
Mudança provisoria em algumas peças 10$000
Arrancar os postes da escada horizontal antiga 10$000
Ferragens: ganchos e parafuzos 53$250
[…]
Transporte 609$260
Cabos e sapatilhas e formar os anneis 16$000
Escavações feitas para desenterrar os apparelhos e enterrar os novos 25$000
[…]
O Escrivão
Jose Dias Ferreira Pacheco.33
Em 1881, Paulo Vidal, devido à incompatibilidade de horários entre as aulas de gymnastica ministradas no internato e no externato, optou por permanecer apenas neste último: “Leccionei quatro annos consecutivos no Internato, lecciono a seis no Externato; optando a favor d’este ultimo prevalece o direito de antiguidade unico motivo que eu posso allegar quanto a preferencia”34 . Vicente Casali, que já vinha dividindo as funções como seu adjunto, foi então contratado em maio daquele ano como mestre de gymnastica do internato do Pedro II, lá permanecendo até o final do Império35 .
Em 1883, Vidal, com sua saúde já bastante fragilizada, solicitou a contratação de um “coadjuvante” para as aulas de gymnastica no externato36 , entrando, no seguinte ano, em “licença com ordenado” por três meses (O PAIZ, 1884a, p. 1). Nesse período, foi substituído por Arthur Higgins37 , que assumiu o lugar de “mestre interino”38 . Em julho de 1885, após o falecimento de Vidal, Higgins foi definitivamente contratado como mestre de gymnastica do externato do Collegio de Pedro II39 , onde atuou até 188940 , quando a disciplina foi suspensa do currículo41 , 42 .
Foi então nessa ambiência que identificamos o que estamos chamando de um compartilhamento da gymnastica realizado por esses três professores. Além disso, apreendemos parte da história de inserção e permanência dessa prática corporal no Collegio de Pedro II, assim como o modo que lá ela foi forjada. Cabe agora compreendermos como se deu a sistematização de seu ensino.
A prática ginástica: construção de seus programas de ensino e a relação entre seus mestres
Paulo Vidal foi o primeiro professor do Collegio de Pedro II a elaborar um programa de ensino oficial da cadeira de gymnastica, o qual vigorou até 188443 . Organizado em três seções, sistematizava quais práticas e saberes deveriam ser aprendidos pelos jovens fluminenses. Inicialmente, os alunos praticavam “exercicios de corpo livre” (exercícios disciplinares, formaturas, marchas, exercícios de flexão, distensão e equilíbrios), saltos, corridas, lutas, jogos e “exercicios gymnasticos”. Na sequência, executavam os exercícios com instrumentos (bastões e bastonetes, halteres e maças) e os “exercicios gymnasticos recreativos”. Por fim, realizavam exercícios com o auxílio de aparelhos ginásticos (exercícios de tração, nas escadas inclinadas e horizontais, nos cabos e nos mastros, exercícios nas barras contínuas, de equilíbrio na viga, saltos sob o trampolim, com e sem parada, exercícios nas barras paralelas, no trapézio e na barra fixa) e os “exercicios recreativos”44 .
Vicente Casali, mesmo após ter assumido a regência das aulas de gymnastica no internato, continuou seguindo o programa de ensino de Paulo Vidal. Estudos anteriores apontam duas possíveis justificativas para sua conduta: primeiro, porque Casali afirmava ter Vidal como sua inspiração, reconhecendo-o, desse modo, como o professor referência no ensino da gymnastica e concordando com o trabalho que o mestre vinha há tempos desenvolvendo no Pedro II; e, segundo, porque, sendo espanhol45 , Casali acreditava que Paulo Vidal, por ser brasileiro de origem, tinha maior conhecimento sobre a real necessidade de seus alunos ( ROMÃO, 2016 ; SOUZA, 2011 ).
Em 1884, Arthur Higgins também se tornou mestre de gymnastica no externato, a princípio dividindo as funções com Paulo Vidal e, posteriormente, como mestre regente, tal como ocorreu com Casali no internato. Inicialmente, Higgins também adotou o programa de Vidal, mas, em 1888, apresentou um novo programa de ensino de sua autoria. A partir daí, divergências entre os dois professores de gymnastica começaram a surgir no Collegio de Pedro II.
Casali, contrapondo-se à proposição de Higgins, uma vez que o mesmo programa de ensino deveria ser adotado tanto no externato quanto no internato, encaminhou a João Mauricio Wanderlei46 , o Barão de Cotegipe, uma carta explicitando os motivos para que o seu programa fosse reconhecido como o oficial. Assim iniciou seus argumentos: “por bem da educação physica da mocidade brasileira, seja aceito o programa que formulei dentro dos verdadeiros principios pedagogicos e hygienicos”. Na sequência, enfatizou ser o seu programa o mais racional, já que era inspirado no trabalho de Paulo Vidal47 . No ano seguinte, outra divergência surgiu. Todavia, ao que parece, tanto em 1888 quanto em 1889, ambos os programas foram aceitos, uma vez que nesse último ano o governo encaminhou uma resposta ao diretor do colégio afirmando que os dois programas estavam autorizados, pois atendiam aos objetivos da prática ginástica no ensino secundário48 .
Em ambos os programas constam os exercícios de corpo livre e os disciplinares, bem como os exercícios que necessitavam de instrumentos e aparelhos ginásticos para sua realização. Entretanto, no programa de Vicente Casali, uma ausência nos chama a atenção: em momento algum os “jogos gymnasticos” e os “exercicios gymnasticos recreativos” foram mencionados, o que, de certo modo, o distancia daquele programa de ensino elaborado por Paulo Vidal. Em contrapartida, ao analisarmos os programas de Arthur Higgins, identificamos a prescrição de tais jogos e exercícios ginásticos, ausentes no de Casali ( AVELAR, 2018 ; ROMÃO, 2016 ).
Essa constatação nos leva a crer que as divergências ocorridas dizem respeito muito mais ao lugar de legitimidade que ambos os professores buscavam estabelecer naquela instituição do que propriamente às divergências relacionadas ao ensino da gymnastica. Vicente Casali dizia se inspirar em um professor já reconhecido, Paulo Vidal, e Arthur Higgins, por sua vez, buscava construir seu próprio espaço naquele colégio sem, contudo, desconsiderar elementos de uma prática que lá já existia e com os quais ele concordava.
Assim, ao compararmos os programas, é possível perceber elementos diferenciadores no que se refere à prática desses mestres de gymnastica que no Collegio de Pedro II atuaram no decorrer da segunda metade do século XIX. No entanto, os princípios e objetivos que a definiam perpassavam todos eles, e a maioria dos exercícios selecionados para sua prática era muito semelhante. Independentemente do mestre de gymnastica, os exercícios presentes nos programas de ensino visavam ao fortalecimento do corpo e à sua regulação, havendo uma progressão dos exercícios – partindo do fácil para o difícil, do simples para o combinado –, os quais eram prescritos de forma fragmentada e sequenciada, isto é, ora trabalhava-se a cabeça, ora o tronco; ora as extremidades superiores, ora as inferiores. Assim, contemplava-se a dimensão do todo, da harmonia e integralidade – princípios esses muito enfatizados no período. Também se levava em consideração a aquisição da coragem, da destreza e da agilidade e, em decorrência dessas, desenvolvia-se o sistema respiratório por meio da execução dos saltos, marchas e contramarchas. Por fim, o controle da vontade e a disciplina – outros dois princípios caros à época – também se fizeram presentes na sistematização da gymnastica do Collegio de Pedro II, podendo ser identificados, por exemplo, por meio das posturas, da formação de pelotões e das formaturas que eram cobradas dos alunos.
Considerações finais
Ao voltarmos nossos olhares para os caminhos percorridos por estes três professores, compreendemo-los como parte integrante de lugares específicos que, de certo modo, influenciaram a prática de Paulo Vidal, Vicente Casali e Arthur Higgins, mas que também foram por eles influenciados. Consequentemente, pudemos entender também a maneira como esses mestres de gymnastica contribuíram para o seu processo de constituição e afirmação em diversos espaços, mas, especificamente, considerando o Collegio de Pedro II. Do mesmo modo, apreendemos a forma como cada um deles reagia a determinadas manifestações da gymnastica ao chegar a espaços em que sua prática já ocorria.
No âmbito escolar, a gymnastica – caracterizada como uma prática racional, fundamentada pela ciência, regulada, elementar, disciplinadora e moralizadora dos hábitos –, teve seus movimentos ordenados, sequenciados e progressivos sistematizados sem excessos, sem dispêndio de energia. Logo, era educativa e obrigatória, capaz de endireitar, corrigir, fortalecer e aperfeiçoar os corpos, intervindo também na formação do caráter e na aquisição de hábitos higiênicos e saudáveis. Culminando na elaboração de programas de ensino, passou a ser aceita também no interior das instituições escolares.
Já nas instituições não escolares, nos clubes e sociedades, a gymnastica manifestava-se de outro modo. Os “exercicios gymnasticos”, dando “principio ao divertimento” (O PAIZ, 1886, p. 2), estavam ali para serem apreciados e aplaudidos por aqueles que os assistiam. Privilegiando o espetáculo, essa gymnastica possuía outros sentidos e significados. Todavia, mesmo sendo um modo diferenciado de se educar o corpo, em alguns momentos seus elementos característicos se misturavam, evidenciando que havia sim uma linha tênue que separava as gymnasticas, não uma ruptura definitiva.
Os saltos, as piruetas e as acrobacias executados nos estabelecimentos não escolares passaram a ser, nas e pelas escolas, controlados por aparelhos ginásticos e sob a orientação de seus mestres, professores responsáveis pelo seu ensino. As demonstrações coletivas, desafiadoras dos corpos daqueles que as praticavam, encantavam aqueles que as assistiam nos espetáculos proporcionados pelos clubes e sociedades. Já nas festas escolares, voltadas também ao espetáculo, não desconsiderava a dimensão do controle. Destinadas à formação do aluno, à aquisição de hábitos e comportamentos saudáveis, controlados e higiênicos, essa gymnastica não menosprezava o divertimento.
Conclui-se, portanto, que foi nessa linha tênue de negociações e partilhas entre os mestres que se constituíram e se afirmaram as gymnasticas no Collegio de Pedro II, na segunda metade do século XIX. Para se legitimarem, tais gymnasticas sofreram diferentes alterações ao longo desse período e foram influenciadas por diversas outras práticas que fizeram parte da experiência dos respectivos professores. Assim, ainda que a prática ginástica tenha feito parte do percurso formativo do Pedro II, não se pode afirmar que se tratava de uma única gymnastica.
Diante disso, as gymnasticas forjadas e compartilhadas por esses três professores estiveram encarnadas em suas experiências e trajetórias, evidenciando, assim, que suas práticas não “nasceram” puras e acabadas, mas que comportaram uma dimensão transformativa que se adequava ao tempo e ao espaço em que eram conformadas. No processo de concretização dessas gymnasticas, o Collegio de Pedro II teve papel de destaque por ter sido, nos dizeres de Cunha Junior (2008a), uma das primeiras instituições a iniciar o seu processo disciplinarizador, tornando-as práticas escolarizadas, no Brasil, tendo contado também com as contribuições de Paulo Vidal, Vicente Casali e Arthur Higgins.