1 INTRODUÇÃO
Um livro fixa mensagens, que, em sua forma oral, tendem a desaparecer logo após serem pronunciadas. O que é um livro se não o abrirmos? É apenas papel com marcas? Um livro adquire existência quando encontra um leitor que o lê, e seus significados mudam com leituras sofridas (CHARTIER, 2001, p. XI e XII).
Alguns objetos culturais alteram modos de viver e, com o passar do tempo, integrados ao processo histórico-cultural das sociedades, naturalizam-se. Hoje, ler um livro é natural e pode ser sinônimo de praticidade. Com suportes eletrônicos móveis, tem-se acesso a e-books (registro de texto em formato digital e conexões de hipertexto, disponibilizado por meio da rede internet). A história desse artefato, que tem relações com contextos políticos e econômicos, foi influenciada por inovações técnicas. É uma história escrita com diferentes suportes: papiro (fibra vegetal), pergaminho (pele de animais), pasta de papel. E diferentes formatos: do rolo ao códice (vários pergaminhos costurados dando origem ao livro como objeto), e desse à tela. Até o final do século XIV, a fixação das palavras foi manuscrita por pessoas especializadas na atividade, eram os chamados copistas. Nesse período, na Europa, Gutemberg desenvolve a imprensa com tipos móveis reaproveitáveis, um processo para imprimir os livros dando velocidade a produção e também portabilidade, que favorece a circulação da informação escrita.
No entanto, a circulação de manuscritos acontecerá até o final do século XVIII. Atribui-se a sobrevivência prolongada do manuscrito ao tipo de circulação, isto é, os leitores de um manuscrito, geralmente, eram autores, existindo a crença do controle sobre a interpretação do texto, uma vez que são leitores de um mesmo grupo. O processo de escrita da cópia do texto se dava na relação de confiança entre autor e copista.
A imprensa alterou aquela relação de confiança no momento que ampliou o número de pessoas envolvidas no processo. Também contribuíram a concorrência; as técnicas que transformaram o manuscrito em objeto impresso; a distância do autor em relação aos leitores o que permitiu a liberdade na apropriação dos textos. Novas atividades profissionais e novos atores são integrados a produção dos livros na era mecânica. A função de editor adquire autonomia em relação ao gráfico e ao livreiro. A revolução industrial incide sobre a popularização do objeto cultural. Com novos processos produtivos, o livro deixa de ser patrimônio de classes privilegiadas, chegando, ao longo do século XIX, a diferentes grupos sociais. O surgimento do livro impresso ultrapassou a questão técnica, tratou-se sobretudo de um novo meio intelectual a serviço da cultura ocidental que concentrou e expandiu suas principais ideias, uma mídia que criou novos hábitos de pensamento, transformando a sociedade.
Outro fenômeno desse período é a comercialização massiva de livros e as mudanças ocasionadas nas empresas editoriais, especialmente pela junção de três fatores: os avanços no campo das artes gráficas; o acesso a produtos culturais a um número maior de grupos sociais e a educação cada vez mais generalizada. Gradativamente, vão despontando tipos distintos de livros, em geral, associados ao aparecimento de determinados públicos como é o caso do livro para infância. A história desse livro está relacionada ao contexto do Iluminismo, quando surge o modelo burguês de família e a construção do conceito de infância.
As primeiras histórias produzidas para crianças objetivavam contribuir na educação dos pequenos e, em geral, eram oralizadas pelos adultos. Parcela da população infantil foi sendo alfabetizada e começou a ter seus próprios livros, elaborados a partir de enredos que circulavam para outro público. Assim, no século XVII, com os contos de Charles Perrault, surge a literatura infantil para criança. Na primeira edição de Histoires ou Contes du temps passé avec des moralitez, de Charles Perrault, publicada em Paris, em 1697, há a imagem de uma velha senhora e três crianças, as quais parecem escutar atentamente a narração de uma história e, no miolo, aparecem vinhetas associadas à palavra que contribuem na significação da obra. Há, ainda, obras direcionadas a adultos, mas que também foram adaptadas para os infantes como Robinson Crusoé e Viagens de Gulliver. Zilberman e Lajolo esclarecem acerca da produção literária para a infância na Europa que as “[...] primeiras obras publicadas visando ao público infantil apareceram no mercado livreiro na primeira metade do século XVIII” (1984, 15).
No Brasil, apenas no final do século XIX, aparecem livros para nossas crianças. A maior parte deles era tradução e/ou adaptação de textos europeus. Consoante Lajolo e Zilberman, “[...] a literatura infantil brasileira só veio a surgir [...] quase no século XX, muito embora ao longo do século XIX reponte, registrada aqui e ali, a notícia do aparecimento de uma ou outra obra destinada a crianças” (1984, 23). Escritores brasileiros destacam-se de modo mais efetivo apenas no século XX, como é o caso de Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Maria José Dupré, Cecília Meireles, entre outros. O livro para os pequemos, no entanto, historicamente, está associado à escola. É produzido para ser consumido mais pelo estudante do que pela criança.
O Governo brasileiro cria ações tímidas e descontinuadas de promoção do livro. Assim foi com o Programa Salas de Leitura, criado nos anos de 1980, e o Programa Nacional Biblioteca da Escola, que vigorou de 1997 a 20174. O último acervo que chegou as escolas brasileiras pelo PNBE é o de 2014. Foram selecionados e distribuídos nesta edição 100 títulos para a Educação Infantil, 100 para os anos iniciais do Ensino Fundamental e 50 para a Educação de Jovens e Adultos. Este estudo atém-se a obras selecionadas para Educação Infantil.
A simples presença do livro na biblioteca escolar não garante a leitura. As mediações realizadas devem favorecer o acesso ao universo literário. À vista disso, objetiva-se, nesse artigo, determinar o público-alvo dos acervos da Categoria 2 do PNBE 2014, com base nos paratextos da primeira capa e da quarta capa de livros de narrativas por imagens. Essa investigação discute a relevância das mensagens paratextuais no objeto cultural livro e, consequentemente, nas práticas de leitura, a fim de contribuir para a formação do leitor autônomo.
A Categoria 2 do PNBE 2014, correspondente à Educação Infantil - Pré-escola, é formada por 50 títulos separados em dois acervos, conforme Quadro 1:
Acervo 1 | Acervo 2 |
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Você e eu, de Maggie Maino; Já pra cama monstrinho!, de Mario Ramos; Quem quer brincar comigo?, de Tino Freitas; Será mesmo que é bicho?, de Angelo Machado; Ladrão de galinhas, de Béatrice Rodriguez; Calma, camaleão!, de Laurent Cardon; Um+um+um+todos, de Anna Göbel; Auau miau piu-piu, de Cécile Boyer; Duplo, duplo, de Menena Cottin; Não vou dormir, de Christiane Gribel; Ratinhos, de Ronaldo Simões Coelho; Histórias escondidas, de Odilon Moraes; Não é uma caixa, de Antoinette Portis; Jeremias desenha um monstro, de Peter McCarty; Mãenhê!, de Ilan Brenman; O gato e a árvore, de Rogério Coelho; Quem tem medo de monstro?, de Ruth Rocha; Minhocas comem amendoins, de Elisa Géhin; A princesa Maribel, de Patacrúa; Mas que mula!, de Martina Schreiner; Um gato marinheiro, de Roseana Murray; Que um bicho de estimação, de Lauren Child; Tem de tudo nesta rua..., de Marcelo Xavier; Abraço apertado, de Celso Sisto; De que cor é o vento?, de Anne Herbauts. |
Como coça!, de Lucie Albon; A velhota cambalhota, de Sylvia Orthof; Mar de sonhos, de Dennis Nolan; Sete patinhos na lagoa, de Caio Riter; Misturichos, de Beatriz Carvalho; História em 3 atos, de Bartolomeu Campos de Queirós; Curupira, brinca comigo, de Lô Carvalho; Coach!, de Rodrigo Folgueira; Alô, Mamãe! Alô, papai!, de Alice Horn; Chapéu, de Paul Hoppe; Dois gatos fazendo hora, de Guilherme Mansur; Ponto, de Patricia Intriago; Não!, de Marta Altés; A visita, de Lúcia Hiratsuka; Voa pipa, voa, de Regina Rennó; Parlendas para brincar, de Josca Ailine Baroukh e Lucila Silva de Almeida; Como surgiram os vaga-lumes, de Stela Barbieri; O noivo da ratinha, de Lúcia Hiratsuka; Gabriel tem 99 centímetros, de Annette Hubber; Nerina: a ovelha negra, de Michele Iacocca; Rapunzel, de Jacob Grimm e Wilhelm Grimm; Lá vem o homem do saco, de Regina Rennó; Tom, de André Neves; E o dente ainda doía, Ana Terra; Rinoceronte não comem panquecas, Anna Kemp. |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Os dois acervos são formados por obras classificadas em diferentes gêneros, como sintetiza o Gráfico 1:
Os números evidenciam como a prosa constituiu-se foco na produção de livros para a Educação Infantil, posto que o segmento apresenta porcentagens maiores em comparação com o Ensino Fundamental ou com o Ensino de Jovens e Adultos. No entanto, antes ou durante a alfabetização, as narrativas por imagens são muito atrativas para os discentes (SOARES; PAIVA, 2014, p. 12). Ressalta-se que, apesar do desequilíbrio entre o número de títulos de cada gênero, o PNBE possibilitou que a literatura infantil estivesse presente em bibliotecas escolares.
Tendo em vista a importância dos acervos selecionados pelo PNBE para incentivar a leitura, sobreleva-se que o contato inicial entre o leitor e a obra literária começa a partir dos paratextos, conceito delineado por Gérard Genette (2009). Expõe-se, no tópico a seguir, o que são e as formas das mensagens paratextuais, em virtude da influência desses elementos no processo de leitura, compreensão e interpretação de livros.
2 ENTENDENDO PARATEXTOS
Conforme postula Genette (2009), os paratextos são o limiar, entre o dentro e o fora; a zona de transação, entre o texto e o extratexto, caracterizando-se, empiricamente, como um conjunto heteróclito de práticas e de discursos. Não sistematizados, modificam-se de acordo com as épocas, as culturas, os gêneros, os autores, as obras e as edições. A obra literária, como defende o autor, consiste, fundamentalmente, em um texto que, na maioria das vezes, apresenta-se acompanhado de elementos, verbais ou não, como, por exemplo, o nome do autor, o título, o prefácio e as ilustrações. O texto acompanhado desses outros elementos materializa-se e constitui o objeto livro.
Para definir uma mensagem paratextual, postulam-se cincos perguntas: “Onde?”, “Quando?”, “Como?”, “De quem e a quem?” e “Para fazer o quê?”. Portanto, deve-se determinar o lugar, a data de aparecimento e, às vezes, de desaparecimento, o modo de existência, a instância de comunicação e as funções, descrevendo as características espaciais, temporais, substanciais, pragmáticas e funcionais (GENETTE, 2009, p. 12).
Em concordância com Genette (2009, p. 12), “[...] um elemento de paratexto, se pelo menos consiste numa mensagem materializada, tem necessariamente um lugar, que se pode situar em relação à aquela do próprio texto”. Se identificadas em torno do texto, no espaço do texto (título ou prefácio) e nos interstícios do texto (títulos de capítulos ou notas), qualifica-se como peritexto. Já todas as mensagens situadas na parte externa são intituladas como epitexto. Destarte, peritexto e epitexto compartilham o campo espacial do paratexto (paratexto = peritexto + epitexto).
Na situação temporal, adota-se como referência a primeira edição ou original do texto. Denomina-se como paratextos anteriores, de existência pré-natal, os elementos precedentes a produção pública, isto é, panfletos, anúncios de “no prelo” ou pré-publicações em jornais ou revistas (GENETTE, 2009, p. 12). Os paratextos originais, os mais frequentes, aliás, aparecem ao mesmo tempo que o texto. Como defende Genette (2009, p. 13), “[...] se um elemento de paratexto pode aparecer a todo momento, pode também desaparecer, definitivamente ou não, por decisão do autor ou por intervenção alheia, ou em virtude do desgaste do tempo”.
No tocante a situação substancial, títulos, prefácios, entrevistas ou enunciados, quase todos os paratextos são de ordem textual ou, pelo menos, verbal. De acordo com Genette (2009, p. 14, grifo do autor), via de regra, “[...] se ainda não é o texto, pelo menos já é texto”. Existem, porém, outras manifestações de valor paratextual: icônicas (as ilustrações), materiais (as escolhas tipográficas) ou factuais (informações conhecidas do público, que se acrescentam ao texto, como, por exemplo, a idade ou sexo do autor, ou a data da obra).
A situação pragmática, por sua vez, convenciona-se a partir das características de sua instância de comunicação (natureza do destinador, do destinatário, grau de autoridade e de responsabilidade do primeiro, força ilocutória da mensagem, entre outros). Genette (2009, p. 15) ressalta que o destinador de uma mensagem paratextual “é definido por uma atribuição putativa e por uma responsabilidade assumida”. Existem, dessa forma, nesse caso, dois tipos de paratextos: o do autor (paratexto autoral) e o do editor (paratexto editorial). Em algumas circunstâncias, delega-se a responsabilidade a um terceiro (um prefácio escrito por outro e aceito pelo autor) ou compartilhada (uma entrevista fiel ou não das falas do autor). O destinatário, isto é, a quem os paratextos se dirigem, abrange o paratexto público, o paratexto privado e o paratexto íntimo (GENETTE, 2009, p. 15-16).
Acerca da situação funcional, Genette (2009, p. 17) descreve-a como essencial porque “ [...] o paratexto, sob todas as suas formas, é um discurso fundamentalmente heterônomo, auxiliar, a serviço de outra coisa que constitui sua razão de ser: o texto”. Isso posto, ela determina a conduta e a existência do elemento paratextual. Nessa perspectiva, as funções se caracterizam como empíricas e diversificadas, identificadas a partir de gênero por gênero (GENETTE, 2009, p. 18).
Com base nas discussões de Genette a respeito de paratextos, serão analisados livros de narrativas por imagens da Categoria 2 do PNBE 2014, com base nos paratextos editoriais da primeira capa e da quarta capa.
3 PÚBLICO-ALVO: A QUEM SE DESTINAM PARATEXTOS DE OBRAS DO PNBE 2014?
A imagem caracteriza-se como registro visual e tradução de pensamento de caráter representacional, transmitindo ideias a partir da decifração. Ao discorrer sobre os livros de narrativas por imagens do PNBE 2014, Paiva (2014) destaca como eles incentivam a leitura, apesar de não utilizarem o texto verbal como caminho-guia para os acontecimentos do enredo. Considerando-os no âmbito escolar, principalmente para a Educação Infantil, tais obras abrem portas de acessibilidade ao universo literário, à medida que o discente constrói sentido com a leitura por meio da visualização.
O peritexto editorial está associado à edição, sendo de responsabilidade direta e principal do editor, mas não exclusivamente, dividindo-se em paratexto espacial (capa, página de rosto, anexos) e paratexto material (formato, papel, tipografia) (GENETTE, 2009). Todavia, observa-se que a relação entre a obra e o leitor se estabelece, a princípio, mediante ao peritexto editorial, influenciando a determinação do público-alvo. Apoiado nesse pressuposto, privilegiamos aspectos de edição referentes a primeira capa e quarta capa, para analisar os livros de narrativas por imagens dos acervos da Categoria 2 de Educação Infantil do PNBE 2014, elencados no Quadro 2.
OBRA SELECIONADA | AUTOR(A)/ ILUSTRADOR(A) | ACERVO |
---|---|---|
Ladrão de galinhas | Béatrice Rodriguez | Acervo 1 |
Calma, camaleão! | Laurent Cardon | Acervo 1 |
Um+um+um+todos | Anna Göbel | Acervo 1 |
O gato e a árvore | Rogério Coelho | Acervo 1 |
Minhocas comem amendoins | Elisa Géhin | Acervo 1 |
Mar de sonhos | Dennis Nolan | Acervo 2 |
Voa, pipa, voa | Regina Rennó | Acervo 2 |
O noivo da ratinha | Lúcia Hiratsuka | Acervo 2 |
Nerina: a ovelha negra | Michele Iacocca | Acervo 2 |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Para esse estudo qualitativo, que prioriza a descrição analítica, delimitaram-se obras literárias, cujas ilustrações da primeira capa e da quarta capa, ao serem unidas, formam uma única imagem ou cena. Com essas características, foram selecionadas duas obras do Acervo 1, a saber: Ladrão de galinhas, de Béatrice Rodriguez, e Calma, camaleão!, de Laurent Cardon.
Lançado em 2005, na França, Ladrão de galinhas, de Béatrice Rodriguez, tem como narrativa o sequestro de uma galinha arquitetado por uma raposa. O exemplar, composto de 32 páginas não numeradas, tem encadernação de brochura com lombada e formato paisagem, com dimensões de 27,5 centímetros por 17 centímetros. Como pode ser observado na Figura 1 e na Figura 2, respectivamente, a quarta e a primeira capa revelam continuidade, constituindo uma cena que antecipa acontecimentos do enredo.
Ao observar a ilustração, destaca-se, inicialmente, o dinamismo. A ação entre as personagens sugere movimento da esquerda para a direita, característica que pode estar relacionada ao modo de leitura ocidental, que ocorre no mesmo sentido. A partir disso, tem-se uma informação implícita, a qual possibilita a construção de um significado para o título, porque a raposa está sendo perseguida por um urso, um coelho e um galo que tencionam salvar a galinha. O leitor, desse modo, identifica o ladrão, a vítima e os resgatadores. Em outras palavras, ao associar o paratexto “LADRÃO DE GALINHAS”, indicado no canto superior esquerdo, com fonte de cor preta, a um evento da trama, tem-se a aproximação de quem lê com a narrativa. Considerando a criança não alfabetizada e letrada, faz-se necessário ressaltar que, na sala de aula, o professor tem o papel de mediar essa inferência.
Outro aspecto a ser verificado no tocante a ilustração diz respeito ao ambiente campestre. Predominantemente verde, “[...] cor tranquilizadora, refrescante, humana”, como explicam Chevalier & Gheerbrant (1999, p. 939), a cada primavera, “[...] um novo mato verde [...] traz de volta a esperança”. Assim, constata-se a simbolização do despertar, do desabrochar da vida. Conforme pode ser visto na Figura 1 e na Figura 2, as tonalidades dessa cor primária permitem a dedução da temporalidade da narrativa. Por meio dos tons de verde claro, utilizados para colorir a área arbórea, a luz do dia fica perceptível e, consequentemente, identifica-se o sol a pino por causa das sombras das personagens. No entanto, o desenrolar da história ocorre em quatro dias e três noites, sendo a primeira e a quarta capa apenas um momento. Por isso, o tempo e o espaço devem ser trabalhados ao longo da leitura, pois as imagens do enredo expressam a passagem das horas e a diversidade de cenários percorridos. No processo interpretação, esses detalhes enriquecem o imaginário infantil, contribuindo para o desenvolvimento das habilidades e competências leitoras.
Acompanhando o título, o selo da editora e o nome da autora/ilustradora estão destacados no balão verde, consoante a Figura 3. “LIVROS DA EDITORA RAPOSA VERMELHA”, localizado abaixo do título, com fonte de cor preta, e “BÉATRICE RODRIGUEZ”, posicionado ao lado do título, com fonte de cor branca, não são paratextos direcionados aos alunos da Educação Infantil. Diante disso, entende-se que essas informações explícitas são importantes para reconhecer qualidade da obra literária, tanto editorial quanto textual.
Igualmente, o selo do PNBE 2014 (Figura 4) em tonalidades de azul, no canto superior direito, possivelmente, torna-se objeto de atenção somente do professor, uma vez que, no âmbito escolar, os alunos contemplados pelos acervos da Categoria 2 são crianças de 4 e 5 anos, as quais não avaliariam a relevância dessa mensagem paratextual. Apesar dos critérios para a seleção do acervo do Programa, esse “carimbo” respalda a distinção para o mediador em sala de aula.
Focalizando na quarta capa, a sinopse (Figura 5), identificada no canto inferior direito, abaixo do selo da editora, com fonte em cor preta e, posteriormente, em cor branca, está inserida num balão verde, padronizando as características dos paratextos, já que o mesmo recurso foi empregado na primeira capa. Tendo em vista como a importância da síntese do enredo, constata-se que “LIVROS DA EDITORA RAPOSA VERMELHA” acabam ficando em segundo plano. Todavia, deve-se frisar que ambos são voltados para a atenção do professor. Com isso, durante uma atividade de leitura, cabe ao mediador contribuir para o estabelecimento de vínculos entre o aluno e as informações explícitas. Na quarta capa, ainda, nota-se como o código de barras, colocado no canto inferior esquerdo, torna-se irrelevante na biblioteca escolar, visto que sua função está associada ao mercado livreiro.
Ademais, salienta-se como a sinopse une os paratextos da primeira e da quarta capa, principalmente as ilustrações representativas das personagens, explicando e complementado o título. Porém, faz-se necessário questionar: no processo interpretativo, como o leitor não alfabetizado e letrado estabelecerá essas relações? Levando em conta que o professor, na sala de aula, representa um elo entre o aluno e o conhecimento disponível no ambiente, sua mediação tem finalidade fundamental para que essas ligações entre os paratextos sejam feitas.
À vista disso, considerando a primeira e a quarta capa do livro Ladrão de galinhas, conclui-se que o público-alvo seja o professor, uma vez que as informações implícitas e explícitas elencadas não favorecem o contanto do leitor criança com a obra literária. Consequentemente, indica que, para ser potencializado em sala de aula, requer um mediador, capaz de criar uma ponte entre os alunos e os paratextos, os quais complementam o texto literário.
O livro Calma, camaleão!, de Laurent Cardon, lançado em 2010, no Brasil, narra a tentativa do réptil fazer amigos, mudando, concomitantemente, de cor e de personalidade. Em formato paisagem, com dimensões de 19 centímetros por 27,50 centímetros, o exemplar de 32 páginas não numeradas tem acabamento de brochura com lombada.
Em continuidade, a primeira e a quarta capa (Figura 6 e Figura 7) ilustram a personagem principal, dividindo-a entre o colorido e o neutro e entre o liso e o áspero, posto que na figura é empregada textura áspera que remete à pele do réptil. A postura do “leão da terra”, como observa-se, releva movimento e confere dinamismo: com as patas estendidas, ele movimenta-se da esquerda para a direita, mimetizando a ação do leitor. Sem elementos de cenário para identificar o espaço e o tempo, os acontecimentos da narrativa não são anunciados antecipadamente por intermédio dos peritextos editoriais. Observa-se, além disso, a relação implícita entre os elementos paratextuais, uma vez que o título se associa à expressão facial e corporais eufóricas do animal. Contudo, deve-se ressaltar que, em sala de aula, tem-se a necessidade da mediação para que o aluno possa construir essas ligações e antecipar a mensagem da obra literária.
Explorando a primeira capa, verifica-se (Figura 8) que o título, “CALMA, CAMALEÃO!”, indicado no canto superior direito, destaca-se pelo emprego de fonte na cor amarela e contorno laranja, sobressaindo-se sobre o fundo azul, que pode sugerir profundidade, imaterialidade e frieza, no qual “[...] o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se até o infinito” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p. 107). Essa caraterística da cor primária opõe-se à ilustração da personagem. Com isso, consequentemente, tem-se o destaque do camaleão. Novamente, ao trazer essa obra literária para a escola, torna-se inevitável que o professor oriente o olhar do leitor não alfabetizado e letrado para esses detalhes.
Em seguida, constata-se que o nome do autor/ilustrador, “LAURENT CARDON”, evidencia-se de modo similar. Localizado abaixo do título, no canto inferior direito, próximo à figura da personagem principal (Figura 9), a fonte de cor branca ressalta a mensagem paratextual, atraindo a atenção de quem lê. Isso, incialmente, pode ser entendido como uma particularidade específica do paratexto editorial, como ocorre com o título, para atrair a atenção da criança.
No entanto, o mesmo não ocorre com o selo do PNBE 2014 em tonalidade verde, e o selo da editora (Figura 9), situados no canto inferior direito. Por conseguinte, corrobora-se a hipótese de não serem elementos paratextuais direcionados aos alunos da Educação Infantil contemplados pelos acervos da Categoria 2, mas, sim, ao professor.
Na quarta capa, a sinopse, colocada no canto inferior esquerdo, acima do código de barras, é realçada em virtude da fonte grafada em cor branca, como pode ser visto na Figura 10. A partir do breve resumo do enredo, o leitor não alfabetizado e letrado não tem a possibilidade de estabelecer relação com o título e, por conseguinte, com a ilustração, interpretando o implícito.
O paratexto “UM LIVRO SÓ DE IMAGENS” (Figura 11), acima da cauda preênsil e colorida do animal ilustrado, com fonte de cor branca, não se torna objeto de atenção do aluno, mas, sim, do professor, visto que a informação se caracteriza como irrelevante para leitores de 4 a 5 anos de idade.
Considerando a primeira e a quarta capa, conclui-se que, a princípio, a figura colorida e áspera do camaleão mobilizaria o leitor criança visado pelo PNBE para interagir com o livro. O conjunto de elementos verbais, no entanto, tende a privilegiar o professor como público-alvo da obra Calma, camaleão!, devido à utilização de informações explícita e implícitas que dificultam a sua aproximação com o aluno. Nessa perspectiva, tendo em vista o processo interpretativo, com a mediação, pode-se desenvolver a percepção e a observação do aluno em relação aos paratextos.
Considerando as análises apresentadas, compreende-se que os peritextos editoriais são influentes no processo de leitura, uma vez que, em suas variedades, conversam ora com o professor, ora com o aluno. Com isso, evidencia-se a importância da mediação em sala de aula, visando a recepção do livro e a interação entre ele e o leitor criança.
A análise dos elementos em relação aos paratextos de cada livro proposto, evidenciou que o processo interpretativo, considerando a criança que ainda não lê, necessita de um mediador para que o aluno realize as conexões desejadas no processo educativo para construção da competência leitora. O processo educativo é aqui entendido como interação e transformação que qualifica o ser humano. Implica estabelecer relações com outros seres e o mundo, focalizando o indivíduo como sujeito coletivo que aprende a conhecer através do diálogo e da interrogação.
Uma perspectiva do conceito de mediação, nesse sentido, é oferecida por Martín-Barbero (2000), a qual suplanta a concepção tradicional da teoria da comunicação para a perspectiva da ação mediada. O fenômeno da mediação cultural supera o contexto da recepção, do comportamento reativo, fruto de uma causalidade, e é entendido como uma atitude responsiva, dinâmica e transgressora. Essa concepção abre espaço para abordagem de significados, pois quebra a hegemonia tradicional de fonte emissora e seu destino, para dar ênfase ao espaço de significação, ao intervalo criado entre o sujeito e o meio, não definido por nenhum desses extremos, mas pela interação e pela produção de sentido.
A ação mediadora ocorre a partir das intervenções do outro, em ambientes de contato humano, envolvendo todos os participantes do processo. A ação mediada emerge de ações responsivas, acolhendo um campo de possibilidades, em que estão pressupostas múltiplas formas de codificação e, na passagem de uma codificação para outra, acontece a recodificação: a atitude responsiva, ou mediação dialógica. Esse é o ponto marcante nessa concepção, pois gera intervenção em que a resposta não reproduz comportamentos, mas cria posicionamentos. Ao se tratar de processos educativos, a tomada de posição, o diálogo, o argumento e as condições de intervenção são atitudes desejáveis quando se busca qualidade nas relações entre sujeitos e mundo.
O conceito de mediação designa aquilo que se encontra entre duas partes, indica reciprocidade e interação. No contexto didático-pedagógico, caracteriza um tipo de relação entre professor/aluno e aluno/aluno, a qual tem por eixo a interação no diálogo e na escuta. Como forma de educar, tais procedimentos tornam os participantes do processo protagonistas ativos, críticos e criadores. No âmbito de ensino e aprendizagem, o caráter mediador pressupõe uma ação de natureza didática, de responsabilidade do professor. A intencionalidade e o desejo docente dinamizam a intencionalidade e o desejo do estudante. O entendimento do processo: saber como se aprende, para saber como se ensina, considera as relações entre o âmbito cognitivo, afetivo e interativo nas ações mediadoras entre alunos e cultura. Os objetos de conhecimento não são apropriados pelo sujeito de forma imediata, mas pela associação de fatores diversos, principalmente aspectos sociais, afetivos, culturais e de linguagem que atuam na produção de sentidos.
Moraes (2004) define a mediação pedagógica pelo enfoque sistêmico, destacando-o como processo de comunicação em que a conversa tem papel indispensável ao criar o diálogo e a negociação e incentivar a construção conjunta de saberes contextualizados a partir da interação. Logo, uma ação mediadora consiste em criar um ambiente propício à aprendizagem, provocar o diálogo e a escuta, processar informações, fazer circular ideias e significados, no contato comunicativo e significativo entre sujeitos.
José Alberto Baldissera (2010, p. 248) afirma que somos “analfabetos visuais”, pois “sabemos entender o significado explícito da imagem, mas ainda estamos, em geral, pouco qualificados para ler os seus significados implícitos, causados, por exemplo, pela tensão entre forma e conteúdo”. E aqui identificamos o questionamento sobre a construção de competências, pelo professor, para leitura de imagens.
Uma indicação para a necessidade de inclusão da leitura de imagens na formação inicial de docentes remonta a investigação promovida por Panozzo (2001, p. 136), quando a pesquisadora afirma: “é preciso dar acesso, nos cursos de formação de professores, aos referenciais e experiências de aprendizagem dos modos de dar visibilidade, para a devida exploração em sala de aula”. Tal posição de formação docente é reiterada, na tese de doutorado, dada a importância da visualidade, chamando para um investimento “na formação inicial e continuada, para desenvolver um olhar apurado, capaz de atribuir significado sobre a oferta textual contemporânea” (2007, p. 33). Destaca a inclusão dos estudos da linguagem visual em cursos de formação nas diferentes licenciaturas, pois “o papel docente é mediar, favorecer o diálogo e a troca de saberes; indagar, para trazer o texto à visibilidade e torná-lo legível” (p. 192).
O discurso criado pela presença das imagens, e como linguagem específica junto aos livros infantis, tem potencial de gerar explicações, argumentos e narrativas, cabendo ao docente estar apropriado desse processo para a promoção da interpretação dos textos visuais criados pelas ilustrações.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao distribuir obras de literatura a instituições de ensino da rede pública, o PNBE estabeleceu um parâmetro relativo à formação de bibliotecas escolares no Brasil, oportunizando o acesso a bens culturais. Contudo, a mera presença do livro não garante a leitura e sabe-se que nem sempre temos a figura de um mediador que favoreça o acesso ao livro. Assim, busca-se no objeto livro elementos que possam mobilizar o estudante para a leitura. Tais elementos, no âmbito desse estudo, são os paratextos externos.
Foram privilegiados nesse artigo títulos da Educação Infantil com narrativas por imagens, que, durante o processo de alfabetização e letramento, iniciam a formação leitora do estudante. Com base nas análises infere-se que os paratextos da primeira capa e da quarta capa das obras selecionadas possibilitam determinar a quem elas se direcionam e, como resultado, em atividades de leitura propostas no âmbito escolar é importante orientar acerca da funcionalidade desses discursos, uma vez que epitextos associam-se de modo direto à receptibilidade do livro. Constata-se, ainda, que os elementos paratextuais se correlacionam, sendo importantes para o processo interpretativo.
Entre informações implícitas e informações explícitas, o leitor criança, a partir das mediações realizadas pelo adulto, consegue atribuir significação tanto às mensagens paratextuais, quanto ao texto. Consequentemente, ele aproxima-se da literatura, a qual abre espaço, por meio de seus conflitos, para reflexões, expandindo as fronteiras do conhecido.
Isso posto, destaca-se que, apesar do público-alvo ser o infantil, quem toma decisões acerca da obra, geralmente, são os adultos. Nessa perspectiva, os peritextos editoriais buscam, alternadamente, chamar a atenção dos dois grupos, direcionando suas mensagens de modo a estabelecer um diálogo conforme a intenção. Levando em conta essa questão, observa-se que, em se tratando da biblioteca escolar, o docente elege um título entre outros para ser apresentado e lido pelos estudantes, isto é, promove a mediação e a interação entre os objetos da cultura e os sujeitos, que dialogam entre si, transformando e transformando-se. Desse modo, considerando a natureza do objeto livro literário infantil, os processos de formação inicial de professores necessitam promover a construção de competências para leitura de imagens, contribuindo para pensar acerca da importância de elementos verbais e não verbais complementares ao texto, como, por exemplo, elementos paratextuais. A partir disso, oportuniza-se caracterizar a interação prévia entre leitor e texto e, assim sendo, melhorar o planejamento de mediações na sala de aula.