Introdução
A epígrafe deste texto, enunciada por um estudante do Ensino Fundamental II, interpela-nos a investigar concepções de ciência no contexto educacional de uma escola rural, onde ele está inserido. Neste artigo, buscamos compreender como alguns estudantes da escola básica percebem a ciência em seu vasto e múltiplo horizonte. A representação de ciência na epígrafe aponta para conhecimentos ou objetos de investigação das áreas naturais, além de remeter a atividades escolares, a exemplo de aulas ou feiras de conhecimento (ou feiras de ciências, no termo utilizado pelo próprio estudante).
Isso sugere que herdamos uma concepção de ciência. Mas que concepção seria? A fim de responder tal questionamento, propomo-nos a identificar representações discursivas sobre ciência em dizeres de estudantes de um 7º ano do Ensino Fundamental, matriculados numa escola rural. O uso do termo “preconcebido” no título justifica-se pelo fato de esta pesquisa estar vinculada ao projeto ConGraEduC 5 , que se encontra com a primeira fase de produção de materiais pedagógicos concluída e com investigações interventivas em andamento. Esperamos que, durante tais intervenções, os estudantes ressignifiquem as representações inicialmente compartilhadas sobre ciência.
Neste estudo, estabelecemos algumas pontes entre a Linguística Aplicada (LA) e a Análise de Discurso (AD). Os caminhos epistemológicos subjacentes a tais campos do conhecimento emaranham-se. Esse encontro permite-nos assumir uma postura crítica, culturalmente sensível, pois trazemos as vozes de estudantes da zona rural a respeito do que eles compreendem por ciência. Interessa-nos investigar a tomada de posição dos enunciadores. Assim, em nosso gesto de leitura, identificamos algumas representações discursivas na e pela materialidade linguística.
A epígrafe acena para o fato de que os estudantes parecem representar o mundo científico da seguinte forma: ciência, a priori, só poderia ser acessada por um grupo específico, ou seja, os cientistas que manipulam fórmulas químicas e corpos humanos. Todavia, a abordagem pedagógica da educação científica assumida no projeto focalizado visa ao acesso democrático a conhecimentos científicos diversos, vinculados a distintos campos dos saberes, inclusive os dos estudos da linguagem, pelo cidadão comum ( SILVA 2019, 2020a).
Este artigo está organizado em quatro principais seções, além desta Introdução, das Considerações Finais e das Referências. Na primeira parte, compartilhamos alguns pressupostos teóricos da abordagem da educação científica assumida na pesquisa, considerando referências dos estudos dos letramentos. Na segunda, apresentamos o escopo teórico, a partir do qual constituímos e analisamos o corpus da pesquisa. Na terceira, descrevemos os procedimentos metodológicos utilizados na geração e tratamento dos dados. Por fim, na quarta parte, exemplificamos e discutimos algumas representações sobre ciência produzidas pelos estudantes participantes.
Educação científica na escola
A abordagem da educação científica na escola pode contribuir para os estudantes encontrarem sentido nos objetos de conhecimento trabalhados nos distintos componentes curriculares. Assim, cabe ao professor criar situações ou práticas educativas, nos termos de ( FREIRE 2008), permitindo aos educandos avançarem ao longo das séries ou anos escolares como cidadãos, ou seja, sujeitos conscientes 6 . Esse processo contribui para que, autonomamente, o próprio educando construa suas trilhas ou percursos de conhecimento. Para ( FREIRE 1983, p. 16), “o conhecimento [...] exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção”.
Na escola, é perceptível a fragilidade no desenvolvimento de alguns princípios necessários ao desencadeamento da educação científica dos estudantes, a exemplo da curiosidade, investigação, relevância, persistência, criatividade, colaboração e comunicação, os quais contribuem para o desenvolvimento de diferentes competências necessárias à formação de qualquer cidadão crítico, conforme descrito por ( SILVA 2020a). Mas o que é educação científica? No contexto brasileiro, ( SILVA 2016, 2019, 2020a, 2021) tem se dedicado à compreensão ou (re)construção do fio condutor dos usos dos termos alfabetização científica e letramento científico, bem como de suas oscilações na literatura especializada brasileira. As concepções subjacentes a tais termos integram a proposta de educação científica. Em uma perspectiva indisciplinar, os estudos do autor inscrevem-se na LA e estão fundamentados em trabalhos do ensino de ciências ( HURD 1958, 1998; LIU 2009) e da ciência da educação ( FREIRE 1979, 1983), além de mobilizarem pressupostos teóricos dos estudos dos letramentos produzidos na própria LA ( KLEIMAN 1995, 1998, 2001; SIGNORINI 2000, 2007).
Considerando a origem das terminologias, o pesquisador compreende por alfabetização a conscientização por parte dos aprendizes sobre o funcionamento do sistema alfabético e ortográfico da língua, possibilitando o aprendizado da leitura e da escrita, enquanto o termo letramento corresponde aos usos sociais da escrita para objetivos precisos, ou seja, realça as facetas interativa e sociocultural da linguagem ( SILVA 2016, 2019, 2020a, 2021). Dado o exposto, quais seriam as especificidades da alfabetização científica e do letramento científico, considerando que a junção dos dois corresponde ao que estamos compreendendo por educação científica?
( SILVA 2018)Silva et al. (2018, p. 89) afirmam que, no campo da educação, o letramento científico pode ser caracterizado “como o processo por meio do qual os estudantes estarão aptos a acessar e produzir conhecimentos científicos mediados pela escrita, de modo que possibilite o olhar e a intervenção consciente e crítica no mundo real”. A alfabetização científica é compreendida como “o metaconhecimento sobre a dinâmica das atividades de investigação científica, compreendendo, inclusive, a apropriação de linguagens utilizadas por distintas comunidades de especialistas” ( SILVA 2019, 151).
A abordagem pedagógica proposta por Freire (1979) alinha-se à concepção de educação científica assumida nesta pesquisa. Em seu tempo, o autor contrapôs-se a métodos convencionais de alfabetização pautados na memorização, na domesticação e no silenciamento; imprime um projeto de educação libertador com o compromisso da transformação e do empoderamento popular. Propôs uma abordagem da alfabetização que fosse um ato de criação, “na qual o homem, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção, características dos estados de procura” ( FREIRE 1979, 22).
Para o planejamento de situações educativas, agora do ponto de vista das alfabetizadoras, ( FREIRE 1979) propôs a criação, a invenção e o estado de procura. Há indícios de uma performance científica no planejamento dos procedimentos para alfabetização. Na estratégia de seleção de vocábulos, as denominadas palavras geradoras, para o material pedagógico (fichas, cartazes), são considerados aspectos linguísticos, mas também sociais: “devem nascer desta procura [dos setores populares] e não de uma seleção que efetuamos no nosso gabinete de trabalho, por mais perfeita que ela seja do ponto de vista técnico” ( FREIRE 1979, 23). Paulo Freire contemplou o que, mais recentemente, ( SANTOS 2007) denominou pensamento abissal 7 , transformando os saberes deslegitimados das vidas, das gentes e das pessoas em temáticas para investigação. E ainda fez mais: transformou e revelou sujeitos atuantes e construtores de suas próprias histórias.
Em um movimento contra-hegemônico, Paulo Freire propôs o empoderamento das vidas, gentes e pessoas. Tal abordagem alinha-se à pesquisa participante assumida neste estudo. De acordo com ( BRANDÃO 2006, 32), esse tipo de pesquisa funciona “como uma alternativa solidária de criação de conhecimento social, ela se inscreve e participa de processos relevantes de uma ação social transformadora de vocação popular e emancipatória”. Retomando Paulo Freire, destacamos que o autor estava na vanguarda ao considerar relações sociais assimétricas no processo de alfabetização pela conscientização dos aprendizes.
Sensível às considerações de Paulo Freire, inscrevemo-nos no âmbito de uma LA que compreende o ensino e a aprendizagem como processos situados, desenvolvidos por sujeitos de linguagem inacabados e radicalmente constituídos pela/na alteridade. Trata-se de uma LA que pretende “dar conta da pluralidade de vozes em ação no mundo social e considerar que isso envolve questões relativas a poder, ideologia, história e subjetividade” em torno da língua[gem] ( Luiz Paulo da MOITA LOPES 1994, 331).
Diante desse cenário, os esforços empreendidos por uma ciência diversa e de excelência estão a serviço da liberdade, defendendo um compromisso explícito com o pensamento crítico e científico sobre a realidade. A educação crítica e problematizadora deve ser vista como uma construção dialógica e a situação educativa como produto da interação com os contextos sociais em que estão inseridos os discentes.
Escopo teórico da pesquisa
Neste artigo, realizamos um profícuo movimento fronteiriço entre pressupostos teórico-metodológicos da LA e AD de linha pecheutiana. Investigamos representações discursivas sobre ciência em enunciados de nove estudantes de uma escola rural a partir de entrevistas semiestruturadas. Esses discursos acenam para fatores da prática pedagógica na escola, além de exteriorizarem uma forte relevância social, característica inerente de pesquisas em LA, permitindo futuros encaminhamentos para a formação de professores.
A LA tem um compromisso social e político, buscando compreender relações assimétricas apreensíveis nas distintas interações humanas e, consequentemente, um melhor entendimento da realidade social. Na LA, as pesquisas demonstram o comprometimento com pessoas invisibilizadas socialmente, a exemplo dos silenciados em interações orais, escritas ou multimodais, conforme mostrado em estudos dos letramentos ( KLEIMAN 1998; SILVA 2020b). Focalizam ainda questões políticas e éticas que atravessam as ciências sociais e humanas ( Luiz Paulo MOITA LOPES 2006; SILVA 2021).
Em uma perspectiva não disciplinar, “mixagens de todo tipo”, no termo empregado por ( SIGNORINI 2006), permitem aos linguistas aplicados construírem objetos complexos de pesquisa, envolvendo movimentos de tempo, espaço, recursos linguísticos e extralinguísticos. Conforme ( PENNYCOOK and MOITA LOPES 2006), podemos falar numa LA transgressiva, pois objetiva “atravessar fronteiras e quebrar regras em uma posição reflexiva sobre o quê e por que atravessa; [...] articula-se para a ação na direção de mudança”. Especificamente, podemos, pois, considerar uma fluidez entre os campos teóricos, buscando interrelações de conceitos, pensamentos, culturas, permitindo, portanto, um movimento de mudança nos procedimentos investigativos.
Cabe destacar que o diálogo da LA com a AD pode configurar-se como transgressivo, na medida em que permite a problematização de sentidos cristalizados, os quais circulam produzindo efeitos de verdade nos/sobre os processos de ensino-aprendizagem. Neste estudo, partimos de alguns pressupostos da AD para a compreensão dos dizeres sobre ciência produzidos pelos estudantes participantes. A vertente pecheutiana permite ao analista uma leitura crítica, mais verticalizada: “é mais do que linear, horizontal. Ela é vertical, cuidadosa, disciplinada, atenta” ( FONSÊCA 2014, 380). Ainda segundo ( FONSÊCA 2014) , é necessário dizer que a leitura não é suficiente para revelar o sentido. Precisa de um aparato teórico que ofereça condições para se compreendê-lo. Acerca da questão posta, ( BRITO and GUILHERME 2013) argumentam que:
A AD busca descrever, analisar e interpretar a forma como os sentidos, numa articulação da língua com a história, se constituem, são formulados e produzem efeitos na sociedade. Analisar, pois, os discursos enunciados pelos sujeitos do processo de ensino-aprendizagem de línguas e da formação de professores na relação da materialidade da língua com a materialidade da história significa a possibilidade de abordar a discursividade enquanto efeito da língua sujeita à falha que se inscreve na história ( PÊCHEUX 1997). Significa, ainda, a possibilidade de se problematizar quais seriam os desdobramentos de seus discursos em suas práxis e prática pedagógico-educacional. ( BRITO and GUILHERME 2013, 27).
Mobilizamos, pois, conceitos como os de formações imaginárias, tomada de posição, interdiscurso e intradiscurso, que sustentam as condições de enunciação. Tais condições são tratadas pela via da indexicalidade histórica, uma vez que os dizeres não podem ser analisados a-historicamente. Assim, as tomadas de posição apontam para imagens construídas de si e de outros em nossa sociedade, as quais são materializadas na linguagem. Dizemos, então, que o discurso dos sujeitos é fruto de uma rede de identificação com sentidos que circulam sócio-historicamente. “O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro” ( ORLANDI 2001, 43).
Conforme ( Pêcheux (1975/2014, p. 163)), “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito)”. Tudo isso determina as condições em que o discurso é produzido. Trata-se, pois, de refutar a transparência da linguagem e apostar na opacidade dos dizeres. Uma palavra remete a outra palavra, por isso é que toda interação verbal só se constitui na substância da língua. A palavra é direcionada a um interlocutor e é permeada por um atravessamento de projeções feitas de si e dos outros, além dos lugares atribuídos a si e aos outros, no funcionamento do processo discursivo ( PÊCHEUX, 1969/1997).
Esse jogo de projeções – as formações imaginárias – incidem na tomada da palavra, (de)limitando o que pode e deve ser dito. É nessa esteira que compreendemos as representações de ciência produzidas pelos sujeitos da pesquisa. As representações sobre ciência são determinadas sócio-historicamente e levam em conta a imagem que esses sujeitos fazem, por exemplo, de si enquanto estudantes do Ensino Fundamental II, de seus professores, da escola, dos pesquisadores (para quem respondem as perguntas), dos componentes curriculares que estudam, do ato de pesquisar, dentre outras. Todavia, perpassados por um esquecimento constitutivo, os sujeitos inscrevem seus dizeres em já- ditos, em discursos que os precedem e que circulam produzindo efeitos de verdade.
O interdiscurso está atrelado ao inconsciente, ou seja, à memória discursiva, o que excede a formulação verbal. Trata-se, pois, daquilo que:
[...] “sustenta o dizer em uma estratificação de formulações já feitas, mas esquecidas e que vão construindo uma história de sentidos”. Isso passa a falsa impressão de que controlamos o que falamos ou escrevemos, construindo “a ilusão de que somos a origem do que dizemos.” ( ORLANDI 2001, 54).
O intradiscurso, por sua vez, é a dimensão linear do enunciado, o fio da formulação efetivamente realizado na sintaxe de uma língua. “No nível intradiscursivo de análise, estuda-se a relação da materialidade linguística-processo discursivo do dito, com o que se disse antes e ao que se aponta” ( SERRANI-INFANTI 1998, 140).
Assim, buscamos as representações de ciência nas formações imaginárias produzidas no imbricamento entre o intradiscurso e o interdiscurso. Em outras palavras, interessa-nos compreender aquilo que se (des)vela na materialidade linguística, de forma a apontar para o funcionamento de uma memória discursiva que constitui os sujeitos e que vem à tona quando enunciam sobre ciências no contexto escolar.
Caracterização dos dados
Os dados de pesquisa foram gerados a partir de uma entrevista semiestruturada gravada em vídeo com nove enunciadores, estudantes de um 7º ano do Ensino Fundamental II, matriculados numa escola rural, da rede municipal pública de ensino de Palmas, Estado do Tocantins, localizado na Região Norte do Brasil. As entrevistas foram realizadas com base em quinze perguntas e conduzidas no ConGraEduC. Após a transcrição das entrevistas, selecionamos sequências discursivas (SD) conforme regularidades enunciativas que emergiram dos dizeres dos estudantes, a partir de nosso gesto de intepretação.
Para o escopo deste trabalho, organizamos as SD em três blocos com entrevistas de três participantes (a saber: RL, DR e ML), cujos dizeres nos permitem elucidar as representações encontradas no corpus. Ressaltamos que os participantes nos interessam pela posição discursiva que ocupam, isto é, estudantes do ensino básico, sendo que seus dizeres produzem sentidos para além da intencionalidade discursiva dos falantes. Além disso, os sentidos produzidos por esses sujeitos são tomados sempre em relação a, isto é, não significam em si, mas a partir de ressonâncias de sentidos que se historicizam. É por isso que diferentes formulações linguísticas – observadas no intradiscurso – nos permitem entrever movimentos parafrásticos, pelo contínuo jogo de unidade e dispersão dos dizeres.
Consideramos aqui quatro questões das entrevistas que evocam posicionamentos sobre ciência, a saber: (1) Por que se interessou em participar da pesquisa?; (2) O que você compreende por ciência?; (3) O que você compreende por pesquisa?; (4) Você já participou de alguma atividade de pesquisa na escola? Explique. Pode mencionar mais de uma atividade. Respostas para outros questionamentos foram investigadas por ( ANTONELLA, SILVA, and BRITO 2022).
Para a mediação da interlocução com os estudantes, uma professora-pesquisadora (PP), integrante da equipe do projeto focalizado, realizou a entrevista. De forma espontânea, os estudantes responderam as indagações da profissional. Podemos caracterizar essa situação como uma interação assimétrica, pois os responsáveis pela pesquisa na escola selecionada exerceram, na ocasião, a função de professores dos estudantes participantes 8 . A entrevista foi transcrita preservando o registro linguístico utilizado pelos participantes, pois tais aspectos são relevantes no projeto em que focalizamos o estudo da gramática do português 9 . A fim de evitar a exposição ou constrangimento dos estudantes, neste trabalho, vamos utilizar as iniciais dos nomes próprios, além de códigos (alfabéticos e numéricos) para melhor organização dos dados. Assim, temos Q (questionário e seu número), P (Participante e seu número) e R (resposta e seu número), além de identificação das SD dos estudantes participantes (exemplo: (Q1P1R30) RL).
Finalmente, reiteramos que, neste estudo, buscamos delinear algumas representações discursivas de estudantes a respeito da relação que eles têm com a ciência. As representações colocam em cena já-ditos, sentidos sedimentados constituídos sócio-historicamente dos quais o sujeito se apropria na ilusão de ser a fonte de seu dizer, “esquecendo-se” de que, nas práticas discursivas, “o sujeito tem que se deixar falar, enunciar, mesmo quando monologa, porque o corpo também é discurso”, reverberando em nós, por conseguinte, as vozes “[...] daqueles que tiveram e têm participação de algum modo em nossa formação” ( ANTONELLA, SILVA, and BRITO 2022, 94).
Entendemos que a análise dessas representações pode contribuir para que sentidos cristalizados sobre ciência sejam problematizados na educação básica de modo a ensejar o desenvolvimento da educação científica na formação dos estudantes, tendo em vista as diferentes práticas de linguagem colocadas em cena no contexto escolar.
Representações sobre ciência
As representações sobre ciência dos participantes sustentaram-se em um recorrente “discurso dominante”, caracterizado aqui por constructos científicos metodológicos rígidos e objetivos, com predominância da valorização da abordagem quantitativa típica das ciências naturais e exatas. Nas palavras de Silva ( SILVA 2020b, 121–22), esse discurso “tem implicações diretas para as políticas de financiamento das ciências no país [Brasil] e, indiretamente, para a educação científica dos cidadãos”. A discursividade discente privilegia o ensino de ciências naturais no contexto escolar, ou seja, os estudantes acreditam que a atividade científica esteja restrita a esse campo do saber.
Quanto à compreensão de pesquisa, o discurso dominante aponta para a ideia de buscar na web, tendo por base a cópia das informações, revelada na atitude de que o conhecimento deve ser anotado e decorado, uma vez que a pesquisa foi solicitada pelo professor. Diante disso, compreendemos e denominamos essa tomada de posição de “discurso da cópia”. Parte dessa transmissão de conteúdo, visto como pesquisa pelo educando, vem de uma tradição escolar “passiva, meramente receptiva, copiadora, domesticadora [...], porque consolida a condição de objeto de ensino” ( DEMO 2011, 42). Em contraposição à prática diversa da cópia na escola, ( DEMO 2011) propõe o desenvolvimento do “questionamento reconstrutivo”. Defende a formação do estudante questionador – aquele que questiona a realidade ou o conhecimento existente e o reconstrói através de seu próprio texto (oral/escrito/multimodal). Quando se menciona o texto, coloca-se em xeque a proficiência leitora e escritora dos estudantes, bem como a prática pedagógica dos professores da escola básica. Diante dessa perspectiva, encontramos
contribuições para uma educação científica na escola/sala de aula.
No Bloco 01, tabela 1, reproduzimos um fragmento da entrevista realizada com o estudante RL. Evidenciamos indícios do “discurso dominante sobre ciência” e do “discurso da cópia”.
Bloco 01 | |
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Discurso Dominante/Discurso da Cópia | |
SD1 |
PP: o que você entende por ciência? (Q1P1R30) RL: ((pensando)) (09:35 – 09:56) |
SD2 |
PP: é a sua opinião --- você pode dar sua resposta, você já ouviu a palavra ciência antes? (Q1P1R31) RL: já!! |
SD3 |
PP: e o que que você entende da palavra ciência? (Q1P1R32) RL: é que estuda as vidas dos animais e das plantas e de outras coisas. |
SD4 |
PP: e a palavra pesquisa? (...) o que que você já ouviu falar da palavra pesquisa? (Q1P1R33) RL: ((pensando)) (10:26 – 10:33) |
SD5 |
PP: o que é pesquisa para você? (Q1P1R34) RL: pesquisa é procurar na internet as coisas que a gente não sabe. |
SD6 |
PP: [Que legal ((risos)) você já participou de alguma atividade de pesquisa na escola (...) não necessariamente nessa, que você disse que não estudava aqui antes (...) em outras escolas, você já... você já fez pesquisa? (Q1P1R36) RL: já!! |
SD7 | PP: e que tipo de pesquisa você já fez? (Q1P1R37) RL: pesquisar palavras que a gente não conhece --- no, no dicionário ou na internet |
SD8 | PP: só essa pesquisa que você já fez? (Q1P1R38) RL: sim!! |
Fonte: Os autores.
Na SD1, a pergunta apresentada ao estudante é bem oportuna, uma vez que o intervalo de 21 segundos, para a formulação de resposta, demonstra a dificuldade do estudante em perceber o fazer ciência na escola do ponto de vista de uma educação científica diversa. RL fica pensando, e o silêncio se estabelece. Segundo ( ORLANDI 1995, 23–24), a noção de silêncio dá “a possibilidade para o sujeito trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa na relação do “um” com o “múltiplo”, a que aceita a reduplicação e o deslocamento mque nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa”. Entendemos que o silêncio do estudante acena para a dificuldade de enunciar sobre uma prática que lhe parece ser pouco familiar no contexto escolar, instaurando, assim, uma tensão no dizer. O silêncio é, pois, indício de uma memória que acena o lugar de uma falta ou de um estranhamento acerca do tema levantado.
A resposta para a pergunta “O que é ciência?”, na entrevista de RL, desliza para as chamadas ciências duras, as quais têm reconhecidamente prestígio científico na sociedade, a exemplo da Biologia, da Química e da Física. No artigo Ciências nas licenciaturas ( SILVA 2018), cujos colaboradores da pesquisa são acadêmicos em cursos superiores de licenciaturas, ou seja, futuros professores, ocorre algo semelhante ao que os estudantes da escola básica concebem como ciência: há uma tendência de as humanidades serem invisibilizadas, ao passo que as ciências da saúde e naturais são realçadas. Na SD3, provavelmente, o estudante remete à disciplina escolar de Ciências, o que corrobora essa representação.
As palavras “animais” e “plantas” demonstram uma aproximação com a disciplina escolar de Ciências. Parece que o nome “ciência” está imbricado às memórias escolares, relacionada a um único campo do saber, de forma a silenciar outras práticas, outras formas de produção de conhecimento e, por conseguinte, outras disciplinas escolares, como língua portuguesa. Traduzimos os dizeres de RL pelo viés do linguístico e inscrito na memória, uma vez que a história afeta as tomadas de posições do sujeito no discurso e suas representações discursivas. Assim, apontamos, por intermédio de seus posicionamentos, para o “discurso dominante sobre ciência”.
Ademais, dos nove entrevistados, sete estudantes enunciaram ciência correspondendo à disciplina escolar, e dois citaram a língua portuguesa, mas não souberam explicitar a disciplina escolar como fazer científico nem as contribuições dessa para a sociedade. Os discentes fazem um gesto de leitura de invisibilização das ciências humanas e sociais. De todo modo, responder à questão “O que é ciência?” não é simples, pois requererá do enunciatário uma tomada de posição que é realizada pelos efeitos de construção estabelecidos na historicidade, impossibilitando pensar o trabalho do cientista dissociado do contexto histórico-social.
Aoafirmar que “pesquisa é procurar na internet as coisas que a gente não sabe” e “pesquisar palavras que a gente não conhece --- no, no dicionário ou na internet”, RL põe em cena a prática escolar de pesquisa, na qual o olhar do estudante é exterior ao próprio ato de pesquisar, orientado a executar atividades escolares de anotações, em que ficam explícitas as circunstâncias, os locais de pesquisa (na internet; no dicionário) e, por assim dizer, o “discurso da cópia”. Vale ressaltar que o “discurso da cópia” não se refere necessariamente à entrega, pelo estudante, de um texto ou conteúdo idêntico àquele encontrado em um site, por exemplo. Antes, trata-se de uma inscrição que corrobora o imaginário de transposição de um conhecimento – supostamente pronto e estático – de um lugar (no Google, no livro) para outro (o caderno do estudante). Assim, o “discurso da cópia” aponta para a falta de autoria e para o apagamento do caráter subjetivo e implicado que constitui o processo de pesquisar, trazendo à tona sua natureza da tradição escolar.
Por outro lado, o dizer de RL instaura a possibilidade de o sujeito se enganchar na construção de conhecimento, já que a busca se dá pelo que “a gente não sabe”, “não conhece”. ( FERNANDES 2016, p. 56), ao comentar sobre a prática da cópia de textos da internet, afirma que “a prática de cópia revela a necessidade do acompanhamento mais efetivo das atividades pelo professor orientador da pesquisa, de forma que possa garantir a construção do conhecimento por intermédio do letramento digital”. Em outras palavras, a representação de que pesquisa equivale à cópia ou à mera busca por informações prontas e acabadas pode ser problematizada a partir de práticas de letramento que promovam, na escola, espaços significativos de produção do conhecimento, de modo a instaurar para os sujeitos possibilidades de protagonismo em sua relação com o saber.
No Bloco 02, o participante DR também reforça o “discurso dominante sobre ciência”, porém tangencia a ciência da linguagem e as artes como área de pesquisa.
Discurso Dominante | |
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SD9 |
PP: o que que você entende por ciência, a palavra ciência, o que você entende por ciência? (Q1P8R29) DR: ((pausa)) ((balança a cabeça em sinal de negação)) Muitas coisas! Como que o povo fala... esses dias assim... que a Terra era quadrada, mas não, a Terra é redonda. Na minha sugestão, a Terra é redonda. |
SD10 |
PP: mas, o que é pesquisa pra você? (Q1P8R31) DR: pesquisa é quando a gente pesquisa assim uma coisa que a gente não entende. É quando a gente [inaudível] até entender. Quando a gente entende, a gente já sabe mais ou menos o texto. O texto sobre a pesquisa. |
SD11 |
PP: não saiu gravado. O que você entende por pesquisa? (Q1P8R32) DR: Quando a gente pesquisa, e a gente aprende mais sobre um texto. Quando a gente não sabe o texto, a gente vai lá e pesquisa no Google e aí a gente aprende mais sobre o texto. |
SD12 |
PP: você já fez alguma atividade de pesquisa na escola? Se você já participou, diga qual foi? (Q1P8R33) DR: já! Já participei de português e na de teatro. |
SD13 |
PP: como foi essa pesquisa? (Q1P8R31) DR: boa... A gente aprendeu mais, e os meninos aprenderam mais! PP: muito bem! Obrigada, tá bom, DR. |
Fonte: Os autores.
Na SD9, os dizeres de DR sobre ciência remetem a teorias pseudocientíficas da nossa contemporaneidade. Falsas crenças criadas em torno de conhecimentos científicos, a exemplo dos movimentos antivacinas 10 e do terraplanismo, surgem no debate político, em uma tentativa de mascarar os dados, forjando o imaginário da era científica. Conforme Bezerra (2020, p. 21), “a crença na terra plana é só um sintoma de um fenômeno maior e bastante popular no Brasil: a onda de negacionismo científico, a qual gosto de chamar carinhosa e metonimicamente de terraplanismo, que se espraia por diferentes áreas do conhecimento” 11 . DR é a favor do discurso da ciência, provavelmente por conta de sua memória escolar que reverbera o modelo da história das ciências ( CHASSOT 2004).
A memória discursiva deixa entrever a Astronomia (ciência que estuda corpos celestes no espaço sideral). O estudante traz para a discussão o conflito da tomada de posição entre acientíficos (“a Terra era quadrada”) e científicos (“a Terra é redonda”) 12 . Na escola, o conteúdo programático da disciplina de Ciências para o 6º ano focaliza os planetas. Esse posicionamento do estudante marca o conflito entre a postura não científica e científica, sinalizando algumas conexões conflituosas no emaranhado da rede envolvendo ciência e opinião ou senso comum.
Apesar de aparecer como algo resolvido em seu dizer, a tensão instaurada por esse conflito emerge no enunciado “Na minha sugestão”, na SD9, o qual poderia ser parafrasticamente substituído por “Na minha opinião”. Ao atribuir ao seu dizer o status de sugestão/opinião, o sujeito fragiliza o enunciado anterior, no qual se vê a negação categórica de que a Terra seja quadrada: “mas não, a Terra é redonda”. Assim, a tomada de posição do estudante parece respaldar-se na apropriação acrítica do discurso científico veiculado na/pela escola, sem, contudo, apoiar-se em argumentos ou evidências científicas para as suas representações discursivas.
O desafio do projeto ConGraEduC é, pois, proporcionar êxito aos estudantes para formularem argumentos e contra-argumentos, propostas e contrapropostas de um trabalho de investigação científica. Entendemos que a pesquisa na escola pode vir a contribuir para minimizar essa problemática na era científica/tecnológica, além de atribuir uma maior funcionalidade aos objetos de conhecimentos.
O enunciado “pesquisa é quando a gente pesquisa assim uma coisa que a gente não entende” (SD10), por sua vez, ressoa as SDs 5 e 7, ao acenar para efeitos de sentido de ciência como investigação e busca por conhecimento, o que se distancia de um discurso pedagógico limitado, no qual o saber é circular e pouco aberto à incerteza ou ao desconhecido. Se aceitamos que “o conhecimento precisa da incompletude, do inacabamento, da errância dos sujeitos e dos sentidos, de sua inexatidão” ( ORLANDI 2016, 71), podemos afirmar que a educação científica na escola básica se inicia justamente no encorajamento da busca por respostas não definidas sobre os conteúdos escolares. Tal empreendimento, a nosso ver, é possível quando se assume a historicidade dos saberes, dos sujeitos e da linguagem.
Por outro lado, a palavra “texto” aparece, na SD10 e SD11, diretamente associada à atividade de fazer pesquisa, contrapondo-se ao enunciado anterior. Isto é, ao associar pesquisa a algo que se faz “Quando a gente não sabe o texto, a gente vai lá e pesquisa no Google e aí a gente aprende mais sobre o texto”, o estudante coloca em cena o “discurso da cópia”, apontando para a memória de uma prática escolar recorrente, atualizada pelo uso das ferramentas digitais, e que pode, na contemporaneidade, ser expressa pelo enunciado “Ctrl C + Ctrl V”. Desse modo, essas sequências corroboram a fragilidade no discurso do estudante sobre o que é trabalhar com pesquisa na escola, o que reverbera nas SD do Bloco 03.
Discurso da Cópia | |
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SD14 |
PP: e pesquisar é o que? (Q1P5R37) ML: pesquisar é você ter que ler, fazer essas coisas e daí você formula uma resposta fazendo que isso seja uma pesquisa. |
SD15 |
PP: você já participou de alguma atividade de pesquisa? (Q1P5R38) ML: já, mas foi em outras aulas... em português é mais difícil. |
SD16 |
PP: como eram essas atividades de pesquisa? (Q1P5R39) ML: a professora falava para a gente pesquisar isso, isso e aquilo. Aí a gente pesquisava e dava a atividade para ela no outro dia. |
Fonte: Os autores.
A pesquisa escolar, acadêmica ou científica exige procedimentos, estratégias e métodos que requerem uma postura mais reflexiva, pensante. A produção do conhecimento começa com a capacidade própria de elaboração de pensamento, pensar, recriar, ser criativo seriam as preocupações de quem se propõe a investigar, fazer pesquisa. E é válido destacar que, na SD15, as atividades de pesquisa em aulas de língua portuguesa são caracterizadas como “mais difíceis” de acontecer na escola.
O que de fato é pesquisa fica demonstrado na modalização dos seguintes termos: “fazendo com que isso seja pesquisa”. A imagem construída do estudante nos deixa entrever as cópias ou paráfrases de textos originais a partir de leituras realizadas. Ou seja, a questão da não autoria da pesquisa é deslocada para a SD16, que equivale a uma simples atividade, ou melhor, uma cópia (ou paráfrase) que deve ser entregue à professora no dia seguinte. Só mesmo uma pesquisa simplificada (talvez, uma consulta ou busca por informação) poderia ser realizada em aproximadamente 24 horas.
Ao enunciarem, os sujeitos inscrevem seus dizeres em uma memória discursiva acerca do que é ciência atravessada pelo discurso pedagógico. Dito de outro modo, as SD nos permitem entrever uma rede de sentidos que irrompe no intradiscurso e corrobora uma imagem escolar de ciência e do ato de pesquisar que parece ressoar uma visão de educação bancária, em que o conhecimento depositado “lá” (SD11) é acessado e devolvido pelo estudante ao professor, com pouco espaço para a reflexão e para a tomada de posição do sujeito. Todavia, sendo a língua(gem) marcada pela opacidade, é também possível perceber a possibilidade do deslize e do sentido outro em enunciados como “a gente não sabe”, “a gente não conhece”. Vemos aí a possibilidade de explorar, no contexto educacional, práticas de letramento científico que desloquem a relação dos sujeitos com o saber.
Considerações finais
Em um gesto de leitura diante dos dizeres produzidos pelos estudantes participantes desta pesquisa, identificamos o “discurso dominante sobre ciência” e o “discurso da cópia”. São representações de ciência caracterizadas como preconcebidos e esperamos que tais discursos sejam ressignificados durante o desenvolvimento do projeto em escolas de ensino básico.
As posições discursivas delineadas apontam para práticas científicas informadas por saberes característicos das ciências naturais, excluindo as ciências sociais e os estudos das linguagens. A partir da historicidade, essa visão alcança o educando assim como qualquer cidadão comum, imperando a visão de ciência hegemônica informada por práticas de laboratórios e abordagens experimentais.
Um estudante participante nos lembrou do contexto adverso por que passa a ciência brasileira sob interesses político-partidários. Tudo isso nos mostra que as humanidades, incluindo aí as ciências sociais e os estudos das linguagens, por terem muito a dizer e a contribuir sobre/com a dinâmica social, podem se configurar (e estão se configurando) como ameaças a uma sociedade desprovida de educação científica. Esse desconhecimento sobre ciência pode ser vantajoso para políticos da situação que, por vezes, ignoram ou desautorizam orientações científicas em desalinhamento com interesses particulares por eles acalentados, os representantes eleitos pela população.
Finalmente, destacamos que as atividades escolares de pesquisa precisam ser mais bem planejadas, evitando a construção de representações distorcidas sobre ciência. Para tanto, precisamos de educadores familiarizados com as práticas científicas constitutivas dos componentes curriculares pelos quais são responsáveis; precisamos ainda de currículos que assimilem as reformulações necessárias para possibilitar o planejamento e a implementação de situações educativas informadas pela abordagem da educação científica.