Introdução
Nos últimos 40 anos, tanto na Europa quanto no Brasil, vários pesquisadores têm se dedicado ao resgate e à compreensão das ideias do anarquista-geógrafo francês Jacques Élisée Reclus (1830-1905). No entanto, embora inúmeras pesquisas relevantes tenham sido desenvolvidas a partir de temas específicos relacionados a diversas áreas e assuntos (geografia agrária, história do pensamento geográfico, teoria e método em geografia, anarquismo, colonialismo, questão ambiental, etc.), as investigações sobre a educação e o ensino de geografia sob a ótica do pensador ácrata, cujo potencial de pesquisa é promissor, foram apresentadas em poucos trabalhos publicados no país, com destaque para Ferretti (2013; 2018), Girotto e Rech (2016), Rech (2016), Silva (2013; 2016) 2 e Zaar (2019; 2020). Para se ter uma ideia, dos dois textos escritos pelo libertário francês especificamente sobre o ensino de geografia (Reclus, 1902b; 1903), “O Ensino de Geografia” foi traduzido e publicado em língua portuguesa apenas recentemente (Reclus, 2014). A tradução do outro texto (“O Ensino da Geografia: globos, discos globulares e relevos”) deve ser publicada em breve.
A contribuição de Élisée Reclus sobre educação, escola e ensino foi desenvolvida em três dimensões: política, teórico-metodológica e didático-pedagógica. A primeira refere-se à contribuição do pensador libertário para o delineamento de um modelo ácrata de educação (público, laico e popular). A segunda foi formulada a partir da definição do que deveria ser entendido como educação (segundo ele, um processo para o desenvolvimento de sujeitos livres, autônomos e solidários). Por fim, a contribuição didático-pedagógica faz referência às considerações que o pensador forneceu à metodologia do ensino de geografia, tendo defendido o estudo do meio como forma prazerosa de aprender e o uso de globos e de discos globulares em substituição aos mapas planos para facilitar a compreensão das crianças sobre as reais formas da Terra.
Entretanto, a compreensão da origem e dos fundamentos que nortearam as considerações de Reclus sobre temas relacionados à educação exige necessariamente uma análise do desenvolvimento do movimento anarquista europeu da segunda metade do século XIX. Defende-se, portanto, a tese de que o seu entendimento sobre escola e ensino de geografia está inserido em um debate muito mais amplo: o modelo de sociedade defendido pela rede intelectual anarquista europeia, como muito bem apontaram Ferretti (2013; 2014; 2018) e Pelletier (2011; 2013). Assim, o presente texto tem como objetivo contextualizar e analisar as principais considerações do anarquista-geógrafo sobre educação, escola e ensino de geografia. Para isso, o texto está estruturado em três partes. A primeira aborda a consolidação do movimento anarquista europeu e como a questão da educação ganhou centralidade no debate formulado pela rede intelectual libertária, fundada para dar sustentação teórica às premissas ácratas. A segunda parte é dedicada à análise das principais considerações de Élisée Reclus sobre educação, na qual são destacadas suas reflexões sobre temas como a importância da educação informal e a ação mediadora dos docentes e suas contundentes críticas direcionadas à influência religiosa na educação e ao sistema educacional europeu do final século XIX, classificado por ele como moralizador e autoritário que, em vez de ensinar solidariedade, liberdade e autonomia, pregava o nacionalismo. A terceira e última parte é destinada à compreensão da metodologia do ensino de geografia sob a ótica de Reclus, que defendia o ensino integrador da disciplina, capaz de mostrar a importância da natureza para a manutenção da sociedade, bem como para desmistificar posicionamentos como aqueles pautados na ideia de superioridade do homem sobre o meio natural ou de um povo sobre outro.
Movimento Anarquista e Educação
Abordar o anarquismo como movimento homogêneo ou doutrina filosófica, política ou social acabada é um equívoco em virtude das diversas correntes existentes em seu interior: coletivista, individualista, primitivista, verde ou eco-anarquismo, entre outras (Pilla Vares, 1988). Gallo (1996) prefere utilizar o termo “anarquismos”, em uma tentativa de enfatizar a heterogeneidade do movimento e do pensamento ácrata para compreender a diversidade dos seus fundamentos e a gama de proposições sobre temas como sociedade e educação. Entretanto, quando toma-se como fio condutor analítico as críticas dos anarquistas à sociedade capitalista da segunda metade do século XIX, bem como ao seu modelo de educação, pode-se, de forma geral, falar em anarquismo como um movimento que se consolida na Europa no final dos anos 1860 defendendo como princípios fundamentais o combate à autoridade (estatal, eclesiástica e econômica) e a defesa da liberdade (Woodcock, 1962). Foi no bojo da defesa dessas pautas que a necessidade de um modelo ácrata de educação passou a ser pensado.
De forma geral, o anarquismo fundamenta-se sobre quatro premissas básicas: “soberania dos indivíduos”, compreendidos sempre como sujeitos inseridos em um amplo contexto de interação social; “autogestão”, exercida por meio da negação das relações de poder, de dominação, de repressão e de hierarquia; “internacionalismo”, a partir da premissa de que não há emancipação dos indivíduos ou liberdade na exploração de um povo por outro, de um país pelo outro, ou outras relações nas quais as fronteiras territoriais são estabelecidas; e “ação direta”, na qual os sujeitos devem construir e gerir coletivamente os processos revolucionários por meio de informação, ciência e conhecimento construídos visando à emancipação intelectual (Gallo, 1996; Woodcock, 1962).
Se o objetivo dos anarquistas era o rompimento com uma organização social autoritária imposta pela dinâmica do capital industrial e respaldada por Estado e Igreja (Reclus, 1889; 1896), era preciso pensar em um modelo de sociedade mais justo no qual o objetivo da educação fosse formar pessoas intelectualmente livres, capazes de compreender o mundo para transformá-lo (Reclus, 1880b; 1925). Foi sob essa premissa que as concepções de sociedade e educação defendidas pelos ácratas foram delineadas, pois, para esses libertários, enquanto a sociedade ideal deveria estar baseada na liberdade dos indivíduos e na autogestão, o modelo de educação deveria estar ancorado na emancipação intelectual do indivíduo para que ele seja capaz de transformar o meio no qual está inserido (Reclus, 1902a). Ferretti (2013; 2014) e Chollier (2018) destacam que, para o aprofundamento, difusão e consolidação dessa proposta, entre as décadas de 1860 e 1890 formou-se uma rede de intelectuais anarquistas responsáveis pela criação de uma linha científica que associou conhecimentos de áreas como Antropologia, Economia, Geografia, História, Pedagogia e Sociologia e forneceu corpo às propostas do movimento ácrata sobre sociedade e educação, refutando teses defendidas pela Igreja e por pensadores ancorados no darwinismo social que naturalizavam desigualdades e reforçavam posicionamentos discriminatórios. Ferretti (2018, p. 4) afirma que:
[...] os intelectuais anarquistas tentaram desenvolver um discurso que pretendesse o desenvolvimento das liberdades e lutas sociais: nem vanguardistas, nem orgânicos; são organizadores culturais no sentido da difusão do conhecimento por meio de três formas [...]: a construção de escolas modernas, a imprensa popular e a organização de uma educação popular e laica.
Ainda que o movimento anarquista do século XIX tenha sido composto majoritariamente por proletários, como bem apontou Febvre (1909), a ação desses intelectuais o fez ganhar relevância no debate teórico, político e acadêmico (Pelletier, 2013). Entre esses pensadores-militantes estavam James Guillaume, Mikhail Bakunin e os irmãos Élie e Élisée Reclus, que também figuraram entre os criadores da Federação Jurassienne, grupo antiautoritário sediado na Suíça, fundando em 1872 e que adotou o comunismo anarquista como pauta principal de reivindicação e forma de organização (Ferretti, 2016). O grupo também foi responsável pela publicação de jornais e panfletos que difundiam as ideias anarquistas (Brun, 2014; Nabarro, 2020a).
Os intelectuais anarquistas não tinham a intenção de estar na vanguarda da ciência, mas de promover a consciência da massa trabalhadora para que ela realizasse a revolução (Springer, 2017). Segundo pesquisa de Ferretti (2018, p. 3), “a tática anarquista implica a tomada de consciência dos que estão nas camadas sociais inferiores, o que levaria à revolução social: nesse sentido, a função da organização revolucionária não é a de guiar as massas, mas de acompanhá-las sem reproduzir novas classes burguesas, nem ditaduras proletárias”.
Os intelectuais anarquistas não atuavam em universidades, mas em grupos científicos ou editoriais (Ferretti, 2013; Nabarro, 2020a). Suas elaborações teóricas estavam comprometidas mais com a transformação social do que com reflexões sobre objetos de pesquisa delimitados por intelectuais acadêmicos. Além disso, se mostravam avessos a todos aqueles que defendiam que produção intelectual e ação social deveriam ser tarefas para sujeitos distintos (Nabarro, 2020b; Sarrazan, 2004; Vincent, 2010). Desenvolveram, por exemplo, teorias sobre solidariedade e ajuda mútua, que conectavam as ciências naturais às sociais, sem dicotomias, porque para eles a ciência deveria produzir conhecimento livre e ser utilizada para libertação intelectual dos indivíduos (Ferretti, 2013; Nabarro, 2020a; 2020b; Pelletier, 2011; 2013).
[...] do ponto de vista científico o importante não é construir uma ciência de partido, mas um meio de experimentação intelectual livre, considerado em si mesmo um projeto de libertação. Não se trata de guiar as massas populares, mas de favorecer a tomada de consciência de cada um dos membros dessas massas, proporcionando os instrumentos para o desenvolvimento intelectual individual e coletivo
(Ferretti, 2018, p. 4).
Ao considerarem a educação como elemento fundante da transformação social, os ácratas buscaram compreender a função social da educação e da escola para aprofundar suas proposições em relação ao ensino formal e teceram severas críticas à educação baseada nos princípios do capitalismo industrial, mostrando-se também contrários à educação privada bem como à gestão autoritária de instituições públicas de ensino por grupos religiosos, como bem apontou Gallo (1996, p. 10, grifos do autor) ao afirmar que:
A principal acusação libertária diz respeito ao caráter ideológico da educação: procuram mostrar que as escolas dedicam-se a reproduzir a estrutura da sociedade de exploração e dominação, ensinando os alunos a ocuparem seus lugares sociais pré-determinados. A educação assumia, assim, uma importância política bastante grande, embora ela se encontrasse devidamente mascarada sob uma aparente e propalada “neutralidade”.
Com apoio dos movimentos operários franceses e ingleses e dialogando com pessoas envolvidas com a organização institucional da educação na Europa, os intelectuais-militantes anarquistas criaram sua concepção de educação (pública, laica e popular), de acordo com a qual o ensino estaria pautado no conhecimento científico, na solidariedade e no federalismo libertário defendido pelos dois principais pensadores ácratas: o filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e o filósofo e sociólogo russo Mikhail Bakunin (1814-1876).
Em relação ao conhecimento científico, a educação pensada pelos anarquistas se valeu também de ferramentas do positivismo e do evolucionismo para selecionar e organizar os conteúdos (Ferretti, 2018). Por mais contraditório que possa parecer – tendo em vista que os anarquistas negavam a compartimentação positivista e criticavam fortemente alguns de seus pensadores por terem defendido posicionamentos discriminatórios –, as ferramentas do positivismo foram utilizadas para defender a produção de conhecimentos baseados na ciência e na negação das explicações religiosas para os fenômenos naturais e sociais (Ferretti, 2014; 2018; Pelletier, 2013).
Em relação ao evolucionismo, a perspectiva adotada não foi a do darwinismo social3, mas a crítica e a busca pela superação dos pressupostos defendidos pela antropologia evolucionista4, que se valia do método comparativo e da visão eurocêntrica para explicar o desenvolvimento desigual das sociedades. Entretanto, para os ácratas, o processo de evolução deve ser compreendido a partir da análise crítica das relações de dominação, religiosa e econômica, que se desencadearam ao longo da história e que criaram visões equivocadas de superioridade entre diversas culturas (Ferretti, 2018; Reclus, 1904). Nota-se, portanto, o papel capital da análise das relações humanas para a construção das noções de “sociedade” e “educação” aos moldes ácratas. Isso também explica a quantidade de pesquisas dos intelectuais libertários sobre povos primitivos5, pois, conforme destaca Ferretti (2018), ao reunir informações sobre os diferentes povos do mundo, os anarquistas conseguiram estabelecer as diferenças entre as suas condições materiais, dando sustentação ao seu questionamento sobre as teses defendidas a partir do darwinismo social, da antropologia evolucionista e das explicações e versões bíblicas.
O desenvolvimento de conhecimentos a partir da crítica dos ácratas à antropologia evolucionista conduz à análise do segundo alicerce da educação libertária: a solidariedade. Os estudos de geografia contribuíram enormemente para o estabelecimento desse pilar “já que os geógrafos anarquistas [Élisée Reclus e Piotr Kropotkin] consideram o princípio da unidade humana como um ponto fundamental [da sua teoria]” (Ferretti, 2018, p. 10). Assim, a solidariedade se consolidou como um dos princípios mais importantes da concepção ácrata de educação porque “o ideal dos anarquistas não é suprimir a escola, pelo contrário, é fazê-la crescer, e construir a sociedade como um grande organismo de ensinamento mútuo” (Reclus, 1902a, p. 232, tradução minha)6. Jomini (1990) enfatiza ainda que a solidariedade é um dos alicerces mais importantes para a construção de uma sociedade fraterna na qual práticas como ajuda mútua e ações colaborativas façam parte do cotidiano das pessoas. Nesse sentido, uma educação que objetive a transformação social e a promoção da autonomia intelectual dos indivíduos deve estar ancorada nesse princípio.
O terceiro elemento do modelo de educação libertária é a sua organização influenciada pelos princípios do federalismo libertário defendidos por Proudhon (1840; 1863) e Bakunin (1873; 1895), que consiste na organização da sociedade ácrata em associações, comunas, federações, etc. Não se trata de gerir a escola como uma associação ou comuna, mas de organizá-la a partir dos princípios da ação direta e da justiça social (Rocha, 2009); ou seja, primar para que todos os sujeitos envolvidos participem das decisões sobre aquilo que seria melhor para eles e para todos.
A contribuição de Élisée Reclus para o debate sobre educação
Embora Reclus não tenha dedicado qualquer de suas obras a um debate específico sobre a educação, o tema sempre esteve presente em seus escritos7 justamente por sua importância para a formação de consciências para a transformação social (Cubero, 2002; Pelletier, 2011) tendo em vista que o ponto de partida para um processo de ruptura com o modelo de sociedade existente deveria ocorrer a partir da tomada de consciência da população, sobretudo pelos trabalhadores e camponeses (Reclus, 1880a; 1893; 1896). Entretanto, mesmo Reclus e os demais ácratas não sendo favoráveis ao direcionamento ou coordenação de uma revolução, acreditavam que ela deveria ser realizada pelos trabalhadores e para os trabalhadores, quando esses entendessem racionalmente que era chegada a hora de uma ruptura e do estabelecimento de novas bases sociais (Ferretti, 2018; Kropotkin, 1885; Reclus, 1902a). Seguindo esse pressuposto, as considerações do anarquista-geógrafo sobre educação e ensino foram delineadas a partir de suas críticas ao modelo de educação imposto à população francesa, suíça e belga no final do século XIX que, segundo Reclus (1902b; 1903; 1908), além de estar pautado na formação para a obediência, não considerava a dimensão informal da educação e ignorava a importância das artes, a influência da família e os conhecimentos prévios do sujeito na aprendizagem.
Especificamente sobre a educação informal sob a ótica de Reclus, tema ainda pouco explorado, como já enfatizaram Chollier e Ferretti (2018), Reclus (1904; 1908) aponta que o ato de ensinar não é privilégio, característica ou ação exercida apenas por seres humanos ao afirmar que a prática é mais antiga que a própria humanidade; porém, entre os humanos, o ato de ensinar adquire contornos muito mais complexos. Entre os primitivos, por exemplo, ensinava-se algo com o objetivo de garantir a sobrevivência do grupo por meio da reprodução das práticas sociais relativas ao modo de vida. A partir desse princípio, no qual os meninos deveriam reproduzir as atitudes dos pais e as meninas das mães, na falta de algum dos seus integrantes, o grupo conseguiria sobreviver se aprendesse a suprir as necessidades imediatas, como abrigo, alimentação, etc. Já em relação às práticas de ensino informal na antiguidade (antes do surgimento das escolas e dos sistemas de educação formal), Reclus (1904) destaca o caráter religioso e moralizador do ensino, contribuindo para o aprofundamento das análises progressistas da época, sendo que muitas delas estiveram pautadas no jargão de que todos têm algo a ensinar e/ou aprender (Chardak, 1997; Vincent, 2010). Para ele, o ensino não podia se restringir a essa premissa porque, mesmo informalmente, é ensinado aquilo que alguém julgou ser o mais correto a partir de um determinado ponto de vista construído socialmente. Além disso, mesmo que esse pressuposto esteja na gênese das primeiras escolas de educação formal, não necessariamente apresentará uma verdade científica aos educandos sobre os fenômenos da sociedade e da natureza (Reclus, 1894; 1902a). É, sobretudo, a partir dessas premissas/críticas aplicadas por importantes educadores europeus como Johann Pestalozzi, Paul Robin e Francisco Ferreri Guardia (Zaar, 2019) que o anarquista-geógrafo procura aprofundar o debate ácrata sobre a educação racionalista associada às ciências e sobre a escola moderna.
O caráter moralizador do modelo de ensino europeu está intimamente relacionado à falta de conhecimentos da humanidade sobre os fenômenos da natureza e à criação de “explicações” místicas e/ou sobrenaturais para explicá-los, formuladas ao longo da história da humanidade (Reclus, 1894; 1902b; 1903). A falta de explicações científicas para fenômenos como tremores de terra, chuvas torrenciais, aparecimento de doenças, etc., fez com que as pessoas criassem “verdades” que, por sua vez, ganharam uma perspectiva religioso-punitiva (Reclus, 1894; 1904), pois, ao serem apropriadas por instituições religiosas, ganharam uma dimensão moralizante. Assim, atitudes moralmente condenadas pela igreja passaram a ser apontadas como motivos para a ocorrência dos fenômenos (Reclus, 1904; 1905).
O caráter moralizador e autoritário da escola tradicional também era criticado por Reclus (1908) quando o pensador apontava esses estabelecimentos de ensino como o lócus da promoção da obediência; lugares onde os pais delegam aos professores o poder sobre seus filhos. O fato revela uma relação que não busca a liberdade intelectual, a emancipação dos indivíduos, a promoção da solidariedade e da harmonia (elementos da educação racionalista, aos moldes ácratas), mas a reprodução das relações injustas que compõem a base da sociedade que está posta. Portanto, os sujeitos crescem aprendendo que as pessoas têm seus donos; ou seja, pessoas (pais, professores) ou instituições (Estado, Igreja) às quais condicionam seu comportamento (Pelletier, 2013; Reclus, 1902a; 1904; Silva, 2016). No bojo dessas relações, o conhecimento não é o foco; ele ocorre a partir da “ordem” social estabelecida.
Ao adentrar na história da educação a partir da análise de Reclus, percebe-se que a forma estatal, autoritária e religiosa de “educar” faz todo sentido dentro do modelo de organização social que está posto porque “cada fase da sociedade corresponde a uma concepção particular de educação, de acordo com os interesses da classe dominante” (Reclus, 1908, p. 437, tradução minha)8. Além disso, aquilo que deve ou não ser ensinado varia de acordo com o contexto histórico, geográfico e político no qual as pessoas estão inseridas (Reclus, 1908).
Reclus defendia uma educação pública, laica e popular pautada na ciência, na solidariedade e na liberdade intelectual (Ferretti, 2013; Gallo, 1996), a partir da qual os valores religiosos e os interesses da classe dominante não fossem o parâmetro do que se entendia como “verdade” (Reclus, 1908). Além disso, entre os apontamentos mais relevantes realizados pelos anarquistas em relação à educação está a identificação de que, assim como a ciência, o ensino também é caracterizado pelo perfil da nação e se desenvolve em determinadas condições históricas e geográficas (Chollier; Ferretti, 2018; Reclus, 1908).
Reclus apontava que, apesar de todo o desenvolvimento do conhecimento alcançado entre os séculos XVI e XIX, os valores propagados pela escola do final do século XIX ainda reportavam à moralidade religiosa medieval associada à nova necessidade do mundo moderno: formar trabalhadores para as indústrias, e isso em nada atendia o anseio dos ácratas por um modelo de educação popular, mas remetia ao processo de adequação das escolas aos moldes capitalistas, baseado na formação de mão de obra para a precarização do trabalho nas indústrias (Reclus, 1880a; 1893; 1902a; 1908). Por conseguinte, condenava o ensino autoritário e moralizador e defendia que a educação deve ser livre, adotando como ponto de partida a curiosidade e o tempo da criança. Esse processo de ensino deve ser colaborativo entre aluno e professor: o educando traz seus conhecimentos prévios, seus valores e sua curiosidade, e o docente deve conhecer bem esse aluno para propor atividades que promovam o desenvolvimento do conhecimento, sem direcionamento estatal (Reclus, 1869; 1896).
Alguns educadores já começaram a compreender que seu papel dever ser o de ajudar a criança a se desenvolver de acordo com a lógica da sua natureza: não pode haver outro objetivo se não o de eclodir a jovem inteligência que ele já possui de forma inconsciente despertando rigorosamente sua reflexão, sem pressa, sem conclusões prematuras.
(Reclus, 1908, p. 439, tradução minha)9.
Essa reflexão de Reclus acerca da ação docente aponta para outra importante contribuição do pensador ácrata para os estudos relativos à educação, bem como sobre o papel de mediador do professor entre o aluno e o conhecimento, assunto bastante discutido posteriormente entre os pensadores das correntes progressistas da pedagogia. É importante destacar, no entanto, que seu apontamento ocorre a partir da crítica à postura dos padres educadores cristãos que, segundo ele, eram verdadeiros cerceadores da curiosidade e impostores do conhecimento, exatamente como prima o padrão religioso de educação (Reclus, 1904; 1908), como fica bastante claro em suas próprias palavras:
Em seu pobre ensino, o padre cristão teve alguma vantagem em virtude de uma lógica entre as crenças felizes e as adorações estúpidas. Mas o professor não tem mais fé e, forçado, segundo a expressão consagrada, a expulsar Deus da escola, continua a seguir os métodos inspirados no dogma católico e monárquico (Reclus, 1908, p. 444, grifos do autor, tradução minha)10.
Para Reclus, a educação baseada em valores cristãos (em casa e na escola) resultou, por exemplo, na legitimação da condição subalterna das mulheres, materializada em sua condenação ao lar. Por isso, entre suas críticas direcionadas ao modelo de educação formal europeu, a separação entre meninos e meninas nas escolas foi uma das mais contundentes porque revelava que na educação tradicional as meninas eram educadas para serem mães e mulheres obedientes (Reclus, 1908).
Por conseguinte, ao romper com os moldes cristãos e com as imposições estatais, a escola poderia formar pessoas conscientes, livres e autônomas, capazes de transformar a sociedade. Mas, para isso, é preciso que haja metodologias baseadas nas potencialidades dos alunos, no respeito à natureza, no combate ao nacionalismo e na promoção da interação social visando despertar, nos alunos, atitudes solidárias (Ferretti, 2013; Reclus, 1869; 1880b).
Metodologia do ensino de geografia sob a ótica de Élisée Reclus
Ao adentrar no debate realizado por Élisée Reclus sobre metodologia do ensino de geografia, é preciso compreender em primeiro lugar que a discussão se desenvolveu para além das críticas dos anarquistas ao modelo de educação europeu porque incorporou também a compreensão ácrata da relação homem-natureza. Para os libertários, considerados ecologistas avant la lettre, o homem desenvolve formas de dominar determinados fenômenos naturais, mas não está imune às reações da natureza, devendo, portanto, respeitar suas leis (Pelletier, 2011; Reclus, 1902b; 1903). Na conclusão da obra “L’Homme et la Terre” (O Homem e a Terra), ao discutir o assunto, Reclus critica a crença de que o homem poderia chegar a um estágio tão avançado de desenvolvimento que lhe colocaria em uma posição de superioridade e domínio em relação ao meio (Reclus, 1908), pois, para os anarquistas, o homem nada pode contra as leis da natureza (União Popular Anarquista, 2014). Essa premissa deu origem a uma das mais famosas frases dos libertários sobre as relações homem-meio: “nenhuma rebelião contra a natureza é possível” (Bakunin, (1864 apudPelletier, 2011, p. 13). No entanto, em suas obras, sobretudo nas dedicadas ao debate sobre o conceito de “Evolução”, Reclus reconhece que o homem não deve permanecer submisso à natureza, mas adaptar-se ou modificar as condições naturais caso desenvolva condições materiais e intelectuais para isso (Pelletier, 2013; Reclus, 1894; 1905; 1902a).
Tomando como base as premissas ácratas citadas até aqui, percebe-se a centralidade dos estudos de Geografia para os libertários, pois, além de questionarem posturas políticas, econômicas e sociais equivocadas (como o nacionalismo, o colonialismo, o etnocentrismo e o racismo), a ciência geográfica estuda as diferentes formas de desenvolvimento e características entre os lugares do mundo, dialogando com as ciências naturais, promovendo o conhecimento integrador e a emancipação intelectual dos indivíduos, papel primordial da escola:
A escola verdadeiramente liberta da antiga servidão só pode ter seu franco desenvolvimento na natureza
(Reclus, 1908, p. 444, tradução minha)11.
A verdadeira escola deve ser aquela da natureza livre, com suas lindas paisagens para contemplação, suas leis sobre o estudo do que está vivo, que nos impõe obstáculos que devemos superar
(Reclus, 1880b, p. 298, tradução minha)12.
Tanto em relação ao ensino quanto em relação à ciência, percebe-se que os ácratas se mostraram contrários à fragmentação do conhecimento – e Reclus foi um dos pensadores que mais avançou nessa questão. Para ele, tanto a produção do conhecimento científico quanto o ensino escolar devem partir de uma análise integradora, capaz de relacionar causas, dinâmicas e consequências dos diversos fenômenos (Reclus, 1908). Por isso, como metodologia para o ensino de geografia, defendeu o estudo do meio (que consiste em alunos e professores terem contato direto e interagirem com a realidade a partir de um determinado objeto de estudo) como a mais adequada. Além de despertar a curiosidade dos alunos através da história, dinâmica e beleza cênica, o estudo da paisagem confere uma visão integradora do conteúdo estudado e promove conscientização em relação à importância da natureza para a manutenção da vida e da sociedade. Em suas palavras:
O que hoje é considerado pelas escolas como eventos excepcionais como caminhadas, passeios em campos, em florestas ou em margens de rios deve ser a regra. Somente ao ar livre que se conhece a planta, o animal, o trabalhador e aprende a observá-los, a ter uma ideia precisa e coerente do mundo exterior. Timidamente, pais e educadores embarcam nesse caminho de ‘fuga da escola’. Seria excelente conseguir combinar saúde física e moral por meio de um trabalho alegre ao ar livre, em campo aberto
(Reclus, 1908, p. 446, tradução minha)13.
Não é no interior de salas de aula estreitas, com janelas fechadas, que formaremos homens corajosos e puros. Devemos lhes oferecer o contrário, a alegria de banhar-se nas águas dos lagos das montanhas, de caminhar nas geleiras e nos campos cobertos com a neve, leva-los para escalar picos. Eles poderão, sem nenhuma dificuldade, aquilo que nenhum livro os ensinaria e lembrar-se-ão de tudo o que aprenderam nestes dias felizes nos quais a voz do professor se confundia com a visão encantadora da paisagem, terão enfrentado o perigo, mas com alegria. O estudo será mais prazeroso, marcado pela alegria
(Reclus, 1880b, p. 298, tradução minha)14.
Para Reclus, além do ensino de geografia ser ministrado ao ar livre, deveria estar adaptado à “vocação pessoal dos alunos”, afirmação que expressa um dos mais importantes valores ácratas relacionados à educação: o homem não nasce nem mal, nem bom, nem neutro; mas possui facilidades ou aptidões que o meio desenvolve e confere sentido (Pelletir, 2011). O pensador ácrata prima por uma metodologia centrada na observação direta do meio, tido como objeto do estudo e palco das interações sociais (Reclus, 1880b; 1894; 1902b; 1903; 1908) porque, por mais monótono que determinado lugar possa parecer, é o meio no qual as pessoas reproduzem seus modos de vida.
Para a introdução do conhecimento geográfico às crianças, Reclus defendia que o processo de aprendizagem deveria ocorrer a partir da observação dos elementos da natureza que, para ele, é um dos principais fundamentos do ensino de geografia. Em suas palavras:
O ensino da Geografia – sem o qual todos os outros estudos não compreendem o meio visível, elemento vital, tangível, em constante transformação – não pode ser ministrado honestamente, em sua essência, senão pela observação da natureza
(Reclus, 1902b, p. 29, tradução minha)15.
Essa metodologia pode ser empregada em qualquer lugar porque, por mais simples e inóspito que pareça, certamente oferece uma variedade de solos, plantas e animais que subsidiarão o aprendizado (Reclus, 1902b; 1903). Caminhar livremente com os alunos, no entanto, não significa que a aula não deva ter um planejamento ou objetivos pedagógicos bem definidos.
A aula de campo deve ser ainda mais planejada que uma aula em ambientes fechados porque é preciso que a ação mediadora do docente entre o aluno e o conhecimento ocorra no momento em que determinado ponto da paisagem despertar a atenção do aluno, denominado por Reclus como “momento psicológico”.
[...] o estudo deve ocorrer apenas no momento psicológico, ou seja, no instante exato em que a visão e a descrição entrarão profundamente no cérebro para serem gravadas eternamente. Preparada desta forma, a criança já estará bastante avançada porque, mesmo que ainda não tenha seguido um curso adequado, sua mente estará aberta, esperando pelo conhecimento
(Reclus, 1903, p. 7, tradução minha)16.
Além do planejamento das aulas e da ação pedagógica no momento adequado, Reclus também analisa de maneira bastante crítica a utilização de materiais didáticos no ensino de geografia. Os livros didáticos, por exemplo, são apontados como um recurso que apresenta realidades social, política, econômica e cultural cristalizadas, ultrapassadas, que mais confundem do que ajudam a compreensão dos alunos em relação à dinâmica dos processos sociais em suas contradições (Reclus, 1903). Além disso, no mundo ocidental do final do século XIX o ensino de geografia estava centrado no estudo das características da Terra por meio de mapas planos. Na França, por exemplo, os mapas planos eram elaborados por cartógrafos de renome, mas passavam pela aprovação do Conselho de Instrução Pública, que julgava aquilo que seria ou não adequado para o ensino.
Cedo ou tarde – geralmente cedo demais – chega o momento no qual a criança é aprisionada entre as quatro paredes do sistema escolar. Digo prisão porque o estabelecimento educacional é quase sempre uma, pois há muito tempo a escola perdeu seu significado grego de recreação ou celebração. É isso que transparece nos livros didáticos oficiais desde as primeiras lições de geografia ministrada pelo professor aos seus alunos! Será que ainda devemos continuar seguindo essa rotina, colocando nas mãos das crianças atlas carimbados pelo Conselho de Instrução Pública?
(Reclus, 1903, p. 7, grifos do autor, tradução minha)17.
Ainda que suas obras estivessem repletas de mapas planos18, Reclus questionou determinações do Conselho de que o ensino de geografia deveria estar pautado no estudo desses tipos de representações cartográficas, pois defendia que o globo terrestre seria o recurso didaticamente mais adequado por fornecer uma imagem fiel da Terra, o que é importante para as crianças que ainda não possuem grande potencial de abstração em relação às representações cartográficas (Reclus, 1902b; 1903).
Evidentemente, essa imagem do planeta não pode ser outra senão a de uma bola, análoga à grande esfera que nos apresenta o espaço. Nenhum mapa plano, mesmo elaborado com muito cuidado, substitui um globo porque é impossível para uma figura plana representar com fidelidade a Terra satisfazendo as mentes, sobretudo das crianças que ainda não sabem matemática, para quem os problemas das projeções cartográficas são desconhecidos
(Reclus, 1902b, p. 30, tradução minha)19.
Mas a contrariedade do pensador ácrata em relação ao uso de mapas planos no ensino de geografia não estava restrita apenas a questões didáticas e cartográficas. Em seus textos sobre educação (Reclus, 1902b; 1903; 1908) fica evidente que sua crítica também estava ancorada pela premissa ácrata de combater a reprodução das relações de poder estabelecidas entre os países. Essas relações também estavam indiretamente presentes nos mapas planos, sobretudo na escolha da projeção cartográfica a ser utilizada. Reclus foi um dos primeiros a criticar a materialização dessas questões nos mapas usados nas escolas, nos quais o continente europeu ocupava sempre o centro do mapa-múndi e o tipo de projeção cartográfica utilizada era aquela que distorcia menos alguns países e mais outros, criando uma falsa impressão em relação à área territorial e a importância deles. Para ele, nesses mapas “quanto maior é a área da superfície terrestre representada, mais falsas são as impressões. O leitor é enganado, sobretudo em relação ao formato das áreas terrestres mais distantes cujas formas reais são desconhecidas por ele” (Reclus, 1902b, p. 30, tradução minha)20. Nota-se, portanto, que o uso de globos terrestres no lugar de mapas planos não era meramente uma questão didático-pedagógica; representava o ensino da geografia mais alinhado à concepção ácrata de ensino, baseada na unidade, na compreensão dos fenômenos físicos e sociais inseridos em um contexto mais amplo.
Considerações Finais
Extremamente fiel às premissas ácratas, Reclus foi um dos principais pensadores da proposta anarquista para educação, elaborada a partir do modelo de organização social que almejava: a anarquia. A análise de suas proposições demonstra de maneira bastante clara que há uma relação indissociável entre educação libertária e projeto de sociedade ácrata. Por conseguinte, apresentou uma visão bastante avançada sobre educação para sua época ao aprofundar o debate sobre educação voltada à transformação social, mostrando que liberdade e senso crítico são indissociáveis. Defendeu uma educação voltada à promoção da liberdade e da harmonia entre os povos e voltada ao desenvolvimento da autonomia intelectual, pois, para o movimento anarquista, um dos pilares da transformação social era a democratização do conhecimento científico, e apenas esse tipo de conhecimento é capaz de desenvolver a consciência e a autonomia. Sendo assim, Igreja e Estado não deveriam interferir na educação.
As considerações de Reclus fornecem importantes elementos para a compreensão dos fundamentos da educação racionalista e libertária proposta pelo movimento ácrata. A escola organizada a partir desse modelo promove o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária.
No âmago do pensamento libertário sobre a importância da educação e o papel da escola para a formação intelectual autônoma dos indivíduos, o ensino de geografia ganhou destaque porque, segundo Reclus, a observação da natureza e a compreensão das relações que se estabelecem no meio geográfico são de suma importância para a compreensão da realidade que envolve os sujeitos. Por isso, defendeu metodologias para o ensino da geografia que iam muito além da descrição de lugares ou fenômenos ao primar pelo ensino de uma geografia para a solidariedade universal, construída a partir da eliminação de fronteiras e de castas ou classes sociais.